Godard 1968: polifonia, potência, inacabamento
Gustavo Silveira Ribeiro
A constelação de movimentos e manifestos, ofensivas e discursos que tiveram lugar na França, em maio de 1968, fizeram há pouco 50 anos. Acontecimento múltiplo, a onda de lutas estudantis e populares que paralisou parte do país e se espalhou pela Europa e por boa parte do Ocidente não parecia ter um centro definido, uma pauta regular de reivindicações. Ao contrário das jornadas da juventude e das greves gerais antes deflagradas, o aspecto econômico do problema parecia ser, num primeiro momento, menos importante, ocupando a margem da cena num contexto em que, tradicionalmente, sempre deteve relevância decisiva, quase absoluta. Ao contrário, portanto, do que os olhos estavam acostumados a ver, o Maio de 1968 francês foi uma realização sobretudo política, uma disputa no campo ideológico na qual a própria existência comum, seu significado e suas possibilidades, por assim dizer, estavam em questão. Mais do que em outros conflitos sociais de expressão semelhante (como, por exemplo, os protestos brasileiros de Junho de 2013 no Brasil), o ponto explosivo das ações estava assentado sobre uma espécie de desejo de revisão geral de valores, de crítica ampla a tudo o que se apresentava como hábito e tradição constituída (na Universidade, no universo do trabalho, nas relações familiares, no sexo e nas próprias formas de organização da Esquerda). A vida mesma, seus dilemas e modos de usar, era o motor dos questionamentos: os slogans que se espalhavam pela cidade, nos arredores da Sorbonne principalmente, Il est interdit d’interdire! e tantos outros, pareciam reivindicar a própria potência da vida como aquilo que, de mais essencial, deveria ser preservado a qualquer custo, posto livre de quaisquer limites e formas de controle. Assim, num levante em que os corpos ocuparam o primeiro plano, não mais como plataformas neutras a partir das quais ideias eram levadas a cabo e expostas ao mundo, mas como protagonistas de um processo urgente de desregulação e liberdade, não seria de espantar que a arte tivesse parte considerável no que sucedeu ali, uma vez que, por tratar-se de matéria sensível, aesthesis que aponta antes para aquilo que o corpo sabe antes que o espírito, ela fosse um território privilegiado das batalhas que se desdobravam a céu aberto.
O cineasta Jean-Luc Godard, talvez mais do que qualquer outro artista do seu tempo, esteve envolvido de diversas formas nos acontecimentos de 1968. É bastante conhecida a tese de que seu filme A Chinesa (1967), do ano anterior, havia antecipado, de modo surpreendente, o clima de radicalização da juventude, a intensa mobilização que, silenciosa e talvez inconsciente, já ia se formando. Participando diretamente das passeatas, filmando a partir delas, trabalhando ativamente em meio aos protesto que paralisavam as engrenagens do poder e ameaçavam a troca incessante de mercadorias (o fundamento do capital e sua ordem instituída, antes mesmo de qualquer arranjo político ou governamental), o diretor pôde observar atentamente o que se passava, procurando compreender – como todos os que ali estiveram, e muitos dos que se debruçam sobre a história do movimento – as energias que se desprenderam daquele processo e as razões que levaram, algum tempo depois, ao seu recolhimento. Foi, no entanto, num filme-ensaio realizado meses depois do epicentro dos conflitos, Sympathy for the Devil (One Plus One) (1968), rodado inteiro em Londres, que Godard pôde apresentar uma leitura do que a França – e o Ocidente, é possível dizer – havia experienciado. Não se trata, é claro, de qualquer tentativa de reconstituição dos fatos via ficção, nem mesmo da elaboração de uma linguagem documental que pudesse recolher os cacos da História e os organizar numa narrativa coerente. Quem está minimamente familiarizado com a filmografia do diretor sabe da recusa aos expedientes tradicionais da sintaxe cinematográfica, bem como reconhece a sua preferência pela complexidade reflexiva que se dá pela via da montagem, da fragmentação discursiva e pela explosão da linearidade e da causalidade. Até então quase sempre trabalhando a partir dos gêneros tradicionais da indústria do cinema, tentando sabotá-los por dentro, a partir dessa época o diretor abandona as experiências com filmes de alguma penetração comercial e radicaliza as experiências de vanguarda (estética e política) dos seus filmes. Algo havia se rompido e não voltaria mais a existir nos mesmos termos para o diretor. Nesse sentido, afirmar que Sympathy for the Devil é a resposta de Godard ao Maio de 1968 é dizer que, nessa película particular, o diretor procura atravessar os acontecimentos do período – ainda frescos na mente do público – com um contradiscurso que os procure, ao mesmo tempo, interpretar e interpelar, isto é, os abrir em todas as suas possibilidades de compreensão e propor, algo violentamente, de maneira instituinte e em choque, uma rede de significados que se estenda como um véu sobre os eventos, ao mesmo tempo encobrindo-os e reorganizando-os.
O filme está partido em dois, cindido mesmo em sua estrutura fundamental, conforme o subtítulo One plus One já deixa perceber. Embaralhados, os blocos imagéticos (os sintagmas visuais, pois não faz mais sentido pensar em instâncias narrativas aqui) do filme vão se sucedendo na tela: logo de início (e ao longo de todo o trabalho) o diretor apresenta o registro íntimo de uma canção, como que a origem de uma obra de arte: os Rolling Stones, banda de rock inglesa então muito pouco convencional, prepara Sympathy for the Devil, música que surge em vários estágios diante do espectador, dos acordes iniciais e desorganizados dos violões do grupo – no que mais parece um ensaio preliminar, quando a canção lembra um samba ou outros ritmos sincopados da música latina – até a forma final com que foi veiculada no álbum “Beggars Banquet”. Justapostas a essa filmagem despojada e como que doméstica, cenas de registro muito diverso vão aparecendo em contraponto, de mistura, atravessando a unidade pressuposta da sessão documental do filme: num ferro-velho, em meio a carros empilhados e a muitos dos resíduos produzidos pelas sociedades de consumo, um grupo de homens negros armados recitam agressivamente textos duros, igualmente agressivos nas posições ético-políticas que apresentam – à esquerda e à direita, em repetição às vezes indecisa; junto a eles, é encenada a execução sumária de atores brancos, bem vestidos e de modo claro ligados – é o que se sugere pelo contraste entre os atores em cena – à burguesia e outros setores das classes dominantes. A referência imediata, naquele contexto e por tudo o que ali se diz e faz, é aos Partido dos Panteras Negras (BPP), movimento revolucionário norte-americano (de inspiração maoísta) que procurava questionar e combater, de armas nas mãos, a feroz divisão racial e a violência – política, econômica, cultural – que segregava a população negra daquele país.
Numa nova sucessão de blocos, as imagens dos Stones vão ser aproximada e tensionada com cenas urbanas, captadas em diferentes regiões de Londres, nas quais homens e mulheres se põem a pixar a cidade, escrevendo sobre muros e demais superfícies palavras de ordem anti-establishment, senhas para o caos do Estado e das instituições oficiais (o cinema comercial-convencional entre elas). Tudo isso, toda a multiplicidade fragmentária das revoltas encenadas pelo diretor vai se chocando com a construção da canção pop, opondo e somando, deslocando e acumulando sons, informações, pedaços distintos do mundo. A técnica usada pelo diretor – apoiado num processo de montagem bastante estudado, é certo – parece remeter a um dos romances modernos mais instigantes do século XX, texto já antes visitado pela filmografia de Godard: “The Wild Palms” (1939), de William Faulkner. Esse texto também se apoia na sucessão de blocos narrativos desconectados entre si, com histórias que não se tocam em nenhum momento mas se atravessam de maneira continuada pelo fato de, a cada suspensão de capítulo, a parte anterior dar lugar a sequência do outro texto, que assim, nessa lógica contrastante, vai se fazendo como todo orgânico, peça feita pela disjunção e pelo estranhamento. Como o que ali acontece, em Sympathy for the Devil os diferentes módulos não se comunicam diretamente (apesar de as imagens e os sons algumas vezes chegarem a se confundir em amálgama breve). Igualmente como o que se dá no romance de Faulkner, a disposição não-linear dos blocos narrativos estabelece uma espécie de zona de contaminação de sentidos, na qual os sucessos de uma parte afetam os outros, projetando-se sobre eles, deixando algo do seu significado aberto e incompleto para ser preenchido pela imagem que virá. Essa disposição aparentemente anárquica, mas que tem muito de cerebral e cuidada, articula desse modo vetores distintos e complementares, forças que se encontram e chegam, com o desenvolvimento do trabalho, a se confundirem: criação e demolição, invenção e sabotagem formam o corpo do filme, indicando já, sobreposta a película ao seu contexto histórico imediato, aos acontecimentos contraditórios e inextricáveis daquele período rico e difícil, 1968.
O que Sympathy for the Devil parece localizar com precisão é o coração verdadeiramente inabordável dos eventos do Maio francês, da onda revolucionária que injetou esperanças de transformação em diferentes sociedades que, por parecerem engessadas e firmes, expuseram o solo movediço sobre a qual seus fundamentos repousam. O binômio criação-destruição, seu caráter reversível e dialético, sua natureza nunca de todo explicável, parece guardar alguns dos sentidos possíveis da experiência daquele período. A crítica implacável que os movimentos político-culturais faziam das normas sociais vigentes, dos hábitos inamovíveis do mundo capitalista e sua moral sexual, seus ordenamentos econômicos, apontava para a derrocada de tudo o que estava de pé; a juventude parecia querer reiniciar a vida, partindo de um hipotético ponto zero da experiência. Ao mesmo tempo, e de modo inseparável, esse desejo negativo de quebra vinha acompanhado da proposição intensa de novas formas de encontro, de diferentes possibilidades de luta política, de linguagens e comportamentos até então pouco ou nada vistos. Nos termos de One Plus One: a desagregação explosiva das vanguardas estéticas e políticas, o cineasta que se move em meio aos detritos, os jovens negros armados de fuzis e niilismo; o rock vai surgindo peça por peça, ao mesmo tempo rebelde e integrado ao mercado, um rasgo crítico e irônico que, no entanto, alimenta as engrenagens do capital e do show business.
A dualidade desse processo, portanto, que esteve no cerne das agitações revolucionárias daquele tempo, ocupa o cineasta inteiramente, uma vez que ele coloca a máquina de seu filme para representar, pensando-a por imagens, o aspecto paradoxal do processo. A música que acompanha de perto o sofrimento e a guerra, (“Let me please introduce myself/I’m a man of wealth and taste/And I laid traps for troubadours/Who get killed before they reached Bombay”) é a mesma que brilha sob as luzes mistificantes da TV. Derrisória e assimilada. Do mesmo modo, o terror e violência revolucionárias são, ou podem ser, as mesmas que disparam ciclos intensos de destruição, muito mais próximos do irracionalismo do que se poderia inicialmente supor. O contraste (o choque das imagens que se opõem) e a elipse terminam por ser os procedimentos estéticos fundamentais do diretor, que não quer explicar de modo cabal o que não podia ainda, naquele contexto, ser explicado, preferindo elaborar um ensaio visual complexo que pudesse capturar, a partir da tensão, o ponto de suspensão em que as coisas se paralisam e o desconhecido, o novo, pode ser vislumbrado, mesmo que não se torne realidade imediata, permanecendo como contradição ou latência.
A promessa contida na canção anárquica do Stones, música que, em sua densidade formal apresenta um conjunto de metáforas e episódios extremos e dissociativos, aponta para a construção de uma obra, um produto afinal reconhecível e pleno, uma realização da cultura, enfim, vitória do engenho e da arte contra o caos e o nada. O que se afirma, no entanto, nesse produto é coeficiente de destruição que carrega, a negatividade que o marca ambiguamente como resultado da indústria do entretenimento e vislumbre terrível do fim de tudo, do horror da História e das forças explosivas que se agitam no homem. O convite, por sua vez, feito por cada um dos fragmentos encenados do caos e do questionamento que informam as muitas passagens violentas do filme, aos trechos mais diretamente paródicos e àqueles resistentes mesmo ao sentido, se traduzirá, por inusitado que pareça, na construção de uma nova realidade social, novas formas de convívio e organização; por mais que se encene a brutalidade e o absurdo, não se trata apenas de pulsão de morte, uma vez que a dialética do olhar lançado sobre as coisas indica a reversibilidade do processo, o fim como ponto de reinício, utopia renovadora, abertura de um novo ciclo. Os usos e sentidos da vida, enfim, é o que está em jogo no filme de Jean-Luc Godard: a necessidade construtiva e a força que tudo arrasa (ou quer arrasar), são como potências específicas, propriedades da vida que, no maio de 1968, vieram à tona para, segundo propõe o diretor, não mais submergir.