La Pointe Courte (1955), de Agnès Varda

A beleza é uma graça secular[i]

Letícia Badan

Sob a claridade de Sète, na Occitânia, Agnès Varda dirige, aos 25 anos, seu primeiro longa-metragem e afirma, com a estreia, sua autoridade como realizadora, seu ponto de contato com os críticos e cineastas dos Cahiers du Cinéma. La Pointe Courte (1955) reflete o olhar de uma jovem diretora que dizia pouco conhecer o cinema e, no entanto, o sentia de forma intensa.

O filme se encarrega de tecer duas tramas alternadas. Inspirado na estrutura modular do romance “Palmeiras Selvagens” (1939), de William Faulkner, ele se desenvolve entre as narrativas, ecoando os capítulos intercalados que, nas páginas do autor, retratam os conflitos amorosos de um casal e a fuga de dois prisioneiros graças a uma enchente no Mississippi. Como em Faulkner, a água permeia os caminhos centrais de La Pointe Courte. Por meio de sequências que se interpolam, o filme revela aos poucos suas histórias. A primeira, centrada no convívio social, retrata o cotidiano dos pescadores locais, suas famílias, perdas e trabalho. A segunda encara os problemas emocionais e intelectuais de um casal anônimo, Elle (ela, interpretada por Silvia Monfort) e Lui (ele, Philippe Noiret). Através desse jogo antagônico – dos pescadores e do casal – Varda compõe seu filme-ensaio, condensando aspectos do campo privado e social num film a lire.

Casados há quatro anos, o casal decide viajar para Pointe Courte, terra natal do personagem de Noiret, jamais visitada pela esposa. Chegando à cidade, ela confirma sua insatisfação com o relacionamento, exigindo ao marido o divórcio. Por meio do embate estrutural entre as duas narrativas, Varda intercala os debates afetivos com a rotina quase imutável dos habitantes da região. O social público e o afetivo privado são os traços centrais de seu cinema. É de maneira similar, por exemplo, que Varda concebe sua L’ópera-mouffe (1958), curta realizado após uma série de projetos de filmes promocionais de turismo, feitos nos anos 50. Ali, no cerne da rua Mouffetard, em Paris, a beleza celestial de uma silhueta materna é posta ao lado de uma abóbora esventrada por um comerciante. Ambas gestantes de sementes fecundas são interpretadas pela lente de Varda numa ode à fertilidade. Não há drama ou interferência. O rigor visual encontra na plasticidade das formas um verdadeiro elogio à beleza.

Varda não adentra o espaço dos transeuntes da rue Mouffetard como uma estranha. Ela repousa sobre uma cadeira e passa horas no local, a ponto de se tornar elemento constituinte daquele ambiente. De forma semelhante, sua câmera não exibe a Pointe Courte como uma desconhecida vislumbrada pela primeira vez, vagando por entre as novidades da paisagem na busca de um elemento reconhecido. Ela se projeta como uma velha amante, que retorna à terra para repousar o olhar sobre o esplendor radiante da cidade. Varda e sua família refugiaram-se em Sète durante os anos da guerra, e retornavam para o local durante as férias de verão. A Pointe Courte é, portanto, um espaço familiar e sua intenção de narrar a verdade daquele lugar se faz como um retorno a seu próprio passado. Tudo ali se resolve sob o jogo duplo – o tempo premeditado e o estilo documental – característica elementar de sua filmografia. É com os habitantes de La Pointe Courte que Varda divide a autoria de sua obra, mesclando a música local à composição de Pierre Barbaud. As sequências com os pescadores são registros de Varda durante suas pesquisas na região, e suas falas transformam-se em diálogo no filme.

Interessada pela teoria do distanciamento bretchiana, e absorta nos cursos da Sorbonne acerca da imagination de la matière, de Bachelard, Varda encontra no romance de Faulkner uma maneira de trafegar entre as tramas bipartidas numa aproximação precisamente cautelosa de seus personagens. O distanciamento é marcado pela montagem sistemática de Alain Resnais, que sequencia as narrativas e seus enfoques. São como estilhaços lançados ao espectador, o qual se nutre dos dramas contidos nos detalhes. A interrupção distancia nossa aproximação aos eventos, mas não aos personagens.

Esse distanciamento é notado sobretudo nos diálogos do casal. Ela, imersa em um mundo da imaginação, vê-se tomada pelas teias de pensamentos, que pescam no mar da memória os sentimentos do passado. Quase sempre trajada em tons escuros, destaca-se em meio a luminosidade que recobre a cidade. Ele, magnânimo em sua contemplativa racionalização da amada, reflete os tons da rocha sólida e ofuscante que se impõe no solo. A fala interpela-se pela imagem, que divide ambos, sempre ocupados em traduzir seus opostos. Desta forma, Varda estrutura seu mundo de esferas díspares à luz do Quai du Mistral e à sombra das redes de pesca. E ao passo que as duas histórias tendem a se confundir, uma evidente perturbação é posta em jogo. Esse mundo de estranhamentos reflete-se nos signos visuais ali postos, no ferro e na madeira, na água e no vento. Elementos que não se cruzam na disposição das evidências.

 

A estrutura dos trilhos do trem, a plasticidade das vigas de madeira na fábrica de barcos, o tempo reservado aos ruídos da natureza engendram-se como estruturas de seu mundo en plein air.A mise en scène parece confluir universos igualmente distantes das artes, a introspecção silenciosa das paisagens de Wyeth; o tratamento impressionista do sol espelhado na superfície marinha. Mas seu interesse pelas artes plásticas evidencia-se principalmente na obra de Piero della Francesca. Varda argumenta em diversas entrevistas sobre sua predileção pelo artista toscano do Quattrocento.Ela o retraça na escolha de seus intérpretes, Monfort e Noiret, que apresentam traços similares àqueles de suas pinturas. Noiret havia interpretado Alessandro de’ Medici na peça Lorenzaccio, de Alfred de Musset; Monfort nutria um semblante que retomava, aos olhos da cineasta, suas mulheres de rosto arredondado e pescoços alongados. Para além da parecença visual entre os personagens, o filme de Varda nutre-se da qualidade estática que atravessa as composições de Piero della Francesca. Nada parece fugir ao rigor compositivo. Em suas pinturas, um jogo absolutamente controlado prevalece entre a composição calculada, a sobriedade dos gestos e a serenidade plácida no semblante daquelas figuras religiosas. O todo é imerso no completo equilíbrio da matéria. Nenhuma sombra perturba o olhar, nenhum movimento brusco impede a cristalização da atmosfera. De forma semelhante La Pointe Courte condensa tais características na paisagem e nos protagonistas, que tocados pelo sol do mediterrâneo, confirmam uma cadência temporal meticulosa e particular.

Tudo isso compõe a beleza plástica do filme. Ferro e madeira; feminino e masculino; social e particular; cidade e campo; luz e sombra. São esses os embates postos na tela, que compensam e equilibram as forças. O filme reporta a outras obras cinematográficas. Traz à mente a jornada de Rossellini por Nápoles com Viagem à Itália (1954), bem como os mergulhos de Bergman na fragilidade das relações afetivas. La Pointe Courte abarca uma atmosfera de novas intenções para o cinema. Um filme que se funda na razão das formas, na sobriedade dos gestos e na intelectualidade do argumento, e que traduz os elementos da cidade – as águas, o vento, a madeira e o ferro – em estruturas que solidificam seu olhar para o cinema.

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[i] O título desta crítica é uma referência à entrevista concedida por Agnès Varda a Jean-Andre Fieschi e Claude Ollier, parte do número 165 de Cahiers du Cinéma.