
A sensibilidade do ato de olhar
Lauren Mattiazzi Dilli
Desde os primórdios do fenômeno de captação de imagens em movimento, há um grande interesse em pensar as relações do cinema com outras linguagens. Entre esses estudos, está o lugar que o cinema e a pintura ocupam em uma história da representação, portanto, do visível. Tanto a pintura quanto o cinema apresentam uma forte ligação com o ato de olhar, não somente enquanto apreensão técnica de luz, cor, formas e enquadramentos, mas também enquanto percepção do que representar e como realizar este procedimento.
Tais reflexões vieram à tona ao assistir Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma e premiado com o Melhor Roteiro e com a Queer Palm no Festival de Cannes. O longa em questão apresenta Marianne (Noémie Merlant), uma jovem pintora que foi designada a fazer um retrato de Heloïse (Adèle Haenel), sem que ela saiba. A trama se passa na França, em meados do século XVIII, e a pintura tem o propósito de efetivar o casamento arranjado entre a fidalga francesa e seu pretendente milanês. Por ser um matrimônio indesejado por Heloïse, a jovem já havia recusado anteriormente posar para um pintor, o que justifica o sigiloso trabalho de Marianne a pedido da mãe da moça.
Entretanto, a relação entre cinema e pintura nesta obra vai além de uma questão narrativa: o modo como os planos são construídos, tanto nos cenários do interior do casarão onde habita a jovem fidalga quanto nos ambientes externos naturais, e o uso das cores vibrantes nos vestidos das personagens dão uma pictorialidade às imagens. Ademais, o modo como a câmera as acompanha, evidenciando seus olhares atentos, evoca o pensamento acerca da observação. Marianne é tida como uma acompanhante de caminhadas para Heloïse, e nesses passeios à luz do dia por uma paisagem formada de rochedos e a imensidão do mar, a pintora registra em sua memória os traços observados na moça para depois passá-los à tela durante a noite, à luz de velas. Enquanto uma olha para o horizonte sem fim, a outra decora atentamente os detalhes do rosto ao seu lado. E quando os olhares se encontram, uma potente conexão nasce.

Além disso, algumas ideias de André Bazin dialogam muito com essa reflexão, sobre como a pintura é centrípeta e como a tela de cinema é centrífuga, na medida em que a moldura de uma pintura conduz o olhar para o centro do quadro, e o enquadramento no cinema sugere o que está ao redor da cena. Por mais hipnotizante que seja prender-se nos olhos daquelas personagens e nas pinceladas de tinta sobre o retrato, os olhares para fora de quadro também nos fazem pensar no extracampo: seja ao encarar alguém que está além do enquadramento, seja ao se deparar com a imensidão do oceano e as imagens que essa visão provoca. Para além da tautologia de ver somente o céu e o mar, Heloïse admira o que ainda desconhece, tudo aquilo que se encontra além do horizonte e que somente poderá conhecer caso aceite o casamento. Com isso, questiona essa liberdade cuja única possibilidade de ser obtida é através do aprisionamento. Isso porque, o que vemos diante nos olha dentro, abre um vazio que nos concerne e constitui.
Sobre esse paradoxo do ato de ver, o filósofo Georges Didi-Huberman analisa a relação entre “o que vemos, o que nos olha” e o quão impactante é essa assimilação. Após uma crescente aproximação entre Marianne e Heloïse, e a revelação de que a suposta acompanhante de caminhadas estava ali com outros propósitos, a jovem fidalga concorda em posar para Marianne. Em certo momento, a pintora afirma que detestaria estar no lugar da outra, pela desconfortável posição de ser observada aos mínimos detalhes. Por sua vez, a modelo prontamente contesta: “Nós estamos no mesmo lugar. Exatamente no mesmo lugar.” A artista se aproxima de sua modelo, e o choque fica evidente em sua feição ao perceber que, na verdade, há uma dupla tensão na troca mútua de olhares. “Se você olha para mim, para quem eu olho?”
É importante destacar também o olhar da roteirista e diretora Céline Sciamma, que, entre tantas cineastas, também busca uma maior representatividade feminina no cinema. Desde Líros D’água (2007), Tomboy (2011) e Garotas (2014), Céline tem construído uma obra com a presença de questões relacionadas a gênero, sexualidade e autodescoberta de meninas e mulheres. Em Retrato de uma Jovem em Chamas, essas temáticas também se fazem presentes, em uma narrativa carregada de amor em suas múltiplas formas: o romântico, o da amizade, do cuidado e da sororidade.

O encontro entre Marianne e Heloïse é marcado por profundas transformações em ambas, onde as relações se estreitam a cada dia e a descoberta de uma paixão acontece. Há uma sensibilidade no retrato dessas mulheres, em um relacionamento construído pouco a pouco, num processo fluido e paciente do apaixonar-se. Em entrevistas, Céline comenta que as lésbicas têm sido sacrificadas no cinema, muitas vezes representadas com um olhar masculino e estereotipado, e, então, acabou se dedicando à própria política que uma história de amor pode carregar.
O convívio das moças também é marcado por uma terceira mulher: a jovem criada Sophie (Luàna Bajrami). Na ausência da mãe em casa, devido a uma viagem, a conexão entre o trio se fortalece nos momentos vividos juntas, podendo citar o preparo das refeições, das atividades como o bordado e a leitura, e o dia em que Sophie conta que está grávida, embora não desejasse. Essa decisão em nenhum momento foi questionada, muito pelo contrário. A reação foi de empatia. Há uma consciência entre as personagens de que a mulher deve ter autonomia sobre o seu próprio corpo, e de que se casar e ter filhos não se trata de uma obrigação feminina. Ainda mais quando não há presença e nem responsabilidade paterna.
Interessante também é perceber que uma ausência masculina permeia o longa em questão, mas mesmo assim existe uma relação de poder onipresente. Os poucos homens que aparecem em cena não ganham destaque, como os barqueiros que levam Marianne para o casarão no litoral onde a maior parte do filme se passa. Além disso, sequer demonstram reação quando a tela da artista cai na água, ao passo que ela mesma se atira ao mar para resgatar seu instrumento de trabalho. Porém, a influência masculina é inescapável: o casamento com o pretendente milanês é a única opção destinada a Heloïse, assim como Marianne utiliza o nome de seu pai para apresentar suas pinturas nas galerias, pois a arte feminina não tinha tanto prestígio e reconhecimento quanto à realizada por homens.

O modo como o filme lida com a questão do aborto também é muito emblemática. Após tentativas fracassadas, com técnicas que envolvem o uso de ervas e exercícios físicos intensos, as personagens recorrem a uma senhora do vilarejo, provavelmente uma parteira, já que na época era muito comum esse tipo de procedimento. A cena em que Sophie aborta transparece dor física e emocional. E não há como ter total noção da complexidade dessa situação se ela não faz parte da sua vivência, por isso nem há uma tentativa de entender os motivos que levaram a esse desfecho. Mas podemos imaginar o quão doloroso é chegar a essa decisão, e isso deveria bastar. Uma experiência tão profunda quanto essa necessitava de uma forma de expressão, e foi Heloïse quem teve a iniciativa de retratá-la em pintura. A força desse registro carrega uma pauta tão delicada que permanece sendo discutida até o contexto atual. Reforça-se que os poucos avanços que se tem hoje com relação ao assunto são frutos de um árduo trabalho de amadurecimento ao longo dos séculos.
Outro momento muito marcante no longa é quando várias mulheres se reúnem à noite ao redor de uma grande fogueira. A construção da mise-en-scène pode remeter aos episódios de queima de mulheres, muito realizados durante a perseguição religiosa intitulada de “caça às bruxas” na Idade Média. Contudo, o que presenciamos aqui é uma celebração do sagrado feminino. Ver mulheres de diferentes idades juntas, cantando melodias que tocam a alma, carrega uma resistência tão grande que essa acaba sendo uma imagem difícil de esquecer, tanto para nós, espectadores, quanto para Marianne. Observar Heloïse do outro lado da fogueira, com as chamas dançando e criando uma ilusão de ótica sob seu corpo, como se a própria moça estivesse incendiando (e que realmente está em chamas, pois a barra de seu vestido acidentalmente é consumido pelo fogo), é uma das visões que mais ficaram marcadas na memória da pintora. E a partir dessa lembrança, Marianne registrou o momento em uma pintura nomeada com o título do filme, e que é responsável pelo flashback que narra todas essas reminiscências.
Após a pintura encomendada ser finalizada, cujo prazo era o retorno de viagem da mãe, cada uma segue sua vida, levando consigo recordações de um amor que outrora queimou como fogo. Algumas vezes, seus caminhos se cruzaram, mas somente a partir do ponto de vista de Marianne, cujo olhar atento foi capaz de percebê-la entre as multidões. O plano final corresponde à última vez em que a artista avista Heloïse. Os olhares não precisam se encontrar para sentir a conexão que ainda permanece viva, mesmo com a distância. De maneira sensível e lírica, é surpreendente o modo como Céline lida com suas personagens e questões, unindo várias linguagens artísticas e dedicando um olhar apurado para pautas de grande relevância, simultaneamente à realização de uma bela obra de arte.