
Leonardo Amaral
A catadora
Agnès Varda nasceu em 30 de maio de 1928, em Bruxelas, e faleceu recentemente em 28 de março de 2019, em Paris. Filha de pai grego e mãe francesa, mudou-se da Bélgica para a França ainda criança. Em Paris, casou-se com o também cineasta Jacques Demy, com quem pouco trabalhou no âmbito profissional (completamente diferente de como trabalhava outro casal do cinema francês, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub). Quando isso aconteceu, se deu bem mais em filmes nos quais Varda retratou Demy em sua vida cotidiana: longas como Jacquot de Nantes (1991)e O universo de Jacques Demy (1995). Ainda, aproveitando-se das comemorações dos 25 anos de lançamento de Duas Garotas Românticas (1967), a cineasta realiza As Moças Fazem 25 anos (1993), numa montagem que tensiona materiais de arquivo da época das filmagens, junto de imagens de making off e tomadas da chegada das atrizes, dos atores e da equipe de filmagem para as comemorações. Esses três filmes póstumos à morte de Demy denotam o método ensaístico e o modo particular de trabalho de Varda ao longo de toda a sua carreira. Em alguns momentos dela, a diretora habitou os Estados Unidos, inclusive no momento pós falecimento do marido. Fora da França, fez filmes em outros países como Cuba e Vietnã, até retornar para Rua Daguerre, onde morou e trabalhou em grande parte de sua vida em Paris. Essa brevíssima biografia serve para que tracemos algumas relações marcantes em sua obra. Fotógrafa no início e durante toda a carreira, criou um tipo de narrativa que intercala documentário, ficção e ensaio.
No final do ano passado, Varda foi homenageada pela Cinemateca Francesa como uma retrospectiva com boa parte de seus filmes. Na ocasião, no guia de programação da Cinemateca, disse a respeito do filme Os Catadores e Eu (2000):
Há muitas mãos no filme, inclusive as minhas. Uma que filma, a outra não, uma mão que olha e outra que a filma. Eu sempre gostei dessa duplicação própria do cineasta: ver e refletir, se emocionar e seguir um método, filmar no improviso e montar com rigor, capturar a desordem e a organizar. Para mim, a representação é deleitável. Porque a realidade atravessa a imagem representa e a torna mais bela. Esta é minha própria mão, que é velha, porque sou velha, e quando eu mesma a firmo, torno-a gigantesca, dobrando-a e a torcendo. É esta representação da minha mão que me faz adentrar o fenômeno do envelhecimento em um deleite extraordinário. É ao filmar a realidade que me permito de aceitar esse processo, é a representação excessiva que me permite compreendê-la.[i]
A citação anterior traduz, a partir das palavras da própria artista, um método de olhar para o mundo através das lentes da câmera para que se possa refletir a partir das imagens geradas. Filmar o improviso para que se possa pensá-lo com rigor no processo da montagem. A poesia do cinema de Agnès Varda está no modo como a poesia das palavras em reflexão alcançam as imagens e os corpos em cena. Uma imagem outrora produzida ganha novos significados quando retornada. Algo que se vê em Ulysse (1981), curta no qual a cineasta remonta o passado dos modelos e de si mesma a partir de uma fotografia tirada em uma praia na Espanha. A imagem foi feita, está lá, como diria Roland Barthes[ii]. A operação ensaística e o procedimento da montagem permitem com que a montadora-diretora esquadrinhe a imagem, estabeleça um quadro dentro do quadro e, assim, crie também novas narrativas. Assim se dá o cinema de Varda. E o que propomos nesse artigo é nada mais justo do que um ensaio sobre esse cinema tão pujante. Adorno (2006), a respeito do gesto ensaístico, atenta: “O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais.”[iii]

Posto isso, dividiremos esse ensaio em dois fragmentos. No primeiro, os aspectos da obra de Agnès Varda que apresentam uma tentativa de buscar a origem das coisas, seja de um passado remoto ligado a uma família, uma nação, um sentimento de pertencimento, seja de um sentido para a vida. No outro, as relações estabelecidas entre a cineasta e seus personagens, em algo que funciona como uma espécie de duplo espelhamento, de encontros e desencontros na rua da própria casa ou em outro país.
Fale de sua aldeia
Ao final de Muros e murmúrios (1981), Varda, em off, diz: “O futuro talvez seja uma onda que nos levará”. O som se sobrepõe a um dos murais apresentados pela cineasta no filme. Na arte pintada no muro, uma onda se choca a um rochedo. O mar é uma figura recorrente nos filmes da Agnès. “Praias são lugares onde me sinto livre”, certa vez afirmara. Seus paraísos libertários podem ser encontrados nas representações que a autora faz em As praias de Agnès (2008). Os filmes da diretora parecem sempre recorrer a um tipo de busca por algum tipo de origem líquida, fluida, que se move e se transfere de um personagem para o outro, de um lugar para outro. Interessante pensar que já em seu primeiro filme, Pointe courte (1955), um casal em crise precisa retornar à cidade onde o cônjuge nasceu para que consigam estabelecer um novo contato entre si. Algo que a própria Varda faz também em Tio Yanco (1967) e Nausicaa (1970).
Durante os anos 1960 e 1970, a cineasta residiu nos EUA e acompanhou uma diversidade de acontecimentos políticos e históricos no país. A efervescência de movimentos da esquerda em todo mundo, além de guerras e invasões imperialistas deram a vazão à feitura de uma gama de documentários que procuravam retratar o cenário da época. Na América do Norte, Varda acompanha o surgimento e consolidação do movimento dos Black Panthers e oferece um panorama político, social e cultural de suas ações nas falas que surgem em Panteras Negras (1968). A documentarista oferece, sobretudo, voz às mulheres que compunham o movimento, seja a partir de entrevistas diretas ou em discursos em palanques. Um ano antes, em um trabalho coletivo com outros cineastas franceses e estadunidenses, ela realiza Longe do Vietnã (Loin du Vietnan, 1967), que, para além de comentários de vários personagens da geopolítica da década de 1960, tais como Fidel Castro e Ho Chi Minh, procura traçar imagética e sonoramente os distanciamentos entre as barbáries ocasionadas pela invasão norte-americana e as impressões a respeito da guerra em grandes centros dos EUA, marcadas por apoio ou questionamento. As imagens dos corpos vietnamitas vítimas do conflito são tensionadas pelas falas de quem de fato está bem longe da violência que ocorria na época no país asiático. Em uma incursão política e poética, Varda retrata os primeiros anos de Cuba após a Revolução Comunista de 1959 em Saudações aos cubanos (1963). No curta-metragem, a diretora traz na banda sonora suas impressões e documentações a respeito da sociedade cubana, conjugadas com a musicalidade presente no cotidiano do país. A montagem do documentário segue um ritmo musical que marca com precisão os aspectos culturais da ilha caribenha. E em uma das mais belas cenas do filme, apresenta a também cineasta Sara Gómez a dançar para a câmera. Em consonância com a Segunda Onda do Feminismo nos EUA e na Europa, Agnès cria uma espécie de filme-resposta ao mundo machista ao reunir falas e corpos nus de várias mulheres em Resposta das mulheres: nosso corpo, nosso sexo (1975).
Como é possível notar, os quatro filmes traçam um panorama político e estético do mundo nesse momento histórico. Claramente, são filmes com um forte apelo para as discussões da época em diversos aspectos e países. Portanto, são marcados por seu viés político. Trata-se de uma Varda que se insere nos debates daquele instante, mas que se mostra também como um olhar de fora, ainda que adesivo. Exceção feita a Resposta das mulheres. Há, no final dos anos 1960, filmes que a cineasta realiza que ao falar de si, ela alcança o outro, casos de Tio Yanco e Nausicaa.

Agnès Varda tem origem grega. Algo que a própria cineasta conta em off em Nausicaa. Ainda jovem, o pai da diretora se mudou para a França, onde tornou-se engenheiro, constituiu família e sempre negou seu passado na Grécia. Em determinado momento de Tio Yanco, a sobrinha filma o parente a desenhar a árvore genealógica da família em um quadro negro. Lá, veem-se os laços de parentesco entre eles, mas também um pouco da história de dois personagens em busca de suas origens. A narrativa se dá a partir do ensaio: Yanco fala sobre sua atividade artística, a pintura, enquanto aparece em meio às suas telas. Ao mesmo tempo, caminha por uma espécie de palafita moderna onde habita em São Francisco, na Califórnia. Pelo local, interage com as filhas, os amigos e as amigas mais jovens e com o próprio espaço físico, que se torna o cenário para que Varda desenvolva sua mise-en-scène,mesclando documentário e ficção. O próprio encontro entre sobrinha e tio dá a dimensão exata do funcionamento do método ensaístico da cineasta. De longe, ela é apresentada ao parente distante. Ele sai pela porta de casa, avista a diretora. No contracampo, Agnès aparece numa espécie de ponte de madeira que serve de passagem até o habitar de Yanco. Eles se cumprimentam pela primeira vez em inglês e se abraçam. Novo corte que os faz retornar para as posições anteriores. A repetição do ato de se conhecerem, mas agora em francês. Novo corte, com uma quebra do raccord, que devolve os personagens aos seus postos iniciais. Varda adentra novamente o ambiente, abraça o tio pela terceira vez, agora eles se cumprimentam em grego. Ao final da terceira repetição da ação, a cineasta, ainda em cena, diz: “corta!”. A claquete invade o quadro e denuncia a representação. Todavia, não se trata de algo falso, construído. O constrangimento de se apresentar ao outro transforma-se numa operação de estranhamento da própria história de ambos. Importante salientar que Yanco, ainda jovem, nos anos 1930, viera aos EUA e nunca mais pudera voltar para a Grécia por questões políticas. Naturalizou-se estadunidense, mas nunca deixou de se considerar um grego, um imigrante. Ainda que fale um inglês e um francês estruturalmente perfeitos, mantém na fonética o acento que lhe confere um não pertencimento, um lugar de estrangeiro. Algo que é compartilhado por Varda, que nascera na Bélgica, crescera na França e tentara alcançar seu passado mediterrâneo. Yanco, primo do pai da diretora, Eugène, remonta os primórdios da família ao retomar a figura de um general grego, Vardas, que fora responsável por um massacre contra os búlgaros. Ao mesmo tempo em que afirma essa origem, ela logo nega tal linhagem ao se afirmar com alguém que buscou outro tipo de vida, mais libertária e humanista em território norte-americano.
Em dado instante do curta, Varda filma o tio em uma janela circular de sua casa. O quadro do quadro confere uma espécie de jogo entre ambos. A cineasta faz perguntas para o ancião. Suas respostas, a cada nova abertura da pequena janela colorida, são: “A família é algo que você não deveria ser”; “A instituição é algo do mal, tão ruim que não posso suportar”; “O paraíso é a essência pura do desenho do homem”. Agnès, no off da banda sonora, diz: “Lábios dourados, lábios prateados, defina-se e nos conte o que é um grego?” A resposta de Yanco é ambígua e um tanto quanto jocosa: “Um grego? Eu não posso me definir.” Nova pergunta da cineasta: “E o que é a velhice?” A resposta vem como uma interrogação: “O que é isso?” Nova questão: “O que é o inferno?”. Agora deitado em sua cama, a acariciar o gato de estimação, Tio Yanco afirma: “O inferno é você fazer o que não quer. É ter que fazer o que você não quer fazer.” Varda faz então, seu último questionamento: “E a morte?”, ao passo que o velho pintor reage: “Você não deveria fazer perguntas maiores que nós. A vida é envolta na morte, não há dúvida sobre isso. Como sabemos que a morte não é vida e a vida não é morte? Vida e morte são como desastres de trem. Em outras palavras, você não pode explicá-los, apenas senti-los.” Então, o ancião se levanta da cama, apanha uma fruta e começa a comê-la: “Você não pode viver sem cor. A cor é êxtase para mim e qualquer outra coisa é vaidade.” Após as elucubrações de Yanco, Agnès conclui em off, numa montagem que articula sua fala a diversos planos de claquetes pertencentes ao material bruto do curta-metragem: “E, no entanto, foi sem vaidade que fiz esse filme para o meu tio. O filme é uma espécie de tributo à velhice, ao humor e ao talento, à sabedoria e à bondade.” O restante de sua fala traz o agradecimento à equipe do filme, creditada a partir desses excertos.
Esse jogo de perguntas e respostas entre tio e sobrinha revela os pontos de encontro entre o cinema de Varda e suas inquietudes humanas. As questões demandam um lugar de origem, uma tentativa de encontrar quem se é, de onde se vem, para onde se vai. Questionamentos sobre vida e morte, sobre estar no mundo e envelhecer. Os retornos de Yanco seguem todos na direção poética de um estar no mundo guiado pelas vontades próprias, pelo bem viver e pela simplicidade, pelas recusas de definições a priori e por entender que mesmo sabendo de onde se vem, nunca se decifra para onde se vai. A morte está próxima e a caminhada ao seu destino passa pela ordem do indefinível e indelével.

Algo que também aparece em Nausicaa. O filme é uma espécie de falso documentário que intercala entrevistas de imigrantes gregos na França e a narrativa de uma estudante de artes em Paris, que funciona como alter ego de Varda, inclusive nomeada Agnès. O longa-metragem intercala depoimentos de vários cidadãos e cidadãs que precisaram sair da Grécia por conta da Ditadura dos Coronéis entre 1967 e 1974 e se direcionaram especialmente para a França, que lhes concedeu asilo político. A maioria dos que migraram fazia oposição a um regime de extrema-direita bastante repressor. Muitos estavam ligados à intelectualidade, exercendo, em terras gregas, profissões como professor, universitário, jornalista, escritor, advogado e que, no novo país, acabaram relegados a outras atividades às quais precisaram se adaptar. Durante o período que habitam na França, há toda uma discussão a respeito de um pensamento ligado à esquerda, especialmente depois de ocorridos os eventos de maio de 1968. É nesse contexto que estão os personagens Agnès e Michel, um imigrante grego que habita, de favor, a casa da estudante francófona. Ela, idealista, em seus estudos sobre a arte clássica grega, tem origem helênica tal qual Varda[iv]. Assim como o pai da cineasta, o da personagem nega seu passado na Grécia e prefere denominar-se francês. Ela, incomodada com essas questões, ensaia uma busca por seus ancestrais, mas esbarra nos entraves políticos, sociais e culturais da época.
Seu idealismo é sempre contraposto com situações que colocam em xeque fortes elementos de seu pensamento. Em uma dada cena, ela tira um cochilo às margens do Rio Sena e desperta com a presença de um jovem dândi que lhe rouba os livros que estavam depositados na calçada. Agnès tenta convencê-lo da devolução dos livros, mas o rapaz argumenta que não tem dinheiro para comprá-los, mas ávido por cultura, se vê no direito de roubá-los para fomentar sua formação intelectual. Ela demanda não ser justo que tenha os objetos de estudo furtados, já que necessita deles para o curso de História da Arte. Mais uma vez, o ladrão afirma que não se trata de uma devolução dos livros, pois ele não tem outra opção que não seja aquela ação, e ela supostamente teria condições de comprar outros. Após a fala do jovem, ela decide não mais enfrentá-lo e aceita a derrota argumentativa. A cena é toda marcada por uma ironia em relação aos aspectos sociais e culturais do país naquele momento.
Ironia também presente no modo como Varda filma o personagem merchant, que fala de modo comercial da arte grega. Em seu discurso pomposo e capitalista, há outro tipo de roubo cultural e intelectual. A montagem, ao articular a cena do ladrão de livros ao do merchant, expõe as contradições a respeito das apropriações culturais. Isso faz desembocar nas sequências finais entre Agnès e Michel, que anseia retornar a Atenas por querer estar junto dos seus durante a ditadura no país. Por mais que a jovem estudante de arte queira também retomar seus laços com o passado, ela não consegue esse retorno à origem de modo contumaz. Algo que remete à própria Agnès Varda, que, por mais que reconheça suas origens paternas, não se sente pertencente à terra natal de sua família. Mas é isso também que a faz se sentir uma pessoa do mundo, capaz de olhar para o outro, com o intuito de tentar reconhecer um pouco de si.
Ensaios da alteridade
No documentário Muros e murmúrios, Agnès Varda retrata os murais presentes nas paredes de Los Angeles, mas fala, sobretudo, do papel político das artes pintadas nos muros a respeito da imigração de latinos nos EUA. Grande parte dos artistas criadores dessas obras são mexicanos, porto-riquenhos ou cubanos. Em Daguerreótipos (1976), ela traça uma espécie de mosaico de habitantes e profissões da Rua Daguerre. Ao filmar e dar voz aos seus vizinhos, a documentarista marca suas próprias impressões a respeito dos seus contatos com a cidade e com a vida que lhe perpassa. Ainda assim, por mais diferentes que sejam os corpos e personalidades, há ali uma questão de afinidade e proximidade. É uma vizinhança tranquila e afetiva. Algo bastante diferente do que ocorre em Os Catadores e Eu. O nome dado ao filme no Brasil não é muito preciso, o ideal seria algo como Os Catadores e a Catadora. Porque no nome original, em francês, há uma espécie de movimento de aproximação e distanciamento entre ela e os personagens, e isso está presente, inclusive, na própria mise-en-scène do filme. Varda, ela própria, empunha, em diversas sequências, a câmera. Segura com uma mão para que filme a outra. Filma o outro afim de filmar a si mesma, para que possa assim buscar um tipo de ensaio da alteridade. Buscar o diferente para alcançar as afinidades. Tal fator se repete em dois filmes estrangeiros da cineasta realizados nos EUA, que misturam e embaralham totalmente os fatos e as criações, a realidade e a ilusão. Tratam-se de O Amor dos Leões (1969) e Documentira (1981). Dois filmes separados por mais de uma década, que trazem questões mais idiossincráticas, mas reafirmam, sobretudo, as situações de enfrentamento vividas por personagens femininas estrangeiras.

Personagens femininas deslocadas do tecido social, cultural ou machista e opressivo são bastante recorrentes na obra da diretora. A personagem de Cleo das 5 às 7 (1962) vaga angustiada pelas ruas de Paris enquanto aguarda o resultado de um exame que pode confirmar um câncer. No entanto, sua angústia pela solução transforma-se na própria dificuldade de existência nos espaços da cidade, seja em sua rica mansão (Cleo é uma cantora relativamente famosa), seja no contato com as pessoas durante todo o dia. Já em Os Renegados (1985)[v], Mona, uma andarilha, percorre diversos caminhos da França sem querer chegar em lugar algum. Seu corpo sofre as experiências de estar só e por conta própria no mundo. Sua liberdade é também seu estado de aprisionamento, que culmina com sua morte ao final.
Corpos que não encontram seu lugar no espaço e nos contextos. Em seu primeiro longa-metragem nos EUA, Varda adentra fortemente a ambientação do cinema comercial ao retratar o cotidiano de um triângulo amoroso (uma atriz e dois atores) em Beverly Hills. As relações das personas hollywoodianas são apresentadas de um modo irônico em O Amor dos Leões. O trio passa grande parte do dia em seus banhos de piscina ou em uma enorme cama, onde, geralmente desnudos, falam sobre arte, se amam, tomam café da manhã, conversam no telefone com produtores de Los Angeles e assistem à televisão. Na TV, a programação traz fatos importantes do final da década de 1960, dentre os quais, as políticas internacionais do presidente John Kennedy. O auge das transmissões televisivas se dá com o atentado e assassinato do presidente estadunidense. O trio de amantes recebe em sua casa a cineasta independente nova-iorquina Shirley Clarke, que acabara de ser contratada para fazer um filme nos moldes mais comerciais de Hollywood. Clarke funciona como espelho de Varda, como ficará mais claro em uma cena que analisaremos a seguir. A montagem procura sempre articular essa dimensão de uma vida vazia dos participantes do cenário do cinema aos fatos políticos importantes da época. O vazio leva os personagens a uma espécie de suprarrealidade, que somente os aproxima dos fatos reais através dos veículos midiáticos e no pouco contato que eles têm com a rua. Quando estão fora do ambiente caseiro, encontram-se em reuniões com produtores locais que visam ao lucro e à exploração da imagem alheia.
Logo ao chegar a Los Angeles, guiada por um amigo, Shirley Clarke percorre de carro, as ruas da cidade californiana. No automóvel, ela conta como surgiu o convite para realizar um filme nos moldes hollywoodianos, que um produtor fez o convite e ela achou curioso uma cineasta underground fazer um filme sobre Hollywood. “Seria fabuloso”, completa a cineasta. “Eu tenho grande dificuldade de lidar com produtores em Nova York, não tenho certeza se vou conseguir, mas eles pagam. Vamos ver o que acontece agora. Engraçado, não gosto do sol em Nova York, mas gosto aqui.” O amigo corrobora: “Bom, não sei o que você vai achar, mas penso que vai adorar.” Ele ainda completa: “Agora você sabe o porquê deles terem vindo fazer filmes na Califórnia. É por conta da luz.” O veículo segue seu passeio pela paisagem californiana repleta de sol e luz, ao som de uma música alegre e tranquila. A voz do amigo de Shirley surge novamente na banda sonora: “Bom, há rumores de que os índios nunca se estabeleceram em L.A. porque havia vibrações erradas por aqui. E ficaram os espanhóis, que não tinham medo de nada, e assim fizeram uma cidade, numa terra de ninguém.” Ele ainda conta que há uma lenda de que um dia a cidade toda será tomada pelas águas do mar, e nesse dia ele gostaria de estar nas colinas para observar toda a metrópole sendo tomada pela água, inclusive Hollywood. Clarke, em off, apenas ri da anedota.

Nesse pequeno fragmento de diálogo conveniado com as imagens da chegada da cineasta a Los Angeles, chamam atenção algumas marcas que conferem ao filme um retrato forte dos meandros que se estabelecem nas relações capitalistas, produtivas e humanas na “meca do cinema mundial”. Há uma luz que a princípio seria perfeita e que conferiria uma oportunidade a todos que ali quisessem ir para poderem se estabelecer. Clarke acha curioso que alguém tenha interesse que uma cineasta underground como ela seja convidada para realizar filmes nesses moldes. A resposta do amigo revela um estado predatório da cidade, colonizador e violento. As vibrações estranhas sentidas pelos índios se dão especialmente por essa predação e dominação. Outrora pela tomada de terras, no século XX pelo capital. Isso fica ainda mais claro no modo de vida do trio de amantes atores e sua relação com os acontecimentos mundiais e estadunidenses. Por mais que reajam ao que acontece, há sempre uma letargia na ação. Viva, a mulher do trio, recebe uma ligação sobre Andy Warhol, amigo de todos, ter recebido um tiro em Nova York. Sua reação é de consternação e paralisia.
Talvez a cena mais emblemática a respeito disso seja o momento em que Clarke está deitada, solitária, sobre a cama e tem uma crise de criatividade e ameaça tomar alguns comprimidos para dormir. A cineasta-atriz quebra a quarta parede do filme, olha diretamente para a câmera e diz: “Agnès, não sei fazer esse tipo de cena. Acho que você estava errada em me convidar para fazer esse filme. Eu não sou atriz, sou uma cineasta underground que não sabe fazer cinema desse modo como se faz por aqui.”. Shirley se levanta da cama, se direciona ao fora de campo e inicia uma pequena discussão com Varda a respeito do filme. A diretora belga invade o quadro vestindo a camisa que Clarke usava até então e deita-se na cama. Ela diz que tenta entender a colega, mas afirma que precisa terminar o filme, pois os produtores iriam cobrar dela, embora também não sabia como lidar com esse tipo de cinema. Agnès, então, pega o frasco e engole alguns comprimidos. Shirley invade novamente o quadro, fala que Varda tem razão, que é preciso fazer o filme e que tentaria ajudá-la. Elas caminham para detrás da câmera e um leve movimento panorâmico revela os bastidores do acordo. Clarke volta a vestir a camisa da personagem e deita-se na cama. Varda retoma o enquadramento anterior e Shirley repete o que a própria Agnès havia feito em cena.
Nesse momento, há um completo espelhamento entre duas cineastas afeitas acerto de tipo de fazer cinema, de estar em um mundo obnubilado por outras questões que não aquelas que acontecem na realidade. O filme se divide, então, entre aquilo que retrata de um cenário de Hollywood e os acontecimentos de fora, que atravessam o filme através de imagens da televisão ou de arquivo. A realidade esburaca o filme e revela seu modo crítico próprio do cinema moderno, do qual Varda e Clarke fazem parte. A cena descrita anteriormente, construída a partir de sua metalinguagem, mostra as aproximações entre ambas e também a quebra com as estruturas clássicas do cinema. É como se o cinema fosse tomado pela água do mar, como afirma a lenda sobre Los Angeles, e fizesse imergir tudo aquilo que foge das estruturas paralisantes da cidade e do mundo do cinema. Shirley entra em coma por conta das pílulas que tomou, mas depois acorda e retorna a Nova York. O estado letárgico está desperto.
Outro tipo de paralisia também ocorre em Documentira. Como o próprio título infere, há uma desconstrução do que seria um documentário a respeito de uma mãe solteira, roteirista estrangeira, que precisa terminar um trabalho em Los Angeles, enquanto cuida do filho criança e tenta buscar prazer em pequenos casos amorosos que se esvaem como poeira pelas frestas da porta. Cláudia Mesquita e Carla Maia, no texto de apresentação da mostra “A mulher e a câmera”, presente no catálogo do forumdoc.bh 2012, escrevem:
A personagem principal é uma mulher, é verdade, envolvida com o fim de seu casamento e a necessidade de reinventar uma vida, em um país estrangeiro, ao lado do filho pequeno. O filme, entretanto, não pode ser resumido ao redor das desventuras e aventuras de sua personagem, que aliás, não são muitas – procurar uma casa, trabalhar, convencer o filho a dormir na própria cama. Trata-se de um filme que, na esteira do que sugere Laura Mulvey, busca implodir a própria noção de representação ao ressaltar a ficção (ou mentira, expressa no termo menteur) que existe no coração de todo documentário, e vice-versa.[vi]

Mais uma vez, a cineasta se aproxima da personagem. Emilie Cooper, interpretada inclusive pela montadora de Varda em vários filmes, Sabine Mamou, tem suas aproximações e distanciamentos com a diretora. É também um corpo em experimentação com o mundo, com os arredores daquilo que lhe pertence e daquilo que não lhe pertence. Reinventar uma vida é recriar sua própria realidade, é ficcionalizá-la. Ao implodir a noção de representação e ressaltar o gesto de ficção, Varda se permite ensaiar a respeito do mundo que a circunda. Esse gesto se repete em praticamente todos os seus filmes, seja nas ficções do início de carreira ou nos documentários realizados especialmente a partir dos anos 1960 e 1970.
Varda soube como poucas implodir o cinema para dele fazer surgir os prazeres do mundo, suas belezas. Algo que a própria Agnès diz, acerca da pintura de Hédouin, “As catadoras fugindo da tormenta” ao final de Os Catadores e Eu: “Vê-las à luz do dia, e sentir o vento tempestuoso fustigando a tela, foi um verdadeiro prazer.” Sutilezas do mundo, singelas, porém grandes sensações da vida.
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[i] VARDA, Agnès. In: Programme Hiver 2018-2019, Cinematheque Française, Paris, 2018. (Tradução nossa)
[ii] BARTHES, Roland. A câmara clara. São Paulo: Nova Fronteira, 2010.
[iii] ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 16-17.
[iv] Varda, inclusive, aparece em cena em determinado momento do filme para relatar sua história de vida, a respeito do pai, de como lida com sua identidade grega. Chega a afirmar que nunca estivera na Grécia. A história do pai também é retomada em voz off, intercalada com imagens de estátuas gregas ou monumentos o período clássico.
[v] Outra nomeação de filme que não condiz totalmente com a proposição da obra. O nome está no gênero masculino e no plural, sendo que a personagem principal é apenas uma mulher nesse estado de renegação. Ainda, a tradução mais fidedigna seria “Sem Teto e Fora da Lei”.
[vi] MAIA, Carla; MESQUITA, Cláudia. A mulher e a câmera. Belo Horizonte: Catálogo do forumdoc.bh, 2012, p. 41.