Sete Anos em Maio (2019), de Affonso Uchoa

Um sonho, um pesadelo

Rubens Fabricio Anzolin

Uma trilha trêmula. Sempre crua.

A trilha da chegada ou saída do inferno. A isso se reduz tudo.

 Aproximar-se ou afastar-se do inferno.

Eu, por exemplo, mandei matar.

(Roberto Bolaño, “Prefiguração de Lalo Cura”)

Era como se o áspero deslocamento da terra pelo espaço

se houvesse de repente tornado audível.

(Joseph Conrad, “Coração das Trevas”)

I

Salvo Mulher à Tarde (2010), a impressão que me escorre ao final de Sete Anos em Maio (2019) é muito similar à experiência dos outros dois longas-metragens de Affonso Uchôa, Arábia (2017, co-dirigido com João Dumans) e A Vizinhança do Tigre (2014). Acabados os três filmes, sobrava uma sensação de incompletude: um sentimento desorientado de por onde começar a digerir ou morder o filme, suas imagens, seus personagens. Isso tudo não só pelo fato das obras parecerem tão distantes, mas especialmente por seus destinos materializarem-se em uma linha muito ríspida entre o plano da vida e da morte, borrando a ficção para começar a rasgar a carne do real. Assim é com os garotos de A Vizinhança do Tigre tanto quanto com o narrador de Arábia: algo ali existe para além do frame – uma relação cotidiana, perene – que transforma em matéria dura a contingência impalpável do cinema. Que arranha a pele do opaco dando lugar à uma severa transparência.

A vida (o que sobra sempre depois dos filmes), entretanto, exige ao menos que permaneçamos em ordem, tentando decifrar ou penetrar (pelo menos um pouco) esse conjunto de filigranas que nos atinge. Ela pede que andemos, vaguemos – juventude em marcha – em direção desses códigos que soam tão descomunais, tão incertos. E, se nesse caso do cinema de Uchôa, a questão central é mesmo o que se opera num sentido de vida, acredito que seja especialmente porque seus filmes – como objeto e corpo, acontecimento – a efeitos cruciais, lidem mais diretamente com a morte.

Pois, se A Vizinhança do Tigre apontava para uma geografia de garotos que flertavam com o mundo da violência e da criminalidade quase que instantâneamente (reconhecendo esses espaços, esbarrando nos seus gestos, penetrando em uma camada da intimidade que derrubava o real cinematográfico – de sentido mais documental, objetivo – para alcançar quase uma substância de aura, de sensação do que se vive), Arábia era propriamente uma jornada que se ligava e tecia através da morte, o operário que rememora seus relatos post facto, empreendendo uma visão de Brasil dos anos 2010 a partir do seu lugar social, mas na dependência exata da morte como dispositivo. Liamos o caderno de Cristiano para compreendê-lo, especialmente porque, em matéria presente, não mais estava ali. Vivíamos o filme dentro da memória, através dela.

O que se desprende disso, enfim, é a relação que as obras de Uchôa estabelecem com figuras que frequentemente encaram o findar do mundo, esse mundo tão próximo ao realizador, tão mano-a-mano. (Para os personagens de A Vizinhança do Tigre, o fim das aulas, o limbo da vida adulta, a ronda do cárcere e da drogadição, o exercício da perda da inocência em uma infância precoce; para o operário de Arábia, o trabalho como mote de morte, a desidentificação do todo como processo de apagamento, de impessoalização). É através dessa relação que se consuma uma narratologia que atravessa a vivência, o já visto, já sentido – o mundo que, futuramente, me atravessaria como espectador, em forma de frame; mas que, antes, foi o mundo que atravessou Junim, que atravessou Cristiano, e que, por sua vez, é o mesmo que atravessa Rafael, protagonista de Sete Anos em Maio.

II

Talvez seja exatamente por isto que o primeiro plano de Sete Anos pareça uma presença tão material e simbólica dessa concepção de mundo em queda, em que o personagem vaga por um largo espaço de tempo por uma estrada, envolvido pela escuridão abissal da noite.

Dessa imagem, são possíveis duas computações. Por primeiro, a de quem parte, pois o mundo de Rafael se desmonta enquanto caminha – em estrutura de plano, a primeira decupagem do filme joga-nos à um negro quase absoluto: Rafael desloca-se por uma rua larga, nas suas costas estão as poucas luzes das casas, do bairro, da civilização. A falta de presença material do plano em questão permite-nos perceber poucas coisas de fato, a mais clara delas é que Rafael se dirige à frente, abandona um rastro de sociedade que suas costas amparam – atrás dele estão não só as pequenas fagulhas da cidade, como também sua estrutura arquitetônica, o que, na figura das construções, se resume ao espaço de uma civilização; à sua frente, em direção ao espectador, o extra-campo esconde o destino do rapaz. No mais, compreende-se apenas que Rafael caminha, tal qual um tipo vivo-morto, por um espaço que não permite ao espectador reconhecimento. Ou seja, Rafael caminho por um não-espaço. Acerca do destino do rapaz, pouco tem-se informação, mas a narratologia que a imagem dá conta de construir passa por uma necessidade de caminhar – fugir, partir -, complementada por uma construção severa de abandono: se algo cruza o caminho de Rafael no plano em questão, pequenas luzes e faróis de carros alheios, logo fundem-se ao rosto do rapaz para ir embora. Desconhecemos o espaço do quadro tanto quanto as luzes desconhecem e desconfiguram o rosto e o corpo de Rafael. Estabelece-se uma noção de indefinido.

Então, partimos para a segunda computação, o escuro – esse escuro tão presente, tão palpável. Já em determinado andamento do plano, mal se pode ver Rafael, qualquer fagulha de cidade ou mesmo o caminho pelo qual passou. A luz pela qual passou já não ganha força para delinear em claro uma figura: resta-nos as formas das sombras.

Esse tal escuro que toma conta do campo, por sua vez, recria uma construção que dialoga diretamente com a presença da morte ou mesmo da passagem, do porvir. A escuridão, nesse caso, fornece ao personagem um legado de indefinição: ninguém o reconhece enquanto passa, ninguém nota sua presença. O andar rasteiro, quase zumbi, de Rafael o torna para o espectador em si uma dúvida – perde-se o deslocamento espacial e temporal e começamos a refletir se ainda há vida naquele espaço, se ele em si já não foi todo desmantelado, assim como acontece com o personagem no decorrer do plano. É exatamente por isso que se o rapaz caminha assim por tanto tempo no breu da noite, em cinema-fluxo, desvendamos um jogo de luz e sombra, uma zona de risco que a dilatação do plano defende, fundindo o corpo do personagem com o espaço escurecido, impreciso. Virar matéria, domar o quadro, converter-se em frame, em potência fotográfica – o cinema não mais centrífugo (do quadro em direção ao campo), mas sim centrípeto (o campo que assombra o quadro), tal qual a noite tomava conta da fogueira de Cristiano ao fim de Arábia, para que tudo se convertesse em escuridão, em passagem, em final.

Dessa forma, o que Sete Anos em Maio propõe é a construção de um espaço narrativo indefinido, não delineado. Através dessa computação, o filme compreende que a história de Rafael não permite uma representação (refazer os fatos tais quais ocorreram, dar nome aos personagens), mas sim exige um processo de reencenação. Se a “trama” central passa pelo relato do jovem que foi abordado por uma batida policial violenta na periferia de Minas Gerais e, por consequência, foi obrigado a ir embora – passando por toda espécie de perrengue e provação que essa situação possa exigir -, Uchôa também compreende que o ardor do processo da vida do rapaz talvez não coubesse em uma medida mais realista. O que, por consequência, explica a construção de um espaço para-narrativo (constituído em matéria de cinema por um escuro absoluto, imagens que não necessariamente permite que enxerguemos) em que pode-se articular sobre a vida de uma pessoa ao mesmo tempo que é possível viabilizá-la como metáfora de um processo de discriminação ou de violência geográfica.

Em Sete Anos em Maio, Rafael é tanto a si (objeto documental cênico, figura que atravessa o limiar da vida e da morte) quanto pode ser tomado como tantos outros jovens (habitantes de processos culturais e locais similares, vítimas de uma violência estatal estrutural). Figuras à sombra dos abutres.

Se Sete Anos, enfim, se passa todo durante à noite, é muito mais pelo fato de que no escuro e nos vãos de luz o universo se torna indefinido: as coisas nos escapam, tal qual os gritos da batida policial, tal qual o personagem tem de escapar de casa. No claro, a representação exige formas do real, já na noite pode-se ver, pode-se não ver. Na noite é possível que não se exista, que se deixe de existir. A noite pode não acabar. Diante dessa condição imprecisa, talvez nunca cheguemos à luz do dia, assim como o protagonista Rafael. Assim como tantos outros protagonistas possíveis. O espaço se torna eterno, a escuridão também.

III

Quando escreveu sobre Tarumã (Aloysio Raulino, 1975), Jean Claude-Bernardet defendia que havia ocorrido no processo de filmagem um movimento instantâneo: o cineasta percebera na imagem de uma mulher a ressignificação absoluta dos pessoas da região – trabalhadores de uma área pobre camponesa -, e, a partir dali, havia focado o seu filme absolutamente nela: a câmera não procurava então mais nenhuma poiese, mas sim focava-se em enquadrar perfeitamente a moça. Isso dava-se, para Bernardet, por que Raulino (e o restante da sua equipe, que, ao fim, assinam o filme conjuntamente com ele – Guilherme Lisboa, Mario Kuperman, Romeu Quinto) haviam compreendido a necessidade de um elemento cinematográfico mínimo: só o que importava no plano em questão era o que falava a personagem, seu rosto, seus gestos. Isso bastava e tornava-se suficiente para evocar o seu discurso; mais que isso seria desviar a atenção ao que de cristalino havia naquele relato e ao que de respeitoso havia naquela representação. A conclusão era que o cineasta, então, ao minimizar toda a forma cinematográfica disponível – o enquadramento, a voz, o nome dos realizadores (que ao final são apenas citados, sem assinatura) -, atingia um grau máximo possível de representação de um explorado pelas vias de um artista. Nesse respeito da forma, nesse mínimo, construia-se um modo de alavancar o subjugado através do filme, dar-lhe lugar.

Algo muito similar ao que ocorreu em Tarumã acontece no miolo central de Sete Anos em Maio, quando a câmera posta-se frente ao protagonista para que ele narre sua história. O relato que, ora aparecia em voz over, dá luz a um plano inominável, absolutamente direto do rosto de Rafael: pela primeira vez conhecemos sua face, e nela ficaremos por uma longa duração. Em frente a fogueira, o rapaz que conta para o espectador a falência dos anos que passou fora de Belo Horizonte, as feridas de sua história.

Não haveria ali, talvez, para Affonso, outra maneira de fazer Rafael falar. Ou de falar tão claramente. O que o gesto cinematográfico denota, nesse caso, é a essência de uma cosmogonia no filme: um elemento mínimo que é exigido para poder fazer-se o relato, quase que pela via literária. A necessidade que existe, nesse caso, é a de narrar, contar. E Rafael – pelo seu peso histórico, pela força de sua figura, de sua trajetória, talvez só pudesse ser ouvido à luz do fogo, em meio ao nada, à noite absoluta.

Por isso mesmo a importância da fogueira na narrativa, pois, assim como o deslocamento do narrador era o que mais causava espanto em Arábia, é também esse código da ancestralidade o maior ponto de impacto aqui. Caso analisarmos a fundo a cena em que, pela primeira vez, podemos observar Rafael de frente – com o rosto dado às nossas vistas -, iremos perceber que é também como se o mesmo falasse para o espectador. O que o fogo reencena nesse jogo (que depois virá a ser absolutamente desvirtuado por um corte brutal da montagem, revelando outra presença no campo) é uma reconstituição da oralidade: apesar de hoje ser possível que acompanhemos as perdas e as dores da vida de Rafael por meio de uma abordagem mais simples e direta (o relato fechado, objetivo) talvez seja necessário que essa figura tão central do imaginário brasileiro – o marginalizado, o operário, o oprimido – possa se expressar através de um código mais antigo, mais in natura – ou seja, o mesmo código que perpetuou o imaginário brasileiro acerca de tantos mitos, ritos e figuras; através da fala banhada pela noite, da fogueira que forma as primeiras sombras, deforma as primeiras imagens da história. Um retorno ao primitivismo.

Em decorrência disso, o que torna tudo mais interessante é exatamente uma concepção de eterno que essas imagens (a noite e a fogueira, juntas com a voz em quadro) podem guardar. Ali, no momento da fala, impõe-se a cosmogonia, algo que rodeia o filme todo. Cosmogonia como concepção de mundo, muito por que se parece que Rafael, Neguim e todos os outros personagens que fazem parte de Sete Anos habitam um universo muito próprio, um pouco mínimo, à parte; muito mais representacional que documental. O que, evidentemente, pode remeter a um estado social mais primitivo – de novo o fogo, a fogueira, mote zero do desenvolvimento da civilização -, calcando a narração como processo de criação de mundo: ou seja, o que acontece à Rafael, acontece a quanto tempo (?), com quantas pessoas (?).

Seria por isso mais possível dizer que, tal qual Rui Chafes fala sobre Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa (cineasta que parece cada vez mais influente no cinema de Uchôa), Sete Anos em Maio também soa como um filme que “acontece quando todo o resto deixa de acontecer”, por que essa presença da noite também carrega junto uma sensação de isolamento, de solidão – não à toa Rafael e Neguim conversam sozinhos, ninguém observa o momento da abordagem policial, nenhum carro para na estrada. Além de reconstituir a ancestralidade, a noite também refaz esse modelo persuasivo de uma construção de universo muito particular, quase metonímica, em que a figura central alia solidão e presença de morte como um conto ainda muito vivo da realidade brasileira. Se Arábia era antes um Brás Cubas (narrar a vida depois da morte), Sete Anos em Maio é muito mais um projeto de Quincas Borba (a vida depois da sobrevivência e  antes da morte). A vida nas intempéries do realismo, seus gostos e desgostos. Seu dessabor.

Um cinema dos contrários, de regência negativa. Em que não se caminha, não se atua, não se vê. O que importa mesmo é o arrebatamento que atravessa o peito, a força que aquelas imagens e vozes geram em nossa cabeça, sua sinestesia fantasmagórica. Um sonho, um pesadelo. Ali onde se vive, mas não se delimita o que é real ou ficcional, quando é possível dormir ou caminhar. É a vida todas as noites ou a morte antes do amanhecer.