O Rei de Staten Island (2020), de Judd Apatow

Um rei em risco

por Gabriel Martins

Quando passeamos pela carreira de Judd Apatow como roteirista, diretor e produtor, percebemos um rastro de mediações que transformaram, definitivamente, a comédia americana para melhor. Por trás de clássicos como Superbad: É Hoje (2007), Missão Madrinha de Casamento (2011), O Âncora (2004) e O Virgem de 40 anos (2005), Apatow é um cineasta com excelente faro para um talento bem específico de atores autores, artistas com uma facilidade imensa para improviso e, frequentemente, escritores de projetos ligados a suas próprias personas ou trajetórias. Além disso, Apatow entendeu o seu cinema como uma oportunidade para unir dois elementos fundamentais presentes em praticamente qualquer ato de stand up comedy, o seu ponto de origem: o poder da palavra e a inadequação de um sujeito em busca de aceitação (própria e de outrem).

O Rei de Staten Island (2020) é um projeto especulativo que, nas palavras do próprio Apatow, pensa o que Pete Davidson poderia ser caso não tivesse encontrado a comédia. Pete, protagonista e roteirista, é mais um na linha de atores comediantes que figuram dentre os protagonistas falantes apatownianos: Seth Rogen, Amy Schummer, Adam Sandler, Jonah Hill. Aqui, Pete escreve o roteiro junto com Apatow e seu amigo de Saturday Night Live Dave Sirus. Fora das telas, a morte real do pai de Pete Davidson, bombeiro e uma das vítimas do 11 de Setembro; na tela, uma história parecida, não vinculada ao evento global, mas estudada nas consequências desta ausência na vida de Pete, o relacionamento com sua mãe (Marisa Tomei) e sua irmã (Maude Apatow, filha de Judd), esta a caminho da faculdade. Para quem acompanha a carreira de Pete Davidson, não é novidade a abordagem cômica da tragédia familiar, tendo como auge a sua participação nos Roasts do Comedy Central de Justin Bieber e de Rob Lowe, onde, de maneira muito inteligente, reverteu o tabu desta temática para um jogo de humilhação diante dos presentes: Ele diz para Kevin Hart e Snoop Dog, atores de Soul Plane (2004), que a sua pior experiência na vida com aviões foi o filme. Pete faz um stand up estranho, que muitas vezes não consegue risos imediatos e intensos, trocando-os por um tom mais sutil e obscuro de humor. Neste aspecto, ele é a escolha inevitável para interpretar Scott, esse personagem desastre ambulante niilista que não cabe em seu próprio corpo e muito menos no mundo ao seu redor.

Staten Island é o burgo esquecido de Nova York, distante ao sul e distante emocionalmente das decisões da cidade e dos encantos que a fazem famosa globalmente. Aparentemente parada no tempo, a cidade de nascimento de Pete Davidson é terra ideal para pensar essa inércia sufocante de sua vida e de seus amigos, um grupo cujo passatempo é não fazer nada, e que tem como destaque a namorada Kelsey, não assumida por Scott. A garota, responsável por refletir um dos principais pontos de contradição do personagem, acredita no potencial do rapaz, assim como acredita em Staten Island. Ela quer trabalhar no planejamento da cidade para que possa gentrificar a região como foi feito no Brooklyn, fazendo com que ela se torne mais atraente para quem a vê de fora. Esta é a estrutura e premissa dominante em filmes de Apatow, uma conexão muito clara entre as ações e oportunidades, de forma a incentivar e tornar bem digerível o arco dramático dos personagens. Ele vai muito bem nesta empreitada e se torna um dos herdeiros mais talentosos de John Hughes, jogando com peças de identificação imediatas com um tempero próprio, conectado a uma contemporaneidade muito viva em todos os elementos do quadro – o cinema de Apatow é intimamente ligado à cultura pop. Tempero este que, como dito no início, muda a comédia americana ao trazer do stand up comedy uma essência absurda de improviso, deboche e, simultaneamente, melancolia.

Apatow consegue transitar cada vez melhor pela densidade de temas como suicídio, depressão, orfandade e amor próprio e, ao mesmo tempo, acelerar sem medo na máquina de piadas. Usa um método para isso, ao filmar com duas ou mesmo três câmeras simultâneas e deixar a cena acontecer livremente. É comum ver em bastidores dos filmes Apatow com um microfone em mãos soprando falas para o elenco e fazendo o momento render muito para além do roteiro original. A montagem conecta estas reações como em um documentário, tentando sustentar o momento e os desvios de rota. Isto, para além do elemento de jornada de seus filmes, todos passados em um espaço de tempo bem longo, torna Apatow um diretor de comédias longas, frequentemente superando duas horas. Ao mesmo tempo, percebe-se, às vezes, algum desgaste desta técnica, como na cena em que os amigos vendem droga a um garoto no porão, cena que é construída em função do verbo e que sai um pouco demais pela tangente, ao criar um próprio esgotamento do humor que ali não parece tão eficiente ou original. Junto a isso, soma-se alguma previsibilidade da estrutura geral, fortemente apoiada em montagens musicais e pontuações um pouco óbvias de conflito. Entretanto, talvez valha dizer que O Rei de Staten Island avança um pouco mais nas pretensões dramáticas do diretor ao apostar em um tom mais escuro, que se marca desde a primeira cena e se estende por todo o filme. Escuro literalmente, sendo o filme de Apatow em tonalidade menos saturada, metaforizando uma ausência de brilho que reflete a perspectiva do personagem sobre esta cidade e, consequentemente, sua existência nela. Muito interessante a escolha de Robert Elswitt, um diretor de fotografia cujo trabalho não passa pela comédia, e que, aqui, definitivamente, influencia bastante o clima, desde a escolha do 35mm como suporte até a forma como ilumina as internas ao longo do filme, criando uma identidade de luz e de espírito muito coerente por toda a obra.

Bill Burr, também lenda do stand up comedy, representa Ray, bombeiro que a mãe de Scott começa a namorar, e o ponto de oposição maior do protagonista. Ray representa tudo que Scott não quer, que é a aceitação da vida como um espaço possível de superação. Interessante ver como o filme resolve no final a relação dos dois com um caos visual de tatuagens ruins de um Scott não muito talentoso nas costas de seu novo padrasto, um código de rivalidade pacífica que sempre estará inerente àquela situação impossível de se resolver por completo. Esta é a máxima do cinema de Apatow, o entendimento registrado na estrutura dos filmes de que este ciclo documentado continua, segue, e não poderemos participar do seu desenlace. Nada de fato se concretiza no seu cinema e, geralmente, os desfechos apresentam um espaço de futuro a se contemplar, neste caso os edifícios de Manhattan, lugar que parece apresentar uma solução em relação ao abandono de Staten Island, mas que, ao mesmo tempo, sufoca de alguma forma o personagem. Nisso reside um final ambíguo e interessante, pois Scott decide se esforçar para andar aquele quilometro a mais, necessário para corresponder às expectativas que são depositadas sobre ele, mas, ainda assim, retém algo de uma identidade própria que é real, moldada por situações que ele não consegue controlar – novamente, ressalto, o caos das tatuagens como um elemento chave deste resultado. O filme não endereça o 11 de Setembro real da vida de Pete Davidson, mas se torna quase inevitável ligar o universo do corpo de bombeiros à tragédia que é marco na vida de toda uma geração. Scott, em certo momento do filme, diz que é possível ver o lixão de Staten Island do espaço e, de fato, o local é famoso por ser um depósito de dejetos. Inclusive, no pós-World Trade Center, se tornou o único lugar possível próximo para se levar os escombros das torres gêmeas e, consequentemente, de corpos ainda presos nestes escombros. Staten Island, cemitério de Nova York, é onde nasce Wu Tang Clan, banda lixão que recicla dejetos para produzir arte. É onde também surgem personagens apatownianos como Pete/Scott: sonhadores desajustados que, à beira da morte, encontram o amor.