
Atemporalidade do sobreviver
Lauren Mattiazzi Dilli
Pensar as relações de poder através do cinema é algo já explorado por muitos cineastas, em diversos contextos históricos e geopolíticos, e de múltiplas formas estéticas. No entanto, isso permanece tão intrínseco ao fazer artístico justamente por haver uma necessidade recorrente de questionar o modo de vida imposto em uma sociedade capitalista. Entre esses cineastas, um nome que tem ganhado muito destaque é Bong Joon-Ho, diretor e roteirista do premiado Parasita (2019), cujo trabalho é conhecido pela mescla de gêneros cinematográficos na construção de suas obras.
O longa-metragem em questão nos apresenta a uma família que vive na periferia de Seul, capital da Coreia do Sul. A família Kim, formada por pai, mãe e um casal de filhos, luta por sua sobrevivência quase que de um modo popularmente conhecido como “jeitinho brasileiro”, roubando wi-fi dos vizinhos, trabalhando com montagem de caixas de pizza e entregando o serviço pela metade. O lar da família fica abaixo do nível da rua, com o sistema de esgoto prejudicado, pouca comida e infestação de insetos pela casa. Em meio às condições precárias, uma oportunidade surge na vida dos Kim: o filho consegue um emprego como professor particular de inglês para a filha da abastada família Park.
A diferença entre a vida dos Kim e dos Park é quase como um abismo intransponível, sem ponte construída para conseguir chegar ao outro lado. Até pode ser possível desfrutar minimamente do luxo que o lado de lá proporciona, mas o alcance máximo possível sem uma ponte é somente a beirada do abismo. Do lado de lá, a casa é bela e gigantesca, projetada por um grande arquiteto, cujo contraste entre suas condições de moradia torna-se um símbolo da desigualdade social entre as duas famílias. Porém, o perspicaz filho da família Kim logo percebe modos de fazer com que o restante de sua parentada possa ter também o vislumbre do outro lado do abismo.

Em pouco tempo, o plano mirabolante do filho obtêm êxito e os Kim são empregados pela rica família, com a irmã trabalhando como terapeuta de arte do filho abastado, o pai como motorista e a mãe como governanta da casa, todos eles contratados pela ingênua Sra. Park. O plano tão bem articulado até então, formado por uma rede de mentiras, acabou por despedir a Sra. Moon-kwang, antiga governanta da casa que esconde seu marido no porão da mansão há 4 anos, devido a complicações com agiotas. E é esse o elemento surpresa que acaba por condenar toda estratégia construída pelos Kim.
Seria fácil apontar que o parasita em questão é formado pela pobre família que faz de tudo para se infiltrar na casa rica, mas isso é uma questão de perspectiva. Para a biologia, o parasita é um ser vivo que retira do outro, o hospedeiro, os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento. Os Kim podem até estar dependendo dos Park para sobreviver, mas quem realmente suga toda a energia da classe trabalhadora é quem detém o capital. Algo interessante que a biologia também nos ensina é que na natureza existem relações ecológicas entre os seres vivos, que podem ser harmônicas ou desarmônicas. De acordo com esses conceitos, a vida em sociedade seria uma relação harmônica, pois os indivíduos da mesma espécie cooperam entre si, mas, ironicamente, esse conceito não parece se aplicar completamente aos seres humanos, se formos considerar a desarmonia da hierarquia da qual fazemos parte.
É válido lembrar que estamos falando de um filme que se passa na Coreia do Sul, tido como um dos países mais desenvolvidos do mundo. Se a realidade da família Kim é também um retrato da Coreia, o que falar de um país de Terceiro Mundo como o Brasil? Mesmo sendo países muito distantes entre si, não só enquanto distância física, mas também econômica e cultural, o que Parasita nos mostra é que há possíveis semelhanças entre os sistemas que somos submetidos. Esse sistema é o que Foucault vai chamar de “dispositivo”, que diz respeito a qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de orientar, determinar e controlar os gestos, condutas, opiniões e discursos dos seres viventes. É através da reflexão acerca desse dispositivo que podemos perceber o quanto a desigualdade social, o desemprego, a má distribuição de renda e a exploração da classe trabalhadora são pontos em comum da organização de mundo que temos hoje, tanto para um país oriental, quanto para um latino-americano. As diferenças ainda permanecem, mas as semelhanças também têm muito a nos dizer.

E já que estamos falando de Brasil, impossível não lembrar do trecho da música que bombou no final dos anos 90, da banda de axé As Meninas: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária. Onde o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe, e o de baixo desce”. Essa verticalidade expressada na música é trabalhada de modo visual em Parasita, pela Direção de Arte e Fotografia que exploram os altos e baixos na geografia da cidade. Enquanto a casa da família Kim é quase subterrânea, é preciso subir muitas ladeiras até chegar à mansão dos Park.
Em uma das cenas mais marcantes do filme, os personagens voltam para sua casa na periferia durante uma chuva torrencial, e essa verticalidade simbólica na imagem também é muito explorada. Pai e filhos correm ensopados, descendo as escadarias da cidade até chegarem em sua casa totalmente alagada, quase submersa. A família tinha achado que a ponte sobre o abismo estava construída, mas passagens tão grandes desse tipo não são tão fáceis de sedimentar. Essa falsa esperança de estar ascendendo socialmente faz com que a descida ao fundo do poço seja mais desoladora, por ser um momento de tomada de consciência dos personagens sobre o lugar que realmente lhes pertencem.

Outro cenário descoberto através dessa verticalidade é o porão da mansão, que abriga o marido da Sra. Moon-kwang. As cenas nesse ambiente escondido da casa, cujos donos não fazem ideia de sua existência, são de disputa entre as famílias menos favorecidas. Por mais que esse tenha sido um lugar de refúgio, agora ele não está mais a salvo, e a luta que se estabelece acaba sendo em torno de qual família conseguirá subir e qual irá descer e permanecer no plano de baixo. Ou seja, a relação ecológica da vida em sociedade dos seres humanos se prova não somente como desarmônica entre lados opostos de uma hierarquia, mas também como pode ser desarmônica entre indivíduos que estão no mesmo nível das relações de poder. Afinal de contas, essa é uma luta pela sobrevivência.
Enquanto tudo isso acontece embaixo do nariz da família Park, com exceção do filho caçula, ninguém é capaz de perceber o que tem acontecido ao seu redor. A bolha egoísta em que a milionária família vive, que acredita que a forte chuva foi “uma verdadeira benção” para limpar a poluição da cidade, não pensando duas vezes antes de reclamar do cheiro de seus funcionários, é a bolha que será estourada brutalmente no massacre que tem o jardim da mansão como palco. Aqui, a tomada de consciência foi pelo sangue, pela morte, pelo irreversível.
No Brasil, um dos grandes cineastas que tivemos, muito conhecido pelo modo como realizava sua crítica social através do cinema (e também uma das inspirações de Bong Joon-Ho, segundo entrevistas) é Glauber Rocha. Em seu manifesto do Cinema Novo, texto intitulado como “Eztetyka da Fome”(1965), Glauber diz que “a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”. É pelo ato de matar que os personagens de Parasita encontraram a brecha do sistema, a falha do dispositivo, que é a ameaça à vida das pessoas amadas. Apesar das consequências, a violência se torna o clamor mais desesperado por humanidade.

Em outro texto, com o título de “Eztetyka do Sonho” (1971), Glauber escreve que “o sonho é o único direito que não se pode proibir”. Talvez essa seja a essência da cena final do filme de Bong Joon-Ho, com a esperança do filho Kim em dar a volta por cima e poder salvar seu pai do aprisionamento. Depois de tanto sofrimento e miséria, ainda é preciso ter forças para sonhar, pois isso é o que resta a fazer. A desolação desse final bate forte no espectador porque a vida, de um jeito ou de outro, vai nos ensinando a dificuldade que alguns sonhos têm para se concretizar, e algumas vezes nos faz sentir também a sensação de não poder realizá-los. Contudo, é preciso continuar acreditando. Essa é a nossa resistência.
Parasita é um filme que provavelmente poderá ser assistido no futuro e ainda será muito atual, seja na Coreia, no Brasil, ou por onde a atual organização capitalista de mundo permanecer. Essa contemporaneidade é o que faz com que as obras de Glauber Rocha, por exemplo, também possam ser discutidas para se pensar o tempo presente, mesmo tendo sidas realizadas em um contexto histórico diferente. Para Giorgio Agamben, “o contemporâneo que se pode entrever na temporalidade do presente é sempre retorno que não se cessa de se repetir” (“O que é o contemporâneo?”, 2006). A compreensão dessa ciclicidade da história e a capacidade anacrônica de manter uma certa distância com tempo presente, ao mesmo tempo em que se mantém uma conexão singular com ele, pode dar à luz a obras incrivelmente atemporais.