Predestinação e martírio
Daniel Murta
Em Saint Maud (2020), a cineasta estreante Rose Glass constrói uma tragédia que deambula pelos temas da loucura e do sagrado e profano, sem fixar-se em um só ponto até o último quadro. Todavia, a história e o plot centrados na personagem-título são claramente delineados, com momentos distintos em que ela encontra uma vocação, cai em desgraça e renasce como santa. Nesses entremeios, a alma de Maud é impiedosamente dilacerada.
Desde que Friedkin estabeleceu os parâmetros no assunto possessão demoníaca, há quase meio século, o cinema de terror parece ter adquirido grande interesse em lidar com a corrupção da alma humana por via de entidades malignas. A pureza profanada de Regan em O Exorcista (1973) inspira direta e indiretamente toda sorte de cineastas, dos quais Glass, sem dúvidas, faz parte.
Logo nos primeiros minutos de seu debute, Glass enquadra Maud subindo uma escadaria estreita, localizada em um beco entre dois prédios, aceno visível a imagem iconográfica de O Exorcista. Não estranha que Saint Maud tenha sido prontamente comparado ao outro em algum grau. A comparação mais possível entre os dois, no entanto, reside na natureza claramente antitética das duas obras.
Em sua introdução narrada, Maud discute a providência divina que rege sua vida de recém-convertida. A moça virtuosa assume um trabalho como cuidadora de uma ex-dançarina famosa aposentada, que atrofia em função de um câncer e vive numa espécie de síndrome de Norma Desmond, exilada em sua mansão nos arredores de uma cidade que parece tão moribunda quanto ela mesma. Maud logo entende que sua missão ali ultrapassa os cuidados paliativos, entrando no campo da salvação espiritual. Impondo-se como a redentora predestinada, Maud termina por prejudicar sua relação com Amanda e ser demitida. Nesse período de queda, ela é tomada por descrença e se entrega ao pecado por um breve período.
Se, tradicionalmente, no horror, a influência do sobrenatural desvirtua e destrói, aqui ocorre justamente o contrário. Maud é, essencialmente, pecaminosa e cheia de falhas. Ao contrário do que a heterocromia de seus olhos indica, ela não é especial de modo algum. Em seu delírio, entregar-se ao divino é a salvação para redimir-se do passado que oculta um erro trágico, para justificar a razão de ser no presente e resguardar-se no pós-vida. É em Deus que Maud encontra prazer verdadeiro, com seus orgasmos espirituais, enquanto o contato carnal mostra-se ato sujo e cruel.
Essa aproximação inusitada que vira do avesso um tema tão básico é o grande sinal de originalidade que existe em Saint Maud. Para além disso, Glass reproduz um cacoete comum a muitos cineastas estreantes, que é constantemente ecoar suas referências cinematográficas dentro do filme. Notam-se, por exemplo, contornos de Persona (1966), na relação de erotismo velado entre as mulheres, ou de Psicose (1960), nos passeios voyeurísticos de Maud pelo casarão no alto da colina. Sem precisar voltar tanto no passado, há uma clara homenagem ao terror mais importante da década, A Bruxa (2015).
Em termos de direção e fotografia, a predileção de Glass pelo cinema clássico surge especialmente no aspecto retrô que permeia o filme, tanto pelas locações quanto pela ausência quase total de efeitos computadorizados que descolam o filme de qualquer senso de temporalidade. Essa distanciação se dá tanto no plot, com o foco em personagens lidando com suas relações tête-à-tête, quanto na mise-en-scène que prioriza ora a decoração dos ambientes retrô, ora espaços vazios. Tal característica já era perceptível nos curtas realizados pela cineasta e aponta para uma tendência dentro de sua obra, que há de se confirmar nos seus próximos trabalhos.
A premiada direção de fotografia corrobora com a construção estética dessa história como algo perdido no tempo. Os planos abertos, que mais parecem pinturas paisagísticas, criam um ambiente hostil e gélido para Maud, anunciando a única saída possível para ela.
A minúcia artística na composição de planos cheios de angulações, cores harmoniosas e formas geométricas parece dialogar bem com uma tendência do cinema indie atual, sem que, necessariamente, acrescente algo ao filme, salvo exceções como alguns planos belíssimos que dão a Maud uma silhueta divina. Esse aspecto, assim como diversos outros dessa personagem, ficam subexplorados dentro da duração curtíssima, que mal chega aos oitenta minutos.
Saint Maud, mais um lançamento da A24, segue a cartilha imposta pela produtora/distribuidora que tem dominado parte do cenário de horror atual e que, frequentemente, agrada mais à crítica que ao público. Parte desse movimento que tentaram, frustradamente, batizar como pós-horror, preza pela economia em diversos sentidos, do orçamentário ao estético. Apesar de possuir uma beleza estonteante, Saint Maud é minimalista até demais, optando por amarrar o enredo numa curta duração, sacrificando assim diversos potenciais dramáticos e imagéticos que poderiam tê-lo elevado ao patamar dos filmes de Aster e Eggers, figuras bem próximas a Rose Glass.