No Coração do Mundo (2019), de Gabriel Martins e Maurilio Martins

Contagem, meu país

Rebeca Francoff

O amor açucarado que víamos nos filmes de Sessão da Tarde é o cartão de visitas de No Coração do Mundo (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2019). A personagem Ana (Kelly Crifer) contrata um carro de mensagens e faz surpresa para o namorado Marcos (Leo Pyrata) em praça pública. É noite em Contagem, Minas Gerais. Apaixonados, eles escutam as palavras afetuosas da locutora (Karine Teles) e entreolham-se sintonizados, até serem interrompidos pelo disparo de um tiro. De repente, as cartas mudam do romance para a ação, estabelecendo uma tensão que nos acompanhará até o fim. 

Como se determinasse quem dita as regras a partir daquele momento, Marcos caminha pelas ruas labirínticas do bairro Jardim Laguna com ar de gângster. Em tom imponente, apresenta-se como um manda-chuva e ameaça fazer seu amigo chupar o cano do revólver, por ter matado alguém por engano. Tal situação traz indício sobre como o personagem é destituído de afeto. Até seu relacionamento com Ana mostra insensibilidade no decorrer da narrativa.

O longa fala sobre as vivências num bairro periférico de uma região metropolitana. O dia a dia dos personagens é marcado pelo contraste entre o trabalho honesto e o crime. A trama é composta por vários blocos narrativos. No plot principal, Selma, Ana e Marcos querem aplicar um golpe para ficarem ricos. Porém, a situação foge do controle e tem desfecho trágico.

Ficamos diante de um espaço onde o faz de conta acaba em sangue. Depois de uma tentativa de roubo de joias num condomínio de luxo, Selma, Ana e Marcos são surpreendidos numa emboscada. Ana e Selma são feridas como animais caçados e cada uma cambaleia em asfaltos diferentes. Selma consegue fugir pela rodovia com os objetos roubados. Ana, por sua vez, foge de mãos vazias, acompanhada por Marcos. O nascer do sol surge enquanto Ana e Marcos caminham  à beira da estrada. A vida apresenta-se dura e áspera como o asfalto em que pisam. A frustração é estampada na cara dos dois personagens. Eles caminham sem olhar para trás, infelizes. O sonho vai por água abaixo, prova de que no Jardim Laguna os contos de fada são avessos aos finais felizes.

No último plano do filme, Ana, antiga trocadora de ônibus, é dessa vez passageira sem destino certo. Estar dentro do veículo significa retrocesso, pois remete à memória de um passado sem perspectivas. Tudo voltou a ser como era, já que a vida medíocre a embala novamente.

O longa destaca as mulheres como condutoras principais da narrativa. São elas que indicam os rumos dos demais personagens. Contudo, fica um incômodo com a falta de coerência no plano de nudez de Ana em seu banho. Como este plano não possui função narrativa, soa como mero adorno, ou seja, um escape vicioso comum no cinema feito por homens, e que soa como uma espécie de fetiche visual. Uma contradição, já que o ponto de vista do filme investe no protagonismo de mulheres, no empoderamento feminino e nos questionamentos sobre o machismo estrutural.

Os arcos narrativos são, de modo geral, compostos por figuras adultas masculinas que cresceram nos anos 1980 e 1990 e não conquistaram plenamente uma independência. Alguns estão presos ao trabalho, como é o caso de Miro (Robert Frank), que tem o mesmo emprego há sete anos. Temos também Marcos, um eterno adolescente que vive às custas da mãe (Gláucia Vandeveld), enquanto ela vai do Laguna ao bairro Pindorama vender desinfetantes caseiros a pé.

Já no núcleo de mulheres é possível vermos o oposto, como Rose (Barbara Colen), que é dona de um salão de beleza e pretende se tornar motorista de Uber para ampliar suas finanças. Contudo, sem perceber, Rose fica aprisionada numa rotina de trabalho descomunal desde os 14 anos. O mesmo acontece com Ana, que sofre abusos diários sem poder sair do trabalho, pois é seu único meio de sustento.

Mais do que o anseio por deslocamento, o filme também discute a noção de permanência. Ficar preso a um trabalho, rotina ou espaço é algo recorrente na trajetória dos personagens. O maior símbolo de estagnação é Marcos, que se apresenta como um criminoso respeitado, entretanto tem preguiça de trabalhar e não é capaz de ajudar a própria mãe. Seu dia a dia é tentar golpes que não o levam a lugar algum.

A ausência paterna é perceptível em quase todas as famílias. Quando existe a figura do pai, ele é apresentado como inválido, tal qual o progenitor de Ana, interpretado por Eid Ribeiro, idoso enfermo e completamente dependente dos cuidados da filha. O filme aproveita para denunciar uma realidade periférica, através da qual é notória a morte precoce ou o abandonado do lar, deixando pra trás o processo de criação dos filhos. Em consequência, as mulheres assumem sozinhas as responsabilidades domésticas, além de trabalharem fora.

No Coração do Mundo fala de gozos interrompidos. O primeiro aparece na comemoração de Ana com Marcos. O tiro rompe as mensagens de futuro melhor e assusta os moradores do bairro. O segundo é mais literal. Manifesta-se durante a transa de Rose e Miro, justamente no momento de prazer dela durante o sexo oral, quando Beto (Renato Novaes), irmão dele, bate no portão pedindo dinheiro emprestado.

Outras cisões do filme têm ligação com a personagem Selma. Uma das principais diz respeito à relação com a filha. Tal condição se confirma na cena em que a criança se nega a falar com ela durante uma chamada telefônica. Como forma de compensação, o trabalho de Selma é fazer fotografias de crianças em escolas. Fotografar passa a ser o sustento da personagem, assim como é o único meio de contato simbólico com a filha. Por fim, talvez a mais importante freada de expectativas vem dos tiros e da violência dos assaltantes intrusos após o roubo das joias, no ápice da comemoração de Selma, Ana e Marcos.

Além de tudo, No Coração do Mundo traz uma memória coletiva de Contagem, cidade onde cresci e vivi quase toda a minha vida. Ao assistir ao filme, me senti em casa. Lembrei-me da minha vizinha Renata, do bloco C. O pai dela morreu atropelado quando andava de bicicleta, o que a obrigou a ser criada pela avó. Para sustentar a casa, sua mãe trabalhava o dia inteiro como professora na escola estadual do bairro.

A Rose da minha rua também é dona de um salão de beleza e possui independência financeira que a distingue de outras mulheres do bairro. Por coincidência, o filho dela só faz reclamar e nunca ajuda a pagar as contas de casa. Dia desses, ele foi pintar a parede de uma vizinha chamada Gloraci. Dizem que pegou todo o dinheiro e gastou com bebidas.

A Dalva vai sempre ao culto das 18h. Esses dias a chamei pra ir lá em casa cantar parabéns com um bolinho pra minha mãe, mas ela não pôde, porque a ida à igreja é um rito incontornável em seu dia a dia. Já a Lúcia, moradora da rua de baixo, teve de reconhecer o corpo do melhor amigo Arnaldo, morto por uma bala perdida. “Acho que era queima de arquivo”, afirmou em voz baixa.

Tem também o Leo, morador do bloco F, que tentou roubar o carro de Janaína para assaltar um banco no bairro Industrial. Acabou batendo o carro no portão de saída e acordou toda a vizinhança. O sonho dele sempre foi aparecer como meliante no Balanço Geral. Mara atrasa o condomínio porque tem 5 filhos e está desempregada, mas a cervejinha de domingo não pode faltar. A família do 201 eu quase não vejo. Eles pouco saem de casa, só sei que vieram de outra cidade morar com a tia Cleide.

O filme se assemelha a um mapa de afetos e também a um desenho territorial. Por mais que exista uma linha de metrô que liga Contagem a Belo Horizonte em menos de 20 minutos, é possível encontrar contagenses que nunca conheceram a capital mineira. Contagem também é desconhecida por grande parte dos belorizontinos. Ainda com a suposta facilidade de deslocamento via transporte público, o município é muitas vezes visto como um lugar subdesenvolvido, como nos tempos em que era chamada de Contagem das Abóboras (época em que contavam não só abóboras como cabeças de gado e escravos). No Coração do Mundo configura-se como uma forma de permear esse mapa, no qual o destino final é a troca intensa de olhares.