Uma Canta, A Outra Não (1977), de Agnès Varda

O Céu de Varda

Rebeca Francoff

Em La Pointe Courte (1955), primeiro filme de Agnès Varda, o casal interpretado por Philippe Noiret e Silvia Monfort passa por uma crise conjugal durante uma viagem de férias a vila pesqueira. Por lá, seus conflitos dialogam com a situação local, na qual os pescadores sofrem com os constantes prejuízos no trabalho.

No longa Uma Canta, a Outra Não (1977), as personagens Pomme (Valérie Mairesse) e Suzanne (Thérèse Liotard) também enfrentam problemas cotidianos, na medida em que o movimento feminista se consolida na França. Percebe-se, então, que mesmo 22 anos depois da estreia de La Pointe Courte (1955), buscas semelhantes inquietavam a cineasta. Nesse sentido, suas preocupações são mobilizadas pela influência das vivências coletivas no comportamento individual e vice-versa.

Pomme e Suzanne lançam-se na estrada com a única certeza de que têm a si mesmas, e esse é o catalisador para prosseguirem suas jornadas. Impulsionadas por constantes transformações, as personagens transgridem as regras sociais enquanto mudam de espaços e tempos. Ambas seguem estradas diferentes, mas seus deslocamentos proporcionam a busca pelo autoconhecimento e reflexões sobre os afetos.

Independentemente do tempo, lugar ou situação, a amizade das duas resiste como se fossem unidas por um fio invisível afetuoso e inquebrantável. Uma existe viva na vida da outra, seja através das memórias ou das cartas trocadas constantemente. Mesmo afastadas, continuam juntas e sobrevivem com a potência do apoio mútuo (questão refletida na segunda fase do feminismo nos anos 1960, com o desejo de um presente e um futuro dotados de maior sororidade).

Varda vai da superfície externa para a mais íntima profundidade, a fim de expor e questionar a postura social sobre as relações entre mulheres e homens. Como no primeiro cinema, onde a descoberta é divertida e prazerosa, as obras da cineasta se assemelham ao funcionamento orgânico dos corpos. Atenta às delicadezas e às asperezas da existência, com coragem e curiosidade, mergulha com frescor nos mistérios da natureza humana. Além do laço conector de companheirismo, Suzanne e Pomme partilham o protagonismo e guiam as linhas narrativas como um poema. A obra, por sinal, tem as temporalidades divididas em duas estrofes: o passado de 1962 e o contexto social e político dos anos 1970.  

A Paris dos anos 1960 é apresentada na primeira parte de forma soturna e sisuda. Está vestida de inverno, nublada, o que torna o clima associável à depreciativa melancolia refletida nas pessoas que ali vivem. Na trilha sonora, o violino chora enquanto o espectador é encarado por mulheres tristes em instantes congelados em preto e branco. Essas imagens são reveladoras do estado da alma dessas figuras femininas. Inertes e oprimidos, seus corpos estão emoldurados no papel fotográfico, tal qual estivessem presos à vida prosaica que levam.

É possível que se veja a anunciação da despedida dos dias nublados a partir da presença radiante de Pomme. Desde muito jovem, ela demonstra personalidade forte, emana luz própria, tem opinião sobre tudo e possui espontaneidade ao lidar com qualquer situação. Sonha em ser cantora, questiona o silenciamento que sua mãe sofre em casa, ajuda sua amiga Suzanne a fazer aborto, entre outras tantas ações essenciais à narrativa. A personagem conduz uma possibilidade de ruptura das convenções sociais, em prol de mudanças coletivas que permitam a libertação feminina diante das imposições sofridas.

Na segunda parte do filme, os acontecimentos transcorrem uma década depois. Não há mais inverno e escuridão, apenas dias ensolarados e resplandecentes. A concretização do sonho de Pomme em ser cantora floresce através da luta política, nas ruas, cotidianamente. Como uma operária da voz, insiste em expor sua visão de mundo. A arte de Pomme é semelhante à de Varda, pois como ela, envereda mata adentro nos problemas sociais enquanto expressa sua composição. A personagem também cria canções a partir das suas experiências de vida, proporcionando uma relação cada vez mais consistente entre o indivíduo e a comunidade que o cerca. 

A voz off representa um meio em que as personagens Suzanne e Pomme se mantêm presentes e ativas na vida uma da outra, mesmo distantes. A resistência se dá mentalmente através das cartas trocadas entre elas. Os pensamentos são sempre críticos e flutuantes, como se a deriva fosse uma forma de posicionamento frente à opressão. Ambas convidam o espectador a embarcar com elas numa viagem pelo tempo e suas digressões. As músicas são utilizadas como mobilização de luta e resistência. As personagens correm atrás dos seus sonhos, questionam as imposições sobre a maternidade, cortam lenhas para sobreviver, cuidam dos filhos sozinhas e seguem juntas na estrada da vida.

Uma Canta, a Outra Não é como o funcionamento orgânico dos instintos. Nesta obra, Varda se lança em direção às delicadezas e asperezas da existência, com coragem e curiosidade. Mergulhamos no frescor de seus mundos e conhecemos a densidade de sua pele. Sob o céu de Varda, há um sol inflamado e a noite viva.