Louis Le Prince, um incógnito inventor do cinema

Douglas König de Oliveira

Toda invenção é um ponto para onde convergem esforços diversos. O surgimento do cinema foi um processo gradual de criação tanto técnica quanto artística, que marcou o século seguinte ao seu surgimento de maneira capital. Porém, os aparatos tecnológicos para seu desenvolvimento já existiam isoladamente antes do que se consagrou chamar de primeiros filmes. O filósofo Gilles Deleuze delimitou a questão assim, em seu livro “A imagem-movimento” (1983):

As condições determinantes do cinema são as seguintes: não apenas a foto, mas a foto instantânea (a fotografia posada pertence a uma outra linhagem); a equidistância dos instantâneos; a transferência dessa equidistância para um suporte que constitui o “filme“ (Edison e Dickson perfuram a película); um mecanismo que puxa as imagens (as garras de Lumière). É neste sentido que o cinema é o sistema que reproduz o movimento em função do instante qualquer, isto é, em função de momentos equidistantes, escolhidos de modo a dar a impressão de continuidade.”

A principal pré-condição para esta busca seria a confecção de uma chapa fotográfica com tempo de exposição compatível ao registro instantâneo. Desde as primeiras fotografias, com Niepce e Daguerre a partir de 1826, muitos criaram soluções físicas e químicas para que imagens fossem registradas em um suporte num menor tempo de exposição. Em 1874, o astrônomo Pierre Jules César Janssen utiliza um revolver fotográfico para registrar sucessivas poses da passagem de Vênus pelo Sol. Já em 1877, Eadweard J. Muybridge consegue registrar o movimento de um cavalo de corrida em uma série de fotos, utilizando um conjunto de câmeras que registrava um fotograma de cada etapa do percurso. A partir de 1882, Étienne-Jules Marey, com seu fuzil cronofotográfico e experimentos em seu laboratório de fisiologia, também deu importantes contribuições ao que seria mais propriamente a elaboração da imagem em movimento.

Estes inventores e pesquisadores, entre tantos que, paralelamente, percorreram o mesmo caminho, sem que seus trabalhos fossem notabilizados, tinham grande interesse na decomposição do movimento. Interessava-lhes a dinâmica de cada gesto ou ação, seu funcionamento detalhado. Não tinham nenhuma pretensão de reproduzir o instante registrado, da re-presença do tempo e espaço cristalizado nas sucessivas fotos. Não era a impressão de realidade o alvo principal de seus esforços.

Sendo assim, para atender a totalidade dos requisitos sugeridos por Deleuze, teríamos que recorrer à geração seguinte de inventores (ao menos aos principais inovadores deste período), começando pela tira de perfuração regular no teatro óptico de Charles-Émile Reynaud em 1888 (ideia que saiu da exibição das animações desenhadas por Reynaud e foi utilizada por todos que trabalhavam com o lastro fotográfico desde então); o quinetoscópio de Thomas Edison, em 1891 (uma volumosa caixa de madeira que apresentava a sequencia de fotos animadas para apenas um expectador individualmente); até a primeira apresentação pública e comercial de um filme por Marx e Emil Skladanowsky na Alemanha, em 1895, e a de Louis e Auguste Lumière, em dezembro do mesmo ano, na França.Esta última, marco oficial do surgimento do cinema, encarna mais adequadamente os requisitos de Deleuze, com sua excelência técnica fruto da incorporação e aperfeiçoamento de todas as ferramentas mecânicas bem sucedidas anteriormente.

Mas entre o primeiro grupo, que utilizava o registro cronofotográfico de maneira instrumental, e o segundo, que investia na questão do registro da realidade cotidiana, e também espetacularizada (como no show de variedades projetado pelos Skladanowsky e por Reynaud a um público pagante), uma figura pouco prestigiada surge como antecipador de muitas concepções do que se chamaria de cinema inaugural, cerca de 6 ou 7 anos antes dos Lumière. Essa figura fulcral era o francês Louis Le Prince, que, residindo sobretudo na Inglaterra, realizou a maior parte de sua breve obra fílmica.

O que distingue o trabalho de Louis Le Prince dos de Marey e Muybridge é a intenção de utilizar a câmera para captar a dinâmica da realidade: não mais as etapas de um movimento ou ação, mas uma parcela de tempo e espaço. Em cenas como a Roundhay Garden Scene (1888) existe um jogo de cena sugerido: o que se vê é realmente uma ocasião de diversão aristocrática nos jardins dos sogros de Le Prince. Em outra cena, Traffic Crossing Leeds Bridge (1888), ainda é mais clara a sugestão de que a câmera não mais tem um objeto fechado, mas que se abre para a realidade que a objetiva apontar, no caso, o fluxo de veículos e pedestres em uma ponte de Leeds. Este incremento da dimensão ontológica da fotografia com uma duração temporal indistinta da realidade, mesmo em registros mais precários como Accordion Player (1888) e Man Walking Around A Corner (1887),se diferencia da atenção às etapas do movimento, que era o objetivo da cronofotografia até então.

Alguns aspectos plásticos das cenas captadas pelas câmeras de Louis Le Prince chamam atenção, dado o acesso que temos a elas hoje. Por algum tempo após estes registros, Le Prince tentou formular um suporte translúcido para a exibição dos filmes baseado em celuloide. As exibições eram feitas até ali com o uso da fonte luminosa de uma lanterna mágica, em que os fotogramas de papel necessitavam de um complexo e frágil arranjo em forma de tira, feito de vidros e fixados com tecidos, de difícil manuseio para exibição. Também trabalhou em um equipamento eficiente de projeção, hoje desaparecido. Mas nenhuma tentativa teve o êxito de suas câmeras, a primeira de 16 lentes, e a segunda com apenas uma. E o que vemos através delas são situações que, anos depois, iriam compor o repertório dos filmes exibidos pelos Lumière – portanto, os antecipando.

Em Roundhay Garden Scene é mostrada uma situação familiar onde figuram os sogros e o filho de Le Prince, além de uma outra convidada. Temas domésticos são habituais nos filmes iniciais dos Lumière, diferentemente dos de Marey e Muybridge, que se passavam, sobretudo, em ambiente de laboratório, com as típicas marcações. A sucessão de tomadas com número maior em menor espaço de tempo (cerca de 12 quadros por segundo) proporcionou uma fluidez que a impressão de realidade característica do cinema exige. Adolphe Le Prince executa um grande arco na cena, saindo da posição frontal para a lateral, e quase fica de costas para a câmera: dinâmica bastante intensa para uma cena curta. Os outros integrantes da cena, Sarah Whitley, Joseph Whitley e Harriet Hartley, compõem a metade direita da tomada, executando movimentos diversos do de Adolphe. A outra metade é quase inteiramente tomada pelo fragmento da frente da casa, com escadaria e janelas, em uma bela composição fotográfica.

O contraste do volume dessa estrutura da casa em perspectiva e das árvores atrás, assim como o não alinhamento das pessoas em relação ao fundo e o movimento em arco principal, dão uma noção de profundidade de cena inédita na cronofotografia de Marey e Muybridge. Tal profundidade chamaria a atenção em tomadas como La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895), dos irmãos Lumière. Nem Thomas Edison exploraria esse aspecto nos seus filmes de estúdio, em período anterior aos Lumière. O movimento vigoroso dos elementos humanos é enfatizado na cena, mas alguns detalhes das roupas, como o sobretudo esvoaçante de Joseph Whitley no canto direito, também trazem um dado novo, uma vivacidade que as cenas em laboratório não conseguiam captar. Isso tudo em cerca de dois segundos de duração, onde todos os detalhes são bastante claros e precisos.

Traffic Crossing Leeds Bridge apresenta ainda mais elementos originais: numa tomada em ângulo superior (Plongée), pode-se ver carruagens de transporte de passageiros e cargas, pessoas pela calçada (inclusive crianças) e atravessando a via. Também os postes de iluminação e alguns prédios ao fundo se organizam numa composição em diagonal que faz lembrar L’Arrivée D’un Train En Gare de La Ciotat (1895). Essa tomada demostra mais francamente a capacidade do cinema de transmitir aspectos de uma época, como cultura e costumes. O retrato do intenso fluxo de veículos, assim como a interação das pessoas em meio a eles, e também os trajes e conjunto de elementos humanos, como a provável família que distinguimos no canto inferior direito, é um registro objetivo de uma época, ainda que breve. Por mais que a literatura e a pintura do período retratem tais expedientes, todo este universo está disposto conforme sua aparência e dinâmica na sequencia de quadros que, ao serem colocados, consecutivamente, na cadência da realidade filmada, animam tal fragmento. Como um documento cristalizado de tempo e espaço: matéria-prima do cinema.

Outros dois registros mais modestos são Accordion Player, que exibe o movimento de Adolphe Le Prince tocando acordeão na escadaria dos Whitley – mais um retrato familiar, agora da cadência corporal enquanto executa o instrumento – e Man Walking Around A Corner. Este retrata a breve passagem de uma pessoa por uma esquina, começando de frente para a tomada e terminando de forma lateral.  No primeiro existe um vislumbre de um retrato artístico. Ainda que Marey tenha feito séries de filmes anteriores com prestidigitadores, por exemplo, eles serviram como análise de seus movimentos e até como decifradores de seus truques. A tomada de Le Prince não tem tal pretensão. É um retrato simples, com a falta de objetividade pragmática que é desejável para a expressão artística. Já a tomada do homem dobrando a esquina, ainda que precária e, provavelmente, fruto de sua primeira câmera de 16 lentes, assume a dimensão do tempo que o cinema incorpora à fotografia. Aquele indivíduo objetivamente passou pelo espaço registado nos fotogramas, na consecução de instantes que dura a tomada. Roland Barthes diria em “Câmara Clara” (1980) que “toda fotografia é um certificado de presença”. E também que “como o mundo real, o mundo fílmico é sustentado pela presunção de que a experiência continuará constantemente a fluir no mesmo estilo constitutivo”. Desta forma, o homem na esquina de Le Prince pressupõe um antes (de onde vem?) e um depois (qual seu destino?), diferenciando-se dos segmentos representados nas cronofotografias, restritos a seus títulos e objetivos de análise. Este fator é mais um índice que aproxima a obra de Louis Le Prince do que seria a vocação do cinema: registrar, reportar e reconstituir a realidade, mesmo que de forma aberta em relação à necessidade de adequação dos signos a uma instância absoluta de sentido.

Ainda que abortada precocemente por circunstâncias que se tornaram mais discutidas que sua obra, o trabalho de Louis Le Prince constitui uma etapa importante da historia do cinema. Ele materializou o que pioneiros anteriores a ele, como Ducos du Hauron, apenas vislumbraram: foi capaz de  aprisionar uma fatia da realidade em um suporte material, para, como diria André Bazin em “Ontologia da Imagem Fotográfica” (1958), “resistir ao tempo e sua degeneração inegociável”. Essa virtude da fotografia, a de embalsamar um instante, foi ampliada pelo cinema em sua dimensão temporal, e teve em Louis Le Prince seus primeiros exemplos distintos e bem sucedidos. Desprezar seu trabalho é correr risco de pular etapas no entendimento de como a expressão cinematográfica foi forjada. Entre o que sonhou e o que realizou efetivamente, Le Prince continua a figurar como um poderoso e obscuro farol.

Três Anúncios para um Crime (2017), de Martin McDonagh

Fantasmas

Fábio Feldman

I

Em “Os Demônios”, Dostoiévski, inspirado por eventos reais, narra os planos de ascensão, as ações, estratégias, embates internos e a eventual derrocada de um grupo terrorista. Ainda que seja possível ler a obra enquanto uma arena onde a tipos filosóficos diferentes são dadas condições para que se digladiem; um ataque antimoderno a setores radicais da esquerda oitocentista; um proto-romance modernista, responsável por pavimentar caminhos para os Faulkners e Lobo Antunes do futuro; um proto-thriller, repleto de reviravoltas; um documento premonitório em relação ao nazismo, fascismo e outros sistemas autoritários que assolaram o século passado; ainda que seja possível lê-lo destas e de incontáveis outras formas, “Os Demônios” é, obviamente, um fruto de sua época – e, creio, representa-a com incrível aprumo sociológico. Segue, assim, se revelando como um dos mais belos (e assustadores) retratos da Rússia durante a segunda metade do século XIX. Apesar de suas especificidades, o texto cheira a história, tem sabor de história – e, em muitas passagens, me parece existir quase que exclusivamente em função da história.

Três Anúncios para um Crime (2017) não é nenhum “Os Demônios”, mas meu contato com ele, em parte, me transportou para um mesmo universo referencial: o da Arte Realista desenvolvida por, além de Dostoiévski, autores como Zola, Hugo, Stendhal, Dickens, e diretores como Lang, Lumet, Altman, Renoir e, de modo mais particular, o último Tati. Por mais variadas que sejam suas criações e por mais distintos os efeitos que provoquem, todas, em certa medida, com suas pletoras de personagens, tramas e subtramas, se configuram enquanto extraordinários espelhos das sociedades em que foram engendradas.

A ficcional cidadezinha de Ebbing, percebida sob um ângulo realista, torna-se uma espécie de microcosmo americano. Lá, progressistas, conservadores (com “bons” e “maus” corações), imigrantes, membros de grupos minoritários, caipiras, sobreviventes da guerra do Afeganistão, padres, espancadores de mulheres e uma série de outros tipos coexistem. Qual um pequeno mosaico, Três Anúncios pode ser lido sob chave sociológica: a absurda cidadezinha inexistente, pulsando em algum canto do estado de Missouri, é a América de Trump – violenta, perdida, incrivelmente polarizada. Finalizado seu “prólogo”, é a ela que o filme nos transporta. O som da ária é abafado pelo do carro da protagonista, Mildred Hayes (interpretada por Frances McDormand); a fotografia se torna mais colorida e vibrante, resgatando-nos de um espaço fantasmagórico; e o destino da protagonista é prenunciado em seus olhos.

II

Minha experiência com Três Anúncios, todavia, me sugere também, simultaneamente, dois outros universos referenciais – um deles sendo o das Farsas. Englobando das altercações dos “Ernests” de Wilde às tramoias do Tartufo de Molière; de vários dos escandalosos “Cantos da Cantuária” à vertiginosa “Comédia de Erros” shakespeariana; das trapalhadas de Basil Fawlty às estripulias do Inspetor Clouseau, o mundo da Farsa é um mundo pequeno, geograficamente limitado por barreiras bem definidas, mas extravagante, histriônico, repleto de improbabilidades e jogos. Tudo nele é demais: suas bases, seus arcos, o desenrolar dos destinos de seus caricaturais personagens. E tudo nele é contra: o lar imperfeito dos homens é tornado alvo para a risada revigorante. Como Flaubert e Kiarostami, também carregam seus espelhos – ainda que mais trincados, puídos, talvez roubados de Palácios em Parques de Diversão.

Dito isso, acho difícil pensar em Três Anúncios sem associá-lo à obra dos irmãos Coen, não apenas em função da presença de McDormand, mas pelo estilo de humor farsesco que tornou a dupla tão notória. Em certa medida, os Coen são precursores, no âmbito do cinema, do que poderíamos chamar de “Farsa pós-moderna”, na qual não apenas quase ouvimos o riso dos autores por trás das câmeras (a crueldade é um elemento constitutivo e quase fundante de qualquer boa Farsa), mas podemos extrair prazer do contato com realidades ambíguas, amparadas por faux-raccords, enquadramentos irônicos, estranhas intertextualidades, diálogos nonsense e, sobretudo na primeira fase de suas carreiras, flertes com uma estética cartunesca (não seriam episódios do Pernalonga e do Pica-pau, em certa medida, versões contemporâneas de Farsas também?). A um só tempo fãs confessos e dedicados do cinema clássico (onde tudo tem começo, meio e fim) e verdadeiros “demônios de combate” baudelairianos, Joel e Ethan ajudaram a redefinir as regras da Farsa americana, abrindo uma tradição que, posteriormente, viria a atrair figuras do porte de Alexander Payne, Edgar Wright, Aki Kaurismaki e, claramente, Martin McDonagh, diretor de Três Anúncios.

Tal “filiação” se me afigura enquanto óbvia, sobretudo, quando penso em dois pontos do filme: a arquitetura rocambolesca de certos núcleos, nos quais os personagens são gradualmente testados, pressionados e levados a seus limites; e o fato de que tal arquitetura é construída sobre um território absurdo. Como em Fargo (1995) ou Queime Depois de Ler (2007), no interior de um mundo pequeno, geograficamente limitado por barreiras bem definidas, os rumos banais de caricaturas banais são inflados a ponto de resvalarem no ridículo. A protagonista, misto de hippie à la Neil Young e herói de faroeste, começa postando outdoors; termina atirando cocktails molotov na delegacia e planejando o assassinato de um desconhecido. Seu parceiro, um típico clown, sujeito com pavio curto e predisposição para torturar negros, termina, após atirar um inocente da janela, fazendo verdadeiro serviço investigativo – e não chegando a lugar algum. Tudo se torna maior e mais ruidoso com o passar dos dias. Mas como nas farsas coenianas, o desfecho é frustrante, todo sound and fury, signifying nothing.

III

Tal caos é, nas telas, transformado por Joel e Ethan em, ambos, matéria-prima para gags e setpieces monumentais, equivalentes filosóficos de um grande “momento Hitchcockiano”. E é no modo com que lidam com um terceiro universo referencial – o da Tragédia – que McDonagh me parece divergir dos Coen.

Sinto que uma pulsão trágica move boa parte da filmografia dos irmãos (se não toda). Deus, para eles, pode estar mais próximo do enigma de Kierkegaard (“Aceite o mistério!”) do que do cadáver nietzschiano, mas a falta de sentido e os embates com ele estipulados são, via de regra, elementos motivadores da ação. Os arcos dos personagens, desde Gosto de Sangue (1984) e, sobretudo, Arizona Nunca Mais (1987), costumam se encontrar carregados de tragicidade – uma tragicidade moderna, que tende a descambar para o grotesco. Seja para o xerife, seja para o ladrão, seja para o judeu, seja para o ateu, seja para a atriz, o cantor, o gângster, o barbeiro monossilábico ou o dramaturgo autocentrado, a salvação é, provavelmente, uma quimera, e todos hão de ser, eventualmente, confrontados pela face da absurdidade. Diante de tamanha escuridão, surge a saída farsesca: é preciso imaginar Sísifo feliz – e aqueles que o filmam, gargalhando!

Esta não me parece ser a inclinação de McDonagh. Ainda que, provavelmente, dialogue formal e filosoficamente com os Coen, creio que sua postura mira mais a de Renoir. Seus heróis trágicos, lutando contra um fado cruel e intransponível (a belíssima cena de Mildred chorando entre os outdoors em chamas é, talvez, a que melhor explicite a natureza impossível de sua jornada), seguem sendo humanos, sangrando e sorrindo do mesmo jeito. Não são poucos os momentos em que McDonagh tenta se aproximar mais de Tolstói do que dos Coen, atingindo resultados variados. A presença de momentos dramáticos e da imposição de um esquema que busca representar a possibilidade de alianças conciliatórias (por vezes absurdas, como deixa claro o desfecho) dentro de um campo fragmentado, traz alguma luz a essa farsa realista de tons trágicos. Acredito, inclusive, ser tal humanismo renoiriano o ponto que mais oferece coesão conteudística a esse estranho filme que é Três Anúncios para um Crime: em um país lacerado, dominado pela ignorância política e circundado pelo horror existencial; em um país de minorias, padres, conservadores, progressistas e etc., captados por uma lente amplificadora, potencialmente tragicômica; nesse país onde não se escapa da morte, das debilidades físicas, da injustiça, do racismo e do preconceito – e onde deus pode ser um animal selvagem, um nada ou um cara gozador que adora brincadeira; nesse país onde todo herói tem um tanto de vilão e vice-versa, nada é mais necessário do que um bocado de compaixão.

IV

De uma perspectiva estrutural, Três Anúncios se me apresenta como, simultaneamente, um típico filme clássico hollywoodiano e uma sequência condensada de esquetes. Não há muito espaço para respiro, todas as cenas são encadeadas com precisão, embaladas num fluxo contínuo. Nesse sentido, lembra também o teatro renascentista, conjunto de obras que quase figuram como antologias de momentos de intensidade entrelaçados de forma firme, ainda que narrativamente frouxa. Há sequências inteiras do filme que me parecem, em termos de enredo, “desnecessárias”: o engraçadíssimo diálogo com o padre, a interação de Mildred com o cervo, a cena em que um copo de suco é ofertada pelo agredido a seu agressor. Ainda assim, suspeito que seria imprudente eliminar cacos que, não apenas oferecem acesso maior às realidades de Ebbing, como expandem o foco realista da obra.

Infelizmente, essa estruturação, dada a amarração de certas sequências, costuma deixar na boca um gosto desnecessário de esquematismo – um bom exemplo sendo o encadeamento entre o flashback no qual somos apresentados à filha de Mildred (imprescindível, a meu ver, para que compreendamos melhor a obsessão da protagonista e a essência de seus tortuosos sentimentos) à chegada do ex-marido. Essa montagem pode remeter a Shakespeare ou a Górki, mas ao público hodierno, acostumado com o imersivo modelo hollywoodiano, pode também ser interpretada como excessivamente didática e, por vezes, grosseira. Outro “problema” diz respeito a certos excessos do roteiro: Willoughby (Woody Harrelson) diz a Mildred que ela “alegadamente” sofreu abusos do ex; a filha repete a mesma frase poucas cenas depois; na sequência, o homem citado aparece e tenta agredir a protagonista…

Estranho como um filme tão “magro”, tão objetivo, tão clássico, pode, ao mesmo tempo, parecer uma frágil colcha de retalhos, atravessada por excessos e caracterizações reiterativas de personagens e situações que, sobretudo a partir do terceiro ato, se revelam classicamente fechados e modernamente abertos. Sinto que, em algum lugar, os pontos fracos da película se mesclam a seus pontos fortes. E o pendor sociológico de Altman, com seu humor seco e característica desesperança, alinhando-se à sanha indecorosa dos enfant terrible que são os Coen, dá à luz uma obra particular, com estilo de filme B, deliciosas gags pythonianas e uma série de outras que, definitivamente, serviriam melhor ao chão da sala de edição; um filme que diz muito de formas diferentes, ora nos remetendo à ternura difícil de obras-primas como A Grande Ilusão (1937), ora despencando em clichês de sitcoms e novelas; um filme sobre três protagonistas que, ao enfrentar o impossível (a morte do outro, a própria morte e condições material e intelectualmente desprivilegiadas), navegam entre a indignação e a galhofa no interior de planos clássicos, precisos, formalmente coerentes. Por vezes, nos arrancando risos, por vezes, lágrimas, por vezes, desconfiança.

É um filme estranho esse Três Anúncios para um Crime. Talvez quase tão estranho quanto o mundo que, com seus espelhos, visa refletir. Um mundo prenhe de futuros assustadores, carregado de uma esperança leve e atormentado por todo tipo de fantasmas.

Sexo e zumbis na cidade que deu errado

 

Leandro Afonso

Em O Mito da Liberdade (2010), sua estreia no longa-metragem, David Robert Mitchell reprimiu e desiludiu seus personagens, deixando claro o interesse numa certa crítica ao mito, ali implicitamente ligado a John Hughes. No seu filme seguinte, porém, Mitchell assume, abraça e afaga o imaginário coletivo do horror americano. Se O Mito da Liberdade é um possível contraponto a Clube dos Cinco (1985), A Corrente do Mal (2014) demonstra fidelidade quase cega a Halloween (1978), o que nos leva à pergunta: o que há no filme de David Robert Mitchell que não há no filme de John Carpenter?

Em Halloween, existem pelo menos três passagens que ligam explicitamente Michael Myers a algo impessoal, a uma coisa. Na apresentação de Samuel Loomis (Donald Pleasance), o psiquiatra repetidas vezes chama seu paciente de it, minutos antes de frisar que “isso (Michael) não é um homem”. Quando Laurie (Jamie Lee Curtis) percebe que de fato está sendo acossada por Myers, ela diz que vai matar o boogeyman e ganha como resposta infantil um “você não pode matar o bicho-papão”. Nada ingênua, a criança é precisa: o boogeyman, o bicho-papão, o ser mitológico, não pode ser morto. O mito não tem fim.

Corrente Michael Myers

Em Halloween, após o assassinato de Judith Myers, presenciamos o de Annie, mesmo nome da primeira vítima em A Corrente do Mal. No longa de Mitchell, o mito recorrente vem travestido de DST sem cura, em releitura que beira a refilmagem estilizada. A principal vítima é a mulher, de preferência loira, sempre vulnerável. A busca por sexo eventualmente deve matar. O algoz é um ente querido: um namorado, uma mãe, um irmão. Numa sala de aula, a protagonista perseguida vê seu potencial assassino do lado de fora. Em casa, ela assiste a um filme de sci-fi em companhia da pessoa com quem, futuramente, vai transar. A música minimalista, com sons que remetem a teclados, se liga à memória sonora dos anos 1980. Tudo isso está em ambos, Halloween e A Corrente do Mal, sem tirar nem pôr.

Da mesma forma que Michael atormenta Laurie no desfecho de Carpenter, esta coisa tende a atacar Jay no clímax de Mitchell. A imagem potente da piscina de sangue não só é o equivalente do cartucho descarregado em Halloween, como existe graças a uma ideia tola e a dois tiros num vilão que, naquele momento, deu adeus à sua lógica interna e ficou menos crível. Tiros fatais têm prazo de validade ou só funcionam quando acerta um setor específico e milimétrico do rosto? Com tempo para pensar numa solução, a escolha da piscina estaria entre as mais plausíveis? Ok, faz parte, o que importa é a continuação do decalque na resposta à pergunta: a corrente morreu?

No último plano de A Corrente do Mal, acompanhamos Paul e Jay de costas, no que pode ser a visão subjetiva aproximada desse alguém que não sabemos quem é. Alguém que os personagens não enxergam, mas que nós espectadores notamos; pelo som em Halloween, pelo quadro anterior em It Follows. Alguém que parece nunca morrer, não importa quantas balas você acerte. A corrente Michael Myers.

Zumbi Michael Myers

Na cena subsequente à transa entre Jay e Paul (Keir Gilchrist), ele dirige por Detroit, onde enxerga o que parecem ser prostitutas. Elas são o emblema, ressaltado em câmera lenta, de uma sociedade cujos membros encontram no sexo, ao mesmo tempo, uma DST incurável e a única salvação. O impasse fica maior, no caso delas, porque o sexo é também o ganha-pão.

De volta à cidade que capta, Mitchell faz questão de mostrar uma riqueza com validade vencida, uma urbanização que deu errado, uma Detroit que, outrora próspera, hoje vai pouco além de um pobre e desgastado espectro de metrópole. Para a mise-en-scène de Mitchell, a degradação de quem vende o corpo é tão importante quanto a do entorno devastado. Mais cedo ele trouxe para um diálogo a 8 Mile, dividindo a cidade em duas: a menos e a mais perigosa. O subúrbio pacato da fictícia Haddonfield de Halloween é substituído por uma Detroit que recebe um marca-texto nas suas mazelas, no seu esfacelamento que foi dividido em nada suaves prestações nas últimas décadas. Uma cidade que deu errado.

Outro ponto, talvez até mais importante, diz respeito à forma do filme jogar com a tradição slasher e com parte da tradição do horror, onde transar ou querer transar é uma passagem comprada ao desencarne. A Corrente do Mal não só usa como intensifica essa ideia: fazer sexo é conseguir uma promoção, dois bilhetes pelo preço de um: a morte vai buscar você e o parceiro. Em contrapartida, o sexo é, simultaneamente, uma certidão de óbito e de renascimento. Ou pelo menos de uma sobrevida. A única maneira de escapar é transar com outro, que então passa a ser perseguido como você. Logicamente, contudo, se todos agirem assim, a resolução dessa conta tende a zero. Ninguém poderá fazer sexo impunemente, ou, bebendo o copo meio cheio, o sexo livre não tem consequências, já que todos estão perseguidos e agora pode-se transar sem a preocupação de transmitir uma DST mortal. Todos est(ar)ão contaminados.

Assim, transar não é mais (apenas) o caminho para a morte, transar é (também) o caminho para postergar a morte. Se fugir, você cansa ou enlouquece; se transar, você salva sua vida e assume o assassinato de uma outra. Não sobram muitas opções. Morrer sem saber que esse ente estava travestido de sua mãe para matá-lo? Ver um ente querido e ter que matá-lo para não morrer? Ser uma mártir e morrer sozinha? Assassinar para não ser assassinada (agora)?

A lembrança clássica natural é A Noite dos Mortos Vivos (1968). Em A Corrente do Mal, Carpenter predomina na superfície, na narrativa e na mise-en-scène, mas a piscadela do subtexto é para Romero. Há não (apenas) uma cópia do estilo de um e da crítica do outro, mas uma boa prole dessa miscigenação.

Pelo Amor e Pela Morte (1994), de Michele Soavi

Cabeças divididas ao meio

Roberto Cotta

E havendo pessoas para quem a morte, de fato, é preferível, não saberás dar a razão de ser vedado aos homens  procurarem para si mesmos semelhante benefício, mas precisarem esperar por benfeitor estranho.

(Platão, “Fédon”)

Lá pelas tantas, o fiel escudeiro do cemitério de Buffalora sofre um corte na cabeça, logo após um acidente de carro. A essa altura, Pelo Amor e Pela Morte (1994) já estabeleceu todos os seus postulados. Trata-se de um filme dominado pela razão, milimétrico em suas investidas estéticas, cuidadoso no desvelamento de seus espaços cênicos e na articulação de seus ritmos temporais. Para que essa racionalidade vigore, é preciso conter a emoção extravasada pelos zumbis que habitam a cidade. Portanto, o possível falecimento de Gnaghi (François Hadji-Lazaro), decorrente de um impacto contra sua própria testa (razão fraturada), talvez fosse o desfecho mais justo para sua irônica penitência. Porém, à beira do abismo, a jornada dele e de seu mentor Francesco Dellamorte (Rupert Everett) é paralisada e eternizada em vida, algo que ressignifica a noção de imortalidade descortinada pelo filme.

Desde os minutos iniciais, na pequena aldeia italiana onde a narrativa se concentra, é preciso que os personagens morram para que, em seguida, alcancem a imortalidade. O paradoxo se estabelece devido a um fenômeno inexplicável que transforma os defuntos em zumbis sete dias depois de enterrados. Nesse sentido, é curiosa a condição anárquica que toma conta da obra de Michele Soavi, adaptação de um romance homônimo escrito por Tiziano Sclavi. Alguns desses zumbis possuem total consciência sobre suas atitudes, enquanto outros são privados de vontade própria, sem que existam motivações específicas para tais diferenças. Aos olhos do coveiro/zelador interpretado por Everett, é necessário que uma segunda morte os liberte definitivamente da carcaça putrefata que carregam. Cabe a ele a aniquilação dos mortos-vivos com um golpe em suas cabeças, sempre auxiliado por Gnaghi, seu leal Sancho Pança. Só assim, o caos pode ser contido e a plenitude do Além cristão alcançada. Por isso, a eternidade legada aos protagonistas ganha vestes de uma fissura irônica, por vezes tragicômica. Durante todo o filme, eles lutam contra a imortalidade (ou a semi-imortalidade) alheia, porém, no fim das contas, seus próprios corpos acabam perpetuados nos confins desse vilarejo mal-assombrado.

Um travelling acompanha as minúcias de uma caveira, antes de sermos apresentados a Francesco Dellamorte, num de seus raros momentos de ócio. Em seguida, um zumbi bate à porta, sendo prontamente recebido de modo hostil. Um tiro na testa do desmorto demarca, logo de cara, o eixo central do filme. A partir de então, o protagonista passa a corroborar a aceitação de seu destino (combater os mortos-vivos que tendem a modificar a pacata rotina da cidade), enquanto os zumbis se recusam a permanecerem trancados em seus caixões, culminando numa destituição da ordem local. O corte na cabeça torna-se, então, a última fronteira entre a vida e a morte. Como um Perseu, movido pela razão, Dellamorte se vê imbuído de decapitar um sem-fim de Medusas noite afora. Em contrapartida, essas mortes parecem conceder-lhe um penoso elixir da vida eterna. Para sempre, ele se tornará um guardião da beleza castrada. Perpetuamente, também será um combatente aprisionado pelo horror.

A pitoresca conjunção entre monstruosidade e beleza trazida pelo filme também pode ser associada ao mito da Medusa. Representada por diversos pintores e escultores como um monstro assombroso, corroído pela ira, sua figura foi evidenciada por outros artistas como possuidora de uma perfeição inconteste. Assim como o mito, Pelo Amor e Pela Morte reúne todos os atributos que exaurem essas duas percepções da forma. Por um lado, o filme é devorado pela escatologia grotesca que invade seu décor, viabilizada pela carne apodrecida de seus excrementos de morte e pelas abominações vomitadas por seus personagens. Por outro, é pura plasticidade pictórica e escultórica, gesto criativo manifesto de maneira pluriforme, apontando para diversos caminhos incapazes de traduzir, por completo, a formosura de suas escolhas estéticas. Buffalora é a materialização da “Ilha dos Mortos”, de Brocklin; seu cemitério nos reconduz à imagem do “Cristo no Limbo”, de Bosch; e o romance proibido entre Dellamorte e a mulher tripartida (Anna Falchi) que incendeia seus pesadelos é a corporificação dos “Amantes”, de Magritte, o pintor cerebral. Contudo, assim como nos filmes de Argento, a beleza na obra de Soavi suplanta qualquer tipo de prerrogativa associada às matizes formais de outros artistas. Ela é cuidadosamente plácida, ao mesmo tempo pandemônica, e sua concepção, assim, se basta.

A expressividade amorosa é outra matéria essencial ao filme. Dellamorte mergulha em eternos retornos ao redor de uma mesma imagem feminina pela qual se apaixona. Primeiro, a viúva tarada por ossos; depois, a secretária pessoal do novo prefeito; e, por fim, a prostituta realizadora de desejos. Não há como escapar do amor, mas a descrença, acima de tudo, passa a gritar cada vez mais alto. À medida que o envolvimento entre ambos se reitera, percebemos que a perpetuação do amor será rejeitada. No último encontro entre os amantes, um plano lateral mostra os dois deitados na cama após copularem. Ele pergunta: “Você me ama?”; ela responde: “Sim, se você ficar a noite toda…”; em seguida, ele indaga: “A vida toda também?”. Sem resposta, o personagem descobre que terá que pagar pelos instantes de prazer. O amor esfria, a indiferença e o ressentimento ardem.

Pelo Amor e Pela Morte é a zombaria do absurdo, a razão estraçalhada pelo riso, o horror fascinado pela tragédia, o medo soterrado pela vida. Dellamorte e Gnaghi poderão, finalmente, ser eternizados em seu Juízo Final, transformando-se em imagem embalsamada de si mesmos. Dessa forma, suas pulsões também podem ser invertidas e, quem sabe, talvez não seja mais necessário impedir a sobrevivência dos mortos. O caos terá arbitrariedade suficiente para dominar Buffalora, deixando que o cemitério siga seu próprio curso. Assim, a imortalidade deixa de ser um peso crucial para se tornar galhofa cotidiana, sem qualquer tipo de hierarquia ou controle.

Edição 4

 

Editorial – Por Fábio Feldman e Roberto Cotta

Temáticos

#4. Dossiê Leon Hirszman

Ensaios

Lançamentos

Livres

Especial

Editorial Edição #04

Como perdura uma ideia de formação de país? O proletariado enquanto máquina, engrenagem morta. A indústria enquanto entulho, imundície espalhada. O comércio enquanto vala, travessia quebrada. A terra enquanto pedra, canto embrutecido. Os filmes de Leon Hirszman apontam um norte cinematográfico incontestável, constantemente atento ao povo, à sua luta e à imagem que dela resiste. A favor do trabalhador, o despertar da consciência e o lamento que canta, grita, nos encara. Contra o poder, a conciliação frouxa, o inconsciente corroído, a sobrevivência que amarga. Depois de um hiato que não desejamos repetir, a quarta edição da Rocinante concentra suas atenções sobre a obra desse cineasta brasileiro cuja relevância histórica tem se mostrado mais vigorosa que nunca.

Ao todo, trazemos 13 textos dedicados à análise dos procedimentos estéticos, narrativos e dramatúrgicos de Hirszman, que também evidenciam as potencialidades políticas que seu cinema sempre proporcionou. Este é discutido sob as mais diversas perspectivas: da crítica de Beatriz Saldanha sobre o raro Garota de Ipanema (1967) ao ensaio de Reinaldo Cardenuto acerca do itinerário cinematográfico do diretor, passando por leituras de longas de ficção mais notórios e curtas e documentários menos celebrados, um horizonte se abre para nos apresentar maneiras particulares de compreender a vastidão dessa obra. O dossiê conta ainda com a transcrição de um debate realizado no MIS-SP, em 1983, com a participação de Hirszman e Gianfrancesco Guarnieri, e uma entrevista exclusiva com Maria Hirszman, filha de Leon e responsável por seu acervo.

Além de tais textos, a corrente edição conta ainda com críticas de filmes recentemente lançados no mercado brasileiro. Como de costume, o lote é heterogêneo, compreendendo desde os brasileiros Deixa na Régua (2017) e A Cidade Onde Envelheço (2016) até os premiados Toni Erdmann (2016) e Paterson (2016), dentre outros. Finalmente, na seção Livres, trazemos uma entrevista com o realizador espanhol José Luis Guerín, conduzida por um dos novos membros de nossa equipe, Leandro Afonso; textos críticos relacionados às obras Giselle (1980), um dos grandes marcos da pornochanchada brasileira, Nada Levarei Quando Morrer Aqueles Que Mim Deve Cobrarei no Inferno (1985), importante curta de Miguel Rio Branco, e O Cavalleiro, Elyseu, documentário de Iulik Lomba de Freitas a respeito do grande cineasta brasileiro Elyseu Visconti; e um estudo comparativo que busca traçar paralelos entre Crianças (1976), do inglês Terence Davies, e Nº27, de Marcelo Lordello. Finalmente, em fevereiro, acresceremos à edição uma cobertura da 21º Mostra de Cinema de Tiradentes.

Fábio Feldman e Roberto Cotta

Uma ficção: o Glauber documentarista

Adolfo Gomes

Glauber Rocha nunca se rendeu a um papel único. Mesmo como personagem de si mesmo, sempre pareceu imprevisível, de uma coerência só decodificável através da sua poética pessoal. Também por isso, há algo de anacrônico – e reducionista – em tentar dividir a sua filmografia em ficção e documental. Se há aqui um espaço para especulação, cabe arriscar: o documentário é a maior das ficções que a indústria já inventou.

Assim, desde Flaherty, para adotar um paradigma icônico, há uma elaboração intrínseca à composição dramática de um protagonista. Em Nanook, O Esquimó (1922), o cotidiano e a filmagem das práticas seculares do personagem central observam os princípios básicos da organização espaço-tempo, própria de uma dramaturgia arquetípica. Nem por isso, tem menos valor antropológico ou perverte o real. É o olhar do cineasta que elege o ângulo, a vista, o corte e a duração, o que, em última instância, nos permite ver a realidade com “outros olhos”.

De Glauber, podemos afirmar, sem dúvida: ele tem um olhar. Natural que prevaleça, quaisquer que sejam os domínios, o desejo de traduzir em imagens a matéria inaugural do Brasil, de um território a ser criado pelo filtro do seu imaginário e gênio. De modo que a África de O Leão de Sete Cabeças (1970), por exemplo, se aproxima da Bahia, sua terra natal, não simplesmente pelas ligações históricas, por ser o chamado berço da negritude, pelo “colonialismo” resiliente, mas por eleição, dele, como dessemelhança que, ao curso dos anos, se prova visionária: quem hoje pode negar que o filme de 1970 transcendeu a alegoria para se firmar como um documento sobre nossas origens? Aquela “epopeia terceiro mundista”, que causava estranhamento, continua a se construir através dos conflitos ainda presentes e próximos de nós – aqui e lá.

Não é diferente com História do Brasil, concluído em 1974, consequência, assumida na sua frontalidade, de O Leão. Glauber iria a Cuba, sentir o perfume e o suor da revolução concretizada até então, para gestar a ruptura política e social que a nossa historiografia oficial insistia em negar. Ao contrário de Humberto Mauro, por maior que seja a admiração (confessa do baiano) pelos cantos naturalistas do patriarca mineiro, “o documentário” tradicional cede terreno ao ensaio audiovisual, num claro gesto protestantista: a montagem como  heresia fundamental do indivíduo diante da intermediação da história, ou para ser mais preciso, uma reação ao objetivismo histórico.

Glauber e Godard, dois cineastas de formação protestante, professaram em inúmeras ocasiões sua fé na montagem como ressurreição (para o francês) e revolução (para o brasileiro), ainda que, na trajetória dos dois, o mito cristão-revolucionário seja recorrente nas suas dissidências formais, alternando essa lógica simbólica entre um e outro – afinal, seria um desatino não reconhecer que Godard fora (e a seu modo ainda é) o maior dos revolucionários (Glauber apenas não viveu o suficiente para consolidar o materialismo místico de A Idade da Terra (1980)).

E se Godard faria o seu Autorretrato de Dezembro (1995), decupando e amplificando suas referências e paixões, o criador de Terra em Transe (1967) filmaria os retratos alheios para chegar a si. Longe de sugerir um percurso narcisista, é mais uma forma de perpetuar a impressão artística que habita em nós, quer seja pela descaracterização em Jorjamado no Cinema (1979), ou por meio da transfiguração de Di (1977). A tudo isso chamaríamos de documentário? Não, se o impulso original é o da fabulação, da criação de quem se admira – e nos transforma- quer ele esteja vivo à nossa frente, quer seja uma espécie de ventríloquo num caixão.

Portanto, se há um Glauber documentarista que é chamado para registrar o mito do “Eldorado Verde” em Amazonas, Amazonas (1965) e acompanhar a posse de José Sarney, em Maranhão 66 (1966), ele é rigorosamente o mesmo de Cabeças Cortadas (1970) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), no seu esforço de conferir uma linguagem, uma dinâmica revolucionária ao real. Agora, se a revolução é também uma ficção (que acreditamos como no entrecho de um romance), eis o problema mais trágico que podemos enfrentar, e que Glauber enfrentou…

Talvez resulte daí essa certa aura de mártir. Do homem que pôs seu corpo frente às câmeras para escutar o que dizia a Revolução dos Cravos em As Armas e o Povo (1975), e que de, alguma forma, se imolava semanalmente na TV, durante a fase do programa “Abertura”.

Enfim, se consideramos o registro da realidade como uma possibilidade verossímil, existente, o documentário em oposição à ficção, é porque a morte inevitavelmente dá as cartas. A natureza tem suas regras e mesmo as artes a elas se submetem, vez por outra. Murnau filmara uma morte, como nenhuma outra no cinema, em Tabu (1931). A maneira como a vida do seu personagem submergia na placidez volumosa do mar não poderia ser mais precisa quanto à imagem da nossa finitude. Em tempos do que se convencionou apelidar de “cinema híbrido”, a obra derradeira de Murnau se levanta tal e qual um farol, a sinalizar, inclusive para a filmografia de Glauber, um caminho de compreensão, além do rótulo e das divisões. Quando um grande artista morre, sua obra passa a ser o único rastro pelo qual ainda é possível chegar até ele. Os documentos da sua presença entre nós. Seria bom pensar o documentário sob essa perspectiva. Isso, sim, seria possível.

 

A estrutura-família em três cinemas: Wes Anderson, Lucrecia Martel e Michael Haneke

Larissa Muniz

Família, a constituição básica da sociedade dividida, rotulada, hierarquizada. O primeiro contato do ser (in)consciente com o mundo. A formação da identidade, do que não-é, a partir das relações internas em oposição ao outro. A origem do desejo, pautado na relação conflituosa com os pais, como pensa a psicanálise freudiana. A mãe oral de Deleuze, amada e temida. A ameaça de castração de Édipo. O ego, o narcisismo, o sadismo, o masoquismo – as perversões do olhar derivadas dessa relação primeira: o vínculo com o pai e a mãe.

A psicanálise concebe os pais como figuras centrais para o desenvolvimento do ego da criança e, juntamente com isso, a constituição do desejo. No cinema, estes determinarão todo olhar para as imagens – e, consequentemente, para o mundo e a linguagem. Parece exagero ou excessivamente determinista colocar o destino do sujeito nas mãos autoritárias/amáveis/temidas dos pais. Afinal, se considerarmos todo o imaginário infantil cerceado por desejos perversos, nos encontramos em um beco sem saída. Qualquer alternativa leva a um mesmo lugar: o desejo reprimido, o amor incompleto, incompreendido, não correspondido; a “falta” que só pode ser substituída pelo falo e preenchida pelo desejo por outro sexo; um ciclo que compreende  o desejo e é limitado por ele.

Dito isso, preciso considerar a imagem central da família, fora, muitas vezes, desse pólo dominante do desejo. Pretendo refletir aqui sobre a família como estrutura básica em alguns filmes, nos quais possui papel fundamental, atuando como um centro de onde irradiam as narrativas, os conflitos e a própria atuação da câmera. Para isso, analisarei obras de uma diretora e dois diretores que possuem grande preocupação com o papel essencial da família para o sujeito: Wes Anderson, especialmente Os Excêntricos Tenenbaums (2002); Lucrecia Martel, com foco em O Pântano (2004); e, por fim, Michael Haneke, principalmente Caché (2005). São obras muito diferentes em suas composições e concepções de família e, justamente por isso, merecem ser analisadas a fim de  pensarmos o sentido reapropriado e traduzido de família.

A melancolia inebriante

Wes Anderson, dos três diretores, talvez seja o mais “digerível”. Isso diz um pouco de sua visão otimista, ainda que receosa de se assumir desse modo, e diz um pouco mais da própria estrutura de seus filmes, que trazem elementos claramente emprestados do teatro e da literatura: a narração, a divisão em capítulos, a apresentação das personagens, as atuações caricatas, a composição dos cenários. Anderson, no entanto, não apenas inspira-se no palco, como utiliza a câmera para redescobri-lo. Os cenários da peça-filme são aos poucos “revelados” pela câmera, que espia os atos peculiares das personagens. É no palco nostálgico e na vida extravagante que as famílias de seus filmes ganham forma, figurando fontes centrais de angústia e apoio emocional. Nelas, uma força vital impede desprendimento e enclausura a personagem  que deseja escapar (da realidade, dos compromissos, da depressão, dos conflitos), mas não consegue.

Em Os Excêntricos Tenenbaums, família é motivo de honra, de pendurar o mérito na parede e abraçar o sucesso do mundo que cai aos seus pés. Mas as crianças, educadas para alcançar seus sonhos de maneira excepcional, tornam-se adultas frustradas com o peso de uma perfeição nunca concretizada. E Anderson não procura nos enganar: em sua fraturada família de gênios, composta por pais separados, filhos frustrados e conquistas efêmeras, a felicidade é uma ilusão. Nada é perfeito para os ilustres Tenenbaums, e seus destinos amargos apenas corroboram o caos emocional envolvido na pressão pelo sucesso – de sujeitos que tinham tudo e, por alguma falha no meio do caminho, perdem o rumo de suas vidas.

Todos eles estão em um estado de desequilíbrio, em diferentes medidas motivados por alguma causa essencialmente familiar, seja um marido ausente, seja uma paixão platônica entre irmãos. Nisso, as relações parentais, mesmo quando envolvidas por amor, são colocadas como razões de conflitos e sofrimentos constantes. Para Wes Anderson, o que está em jogo não é se a instituição da família deve ser boicotada ou não, mas como os sujeitos, perdidos em um mundo absurdo, regido por regras absurdas e vidas pré-determinadas, encontram algum sustento no núcleo familiar enquanto são totalmente sugados pela loucura. É uma condição da própria convivência social: a afetação do outro, o indivíduo afligido pela carga do mundo exterior e que a transforma em fonte de enorme melancolia. Assim, a família, com toda sua potência de atingir o indivíduo, torna-se uma das razões principais de sua instabilidade.

Se pensarmos em cada Tenenbaum desvinculando-o do passado familiar – sem a pressão de atuar como uma criança-gênio, longe do conflito entre os pais ou fora do peso de uma paixão proibida por regras sociais, tais personagens teriam grandes chances de felicidade. As expectativas seriam menores, o ideal de grandeza frustrado também. No entanto, eles não teriam o apoio mútuo de outros excêntricos, ou seriam atravessados pelos os conflitos que, em certa medida, dão sentido às suas existências vazias. O que Wes Anderson parece representar, com suas excessivas composições harmoniosas, incertas de local ou época, é que os Tenenbaums encontram apoio nos Tenenbaums. Um apoio desequilibrado, caótico e, muitas vezes, deprimente. E é a partir dele que se tornam capazes de exercitar pequenos gestos de autenticidade e seguir em frente.

A ambiguidade dos filmes do diretor (marcados por um otimismo mesclado com pessimismo irresolúvel) é materializada na forma como representa sentimentos de amor e ódio, perfeição e frustração, apoio e conflito. A combinação entre cenários tumultuados (de cores, linhas e objetos) e composições simétricas em locais e épocas não especificados, abre possibilidades para sentirmos os conflitos inebriantes da família. O apelo nostálgico das relações afetivas, consequência dos convívios caóticos, parece mostrar aos personagens de Anderson que a vida não permite sucesso absoluto ou felicidade eterna: um amor conturbado, mesmo com todo seu peso é, ainda assim, bem-vindo e necessário.

Essa ideia do apoio familiar absurdo se repete em outras obras. Os irmãos desconfiados e invejosos de A Viagem para Darjeeling (2007) encontram apoio para a morte do pai e a distância da mãe em uma relação extremamente instável; O Fantástico Senhor Raposo (2009) precisa quase destruir a família para valorizá-la, mesmo que isso signifique abdicar de sua vida selvagem; as crianças solitárias de Moonrise Kingdom (2012) precisam fugir de casa para reencontrar o conforto do lar e superar o ódio do abandono. Dessa forma, os conflitos de Wes Anderson refletem os mecanismos familiares que condicionam a trajetória de todo sujeito solitário. No final das contas, Anderson é um otimista que procura sua esperança nas peculiaridades e nos absurdos para reafirmar algum tipo de ordem serena, pautada na melancolia e nas pequenas felicidades.

O suor dos lares

É mais complicado articular qualquer sentido concreto a partir da experiência com os filmes de Lucrecia Martel. A câmera, precisa em suas revelações, esconde muito mais do que deixa a ver – por meio do extracampo, do som ambíguo e do próprio desdobramento da cena com o envolvimento intenso das personagens. A primeira sequência de O Pântano exemplifica bem isso: temos o vinho vermelho artificial, o azul de uma piscina suja, os pedaços de corpos cambaleantes; ouvimos sons de uma tempestade próxima e de disparos de armas de caça e, por fim, de um estilhaço. É depois da apresentação de todos esses fragmentos que conseguimos projetar algum sentido a esse filme suado, com câmera agitada e incerta, que guia como pode o caos de personagens perdidas no calor e na proximidade do outro.

A relação entre as personagens gera uma desorientação (quem é filho de quem? quem é amante, prima, amiga?), somada a suas falas rápidas, sempre relativas a alguma coisa que não sabemos bem o que é. Uma pressa abstrata, oriunda não de preocupações especiais das personagens em se mover ou ser produtivas, mas escrita na essência da narrativa. Mesmo quando as famílias estão deitadas na cama, letárgicas em função do calor, álcool ou sangue, um desfecho desconcertante está sempre à espreita – uma tempestade terrível, um incesto, uma morte. É incerto para onde tais narrativas nos levarão, e Martel não parece interessada em concluir qualquer uma delas. Sua preocupação maior é deixar a imagem transpirar caos e agitação, num contexto em que as pessoas ruminam seus conflitos, com uma vibração interna que não as permite declará-los inteiramente.

A família-estrutura entra aí. As duas principais de O Pântano, com todas as suas diferenças, têm dinâmicas conflituosas. Pais alcoólatras, paixões proibidas e não correspondidas, maridos protetores, mães que não conseguem sair de casa, cicatrizes, vinhos sem gelo, quartos escuros que escondem o sol escaldante, armas nas mãos de crianças, excitações de meninas inquietas. É tudo, é muito, é nada – acontecendo ao mesmo tempo. As imagens vibrantes da tela parecem respirar, transpirar, soltar cor, deixar ser, deixar ver… É a família como estrutura que está causando tudo isso, famílias de classe média conturbadas, na qual as meninas parecem assumir o papel de pai e mãe (são elas quem dirigem, cuidam dos irmãos, vigiam os pais) e os adultos assumem o lugar de crianças frustradas com o desfecho que a vida lhes deu. Famílias sufocadas. Resultado do calor, de suas relações internas, do carnaval, do mundo caótico? Não sabemos. Há apenas a correria, a letargia, a sujeira, o machucado não curado, a tempestade. Lucrecia não afirma ou nega um papel central da família na vida de um indivíduo: ela faz exalar na tela uma vida familiar, onde os sujeitos envolvidos, cada um com suas pequenas ou grandes frustrações, jogam-nas nas caras uns dos outros, cochichando, enlouquecendo, cutucando suas desilusões.

Em A Menina Santa (2004), a família também está presente, mas de modo mais difuso.  Trata-se, novamente, de uma família quebrada, mas dessa vez num sentido mais literal. O núcleo que conta com a mãe divorciada, dona do hotel, e sua filha, se opõe, principalmente, à presença de um médico casado. Apesar de não ser o foco do filme, voltado à religiosidade na adolescência, é interessante pensar a narrativa como um desafio à estrutura familiar tradicional. A adolescente persegue o médico, virtuoso por resistir às suas tentações. Eventualmente, porém, ele coloca tudo a perder. O centro de um núcleo estruturado e estável é tensionado, expondo as contradições dos seus sujeitos e da própria estrutura: homem nenhum é virtuoso por ter uma família, ocupar um cargo de sucesso profissional ou por resistir às provocações de uma adolescente; mãe nenhuma é perfeita; religiosa nenhuma é pura; menina nenhuma é santa. Como em O Pântano, os papéis exercidos por cada sujeito são pressionados e o resultado disso é uma explosão – silenciosa, baseada apenas na sugestão.

Já em A Mulher Sem Cabeça (2008), a família ocupa um papel mais estável. É ela que, em sua engrenagem, mantém a mulher “funcionando”, certificando-se de sua não-culpa pelo atropelamento na estrada; é ela que reflete a falsa harmonia da vida da classe média alta. A natureza artificiosa desse equilíbrio é contestado pela protagonista (Vero) que não consegue ser a mesma depois do peso da possibilidade de ter matado uma pessoa do vilarejo próximo à sua casa – sua culpa a leva à letargia e a enxergar, em alguma medida, sua hipocrisia. Nesse contexto, a família perfeita ganha outro significado, porque está eternamente manchada pelo sangue (real ou não) de um outro oprimido. É no silêncio condenável que Vero perde seu lugar estável de esposa e mãe burguesa para tornar-se insegura do espaço que ocupa, subitamente ciente das contradições de sua posição e da realidade que a cerca. Novamente, Lucrecia não condena ou aprova a estrutura familiar, mas a provoca, expondo o indivíduo refletindo seu papel em um contexto mais amplo e, ao mesmo tempo, expondo suas incertezas em relação à sua função.

O grito do silêncio

Os quadros estáticos e sombrios de Michael Haneke, fechados em seu próprio universo silencioso, antecipam um inferno individual a ser explorado, exposto em suas entranhas perversas – exercícios de tortura cuja origem parece levar ao passado. Em Caché, a primeira armadilha visual é o jogo entre a câmera escondida, a fita ameaçadora e a câmera do filme. Depois, temos ainda cenas que se confundem entre pesadelo e lembrança, soluções que poderiam levar à resolução do mistério, mas resultam em becos obscuros. É um jogo visual que nos coloca em conflito com a experiência do protagonista (Georges), no labirinto incerto de seu passado e suas consequências para o presente, aparentemente feliz e estável. É pensando na família que as explicações (ou causas) do tormento de Georges são mais esclarecidas. A família que, em Haneke, entra como uma perversão estrutural que leva à destruição do indivíduo.

As paredes de livros da casa do protagonista revelam seu estilo de vida burguês moderno: tem sucesso profissional como apresentador de TV, um círculo de amigos intelectuais, uma boa relação com a mulher, um único filho para alimentar. Basta um elemento supostamente inofensivo para desestabilizar seu cotidiano planejado, para lembrá-lo de um passado há muito esquecido. Com as misteriosas fitas, a culpa de ter arruinado, quando tinha seis anos, uma oportunidade de vida para um órfão algeriano (Majid) é desenterrada. Certamente, as ações de uma criança podem ser fatais, mas dificilmente culpabilizáveis – o que fere e desequilibra o homem é sua recordação sofrida, seus sonhos/pesadelos sangrentos, o olho à espreita (da câmera? do passado? do próprio Georges? de Majid?), e as atitudes que decide tomar enquanto adulto diante de uma tensão. Georges apresenta-se inseguro, ameaçador, arrisca sua relação com a esposa, julga o homem do passado sem qualquer prova. Em suma: vê-se tomado por um caos emocional a partir da sugestão de um retorno ao passado. E quando Majid se suicida em sua frente, leva uma surra dessa lembrança, sem as sutilezas de uma câmera escondida. As mágoas que causou e que o atormentam se materializam numa trilha de sangue – torna-se impossível negar a realidade de suas ações.

Caché é um thriller sem qualquer trilha sonora que procure elevar a tensão e conta apenas com as reações furtivas, caladas, preocupadas das “vítimas”. Conta com um olhar não revelado e as mil e uma suposições possíveis acerca do mistério. Haneke está menos interessado em resolver o conflito do que em observar suas consequências sobre um homem supostamente equilibrado e bem sucedido. As relações já bem estabelecidas em sua vida, especialmente as nuances das relações familiares, podem se tornar palco para uma situação assombrosa: o passado se potencializa enquanto fonte de irresolúvel tormenta futura. A família, assim, torna-se causa de assombro e angústia. A câmera persegue, silenciosa, maligna, para garantir que as primeiras relações do homem não sejam esquecidas. Uma câmera-fantasma, nunca encontrada, mas certa de entregar sua denúncia. Total é seu poder de atormentar o casal burguês bem sucedido, de ameaçar o amor do filho, de causar um suicídio. A família é destruição: os pais que dão atenção demais às queixas ciumentas de um filho único; o menino órfão injustiçado, eternamente amargurado pela vida que não teve; o filho que sente na pele as amarguras do pai; o filho que se frustra com a mãe; a esposa decepcionada pelas desconfianças do marido – eternas relações insatisfeitas e incompletas em suas origens, carregadas pelo passado frustrado e nunca redimido. Um passado engolido, enfiado debaixo do travesseiro, dopado ou, na pior (ou melhor) das hipóteses, encerrado pelo suicídio.

A linha da família como ponto de partida para a destruição do indivíduo mantém-se em outras obras do diretor. A Professora de Piano (2001) parte da relação conturbada entre filha e mãe dominadora, na qual uma incentiva o sucesso profissional da outra, mas a sufoca em qualquer outra instância. A filha dependente, sedenta de um amor distinto daquele que sempre conheceu, que distorce tal amor, o transforma em uma ânsia doentia e apodrece suas outras relações. Novamente, ela não parece conseguir romper tal nó, e o metal frio de uma faca sobre o coração parece ser uma saída mais certeira que enfrentar a realidade nauseante de suas entranhas. Já A Fita Branca (2009) vai ao cerne da questão, atacando a instituição como um todo: a educação familiar, ou a educação em uma sociedade tradicional pré-primeira guerra mundial. Uma educação que prende, julga, maltrata; que cria servidores amargurados, odiados e odiosos. Haneke representa relações doentias, crimes inexplicáveis que poderiam ser resultado de crianças reprimidas, uma guerra terrível que força a ruptura do cotidiano tradicional (e, consequentemente, da família tradicional). Mesmo Amor (2012), que tem como protagonistas um casal de idosos apaixonados, sugere ruptura. Todo o carinho entre os indivíduos que se amaram por tanto tempo e passaram por tanto juntos não é suficiente para evitar um desfecho trágico e violento. A hora da ruptura deve ser reconhecida e é a única saída para o sujeito sufocado. A obrigação da manutenção da vida, uma vida vegetal, e do cuidado de um esposo apaixonado, enlouquecem o indivíduo que se encontra preso em uma situação que não mais é, em um amor que não mais é. Nesse momento, seu maior ato de paixão (consigo e sua esposa) é libertar pela morte.

Os filmes de Haneke sugerem a família como um laço sufocante que, mais cedo ou mais tarde, deve ser desatado. O passado tem o poder de determinar o presente e o futuro dos sujeitos e só pode ser superado se confrontado – de forma fria e violenta; fuga nenhuma é possível, somente a destruição pode tirar o peso da agonia. Se o indivíduo não consegue se conformar com suas correntes, é no silêncio de Haneke que vemos seu desespero, seu grito obscuro que sai do peito e não sabe onde pousar – perdendo-se na solidão do vácuo.

 

 

Lucky (2017), de John Carroll Lynch

Expulsos do Paraíso

 Adolfo Gomes

É, irredutivelmente, do mundo material que emerge a poética de Lucky (2017). Não há, aqui, nada além da natureza e dos homens, nem sequer a morte dá as caras. Calhou de ser o último filme de Harry Dean Stanton, mas está muito, muito longe de ser uma mera despedida/homenagem.

Antes de qualquer coisa, o cineasta John Carroll Lynch (ator de formação) evoca, através da rigorosa observância aos mínimos movimentos dos seres e da paisagem, um sentimento quase físico da permanência. Para isso, se vale, entre outros recursos, de uma estrutura narrativa coral; toda ela conjurada, tão somente, pelas vozes e corpos dos atores – e também pelas perseverantes presenças dos cactos e de um cágado (coetâneos do mesmo buraco da terra, conforme assinala, com discreta melancolia, o personagem de David Lynch).

Essa ontologia realista nos faz lembrar o que dizia Howard Hawks, outro grande cineasta materialista, a respeito do uso dos flashbacks no cinema: “Se você não é capaz de contar uma história diretamente, então você não é, com efeito, um bom realizador. Os flashbacks não me parecem necessários. Eu posso contar um flashback em um par de palavras e conseguir que o público saiba o que aconteceu antes”.

É bem o caso de Lucky, um filme permeado de reminiscências, relatos curtos e sutilmente epifânicos, de uma imanência impressionante (“the realism is a thing”). Mas se o princípio hawksiano reverbera na opção formal de Carroll Lynch, a placidez do cinema clássico, sua fluidez, já não é mais possível – e disso temos prova: há um jardim interditado, o Éden do qual fomos expulsos por volta dos anos 1960, que Dean Stanton/Lucky amaldiçoa a tantas, para só no finalzinho da sua trajetória diegética oferecer um olhar resignado.

Sabemos que o filme foi escrito a partir das conversas e pensatas ocasionais do próprio Stanton com os roteiristas da obra. De modo que não seria, de todo, um desatino relacionar o desencanto comovente da sua verve, com a gradativa imposição da realidade, da derrisão, do irremediável esgarçamento do gesto, em si, de contar histórias, como outrora se podia fazer por meio das metáforas – o realismo utópico da era de ouro de Hollywood (“bigger than life”).

Em última instância, tanto para nós, quanto para Stanton, foi como um Paraíso Perdido, do qual só restou o vazio.

Por sorte (nossa), Carroll Lynch preenche essas lacunas com a carnalidade que preservamos. Faz um filme autônomo, para além da persona que Stanton consolidou ao longo das décadas. Na viagem que propõe não há deslocamento/busca, estamos todos num círculo e já a milhas, por exemplo, de Paris, Texas (1984) ou História Real (1999) – dois filmes seminais da sua carreira.

De cuecas e sem camisa, destituído da menor ilusão sobre o controle do tempo, não temos um personagem, nem necessariamente o ator. Temos o homem. Quantos filmes, hoje, nos entregam tanto? Uma beleza assim, “drenada de qualquer sentimentalismo” – para citar o comentário do crítico Calac Nogueira sobre o estilo de William Friedkin, que aqui podemos aplicar com igual justeza?

E, sim, a morte é iminente, para qualquer um, para qualquer arte. Deixemos, no entanto, por ora, ela continuar fora do quadro e apreciemos, com a cumplicidade de Stanton, um cacto se erguendo até o céu para, fora do alcance de nossas mãos, começar a florir. Há de nos bastar. É tudo o que teremos da terra. É, apenas, uma das forças que emanam desse extraordinário filme terreno.

 

Zavattini e a cinematografia latino-americana

Joana Oliveira

Os editores desta revista me pediram um texto sobre o roteirista italiano Cesare Zavattini para a corrente edição. Ainda tocada pelas mortes do cineasta argentino Fernando Birri, em dezembro de 2017, e do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, em abril de 2018, publico aqui a introdução quase completa da minha pesquisa de mestrado sobre como o Novo Cinema latino-americano se relaciona estreitamente com o Neorrealismo Italiano e a figura do cineasta.

*

“Comecei a me interessar pelo trabalho do roteirista Cesare Zavattini (1902-1989) quando fui estudar cinema em Cuba, no ano de 2002. Eu havia passado na seleção da EICTV – Escuela Internacional de Cine y TV de San António de Los Baños, para a cátedra de direção de ficção. A Escola foi um projeto ambicioso pensado por um comitê de cineastas latino-americanos da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano – FNCL – para formar jovens de países onde quase não havia escolas de cinema nos anos de 1980. Inicialmente projetada para receber alunos e alunas da América Latina, África e Ásia, a EICTV foi inaugurada em 1986. Seus fundadores, os cubanos Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) e Julio García Espinosa (1926-2016), o argentino Fernando Birri (1925-2017) e o colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), haviam se conhecido quando estudaram cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia, na Itália, e tinham a intenção de ajudar os países do sul do mundo a ter uma cinematografia própria.

Nos dois anos que passei em Cuba, a Escola passava por transiçõesestavam transformando o seu curso regular de dois anos para três anos. Como os estudantes ficam internos na Escola que é isolada em uma fazenda, houve muita discussão sobre o assunto: seriam três anos demais para um internato? Nessa época, eu era representante de turma do nosso primeiro ano e acabei sendo convocada junto com outro aluno venezuelano para participar das discussões na sede da fundação em Havana. Ficava sempre muito tímida nessas reuniões, pois, em 2003, meu espanhol ainda não era muito fluente e eu era muito jovem. Tomás Gutiérrez Alea já não era vivo nessa época, mas Julio García Espinosa era o diretor da Escola e muito ativo. Fernando Birri visitava Cuba e a EICTV pelo menos duas vezes por ano, apesar de viver em Roma, e sempre estava envolvido nas decisões do colegiado. Entretanto, a reunião em que mais fiquei acanhada foi aquela que teve a presença do fundador e membro da FNCL, Gabriel García Márquez, pois admirava muito seu trabalho como escritor. Foram nessas rodas que comecei a entender a influência do Neorrealismo italiano no cinema latino-americano e, principalmente, o papel de Cesare Zavattini em nossa cinematografia.

No discurso intitulado “Aceitam-Doações”, pronunciado por Gabriel García Márquez, na inauguração da sede da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, na Quinta Santa Barbara, em Havana, no dia 04 de dezembro de 1986, o escritor deixou claro que ainda na escola na Itália seus fundadores já falavam da inspiração neorrealista para o tipo de cinematografia que queriam construir na América Latina:

“Entre 1952 e 1955, quatro dos que hoje estamos a bordo deste barco, estudávamos no Centro Experimental de Cinematografia de Roma: Julio García Espinosa, vice-ministro de Cultura para o cinema; Fernando Birri, grande pai do Novo Cinema latino-americano; Tomás Gutiérrez Alea, um de seus ourives notáveis, e eu, que então não queria nada mais desta vida senão ser o diretor de cinema que nunca fui. Já desde então falávamos quase tanto quanto hoje do cinema que haveria de ser realizado na América Latina e de como se haveria de realizá-lo e nossos pensamentos estavam inspirados no Neo-Realismo italiano, que é – como teria de ser o nosso – o cinema de menores gastos e o mais humano de quantos já foram feitos.  Porém, já desde então, tínhamos consciência de que o cinema da América Latina, se em realidade queria existir, tinha que ser uno. O fato de que, nesta tarde, estejamos aqui, falando como estes loucos sobre o mesmo tema, depois de trinta anos, e que estejam conosco falando do mesmo assunto tantos latino-americanos de todas as partes e de gerações distintas, gostaria de destacar como uma prova a mais do poder impositivo de uma idéia indestrutível.” (MÁRQUEZ apud CAETANO, 1997, p. 42).[1]

O Neorrealismo italiano teve influência na grande onda de cinema latino-americano dos anos 1950, 60 e 70 e até mesmo foi corresponsável pela fundação de cinematografias que não existiam em países do nosso continente. O professor da New York University e teórico norte americano Robert Stam assinala, em seu livro Introdução à Teoria do Cinema, que “O caminho para o terceiro-mundismo cinematográfico se encontrava preparado, ao menos na América Latina, pela popularidade do neo-realismo italiano, facilitada em parte pelas populações de imigrantes da Itália, mas também por certas analogias da situação social italiana com a latino-americana” (STAM, 2003, p. 113). Quando se estuda o início do movimento canonicamente conhecido como Nuevo Cine Latinoamericano, três filmes são os citados como os pioneiros: Rio, 40 graus (Brasil, 1955), de Nelson Pereira dos Santos; El Mégano (Cuba, 1955), de Julio García Espinosa e Tomás Gutiérrez Alea; e Tire Dié (Argentina, 1960), de Fernando Birri. Não à toa se conecta esse movimento com a experiência neorrealista, pois todos esses realizadores tiveram contato com a cinematografia italiana do pós-Segunda Guerra Mundial.

No texto “An/Other View of New Latin American Cinema”[2], a professora universitária, pesquisadora e crítica cinematográfica norte-americana B. Ruby Rich remonta as influências no surgimento do Novo Cinema Latino Americano em três passos, todos ligados ao Neorrealismo italiano. O primeiro passo sendo a mudança para o México do cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983) e, principalmente, a filmagem de Los Olvidados, em 1950. Apesar de o cineasta ser conhecido por sua veia surrealista, esse filme trazia a experiência neorrealista para a América Latina. “Dada a ênfase nos despossuídos, a vida ‘real’ do Terceiro Mundo, em imagens não bonitas o bastante para terem chegado aos cinemas antes e um estilo de câmera fluido o suficiente por corresponder, o filme é um presságio do que estaria por vir” (RICH, 1977, p. 274).[3] Entretanto, segundo ela, como Buñuel é europeu, esse filme ainda não é um clamor interno da América Latina e suas necessidades, mas seria um anúncio do que estaria por vir.

Já o segundo passo descrito por Rich fala das grandes figuras Tomás Gutiérrez Alea, Julio García Espinosa, Fernando Birri e Gabriel García Márquez que foram estudar na Itália e que trouxeram da fonte as influências neorrealistas para seus novos filmes e que também fundaram escolas de cinema para incentivar a produção de novos cineastas latino-americanos nos moldes neorrealistas.

“Durante 1952-55, os latino-americanos viajaram para a Itália para estudar no lendário Centro Sperimentale da Universidade de Roma: Tomás Gutiérrez Alea, Fernando Birri, Julio García Espinosa e Gabriel García Márquez. Quando Birri retornou à Argentina, fundou a Escola de Cinema de Santa Fé, agora lendária para a geração de cineastas que se treinou ali. Quando Tomás Gutiérrez Alea e Julio García Espinosa retornaram a Cuba, dirigiram juntos El mégano. Este primeiro trabalho do Novo Cinema cubano foi concluído em 1954 e banido por Batista. No período insurgente, Espinosa tornou-se o chefe de “Cine rebelde”. Ambos se tornaram, assim, participantes chave na criação de um cinema que tentaria fundir novos temas com novas formas e, assim, definir um standart para o movimento Novo Cinema Latino-Americano. Embora Gabriel García Marquéz, o aspirante a roteirista, tenha se voltado para a literatura, nos últimos anos, ele se tornou uma influência singular no cinema latino-americano: por meio de seu papel como diretor da FNCL (Fundação do Novo Cinema Latino Americano) que supervisiona a escola de cinema fundada em 1986 em Cuba para formar jovens cineastas; através de adaptações para a tela de seus escritos e seus próprios roteiros; e em 1987, através dos roteiros de Amores dificiles, série de seis coproduções com cineastas latino-americanos ou espanhóis para a televisão espanhola, todos baseados em histórias ou ideias de García Márquez”. (RICH, 1977, p. 274, 275).[4]

Há, ainda, na teoria de Ruby Rich, um terceiro passo;a influência neorrealista nos cineastas que não tinham ido à Europa, mas que tiveram acesso aos filmes no cinema, mesmo que com poucos títulos lançados. No Brasil, chegavam alguns filmes neorrealistas, gerando “uma onda de otimismo com as novas possibilidades para o cinema”[5], mas é importante ressaltar a volta do cineasta Alberto Cavalcanti (1897-1982) ao nosso país, depois de 36 anos morando entre a França e a Inglaterra. Em 1949, Cavalcanti foi convidado para ministrar uma série de dez conferências sobre cinema, no Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo[6]. Naquele momento, Cavalcanti apresentou para inúmeros cineastas brasileiros vários filmes neorrealistas e sua temática entrou em discussão. Nelson Pereira dos Santos (1928- ), grande expoente do Cinema Novo, fazia parte desse círculo de cineastas que assistiram aos filmes trazidos por Cavalcanti.

“Finalmente, o terceiro passo ilustra que a influência do Neo-realismo italiano não se limitou àqueles que viajaram fisicamente para a meca de Roma para estudar com seus mestres. Nelson Pereira dos Santos, de volta ao Brasil, fazia parte de um círculo que reconhecia a importância dessa estratégia estética e política para o cinema brasileiro. Este círculo foi estimulado pela chegada de Alberto Cavalcanti, que expôs os jovens cinéfilos ao cinema Neo-realista. O primeiro curta de Pereira dos Santos, Juventude, foi feito na época da estreia mexicana de Buñuel (produzido para o Partido Comunista Brasileiro, foi perdido quando enviado a um festival europeu) e seu primeiro longa, Rio 40 graus, construído sobre o exemplo Neo-realista para se tornar um trabalho fundador do Cinema Novo em 1955. Pereira dos Santos recorda: ‘Sem o Neo-realismo, nunca teríamos começado, e acho que nenhum país com uma economia cinematográfica débil poderia ter feito filmes de autorretrato, se não fosse por este precedente’”. (RICH, 1977, p. 275).[7]

De volta a 2002, nas conversas entre os fundadores da EICTV, que foram também os pioneiros do Novo Cinema Latino-americano, sempre se falava de “Za” – o apelido de Cesare Zavattini. O que me chamava a atenção era o fato de Zavattini ser roteirista. Eu conhecia os nomes e algumas obras de Vittorio De Sica (1901-1974), Roberto Rossellini (1906-1977), Michelangelo Antonioni (1912-2007), Luchino Visconti (1906-1976) e as relacionava com o Neorrealismo Italiano; afinal, eram os diretores de grandes filmes da época, mas era “Za” o grande autor e filósofo citado por eles. Em um artigo intitulado “La penumbra del escritor de cine”, escrito para o jornal espanhol El País no dia 17 de novembro de 1982[8], Gabriel García Marquéz reflete sobre o papel secundário que os roteiristas recebem como autores dos filmes, logo depois da morte do roteirista Franco Solinas (1927-1982). Considera, entretanto, que Zavattini foi uma exceção à regra:

“Depois da Segunda Guerra Mundial, os escritores de cinema vivenciaram ‘seus quinze minutos de fama’ com a aparição no primeiro plano do roteirista Cesare Zavattini, um italiano imaginativo e com um coração de alcachofra, que difundiu ao cinema de sua época um sopro de humanidade sem precedentes. O diretor que realizou seus melhores argumentos foi Vittorio De Sica, seu grande amigo, e foram tão identificados que não era fácil saber onde terminava um e quando começava o outro. Foram eles as duas estrelas maiores do neo-realismo, cujo céu tinha outras tão radiantes como Roberto Rossellini. Juntos fizeram Ladrões de bicicletas, Milagre em Milão, Umberto D e outras obras inesquecíveis. Na prática, foram muito poucos os filmes italianos daqueles tempos cujos roteiros não passaram pelo rastro purificador de Zavattini, quem aparecia sempre no último lugar dos créditos só porque eles eram colocados por ordem alfabética.” (MÁRQUEZ, 1982).[9]

Cesare Zavattini foi uma figura aglutinadora para o movimento neorrealista, o teórico que pensava o movimento, o roteirista que passava por inúmeros projetos de diferentes cineastas e que tentava sempre colocar nos roteiros uma visão humanista das histórias convidando à reflexão. Acreditava em uma revolução através do cinema, justamente por isto não aceitava que o Neorrealismo tivesse tido seu fim forçado na Itália nos primeiros anos de 1950. O governo italiano começou uma grande campanha contra o movimento, dizendo que era um cinema antinacionalista, que só mostrava os problemas do país, quando este tentava se reerguer economicamente no pós-guerra. O pesquisador e curador italiano Giacomo Gambetti – estudioso do movimento neorrealista italiano e,principalmente, da obra de Cesare Zavattini – escreveu, em seu livro Zavattini mago y técnico:

“O fechamento governamental e oficial contra o Neorrealismo foi duro e intransigente: atacaram um cinema que em sua totalidade havia contribuído como nenhum depois da Guerra, ao elevar o nome e a imagem do nosso país em todo o mundo, colhendo admiração e estima. Os governantes ignoraram, desvalorizaram, não compreenderam tudo isso (exceto para exaltar o Neorrealismo anos depois, eles próprios, alguns críticos, alguns mercenários): mesmo sem entendê-lo, tantos e tais eram seus temores como a preferir um modesto e historicamente estreito orgulho de grupo cultural e intelectual ainda vigente. É um fato que o Neorrealismo terminou tanto por intervenção oficial, com nome e sobrenome (havia suficientes razões históricas e sociológicas para fazê-lo definhar) e, o que é pior, porque os seus autores, pelo menos alguns deles, estiveram muito limitados, quando não – mais ou menos abertamente – boicotados.” (GAMBETTI, 2002, p. 23-24).[10]

A maior e mais influente onda cinematográfica italiana era boicotada e enterrada por políticos italianos. Após sua decepção com o fim do Neorrealismo na Itália, Cesare Zavattini veio até a América Latina, em busca de uma continuidade do movimento. Pode-se dizer que se poderia completar a teoria dos três passos de Ruby Rich com um quarto passo na influência neorrealista no cinema latino-americano: a presença de Zavattini em nosso continente. Ele encontrou cineastas ávidos por filmar a realidade latino-americana e, principalmente em Cuba, teve condições reais de passar sua experiência para frente e continuar trabalhando no fazer cinematográfico.

“As inacabáveis energias de Zavattini nos anos cinquenta impulsionariam também certo esforço pela divulgação internacional dos seus princípios (pós) neorrealistas. Ali encontraríamos a raiz dos seus contatos com o cinema espanhol dos anos cinquenta, já falamos em outra ocasião, de suas viagens para diversos lugares, com menção especial as suas três estadias no México entre 1953 e 1957, com contatos com gente de cinema como Manuel Barbachano, Carlos Velo, Benito Alazraki, Fernando Gamboa etc., ou na Argentina, em 1961, o que lhe permitiu reencontrar Fernando Birri, autêntico introdutor do Neorrealismo no país austral; mas, sem dúvida, a instância latino-americano mais importante de Zavattini foi a cubana.” (IBARROLA apud ZAVATTINI, 2002, p. 65).[11]

Em duas das vezes que foi ao México, Zavattini aproveitou para passar por Cuba. Em 1953, teve o primeiro contato com a Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, uma associação que nasceu em 1951, durante a ditadura de Fulgêncio Bastita (1901-1973) e durou dez anos, que abrigava intelectuais cubanos inclusive Julio García Espinosa e Tomás Guitiérrez Alea. Em 1955, esteve por uma semana em Havana quando pôde assistir a filmes e revisar projetos de novos e jovens cineastas desse país. E logo, com o triunfo da revolução cubana em janeiro de 1959, foi convidado para dar uma contribuição mais potente ao cinema cubano.

 “Finalmente, os novos contatos realizados no México em 1957 com o exilado Alfredo Guevara se cristalizaram em 1959 em um convite do novo regime cubano, concretamente do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas) liderado por Guevara, para uma mais ampla estadia cubana. Durante seu curso, Zavattini supervisionou projetos como Cuba baila (J. García Espinosa, 1960) e Historias de la revolución (T. Gutierrez Alea, 1960), interviu na preparação de múltiplos projetos nunca realizados – ou apenas remotamente retomados em filmes posteriores – e, finalmente, participou como argumentista de um longa-metragem filmado por Julio Garcia Espinosa, El joven rebelde (1961), sobre um camponês que sobe a Serra (Sierra Maestra) para juntar-se aos guerrilheiros; lá aprende a ler e escrever para melhor integrar-se à ação revolucionária. Outra colaboração concreta de Zavattini foi o comentário escrito para o curta-metragem ¡Arriba campesino! (1961), dirigido por Mario Gallo”(IBARROLA apud ZAVATTINI, 2002, p. 65).[12]

Ao escolher como tema de pesquisa no mestrado o universo desse roteirista, descobri o imenso mundo zavattiniano. O pesquisador e curador italiano,Giacomo Gambetti, estudou sua obra por, pelo menos, 23 anos, antes de lançar seu livro Zavattini Mago e Tecnico (não publicado no Brasil), em 1986. Posterior a ele, e aproveitando seu trabalho, a pesquisadora italiana Stefania Parigi estudou por pelo menos outros 10 anos sua obra, antes de publicar o livro Fisiologia Dell’immagine Il pensiero di Cesare Zavattini, de 2006 (não publicado no Brasil). E ambos autores tratam primordialmente de seu papel no mundo cinematográfico, pois seria muito difícil dar conta de toda a complexidade de Cesare Zavattini, um homem versátil que trabalhava como escritor, jornalista, pintor, roteirista, e muito mais. Em 1986, Gambetti escreveu sobre a multifacetada figura:

“Os momentos fundamentais em uma presença operativa como a zavattiniana são, evidentemente, muitos. Mais numerosos em relação à média, pois trabalhou por quase sessenta anos em tudo: literatura, cinema, pintura, para a televisão, rádio, jornais, como um escritor e literato ou descobridor de escritores, criador de cinema e detector de talentos cinematográficos, pintor e promotor de eventos de arte, roteirista e organizador de projetos de produção, fundador e responsável por iniciativas editoriais, jornalísticas, associativas, rádio-televisivas, políticas. Cesare Zavattini foi e é tudo isso e muito mais. A partir de 1928 até a presente data influenciou longos períodos de nossa literatura e cinema, esteve no centro de qualquer polêmica de pouca importância (a “revolução” de uma palavra no rádio, no final de 1976) e de outras mais relevantes (os anos que Zavattini era sinônimo de Neorrealismo e, nele, uma verdadeira revolução cultural na Itália e no mundo, e de “antipatriotismo”, porque de acordo com “bem-pensantes”, os aspectos “negativos” da vida italiana não deveriam ter entrado no contexto de qualquer representação. Sendo já notável na literatura, ele chegou ao cinema em 1936, como protagonista, desde então até hoje).” [13] (GAMBETTI, 2002, p. 16, 17).[14]

Desde 2006, dedico-me profissionalmente a escrever roteiros e, para minha dissertação de mestrado, pensei em refletir sobre a contribuição de Zavattini na escritados filmes do período neorrealista italiano. Cesare Zavattini sempre defendeu o uso de não-atores nos filmes, uma vez que eles traziam a verdade das experiências de seus próprios cotidianos em seus rostos, em seu modo de falar, de caminhar e de reagir. Assim, ele acreditava que todos poderiam tornar-se atores, ao expressarem da forma mais verdadeira os fatos da vida. A professora doutora Mariarosaria Fabris, especialista brasileira no Neorrealismo italiano, em seu livro O Neo-Realismo cinematográfico italiano, fala sobre Zavattini e sua relação com o uso de não-atores em filmes:

“Zavattini levou ao extremo essa proposta, pelo menos no campo teórico: ele esperava que todos se tornassem atores ao menos uma vez na vida, ou seja, que cada um pudesse contribuir para que o cinema expressasse da forma mais verdadeira os fatos dignos de serem expostos à comunidade. Afirmava: “Eu nunca serei contra um filme que, mesmo se servindo de personagens ‘falsas’, seja o produto de interesses sociais, morais, vivos e atuais, mas acredito que na trajetória do raciocínio neorrealístico, assim como tinha sido começado de forma unânime tão logo acabou a guerra, tinha que chegar forçosamente o momento da personagem real, a qual tem uma responsabilidade, em relação ao público, infinitamente mais peremptória do que qualquer outro tipo de personagem.”(FABRIS, 1996, p. 83).

Em muitos dos filmes que Zavattini escreveu, atuavam tanto atores renomados quanto não-atores sem experiência alguma em cinema. No início desta pesquisa, queria analisar a experiência da transformação do roteiro ficcional na hora da filmagem com não-atores e o que eles puderam contribuir na criação desses personagens da “vida real”. Afinal, Zavattini sempre pregava que a realidade tinha que tomar a tela e isto me fez supor, em um primeiro momento, que improvisações com os não-atores deveriam acontecer o tempo todo na etapa da filmagem dos roteiros realizados por Zavattini. Mariarosa Fabris descreve, ainda, que Zavattini, a partir do final da Guerra, persegue duas diretrizes teóricas:

“[…] a da atualidade, entendida como realidade a ser apreendida antes que se transforme em futuro, e a da imediatez, ou seja, uma idéia levada à sua realização sem que nada, ou quase nada, se interponha entre elas. Dessa forma, a representação da realidade seria substituída pela própria realidade, e a câmera movimentar-se-ia a partir de seu contato com essa realidade, abandonando um uso já preestabelecido” (FABRIS, 1996, p. 84).

Em muitos momentos de seus escritos, Zavattini fala sobre como fazia seu trabalho de observação da realidade, e um relevante exemplo encontra-se na pesquisa do filme Roma às 11 Horas (Roma Ore 11, Itália / França, 1952), de Giuseppe De Santis. Em uma entrevista, De Santis relembra como foi o processo de escritura do roteiro:

“[…] A outra idéia de Zavattini – uma idéia já presente no cinema italiano de então – foi a de ouvir, senão todas, pelo menos a maior parte das moças que tinham participado da tragédia do desabamento, naquela manhã, à rua Savoia. Para a enquete, Gianni Puccini sugeriu o nome de Elio Petri, então cronista de L’Unità. Petri fez um trabalho extraordinário porque conseguiu entrevistar não somente todas as moças, mas também os bombeiros, os vizinhos, os magistrados, enfim, todos os que tinham tido alguma relação com aquele trágico evento. Portanto, é exatamente baseado na experiência humana tão direta, sugerida por Zavattini, e baseado na enquete feita por Petri que nasceu depois o roteiro do filme” (FABRIS, 1996, p. 106).

Para entender se havia de fato mudanças e improvisações que afetavam os roteiros de Zavattini na hora da filmagem, pelo fato dos não-atores aportarem suas experiências à história, entendi que teria que comparar seus roteiros com os filmes prontos. Muitas vezes essa comparação é difícil, pois nem sempre se publica a versão do roteiro anterior à filmagem. A maioria dos roteiros publicados de filmes de ficção são versões modificadas após as filmagens, sendo retirado da forma escrita o que não entrou no corte final da edição. Além disso, esta pesquisa se mostrou muito árdua, pois Zavattini trabalhou em inúmeros filmes (por vezes, nem mesmo creditado), com níveis de responsabilidade diferentes e, muitas vezes, dividindo a autoria dos roteiros com outros escritores. Durante minhas leituras, descobri que alguns roteiros de Cesare Zavattini haviam sido publicados em sua forma original anterior à filmagem. Entretanto, Umberto D. é o único filme que teve todo o processo criativo de Zavatini registrado, do primeiro esboço de ideia ao roteiro anterior às filmagens. Esse foi o primeiro trabalho de sua parceria com o diretor Vittorio De Sica, em que ele assinava sozinho o argumento e o roteiro, sem colaborações de outros profissionais. Os textos de seu processo foram publicados na Rivista del Cinema Italiano, no mesmo ano do lançamento do filme, 1952, talvez como uma forma de Zavattini mostrar sua autoria nas ideias neorrealistas contidas nessa película. Decidi, então, fazer, como objeto de estudo de mestrado, uma análise do processo criativo da escritura de Umberto D.. Foi com grande surpresa que descobri que Zavattini deixava pouco espaço para a improvisação e, em minha pesquisa, tento entender as contradições entre o discurso de Zavattini de deixar a realidade tomar a tela e sua obsessão com a história imaginada. Giacomo Gambetti relata, em seu livro Zavattini Mago y técnico, que ele mesmo esteve presente, em janeiro de 1952, na primeira projeção mundial do filme Umberto D. no cinema Metropolitan de Bolonha e que se sentiu extremamente emocionado ao presenciar o momento histórico. Ele relata também a sensação de espanto que teve ao descobrir que toda a história do filme e os seus mínimos detalhes tinham sido imaginados por Zavattini.

Estive presente […] em 21 de Janeiro de 1952, no Metropolitan de Bolonha, na primeira projeção mundial de Umberto D., filme com o qual senti uma emoção extraordinária: compreendi que estava diante de um evento histórico em nossa área; descobri por mim mesmo – digo com uma notável satisfação – a grandeza da anunciação de Maria, a torneira, a água, a lâmpada, o formigueiro, o moedor, a barriga, as lágrimas e, em seguida, o sentimento e o pudor de Umberto, sua solidão com Flick. Exceto na diversidade de forma expressiva, o lirismo não me pareceu diferente da poesia escrita. Eu acreditava na força e na personalidade de De Sica. Mas pouco depois, com documentos, comprovei que as imagens, gestos, sentimentos das personagens vistas no filme de De Sica, foram exatamente previstos nas páginas de Zavattini. Eu comprovei a prioridade e, portanto, a importância. Tal como acontece com Umberto D., vendo pela primeira vez Vítimas da tormenta, Ladrões de bicicletas, Milagre em Milão, compreendi que eu sabia muito pouco sobre os rumos da teoria cinematográfica e de Zavattini, porque não considerava essencial a influência e contribuição da escritura ao realizador – eu a via quase exclusivamente como escaleta –, ao resultado isolável e isolada na tela, independentemente do trabalho de preparação e colaboração.” (GAMBETTI, 2002, p.7-8). [15]

Ainda hoje, as influências neorrealistas são vistas a todo momento na obra de cineastas importantes e de várias partes do mundo. O iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) e o português Pedro Costa (1958-), para citar alguns, são exemplos de realizadores que trabalham com processos narrativos semelhantes aos propostos pelo Neorrealismo, em que as personagens, com suas ações cotidianas, se destacam e se sobrepõem à trama principal, em vários filmes de suas cinematografias. No Brasil, desde os preâmbulos do Cinema Novo, mas, principalmente nos últimos anos, várias produções que dão muita importância às personagens, seus sentimentos e sua relação com o mundo – deixando a trama do filme em menor plano – têm surgido, como O Céu sobre os Ombros (Brasil, 2011), de Sérgio Borges; Girimunho (Brasil / Espanha / Alemanha, 2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.; Ela Volta na Quinta (Brasil, 2015), de André Novais Oliveira, para citar exemplos apenas em Minas Gerais.”

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[1] No livro Cineastas Latino Americanos, de Maria do Rosário Caetano, há o discurso completo que foi publicado no Correio Braziliense, no dia 23 de dezembro de 1986.

[2] Publicado no livro New Latin American Cinema, Volume One: Theory, Practices, and Transcontinental Articulations, editado por Michael T. Martin.

[3] Livre tradução da autora de: “Given its emphasis on the dispossessed, the ‘real’ life of Third World, on pictures not pretty enough to have made it into movies before and a camera style fluid enough to match, the film is a portent of things to come”.

[4] Livre tradução de: “During 1952-55, Latin Americans travelled to Italy to study at the legendary Centro Sperimentale (Center for Experimental Cinematography) at the University of Rome: Tomás Gutiérrez Alea, Fernando Birri, Julio García Espinosa, and Gabriel García Márquez. When Birri returned to Argentina, he founded the Film School of Santa Fe, now legendary for the generation of filmmakers he trained there. When Tomás Gutiérrez Alea and Julio García Espinosa returned to Cuba, they collaborated on El mégano. This first work of the new Cuban cinema was complete in 1954 and banned by Batista. In the insurgency period, Espinosa, became the head of “Cine rebelde”. Both thus became key participants in the fashioning of a cinema that would attempt to fuse new subjects with new forms and in so doing set a standart for the New Latin American Cinema movement. Though Gabriel García Marquéz, the would-be screenwriter, first turned to literature, in the past few years he has become a singular influence upon Latin American filmmaking: through his role as head of the FNCL (New Latin American Cinema Foundation) which oversees the film school established in 1986 in Cuba to train young filmmakers; through the screen adaptations of his writings and his own screenplays; and in 1987, through the screenplays for the Amores dificiles series of six co-productions with Latin American or Spanish filmmakers for Spanish television, all based on García Márquez stories or ideas”.

[5] No livro Introdução à Teoria do Cinema, de Robert Stam (2003, p. 113): “Os filmes neo-realistas italianos provocaram uma onda de otimismo com relação a novas possibilidades para o cinema. Em 1947, o crítico de cinema brasileiro Benedito Duarte expressou no jornal O Estado de São Paulo sua admiração pela maneira como os cineastas italianos haviam forjado uma ‘estética da pobreza’, utilizando técnicas de documentário e equipamento leve para criar um cinema tecnicamente pobre, mas imaginativamente rico”.

[6] Do livro O Cinema Errante, de Luiz Nazario (2013, pp. 19, 20): “Frustrado com seu projeto de adaptar Sparkenbroke, de Charles Morgan, para a Rank, em 1949, Cavalcanti aceitou o convite de Assis Chauteaubriand, então embaixador do Brasil em Londres, e de Pietro Maria Bardi, para ministrar uma série de dez conferências sobre cinema no Museu de Arte de São Paulo – Masp, recém criado por Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado. O curso foi realizado com coordenação dos responsáveis pelo setor de cinema do museu: Marcos Margulies e Tito Batini. Segundo Jacó Guinsburg, é quase certo que o crítico de cinema Carlos Ortiz estivesse por trás do convite”.

[7] Livre tradução de: “Finally, the third step illustrates that the influence of Italian neorealism was not limited to those who physically journeyed to the mecca of Rome to study with its masters. Nelson Pereira dos Santos, back in Brazil, was part of a circle that recognized the import of this aesthetic and political strategy for Brazilian cinema. This circle was stimulated by the arrival of Alberto Cavalcanti, who exposed the young cinephiles to neo-realist cinema. Pereira dos Santos’s first short film, Juventude, was made at the time Buñuel’s Mexican debut (produced for the Brazilian Communist Party, it was lost when sent to a European festival) and his first feature, Rio 40 degrees, built on the neo-realist example to become the founding work of cinema novo in 1955. Pereira dos Santos recalls: ‘Without neorealism, we would have never started, and I think no country with a weak film economy could have made self-portraying films, were it not for that precedent’.”

[8]Arquivo on line de todos os artigos publicados no jornal espanhol El País. Disponível em: http://elpais.com/diario/1982/11/17/opinion/406335611_850215.html

[9] Livre tradução de: “Después de la Segunda Guerra Mundial, los escritores de cine vivieron su cuarto de hora con la aparición en primer plano del guionista Cesare Zavattini, un italiano imaginativo y con un corazón de alcachofa, que le infundió al cine de su época un soplo de humanidad sin precedentes. El director que realizó sus mejores argumentos fue Vittorio de Sica, su gran amigo, y estaban tan identificados que no era fácil saber dónde terminaba uno y dónde empezada el otro. Fueron ellos las dos estrellas mayores del neorrealismo, en cuyo cielo había otras tan radiantes como Roberto Rossellini. Junto hicieron Ladrón de bicicletas, Milagro en Milán, Umberto D y otras inolvidables. Se hablaba entonces de las películas de Zavattini como se habla de las películas de Bertolucci: como si aquél fuera el director. En la práctica, fueron muy pocas las películas italianas de aquellos tiempos cuyos guiones no pasaron por el rastrillo purificador de Zavattini, quien aparecía siempre en el último lugar de los créditos sólo porque éstos eran dados por orden alfabético”.

[10]Livre tradução de: “El cierre gubernativo y oficial contra el Neorrealismo fue duro y sin términos medios: atacaban un cine que en su generalidad había contribuido como ninguno después de la guerra a llevar en alto el nombre y la imagen de nuestro país por el mundo, recabando admiración y estima. Los gobernantes ignoraron, subvaloraron, no comprendieron todo esto (salvo para exaltar el Neorrealismo años después, ellos mismos, ciertos críticos, ciertos mercenarios): incluso si comprendiéndolo, tantos y tales eran sus temores como para preferir un modesto e históricamente angosto orgullo de grupo cultural y intelectual todavía dirigente. Es un hecho que el Neorrealismo terminó tanto por la intervención oficial, con nombre y apellido (hubieran sido suficientes las razones históricas y sociológicas para hacerlo languidecer), como, lo que es peor, porque sus autores, al menos algunos, estuvieron grandemente limitados, cuando no – más o menos abiertamente – boicoteados.”

[11] Livre tradução de: “Las inacabables energías de Zavattini en los años cincuenta impulsarían también un cierto esfuerzo por la difusión internacional de sus principios (post) neorrealistas. Ahí encontraríamos la raíz de sus contactos con el cine español de los cincuenta, que ya hemos hablado en otra ocasión, de sus viajes a diversos lugares, con especial mención de sus tres estancias en México entre 1953 y 1957, con contactos con gente de cine como Manuel Barbachano, Carlos Velo, Benito Alazraki, Fernando Gamboa, etc.: o en Argentina en 1961, que le permitió reencontrar a Fernando Birri, auténtico introductor del Neorrealismo en el país austral; pero sin duda, la instancia latinoamericana de Zavattini más importante fue la Cubana”.

[12] Livre tradução de: “Por fin, los nuevos contactos tenidos en México en 1957 con el exiliado Alfredo Guevara cristalizaron en 1959 en una invitación del nuevo régimen cubano, concretamente del ICAIC dirigido por Guevara, para una más amplia estancia cubana. Durante su curso, Zavattini supervisó algunos proyectos como Cuba baila (J. García Espinosa, 1960) e Historias de la revolución (T. Gutiérrez Alea, 1960), intervino en la preparación de múltiples proyectos nunca llevados a cabo – o sólo remotamente retomados en películas posteriores – y finalmente participó como argumentista de un largometraje filmado por Julio García Espinosa, El joven rebelde (1961), sobre un campesino que sube a la Sierra para integrarse en la guerrilla; allá aprenderá a leer y escribir para mejor integrarse en la acción revolucionaria. La otra colaboración concreta por Zavattini fue el comentario escrito para el cortometraje ¡Arriba campesino! (1961), dirigido por Mario Gallo”.

[13] Em livre tradução: “Los momentos fundamentales en una presencia operativa como la zavattiniana son, evidentemente, muchos. Más numerosos respecto a la media, pues ha trabajado casi por sesenta años en todo: literatura, cine, pintura, para la televisión, la radio, los periódicos, como escritor y literato o descubridor de escritores, creador de cine y detector de talentos cinematográficos, pintor y promotor de manifestaciones de arte, guionista y organizador de proyectos de producción, fundador y responsable de iniciativas editoriales, periodísticas, asociativas, radiotelevisivas, políticas. Cesare Zavattini fue y es todo esos y más aún, de 1928 a esta fecha influyó en largos períodos de nuestra literatura y nuestro cine, estuvo al centro de cualquier polémica de poca importancia (la <<revolución>> de una palabra en la radio, al final de 1976) y de otras más relevantes (los años en que Zavattini fue sinónimo de Neorrealismo y, en ello, de una verdadera revolución cultural en Italia y en el mundo, y de <<antipatriotismo>>, porque según los <<bienpensantes>>, los aspectos <<negativos>> de la vida italiana no debieron entrar en el contexto de ninguna representación. Siendo ya notable en literatura, llegó al cine en 1936, como protagonista, desde entonces hasta hoy)”.

[14] No texto, o ano de 1928 refere-se ao início da carreira de Zavattini, quando ele começou a escrever profissionalmente em um jornal em Parma. Sua chegada ao cinema, em 1936, refere-se ao seu primeiro roteiro filmado e lançado comercialmente: Darò un milione, dirigido por Mario Camerini.

[15] Livre tradução de: “Estuve presente […] El 21 de enero de 1952, en el Metropolitan de Boloña, en la primera proyección mundial de Umberto D., filme del que recibí una emoción extraordinaria: comprendí que estaba frente a un suceso histórico en nuestro ámbito; descubrí por mí mismo – lo digo con notable satisfacción – la grandeza de la anunciación de María, el grifo, el agua, la lámpara, el hormiguero, el molinillo, la panza, las lágrimas, y luego el sentimiento y el pudor de Umberto, su soledad con Flick. Salvo en la diversidad de la vía expresiva, el lirismo no me pareció diferente al de la poesía escrita. Creí en la fuerza y en la personalidad de De Sica. Pero poco después, con documentos, comprobé que imágenes, gestos, sentimientos de los personajes vistos en el filme de De Sica, estaban exactamente previstos en las páginas de Zavattini. Gusté la prioridad y, por tanto, la importancia. Igual que con Umberto D., viendo por primera vez Sciucià, Ladri di biciclette, Miracolo a Milano, comprendí que sabía demasiado poco de los rumbos de la teoría cinematográfica y de Zavattini, pues no consideraba esencial la influencia y el aporte de la escritura al realizador – la veía casi exclusivamente como escaleta -, al resultado aislable y aislado en la pantalla, independiente del trabajo previo de preparación y de colaboración”.