A Assassina (2015), de Hou Hsiao-Hsien

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As entrelinhas da vingança

Douglas König de Oliveira

A incursão pelo gênero Wuxia, que mistura artes marciais e fantasia em um cenário medieval estilizado, é algo como um item obrigatório na filmografia de muitos importantes cineastas orientais, assim como os diretores norte-americanos constumam fazer alguma vez na carreira o “seu faroeste”, reverenciando um dos primeiros gêneros consagrados no imaginário cinematográfico de sua cultura.

A Assassina (2015), o aguardado filme de artes marciais de Hou Hsiao-Hsien, parece integrar tal universo, mas é na verdade um antifilme do gênero, e esta escolha tem conseqüências na sua apreciação. Se estes filmes se baseiam no conflito e na movimentação corporal de seus protagonistas, A Assassina tem poucos momentos onde a cinestesia das lutas atrai, assim como não explicita suas motivações. Se estes filmes têm enredos simples e privilegiam os tempos fortes da trama, neste o diretor emparelha uma enorme quantidade de elementos sem desenvolvê-los, e se atém mais a planos longos, onde diálogos e composições são o principal. A protagonista tem uma motivação interior que não acessamos facilmente, nem pela interpretação da atriz e nem pelo jogo de cena. Seus dilemas, assim como as conseqüências de suas decisões ao cumprir ou não uma de suas missões, tem um registro sutil, não interferindo no agregado de características atribuídas à personagem título. Como se observa, as instâncias de compreensão do enredo são colocadas em segundo plano, e as construções formais dão o tom às quase duas horas de duração.

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O filme apresenta planos indiscutivelmente belos, assim como um ritmo de encadeamento de imagens muito confortável para apreciá-los. Também utiliza cenas deslocadas do enredo, onde são mostradas paisagens e a natureza circundante, o que contribui para uma impressão ainda mais rarefeita da trama. Se a intenção do diretor é desdramatizar um filme em que se espera a pirotecnia típica do gênero, talvez  possamos garantir que o objetivo foi alcançado, e o espectador terá que ativamente buscar outros atrativos, que talvez sejam mais caros à paleta expressiva de Hou Hsiao-Hsien. Mas também podemos formular a questão de que, se for para elaborar um filme de artes marciais que sabota sua principal característica, que é o movimento, não seria então um gesto de iconoclastia vazia, já que provavelmente não surtiria efeito ou influência numa reforma do gênero, nem na estética vigente, tampouco no modo de produção destes filmes?

Hou Hsiao-Hsien parece realizar, grosso modo, um filme que está adequado às suas pretensões cinematográficas, mas que tenta desmontar os artifícios do cinema de ação oriental em favor da gramática de outro tipo de cinema, onde tempo e espaço fílmico são trabalhados de outra forma, como nas obras de Wong Kar-Wai e Apichatpong Weerasethakul. Mesmo o ícone do cinema oriental Takeshi Kitano, que trabalhou as lições dos tempos-mortos de Antonioni em Hana-Bi (1997), ao abordar um tema relacionado às artes marciais em Zatoichi (2003), foi bastante direto, aproveitando os expedientes consagrados do gênero. Assim como também Ang Lee em O Tigre e o Dragão (2000), que explorou os aspectos visuais mais fantasiosos e espetaculares, que se apresentam também em poucos trechos de A Assassina, mas de maneira ligeira e frustrada em sua continuidade, como que para coibir qualquer crescendo dramático incompatível com o registro pretendido.

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Se a estratégia de Ozu era combater o excesso de sentido pretendido pela gramática do cinema, e a revolução rosselliniana cristalizada por Antonioni era dissolver os centros dramáticos em beneficio de uma expressividade ampliada de todo o material e duração do filme, o registro de Hou Hsiao-Hsien parece tocar nestes pontos fundamentais do cinema contemporâneo, mas fora do escopo de gênero talvez seu repertório de temas fosse mais valorizado, por não gerar expectativa da audiência em como iria ser o tratamento destes dentro de uma tradição. A inegável beleza dos planos, a maestria nas soluções visuais que conduzem a trama inicial (como nas panorâmicas em vai e vem que resolvem habilmente todo o diálogo da criança com o pai diante do trono), é soçobrada pelo excesso de itens avulsos, sem ênfase suficiente pra se tornarem claras, ou elaboradas de maneira interessante para que se tornem enigmáticas. A guerreira mascarada, por exemplo, serve apenas como mais um contraponto à protagonista, sem ter território próprio ou desenvolvimento. Algo como uma pincelada a mais numa tela impressionista, que assim passa do figurativo ao abstrato sem harmonia, sem a forma gradual que um discurso de desconstrução deve ter para obter comunhão com o público, turvando nossa visão do objeto que o inspirou.

 

La corrispondenza (2016), de Giuseppe Tornatore

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O melodrama discorde de Tornatore

 Flávio C. von Sperling

O abraço de Ed e Amy, na primeira cena de La corrispondenza (2016), é o único momento em que vemos o casal se tocar. Ele se despede de seu par, algumas décadas mais jovem, e entra em outro quarto do hotel, evidenciando a clandestinidade daquela relação. Ed (Jeremy Irons) vai-se sabendo, embora não revele à sua amada, que vai morrer. Amy (Olga Kurylenko), por outro lado, não sabe que já está morta. A personagem, aluna e amante do proeminente pesquisador astrofísico, está amaldiçoada, embora o tom melodramático do filme pareça querer nos sugerir que temos aqui uma história de amor e perda.

A morte de Ed não implica em sua ausência. Pelo contrário, começa, aí, um jogo doentio de possessão e controle dele sobre Amy. Ed programa mensagens de celular, e-mails e entregas de presentes, CDs com vídeos gravados, fragmentos de si, que perdurarão e atormentarão sua amante. Fazendo alusão, de maneira um tanto simplória, àquela máxima de que o brilho de uma estrela persiste durante milhões de anos após sua morte, Ed faz-se presente na vida de Amy mesmo depois de morto. Um cenário, embora piegas, talvez fértil para um melodrama. Há, no entanto algumas questões que obstruirão a fruição do filme como tal.

Amy fica sabendo do falecimento de seu Ed enquanto troca mensagens com o próprio. Incrédula, ela parte para Edimburgo, onde ele teoricamente estaria. Confirmada sua morte, ela continua a se relacionar com Ed por meio das mensagens pré-programadas que ele deixara. Numa espécie de jogo de caça ao tesouro, ela começa uma busca obediente e incansável (mais para Amy do que para o espectador) pelas pistas e mensagens plantadas por seu par antes de morrer. Em alguns planos – belos, embora talvez demasiado formais -, de uma solitude hopperiana, acompanhamos uma Amy desolada, arrastando sua mala – restos de nada – em busca da próxima mensagem, da próxima surpresa de seu amante.

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Amy, além de almejar seu PhD em astrofísica, trabalha como dublê em filmes de ação. Personagem pouco desenvolvida, bidimensional, passiva, ela parece estar sempre à sombra de seu falecido e insistente par. Parece não ter particularidades ou intenções, servindo como uma espécie de títere neste jogo egoísta de Ed. Este, parece apenas não querer que Amy fuja de seu controle.

As mortes em La corrispondenza não interrompem nada. Nem a de Ed, nem as de Amy enquanto dublê ou quando morre lentamente em alguns planos um tanto clichês (desolada caída ao chão da universidade, chorando no banho). As mortes e as sobrevidas de ambos parecem desenhar um paralelismo entre as personagens, espelhá-las, estabelecê-las como duplos. O duplo e o espelhamento enquanto signos serão usados à exaustão durante o filme: quando Amy tenta contatar o finado Ed pela webcam, mas, na verdade, acaba conversando consigo mesma (interagindo com sua própria imagem na tela do computador); quando Ed ou Amy falam, repetidas vezes, da existência de outros Eds e Amys coexistindo em universos paralelos; ou, de maneira ainda mais óbvia, na atividade de Amy enquanto dublê (o substituto, o equivalente).

Embora ambos sejam, de certa maneira, mortos-vivos, a ideia de Ed e Amy enquanto par, a romantização dessa relação e, especialmente, a de um Ed borderliner, obsessivo, ciumento e possessivo, é um tanto delicada. Aquele que é colocado aparentemente como um parceiro, parece muito mais uma espécie de fantasma a se alimentar da alma de outro.

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Em uma das mensagens do íncubo, já morto (embora Amy ainda não saiba), ele recorda-se do dia em que a viu, quando dava uma aula sobre o conceito do infinito na história da astronomia. Ele diz: “Eu me lembro do momento exato em que meu olhar alcançou tua expressão extasiada. Então eu soube como uma alma perdida se sente quando reconhece aquele em cujo corpo ela deseja reencarnar-se”. Ed, aqui com um subtom talvez um tanto sinistro, parece buscar, na jovem aluna, tal qual um vampiro, uma espécie de imortalidade egoísta. Algo muito longe do tom de melodrama proposto pelo filme.

Em entrevista recente, Tornatore revelou que tinha La corrispondenza em mente durante mais de vinte anos, antes de finalmente realizar o filme. Talvez precisasse de um pouco mais de tempo.

Cemitério do Esplendor (2015), de Apichatpong Weerasethakul

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O fantasma e o desejo

Odorico Leal

Qual o tema de Cemitério do Esplendor (2015)?

De início, há dois motivos que são a base do argumento do filme: primeiro, o motivo geral dos soldados adormecidos. Essa é a premissa ordenadora: estabelece o cenário fantástico, entre o real e o onírico. No plano do sentido, estabelece uma alegoria que pode ser política – em relação à história da Tailândia – ou cultural, e mais universalista, em relação à cisão entre o passado mítico e a modernidade.

Em seguida, há o motivo específico da aproximação entre paciente e enfermeira, que se dá de forma paulatina, estabelecendo o drama humano. Ou, simplesmente, neste caso, o interesse humano: sem conflito não há drama, e a relação entre Itt e Jenjira evolui quase como que intocada pela dinâmica do conflito. Há, sim, interditos: Itt é prisioneiro da enfermidade/encantamento do sono – cedo ou tarde, sempre regressa ao mundo dos mortos; Jenjira é casada e oculta uma deformação na perna. No entanto, nada disso é tratado pela narrativa como conflito.

Tudo, na verdade, é tratado segundo um pacto de naturalidade, neste que é o mais recente lançamento do aclamado cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul.

Jinjira é visitada por duas deusas, sob a forma singela de jovens comuns, vestidas com roupas comuns. O espanto de Jinjira é mínimo. As duas divindades explicam que, no local do hospital improvisado, havia um palácio, e que os espíritos dos reis mortos ainda batalham naquele mesmo lugar – por isso os soldados dormem e seguirão dormindo: estão sob um encantamento urdido pelos reis, que lhes consomem a energia vital a fim de continuar lutando.

Aqui, o filme se abre, mais do que para o onírico, para o fantasmagórico – o passado nacional retorna não como fonte de exemplaridade, mas como enfermidade paralisante.

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Keng, outra enfermeira do hospital, com poderes mediúnicos, oferece-se para canalizar a consciência de Itt. Essa é a cena central do filme: nela, Itt leva Jinjira numa visita ao esplendor do passado. O tempo-espaço em que se dá o passeio dos dois é o tempo-espaço de interseção entre o real e o fantasmagórico, entre o presente e o passado, o hospital/escola e o palácio.

Que é esse passado que, em vez de alimentar, suga a força do presente?

O passeio, como tudo o que há de sobrenatural no filme, dá-se segundo aquele pacto de naturalidade. Itt, no corpo de Keng, descreve o palácio. O espectador só enxerga a realidade de Jinjira: o bosque ao redor da antiga escola, cheio de lembranças. A cena é cinematograficamente fascinante – o que vemos não está lá; no entanto, tudo é comunicado com o maior impacto possível: o espectador, paradoxalmente, fica completamente absorvido pelo invisível.  Apichatpong “Mestre” Weerasethakul.

Do mesmo modo que o sobrenatural nunca é representado, o conflito – o elemento perturbador por trás da aparência de naturalidade – nunca vem à superfície por boa parte do filme. Quando vem, vem na forma do real intratável – o real intratável que Itt beija ardentemente, no bosque.

Contudo, indo e voltando do mundo dos mortos, Itt é uma espécie de morto-vivo: ele próprio ganha uma dimensão fantasmagórica. É isso que os passeios idílicos de Itt e Jenjira pela cidade ocultam.

Talvez esse seja o tema do filme, sugerido desde o título: o passado como fantasmagoria paralisante e irredimível, que torna o presente irrealizável. O presente é Itt, subitamente adormecido, recostado à pilastra, no meio do lanche com Jenjira.

O pacto de naturalidade esconde, na verdade, paralisia, impossibilidade. A cena amorosa entre Itt e Jenjira no bosque só pode acontecer num tempo-espaço fantasmagórico. No tempo-espaço real, Jinjira só pode pedir, inutilmente, que Itt não durma ainda.

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O estoicismo singelo de Jinjira é profundamente comovente – é como se ela, manca e envelhecida, representasse toda a potência de vida que resiste à fantasmagoria e que, humilde e insistentemente, deseja. Há algo de Macabéa emancipada em Jinjira.

Por isso é tão desolador o plano final do filme: nossa heroína sentada em frente à escola, olhando na direção das crianças que insistem em realizar uma impossível partida de futebol entre os montes de areia da escavação.

O que Jenjira vê? Os meninos no campo, o esplendor do passado? Que quer dizer seu olhar abismado? Trata-se do conflito oculto por todo o filme vindo à tona, afinal, como angústia – uma angústia que ultrapassa o drama pessoal da enfermeira, englobando toda a substância fantasmagórica do passado morto? Por que é tão triste a ginástica das senhoras, mesmo com o elemento cômico do rapaz que ingressa na dança (na verdade, mais triste ainda por isso mesmo)? Há uma tristeza indizível em toda essa sequência, que vai da turma de ginástica, passando pelos meninos na escavação, até o olhar abismado de Jinjira.

Cemitério do Esplendor é um filme estranho e, ao mesmo tempo, familiar. O ritmo lento e a atmosfera calma e sonolenta têm, no início, um efeito quase anestésico – convidam-nos quase à contemplação meditativa dos seus quadros (há, aliás, uma cena de aula de meditação, no primeiro quarto do filme). Por isso seu impacto emocional, preparado de forma tão sutil, é tão surpreendente. Um filme raro, calmo e silencioso, em tempo de fantasmagorias estridentes.

 

 

 

Anomalisa (2015), de Charles Kaufman & Duke Johnson  

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Kaufman en abyme

Gabriel Leal

Anomalisa (2015) é uma animação em stop motion de temática adulta, algo raro de se ver nos cinemas, mesmo já sendo conhecido e trabalhado na televisão no canal Adult Swim (contudo, em Adult Swin a temática adulta é centrada na sátira, já em Anomalisa é centrada no drama, característica que torna o filme ainda mais raro e original). A animação foi adaptada de uma peça homônima escrita por Charles Kaufman sob o pseudônimo de Francis Fregoli, no qual o personagem principal é Michael Stone: um homem de meia idade, casado, pai de um filho e palestrante renomado no universo do atendimento ao cliente e da comunicação. Stone, apesar do seu trabalho motivacional, é solitário, deprimido e, logo percebe-se, vive em um estado de crise, escutando todos os outros como se fossem uma só pessoa (fenômeno conhecido no mundo da psiquiatria como síndrome de Fregoli, referenciada no pseudônimo de Kaufman e no nome do hotel em que Michael fica hospedado). Essa única voz, ouvida por Michael Stone, é dublada pelo ator Tom Noonan, o mesmo intérprete do personagem Sammy em Synechodoque, New York (2008), que passa a viver a vida do personagem principal Caden. Ambos os casos são típicos de uma vivência de perseguição paranoica e o interessante é que essa perseguição pode estar ligada, de algum modo, à figura de Kaufman, especialmente se pensarmos seus personagens, Caden e Michael, como seus alteregos.

Kaufman, além de ser o roteirista, divide a direção com um experiente profissional de animação, Duke Johnson, enquanto para Kaufman essa técnica é uma novidade. Além disso, com um diretor parceiro ele parece usar uma linguagem mais clara e centrada para expressar suas ideias, pois Synecdoche NY, seu único esforço diretorial solo, é atravessado por uma certa inconsistência de tom. Há cenas em Synecdoche, por exemplo, em que o espectador tem dificuldades de compreender se o tom é cômico ou dramático diante de situações absurdas, mesmo se essa ambiguidade do tom tenha sido planejada, pois, de todo modo, parece fornecer uma experiência vazia. Essas situações não ocorrem em outros filmes de Kaufman e, em Anomalisa, o tom dramático é centrado (apesar de ser atípico, com algumas pitadas de sarcasmo e comicidade) e, assim, adquire maior força emocional para sua narrativa.

Um dos principais elementos de Anomalisa é o diálogo. As conversas, em sua maioria, são formais e superficiais, mas, ao mesmo tempo, causam certo incômodo e ansiedade tanto entre os personagens quanto no espectador. Os diálogos, sempre realistas na medida em que a ficção permite, são apenas a ponta do iceberg, pois escondem um subtexto rico e profundo percebido através do modo como são falados e de suas pausas. Quando, por exemplo, Stone diz secamente ao funcionário do hotel que o vôo não havia sido turbulento, mas, em seguida, no telefone com sua mulher, fala o contrário, mostra-se sutilmente, a partir dos diálogos, a preferência de Stone por mentir para não conversar com um estranho. Além disso, mesmo com sua mulher, Stone tem um diálogo direto e, em pequenos detalhes, pode-se perceber uma ansiedade e desconexão entre os dois, como quando ela o interrompe para chamar o filho (que, aliás, é também objetivo na sua fala).

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Após essa conversa, Michael liga para sua antiga amante, Bella Amorosi, e marca um encontro, como se pudesse resolver seus problemas apertando um botão, semelhante aos do seu quarto de hotel, com símbolos diversos para facilitar o consumo do serviço de quarto. Michael tem um encontro desastroso com Bella e, em seguida, conhece Lisa e se apaixona, pois ela é a única pessoa que tem voz diferente dos demais. Depois de uma cena de sexo sensível, mais realista do que muitas em live action, Michael a pede em casamento durante o café da manhã no dia posterior. Após o pedido, contundo, em uma conversa banal, Michael se irrita com alguns comportamentos de Lisa e os dois passam a se comportar como se já vivessem uma vida monótona de casados. Nesse momento, ele passa a ouvi-la exatamente como a todos os demais e isso é o suficiente para desestabilizá-lo e fazê-lo voltar ao ponto inicial. Michael então regressa para casa aceitando sua condição solitária e doentia, trazendo consigo um presente pouco usual para seu filho: uma antiga boneca japonesa. Presente mais interessante para Michael, pois consolida sua experiência frustrada em um objeto, lembrando-o sempre desse desencontro amoroso e de sua busca problemática por uma mulher idealizada. A música da trilha sonora “None of them are you” (Nenhum deles é você), escrita por Kaufman e cantada por Tom Noonan (como o próprio filme funciona, escrito por Kaufman e dublado por Noonan), enfatiza o ponto do protagonista não encontrar esse amor. No final das contas, talvez seja esse o aprendizado de Michael: o amor romântico não irá salvá-lo.

Anomalisa tem um trabalho sonoro excepcional, que em si deslumbra e movimenta a narrativa de modo autônomo, talvez devido ao fato da peça de teatro ter sido composta para ser sobretudo auditiva (pois Kaufman a escreveu para o Theatre of New Ears, em que a narrativa estava toda centrada na leitura dos diálogos e na trilha sonora). O filme todo pode ser compreendido e pode-se ter uma experiência quase completa apenas ouvindo-o; porém, a imagem não é vazia e traz em si aspectos importantes.

A escolha pela animação parece refletir uma crítica à artificialidade das relações humanas e da vida, ainda mais considerando os vínculos artificiais dos personagens entre si e o fato de eles usarem máscaras. Outro aspecto intrigante da imagem é a referência ao filme My man Godfrey (1936), que, quando Michael liga a televisão no hotel, está passando (também encenado por bonecos e dublado por Tom Noonan). Esse filme, uma comédia romântica hollywoodiana do período após a grande depressão americana, faz parte de um grupo de filmes considerados escapistas e é uma experiência diametralmente oposta à Anomalisa, pois enquanto aquele fazia o espectador esquecer sua realidade dura e desesperançosa, este puxa o espectador para tal realidade. Esses aspectos acabam por deslocar a realidade ficcional e tornam a imagem complexa e profunda, pois, de certo modo, atuam como um mise en abyme (efeito de ter dentro da imagem a própria imagem em escala menor repetidas vezes).

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De fato, o efeito de mise en abyme é uma marca registrada nos roteiros de Kaufman, sendo utilizado nas formas de metalinguagem e metáfora de diversas maneiras, como nos filmes Quero ser John Malcovich (1999), Adaptação (2002), Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) e em Synecdoche, New York (2008), o qual ele também dirige. Esse efeito pode representar um esforço dos seus personagens de olharem para si mesmos de fora e tentarem se entender e, em última instância, serem autosuficentes. Escrevendo sobre si mesmos (Adaptação), atuando sobre si mesmos (Quero ser John Malcovich), lembrando sobre si mesmos (Brilho eterno…) ou dirigindo a si mesmos (Synecdoche). Porém, a tentativa dos personagens de voltarem a si é um sintoma narcísico, um egocentrismo exagerado que causa confusão, distorção da realidade e isolamento (características comuns nas histórias de Kaufman), em vez de os tornarem autosuficientes. Condição que, ao chegar no limite, precisa ser superada; entretanto, como superar esse egocentrismo? Essa é uma pergunta não respondida nos filmes citados, pois de fato o egocentrismo não é analisado diretamente, já que não faz parte do conflito das personagens, mas sim, é uma característica delas. Em Anomalisa, Michael é esse típico personagem narcísico e seu conflito não está ligado diretamente a isso. Entretanto, diferentemente de nas outras histórias citadas, Michael não resolve seu problema (seja ele qual for). Além do mais, parece reconhecer e aceitar sua condição egocentrada, mudança significativa na estrutura e no arco dramático das personagens, quando comparados aos representados nos demais filmes do autor.

Assim como Michael Stone, os filmes de Kaufman parecem sofrer da síndrome de Fregoli — esse nome, aliás, se origina do ator e dramaturgo italiano Leopoldo Fregoli, que se destacou no século XIX por interpretar vários papéis na mesma peça — e, consequentemente, podem ser interpretados como variações dramáticas do mesmo tema: o indivíduo moderno autocentrado. Desse modo, o que pode ser considerado o centro de suas histórias é o próprio Kaufman, chamando atenção para si através da sua forma e estrutura narrativa. Estrutura que é elaborada e original, mas parece um invólucro bonito para um presente ordinário na história do cinema, já que, uma vez desvendados sua técnica e seus truques narrativos, resta muito pouco para se apreciar. Isso não tira o mérito de seus filmes, mas, ao esconder o conteúdo em camadas racionais e elaboradas, Kaufman acaba se escondendo dentro dessa mise en abyme sem fim. Porém, sobretudo em Anomalisa, ele indica um processo de mudança ao colocar a história no centro, sem rebuscar a forma de modo despropositado, fazendo com que sua expertise da técnica narrativa tenha um lugar mais propício para apreciação, debates e reflexões.

A Vizinhança do Tigre (2014), de Affonso Uchoa

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Um olhar sobre outros

Maria Trika

A Vizinhança do Tigre (2014) representa um grande processo de olhar. Olhar que se aproxima, entrega-se ao fluxo dos dias, do que neles habita e, o que julgo mais crucial: um olhar que se soma a outros para se construir. Olhar próximo, que reflete grande liberdade de criação, dadas todas as forças que construíram o filme e uma real disposição ao deslocamento – algo que exige desprendimento, uma flexibilidade para constantemente se recriar e, principalmente,  uma abertura para que  novas coisas tenham espaço para se mostrar. Tal composição marcou o filme desde o início de seu processo de criação, tratando-se ele da representação constante de um percurso.

Affonso Uchoa começou a gravar o bairro Nacional, Contagem – MG, onde reside até hoje, por ter sido contemplado em um edital, para o qual tinha mandado um roteiro sem grandes pretensões. Assim, teve uma oportunidade de começar a fazer. De acordo com o próprio Affonso a história do Vizinhança do Tigre começa com a sua estranheza sobre o bairro onde mora: ele era de lá, mas, ao mesmo tempo, não era; era um deles, mas, ao mesmo tempo, não. Talvez isso tenha levado o filme a se constituir como algo coletivo.

Durante as gravações, foi conhecendo Aristides de Souza, Maurício Chagas, Wederson Patrício, Adílson Cordeiro e Eldo Rodrigues, que no filme se apresentam como Junim, Menor, Neguim, Adílson e Eldo, e foi a partir desses encontros que Vizinhança foi se fazendo mais presente no filme que estava por surgir. Os meninos obtiveram liberdade para criar, junto ao diretor, suas próprias narrativas, repletos de consciência do que faziam e sabendo para quem narravam, pois, creio que na relação que se estabeleceu ali não só a câmera exercia seu olhar sobre eles, como eles também se impunham sobre a câmera. Formou-se uma consciência mútua, fruto da liberdade regente que marcou o fazer do filme: as cenas eram criadas por e a partir de todos, do lugar e do momento. Dessa forma, se ampliou espaço para que a presença dos meninos se impusesse ali, assim como a dos elementos cotidianos, consequentes da própria presença do bairro. Como, por exemplo, na cena do “duelo” entre Junin e Neguim, quando a câmera se vira para o Neguim e ele continua sua fala, mas, dessa vez, olhando para câmera de uma forma que a ultrapassa. A cena se aproxima até nós, quase que nos inserindo, pois os personagens têm consciência que ao falar, o fazem não só para câmera, mas também para algo além.

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O diálogo entre a câmera e os personagens se estabelece através de um ritmo próprio, que possibilitou a ambas as partes se desenvolverem de formas essencialmente diferentes. Os meninos se narram, são os personagens de suas realidades inventadas e, diante disso, a câmera se faz como parte do cotidiano,  um cotidiano que se (re)cria a cada momento, como resposta aos movimentos dos corpos que se faziam presentes nele. A forma que a câmera conduz e acompanha o ritmo do filme gera um movimento inato, no sentido de nascer e se construir com o indivíduo. No caso, as cenas e os personagens delas. A câmera teve de acompanhar o momento presente e entender como compartilhá-lo. Creio que a força documental do filme esteja muito ai, nas cenas que nascem do momento, de um modo que nos integra. Os personagens comem mexerica, a câmera come com eles e nós também.

Ao acompanhar aqueles dias reais inventados e seus detalhes, como a presença da violência que se mantém todo o tempo no imaginário, percebemos uma presença que se manifesta naquelas narrativas que compõe o filme, a de uma história maior que se passa ali, uma que as palavras não dariam conta de representar. Tal presença me parece ser a própria  realidade que transpareceu e serviu de base para as invenções. Realidade essa que, as vezes, é complexa demais para se mostrar em uma narrativa só.

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O filme transborda e, diante disso, a montagem cria caminho para passarmos por ele. Caminho que se dá quase como em um gesto de amizade, de total lealdade, admiração e confiança no que ali tinha sido feito. Talvez a maior prova disso seja a cena final do filme (gravada no início de todo o processo, quando o filme ainda viria a ser o que se tornou, e que foi também a primeira cena do Menor): um grupo de meninos bem jovens descendo de skate uma ladeira, da qual não vemos o fim, embalados pelo som da gaita tocada por Eldo, como uma forma de despedida – e até mesmo mais do que isto: como uma forma de ressaltar a potência do devir que atravessa tudo ali.

 

 

 

 

 

The Babadook (2014), de Jennifer Kent

 

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Entre o real e o fantástico

Ana Cláudia Ulhôa  (com colaboração de Fábio Feldman)

The Babadook (2014) é um filme sobre depressão e luto, temática abordada com maestria pela atriz e diretora estreante Jennifer Kent. Em seu terror psicológico, jump scares e outros clichês e estratégias recorrentes em filmes de terror (sobretudo veiculados a ciclos paranormais) são usados de forma contida. O verdadeiro investimento se dá na construção da relação entre mãe e filho e na composição de climas horríficos de tensão e perigo. Estes tanto remetem, diegeticamente, à presença de uma figura fantasmagórica, responsável por colocar em risco o bem-estar da família, quanto a um subtexto mais sutil, que se vale da assombração enquanto metáfora dos efeitos da perda.

O ponto de partida do filme (explicitado gradualmente em seu decorrer) é a morte de Oskar Vanek (Benjamin Winspear), que não resiste a um acidente de carro, ocorrido enquanto se encontrava a caminho do hospital para o parto de seu filho Samuel (Noah Wiseman). Tal passamento marcará as vidas do garoto (vítima consequente de um quadro psicológico instável de agressividade) e sua mãe, Amelia (Essie Davis) que, abnegadamente, resolve se dedicar de forma quase integral ao filho. Entretanto, sentimentos reprimidos parecem se colocar entre ambos, alimentando um ciclo destrutivo que será intensificado a partir da descoberta do livro infantil The Babadook.

Espécie de versão infernal de uma obra de Roald Dahl, o livrinho é protagonizado por uma figura aterrorizante, que obceca Samuel. Convencido de que o Babadook está vivo e ameaça seu lar, o menino passa a ter crises violentas. Como resultado disso, uma atmosfera ambígua é instituída, tornando impossível ao expectador saber se as aparições do monstro para o menino-problema são realidade ou alucinação. Eventualmente, porém, a mãe passa a também enxergar a criatura – sendo, inclusive, possuída por ela.

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Kent consegue servir-se da fotografia desbotada e monocromática de Radek Ladczuk e alinhá-la com o ritmo progressivo do roteiro a fim de instalar uma sensação de vazio, solidão e melancolia. Em relação à iconografia, composição e condução de suas mise-en-scènes, The Babadook parece manter certo diálogo com a tradição do Expressionismo Alemão, tanto em função do emprego poético e expressivo da iluminação e da caracterização da criatura – que guarda semelhanças, por exemplo, com a do sonâmbulo em Gabinete do Dr. Caligari (1920) –, quanto por se valer de elementos visuais sombrios sem se filiar diretamente a uma tradição gótica, patentemente mitificante. Antes, o mundo de The Babadook é um mundo regido por subjetividades, no qual o elemento demoníaco reflete muito mais o que guardamos dentro de nós. O figurino escuro, com pouquíssimas cores, como se todos os personagens estivessem em um luto eterno, é também um indicativo disso. Percebemos tal recurso, por exemplo, durante a festa de aniversário de Samuel, que pode ser confundida com um velório.

As atuações de Davis e Wiseman também se destacam no interior do processo de consolidação do ambiente fílmico. Ambos conseguem representar brilhantemente as transições entre os estados da depressão: a exaustão, a ansiedade e os ataques de ira. Ao mesmo tempo, encarnam os típicos personagens de um filme de casa-assombrada, protagonizando um movimento constante que, a um só tempo, nos leva a conceber The Babadook como um filme de terror e uma espécie de melodrama.

Sendo mais do que um filme de terror convencional, The Babadook se destaca no panteão contemporâneo de películas do gênero. Ele traz à tona as angústias de uma mãe perturbada, que transfere toda a frustração da morte do marido para o filho pequeno; sua recusa em admitir os problemas que a levaram à incapacidade de lidar com o paradoxo entre real e imaginário; e as perturbações fundas de uma criança privada de um ambiente familiar saudável e equilibrado – todos estes,  temas que poderiam muito bem servir de base para uma película de Mike Leigh. Ao mesmo tempo, o filme se impõe enquanto um legítimo representante de seu gênero, ainda que se recusando a seguir caminhos óbvios,  apostando na manutenção de atmosferas densas e ameaçadoras – e, em certa medida, se filiando, também, a uma tradição tourneuriana, que privilegia o potencial da sugestão, subtraindo pathos da ausência.

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Responsável por proporcionar momentos verdadeiramente perturbadores, The Babadook é um clássico filme de monstro, um terror psicológico dos mais complexos, um conjunto de reinvenções de ícones e topoi legados por diversos ciclos e correntes fílmicas associadas ao horror – e, sob tudo isso, uma comovente estória familiar, um drama sobre perda e superação, posicionando-se sempre entre o concreto e a alegórico, o real e o fantástico, a sombra e a transcendência.

 

Rua Cloverfield, 10 (2016), de Dan Trachtenberg

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Da gênese à metástase

 Roberto Cotta 

Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora

(Ezra Pound, “Envoi”)

Os Fins

Uma afirmação falaciosa nos recorre: a de que os filmes norte-americanos de gênero, sobretudo de terror/horror, ainda ocupam um lugar desprestigiado no campo da crítica cinematográfica e da academia[1]. Proferida a torto e direito por cinéfilos diversos e trazida à tona, ironicamente, em textos críticos, pesquisas acadêmicas e catálogos de mostras e festivais, tal assertiva cai num calabouço particular quando percebemos um culto cada vez maior às obras de Carpenter, Romero, Craven, Dante, Hooper, aos primeiros filmes de Ferrara e Cronenberg, ao legado de Whale e Browning, às fitas de baixo orçamento da RKO dirigidas por Tourneur, às produções de Lewton, Corman, Kaufman etc.

Se levarmos em consideração também os western das mais distintas origens, vertentes e ramificações, as screwball comedies realizadas por tantos gênios (Hawks, Lubitsch, Capra, Cukor, Milestone), os musicais da Era de Ouro e quase toda a filmografia hollywoodiana de Hitchcock, teremos em mãos um arcabouço repleto de cânones do cinema de gênero que alcançaram um grau de relevância indissolúvel na história. E, para que essa perpetuação fosse possível, os esforços críticos e os estudos acadêmicos acabaram sendo pontos fundamentais no processo de preservação dessas obras, proporcionando a elas uma vivacidade e uma contribuição inestimáveis na formação de novas gerações de cinéfilos mundo afora.

Ademais, esse enunciado cai de vez por terra à medida que observamos um circuito de distribuição comercial bastante propício à proliferação ainda maior de filmes baseados em histórias em quadrinhos, adaptações de livros de fantasia, remakes de ficções científicas de décadas passadas e seus reboots, sequels, prequels e demais querelas, cada uma delas ganhado um destaque extenso em blogs e sites de resenha crítica pela internet. Para além dos mecanismos de concepção e controle industrial, o que torna definitivamente essa afirmativa uma cruel inverdade é o surgimento, nos últimos anos, de um sem-fim de obras supostamente autorais dotadas de um incomum hibridismo entre gêneros. Ou seja, filmes realizados por cineastas oriundos das mais variadas nacionalidades que têm flertado com os códigos e estruturações essenciais associados ao cinema americano de gênero, embora seus filmes não possuam exatamente as mesmas predileções estilísticas.

Partindo de um conhecimento vasto do universo fantástico ou das matrizes do horror, do suspense, do trash, do sci-fi, do grotesco ou do filme erótico que realizadores como Apichatpong Werasethakul, Lucrecia Martel, Kiyoshi Kurosawa, Juliana Rojas, Marco Dutra, Álex de la Iglesia e Bruce LaBruce, só para ficarmos em alguns exemplos pontuais, têm descortinado um conjunto de filmes permeados por materialidades estéticas inerentes à concepção do filme estadunidense de gênero, ao mesmo tempo em que atravessam suas formas cinematográficas com características particulares originárias das mais largas influências artísticas, culturais e pessoais. Tais obras, cada uma à sua maneira, vêm sendo impulsionadas no cenário internacional de festivais e repercutidas em textos críticos e pesquisas universitárias, desconstruindo de vez essa atribuição obtusa ao filme de gênero, seja qual for sua nacionalidade, que muitos ainda acreditam existir dentro da academia ou através da crítica especializada.

No que diz respeito aos filmes norte-americanos de gênero, eles atualmente se encontram bem longe das bordas nas agendas de discussão cinematográficas. Ao contrário disso até, podem ser considerados como uma espécie de epicentro ou, ao menos, como uma das terminações nervosas mais estimulantes para as reflexões contemporâneas no cinema, influenciando novas plateias e contribuindo diretamente  com o processo de formação de repertório delas. No entanto, a defesa de um discurso de permanência à revelia dos faróis fortalece a aura de mistério e fascínio que envolve essa possível localização subterrânea (vale lembrar que a história do cinema nos dá indícios de que culto à obra é potencializado quando as trevas do mais puro desconhecimento são, enfim, iluminadas pela luz da cinefilia).

Portanto, não é à toa que alguns dos filmes americanos mais fervilhados pelas pautas no circuito comercial do ano retrasado pra cá são longas-metragens situados à beira do abismo dos gêneros, especialmente do terror: Corrente do Mal (2014), de David Robert Mitchell, A Visita (2015), de M. Night Shyamalan, A Bruxa (2015), de Robert Eggers, e Rua Cloverfield, 10 (2016), de Dan Trachtenberg. Todos esses filmes, perfurados por uma estratégia de distribuição que muito mais esconde que os mostra, têm despertado a atenção de um público ávido por experimentar formas intensificadas de reconfiguração estética e narrativa. E o impacto provocado por essas experiências fez germinar a percepção de que essas obras propõem – ou disfarçam – determinados afastamentos em relação às suas matrizes tradicionais (códigos, arquétipos, arcos dramáticos, pontos de virada, clichês etc.) e se utilizam de ferramentas capazes de desafiar as categorizações e os chavões historicamente estabelecidos.

É óbvio que não há nada mais banal no cinema contemporâneo do que a vontade de se fazer original utilizando as escoras da tradição. Entretanto, até certa medida, algumas escolhas nos fazem crer nessas possibilidades de distanciamento em relação às heranças deixadas pelos cânones, sobretudo quando consideramos que Corrente do Mal (2014) se apropria dos espaços arruinados de Detroit para construir um abrigo insólito para jovens impotentes enfrentarem a iminência da morte; quando A Visita (2015) costura os desalinhos entre o humor e o horror, o amadorismo e o virtuosismo, a juventude e a maturidade, conduzindo-os rumo à indivisibilidade das formas, à cristalização dos gestos e à incapacidade bárbara dos assombros; ou quando A Bruxa (2015) faz da luz do dia o momento mais aterrador para o nascimento da tragédia, evidenciando o fracasso determinante do caos face à completa impossibilidade de equilíbrio humano.

Em todos esses casos, flechadas certeiras em direção ao alvo, propostas que se consolidam através de uma articulação estilística singular, mesmo que abram seus porões para os fantasmas que as perseguem (lembremos do mal-estar social entranhado no rosto de cada personagem do filme de Mitchell, de notável raiz carpenteriana; da articulação de situações que mais uma vez convergem num final incontornável na obra de Shyamalan; no jogo de forças entre o apolíneo e o dionisíaco estabelecido por Eggers, matéria que talvez seja o estopim propulsor de todo grande filme de horror já feito na história). Nessa terra fértil, porém, Rua Cloverfield, 10 (2016) submerge como uma verdadeira exceção.

O Princípio

A começar, o filme de Dan Trachtenberg guarda poucas semelhanças com Cloverfield – monstro (Cloverfield, 2008), longa dirigido por Matt Reeves. Embora traga um título quase homônimo, a assinatura de J. J. Abrams como produtor, o marketing viral como ferramenta de promoção e os artifícios narrativos como engrenagens que modelam a planificação das cenas e a montagem, não estamos exatamente diante de uma continuação do enredo anterior. A partir de um agrupamento temático que traz poucos resquícios de cruzamento entre as obras, a ideia é compor uma antologia de filmes que lidam com o colapso de uma sociedade americana engolida pelas novas tecnologias, sem estabelecer necessariamente um ordenamento cronológico.

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Contudo, se o filme de 2008 trazia o found footage como um dispositivo oportuno para canalizar a catástrofe, Rua Cloverfield, 10 prefere abusar do terror psicológico para criar contornos ainda mais mirabolantes, quase sempre engessados pelo esquematismo de suas escolhas e pelo desvelar de seus rumos. No longa de 2016, a concepção é de que tudo se formula através da manipulação dos artifícios narrativos e, em função deles, é amarrado um calculado jogo de reflexões e refrações entre objetos de cena, figurinos, espacialidades, personagens e suas trajetórias pregressas. Entender o funcionamento desses artifícios é a chave principal para tentar destravar o jogo e movimentar o tabuleiro. Porém, quase todas as situações construídas esbarram na dificuldade de propor condições de rompimento dessa matemática infrutífera dos cálculos. Em momento algum, qualquer tipo de espaço é concedido para que a composição formal possa sucumbir às fórmulas preestabelecidas ou confrontar suas imposições.

O primeiro movimento artificioso está no título. A Rua Cloverfield, 10 agrega quase todas as ações do filme, mas temos certeza disso apenas quando um carro cruza a estrada e derruba uma placa de sinalização com o endereço descrito. No momento em que tal situação acontece, já não há mais necessidade em se fazer qualquer revelação sobre o assunto, mas a narrativa parece acreditar que toda informação adicional pode fazer borbulhar o caldeirão de teorias conspiratórias que a sacramentam. Em geral, o filme se fundamenta numa retórica que se interessa em esconder tudo aquilo que precisa ser mostrado e em mostrar tudo que poderia ser escondido. Até porque, é através dessa maneira que o espectador poderá ligar todos os pontos e alinhavar um enredo que usa o minimalismo cênico como disfarce articulador de uma série de micro-situações recheadas de signos associativos. Para esses signos, sobra a ingrata missão de gritar pelo nosso foco o tempo inteiro.

A continuidade do artifício se dá quando um acidente de carro forjado acontece. Michelle (Mary Elizabeth Winstead) abandona o apartamento que divide com o namorado Ben (Bradley Cooper, que concede ao filme apenas sua voz), pega seu automóvel e atravessa uma estrada noite adentro. O celular toca insistentemente, ao passo que o veículo continua em movimento. A personagem liga o viva-voz, e ouvimos as súplicas do rapaz pedindo que ela volte pra casa. Logo depois, as notícias do rádio alertam sobre um surto catastrófico de queda de energia tomando conta de algumas cidades da costa sul dos Estados Unidos. O rapaz volta a ligar de modo incessante, e as atenções de Michelle se dissipam do trajeto feito na estrada, concentrando-se no nome de Ben estampado na tela do celular. Um súbito choque entre carros ocorre, deixando a personagem desacordada. Aparecem os créditos iniciais do filme.

Rua Cloverfield, 10 retoma de seu parceiro de antologia o discurso de que as novas tecnologias são incapazes de frear um mal maior, inalcançável, colossal. Através do uso delas são permitidos apenas o registro e a impotência. Rememoremos que no filme de Matt Reeves, com a câmera na mão, um dos personagens é atacado por um monstro enquanto filma o próprio ataque, uma imagem completamente perturbadora. Aqui, a personagem principal é confinada dentro de um bunker depois de ter sido desorientada pelas intervenções sonoras e visuais que aparecem em seu telefone celular. A diferença é que no longa de Reeves o fiasco é mostrado de maneira frontal, pois o personagem usa a câmera como uma arma, única ferramenta possível para tentar enfrentar a monstruosidade do outro, ainda que o fracasso seja imediato. Já na obra dirigida por Trachtenberg, o fracasso nos é imposto pela crença na aparente fragilidade da protagonista, no semblante de dúvida que toma conta da sua face em seus vários momentos de desatenção.

As elipses que constituem esses minutos inicias apresentam as muletas de engenhosidade que suportarão toda a narrativa. Primeiro, as cenas descritas deixam brotar a gênese abusiva que posiciona o poder de dominação masculina e a linha fronteiriça entre a submissão e o sentimento de resistência traçadas para a protagonista. Daí em diante, o que vemos é a corroboração insistente desses papeis. Em cada angulação, movimento de câmera, colocação de spot de luz ou inserção de efeito sonoro, o filme reafirma que Michelle se amedronta, mas deve resistir bravamente ao medo, enquanto o universo masculino se materializa como a manifestação mais absoluta do horror. A personagem feminina acorda em um abrigo subterrâneo construído por Howard (John Goodman), um paranóico veterano da marinha que tenta convencê-la de que o mundo lá fora sofreu um ataque nuclear devastador. Michelle ficará aprisionada nesse lugar claustrofóbico ao lado de Emmett (John Gallagher Jr.), homem mais jovem que Howard, que ratifica a ocorrência da catástrofe no ambiente externo. Assim, os personagens masculinos representarão as finalidades indiscutíveis da crença, já a protagonista se mostrará transtornada pela dúvida e acuada pela condição submissa, buscando a liberdade a qualquer custo.

O tabuleiro do jogo é montado. Howard simboliza a figura paterna esterilizante que ocupa uma das extremidades da mesa e detém o domínio dos sermões e o direito à palavra. Emmett se afigura como um filho mais velho inseguro que assente a tudo aquilo que é dito pelo pai. Michelle, por sua vez, é a filha reprimida e sem voz que tem que obedecer todas as ordens impostas para se manter viva. Quando as peças são movidas por alguma imposição dos artifícios, o caos se instala dentro desse confinamento, dando a ideia de que o mundo exterior é um lugar muito mais seguro que lá. Howard logo parecerá mais perigoso que imaginávamos, Michelle ganhará um combustível ainda maior para querer sair do abrigo e Emmett funcionará como uma espécie de pêndulo dominado pela opulência de Howard e fascinado pela astúcia de Michelle.

Todavia, o filme consegue deixar fenecer as belezas que emergem dessa convivência hermética. Não há sutilezas, respiros ou arestas que possam ser preenchidos pelo olhar do espectador, nem mesmo pela ação dos personagens. Tudo nos é empurrado goela abaixo pela maquinação narrativa, com o propósito de auto-explicar todas as suas escolhas e criar mecanismos imbuídos em apagar as eventuais lacunas deixadas pelos aspectos formais. Se pensarmos na coexistência entre o controle cênico e a imprevisibilidade dos gestos nos filmes de Brian De Palma, teremos aqui seu mais evidente anteparo.

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A associação entre signos que se repetem para recompor utilidades torpemente inventivas (tesoura, linha, agulha, revista, extintor, cortina) ou para encaixar pontos narrativos frouxos (tubulação de ar, estante, abajur, fotografia, brinco, camisa estampada, mensagem arranhada num vidro etc.) é a consolidação dessas ferramentas artificiosas que buscam sustentar as espertezas enredadas pelo filme. Pois, estabelece-se que aqui não pode existir organicidade ou utilização óbvia na relação com os utensílios, já que vivemos num mundo dilacerado por uma transformação abrupta. Desse modo, somente os suportes tecnológicos de décadas anteriores, se reconfigurados para uma nova utilidade, podem contribuir para a sobrevivência humana. Isto é, toda vivência ou ação precisa ser emoldurada de maneira forçada para comportar as surpresas que o filme visa propor. Desse jeito, indica-se que é preciso perverter os códigos tradicionais para que a extinção não aconteça. Paradoxalmente, as formas tecnológicas mais recentes são esmagadas pelo princípio de inadequação aos novos tempos.

A ideia de perversão, aliás, é outra recorrência cara ao filme. Durante grande parte da trama, Howard está envolto sob o manto da desconfiança e posto, com razão, em condições propícias para imaginarmos suas depravações. Porém, perversão maior é constituída pela espacialidade proposta pela decupagem do filme em relação aos pés de Michelle. Antes do acidente, não existe qualquer evidência de como eles estão calçados. Depois que ela acorda confinada no bunker, porém, percebemos que seus pés já estão descalços. A narrativa pode nos apontar que Howard teria sido capaz de tirar-lhe os calçados para satisfazer seus fetiches particulares. Mas, se fosse apenas por esse motivo, não existiria a necessidade de mostrar os pés descalços da personagem em mais um punhado de situações registradas em planos próximos ou distanciados, sempre sob a perspectiva do espectador, não pelo olhar subjetivo de Howard.

Em uma produção de decupagem bastante cuidadosa, pode-se inferir que a escolha passa pelo filtro da mais gratuita pulsão escopofílica. Nesse caso, num raro momento em que o gesso dos artifícios narrativos de fato é rompido, o filme resvala em um artifício estético utilizado de maneira enfraquecida, simplesmente apropriado para acentuar os contornos físicos de uma mulher assolada pelos medos e repressões sofridos naquele ambiente. É a metástase definitiva de um filme de gênero (e sobre gênero) repleto de equívocos, amálgama de uma reunião de métodos cinematográficos que querem chamar a atenção para o que eles podem dissimular, nunca para o que eles exatamente são. Não fosse isso, faria algum sentido nos debruçarmos sobre os pés da protagonista, e a eles retornarmos sempre que fôssemos acometidos pelo horror.

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[1] No cenário brasileiro, por exemplo, para rebatermos essa ideia basta conferirmos o robusto dossiê Carpenter publicado pela Contracampo em 2002, o mini-dossiê Craven realizado pela Interlúdio ano passado, o dossiê Romero lançado pelo Tudo Sobre Seu Filme em 2015, os textos sobre a obra de cineastas que mergulham de cabeça nas formas de representação do terror e do medo difundidos em revistas como a própria Contracampo, Cinética, Filmes Polvo, Moviola, Multiplot! e outros espaços virtuais surgidos nas duas últimas décadas (Cinema de Boca em Boca, Olhos Livres, Boca do Inferno, O Dia de Fúria, Cineplayers e Dementia ¹³), bem como os catálogos de mostras dedicadas a Cronenberg, Hitchcock, De Palma, Ferrara etc. Além disso, são facilmente acessíveis a dissertação de Caio Aguilar sobre o corpo humano como manifestação do horror na obra de Cronenberg, a tese de Charles Albuquerque sobre a padronização dos artefatos culturais em filmes de Wes Craven, a pesquisa de Odair José da Silva sobre as metamorfoses corporais no cinema de horror e os estudos de Laura Loguercio Cánepa e Carlos Primati dedicados às manifestações do cinema de gênero no Brasil, mas, por vezes, também interessados em investigar temáticas ligadas ao filme americano de terror. Enfim, a disponibilidade dessa produção textual é evidente e alcançável a qualquer pesquisador que possua condições de acessar à internet.

Mar Negro (2013), de Rodrigo Aragão


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Do mar ao caos

Thomas Lopes Whyte

Terceiro longa de Rodrigo Aragão, Mar Negro (2013) reafirma a posição do diretor como um dos principais nomes do cinema brasileiro de horror da atualidade.

Natural de Guarapari, cidade litorânea do estado do Espírito Santo, Rodrigo Aragão busca ali mesmo, no “quintal” de casa, paisagens que permitam contar suas fábulas e, em alguma medida, representar os costumes de populações locais. Ao mesmo tempo em que busca inserir questões relacionadas ao meio ambiente e à forma como a exploração predatória vem alterando a dinâmica de comunidades que dependem desses biomas,o diretor apresenta seu terror repleto de violência em cenários tropicais, com muita comida repugnante e personagens de um imaginário tipicamente tupiniquim.

Se, entre as várias funções acumuladas por Rodrigo, ele já conseguia desempenhar com maestria o papel de maquiador desde seus primeiros curtas, foi preciso mais tempo para que ele amadurecesse como diretor e autor. Em seus dois longas anteriores, Mangue Negro (2008) e A Noite do chupacabras, (2011), as saídas encontradas para o desenvolvimento de suas fábulas são bastante esquemáticas e muito presas ainda a certas convenções do gênero.

Já em Mar Negro, que conta com um argumento bastante simples, Rodrigo demonstra um bom controle da ação e um texto bem trabalhado. O filme possui uma estrutura redonda e se divide em atos bem definidos, mantendo sua coerência sem recorrer a flashbacks ou diálogos didáticos para justificar escolhas da narrativa. Assim como nos filmes anteriores, a gênese dos problemas que desencadeiam os eventos reside sempre no aparecimento de um elemento estranho, que ameaça o meio de vida de uma comunidade. O pescador Peruá, personagem vivido pelo experiente Markus Konká, atua como a personificação do passado, e é somente a partir de sua morte e da destruição simbólica de um vínculo com tempos remotos que o frágil equilíbrio se rompe, dando início aos desdobramentos que culminam com a morte dos habitantes do vilarejo.

De uma forma geral, Mar Negro se destaca por exibir personagens bem construídos e explora com mais riqueza traços de suas personalidades e aparência, mesmo que de vez em quando ainda caia em algumas armadilhas e clichês. Albino, personagem principal da trama, talvez seja o melhor e um dos mais ricos personagens de Rodrigo Aragão. Dono de um passado misterioso, um esquizóide, interpretado por Walderrama dos Santos, é uma versão mais complexa do protagonista vivido pelo ator em Mangue Negro. É também o responsável pela costura entre o mundo corpóreo dos mortos-vivos e o universo etéreo do ocultismo, que aqui coexistem de forma bem acertada. Esses dois campos temáticos se entrelaçam ao longo de toda a duração do filme e permitem ao diretor explorar elementos de duas das mais prolíficas vertentes estéticas do cinema de horror: o cinema trash e o terror paranormal. Se de um lado o filme é sombrio e prefere trabalhar com sugestões, do outro ele é sangue, vísceras e violência. Com muitos anos de experiência na área, vemos aqui um maquiador em sua melhor forma e um diretor criativo em busca de uma iconografia própria.

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Partindo de um raciocínio que tem o efeito como gerador de causa, o filme é repleto de cenas memoráveis que abusam de tiradas cômicas e insólitas. Em um momento de pura inspiração, ao som de um coro macabro, o corpo sem vida de Indianara, interpretada pela atriz Kika Oliveira, é mergulhado em um barril de banha, como um pedaço de carne em conserva de lata. Uma sequência assustadora, que joga com a ideia de imortalidade pela preservação do corpo.Uma espécie de criogenia lowcost que vai muito além de qualquer solução óbvia. Alguns outros momentos de destaque ficam por conta da aparição do próprio Belzebu,do acesso de fúria de madame Úrsula com sua metralhadora e da primeira e única baleia zumbi de toda a história do cinema.

O filme possui uma série de problemas, principalmente em função do orçamento apertado, tão comum em filmes de gênero nacionais. Uma das principais falhas é a falta de condução nos planos secundários que conectam os planos das sequencias de ação ao corpo narrativo principal do enredo. Esse espaço intermediário parece ficar à deriva, e a sensação que se tem é que longos trechos das sequencias foram preenchidos com planos gerais de apoio pouco significativos. Isso se torna claro principalmente no desenvolvimento das cenas passadas no bordel de madame Úrsula, interpretada por Cristian Verardi. Seja por falta de recursos para trabalho de arte, ou por uma escolha ruim de locação (que contrasta com o excelente bar de seu Otto e a casa de Peruá), as sequências aqui são menos expressivas e à medida em que a câmera se afasta dos rostos em direção aos planos gerais, a qualidade do material cai, dando a impressão, em certos momentos, de que a carnificina não passa de uma festa kitsch mal sucedida.

Dito isso, Mar Negro é também atravessado por vários outros subtextos, e pode ser compreendido, assim como outros bons filmes de horror, de uma forma mais rica, que vai muito além do simples gore, do Kitsch e da matança desenfreada. Uma das características mais formidáveis dos filmes com mortos-vivos é a capacidade que possuem de servir como mote para a discussão de uma infinidade de temas. Quando captam o espírito do espaço social em que estão inseridos, as obras passam a estabelecer um diálogo múltiplo com o espectador, que vai além das tripas, mutilações e sangue. Desde antes dos geniais zumbis anticapitalistas em O despertar dos mortos (1980) de George Romero, e dos zumbis alienígenas e anticomunistas de Vampiros de almas (1956) de Don Siegel, o subgênero tem sido utilizado para comentar, muitas vezes de forma eficaz, diversas questões relacionadas não somente ao campo específico da psicologia do medo, como também questões sociopolíticas. Mar Negro, sem cometer a empáfia de alçar voos maiores que as asas, assume esse papel e mantém a discussão ambiental sempre patente, sem, no entanto, perder de vista o compromisso com a diversão.

Finalmente, é importante compreender que para se fazer filmes com baixo orçamento, é preciso ser inventivo e saber tirar leite de pedra. E nisso Rodrigo Aragão tem sido muito competente, ao conseguir criar seu próprio universo dentro do cenário audiovisual brasileiro. Trabalhando à margem de um sistema que não incentiva os filmes de horror, o realizador vem conquistando espaço ao circular cada vez mais pelos festivais e salas do país, impulsionado pela crescente popularização do tema, que conta atualmente com uma grande quantidade de produções internacionais. A continuar como tem feito, é possível esperar um ótimo quarto longa-metragem de uma equipe tarimbada de atores e técnicos cada vez mais entrosados.

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Mar Negro não poderia ter sido mais oportuno e até um pouco profético ao falar, mesmo que tangencialmente, da degradação do litoral capixaba. Um tiro certeiro, no contexto de um país que sofre as consequências do pior crime ambiental de sua história. Não seria difícil imaginar um quarto longa ambientado na foz do Rio Doce, com mortos ressurgindo do interior da lama contaminada de minério. E quem sabe então, pelo menos no campo da ficção, poderíamos vislumbrar uma revanche contra um sistema mais desumano que os próprios zumbis comedores de cérebro.

Garota Sombria Caminha Pela Noite (2014), de Ana Lily Amirpour

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Mundo(s) entre sombras

Daniel Rodriguez

Há quem ainda diga que o terror, enquanto gênero cinematográfico, está morto. Considerando a baixíssima qualidade de muitos dos longas que chegam até o público em geral, não é de se estranhar esse tipo de pensamento. No entanto, uma breve conferida na história do cinema deixa claro que se trata de um gênero que sobrevive a tudo e a todos, adaptando-se de geração a geração. Atualmente, o terror de qualidade vive em festivais espalhados pelo mundo, apenas esperando que alguém os revele.

Enquanto crítico especializado neste tipo de cinema, me dispus a desempenhar um papel quase arqueológico para com os filmes de terror, viajando pelo mundo em busca do que há de mais interessante. Em uma dessas jornadas, por volta do final de 2013, descobri A Girl Walks Home Alone at Night, um dos filmes selecionados para o festival de Sundance no início de 2014. Mesmo após o sucesso no festival, o filme permaneceu elusivo e sombrio, com apenas alguns pôsteres e boatos circulando pela internet a seu respeito. Fato é que o filme só chegou ao Brasil agora em 2016, com o título Garota Sombria Caminha Pela Noite (2014) e, ainda assim, permanece um filme pouco conhecido.

Fenômeno em Sundance, Garota Sombria Caminha Pela Noite foi o longa-metragem de estreia da diretora e roteirista Iraniana Ana Lily Amirpour – e uma estreia daquelas que não deixa pedra sobre pedra. Os primeiros espectadores se depararam com algo aparentemente oriundo do gênero terror, com certas influências notáveis, mas que ao mesmo tempo desafiavam convenções e estilos. Conseqüentemente, o filme acabou sendo enquadrado em uma categoria própria, da qual nenhum outro filme faz parte: o Faroeste de Vampiros Iraniano. E esse título faz todo o sentido do mundo.

Garota Sombria Caminha Pela Noite se passa na cidade fictícia de Bad City, aparentemente iraniana, mas na realidade, californiana. Apesar de muito bem representado como um cenário saído diretamente do Irã e com seus personagens falando em farsi, o filme foi inteiramente rodado nos Estados Unidos, nos arredores de campos de extração de petróleo e uma série de outros lugares decadentes pelo estado da Califórnia. Há aqui um tipo de fusão entre dois mundos que funciona como um reflexo da própria diretora, que tem família e raízes culturais iranianas, mas cresceu nos Estados Unidos e tem a cultura americana como grande influência artística.

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Essa espécie de condensação, aqui percebida no âmbito espacial, é ainda mais acentuada na temporalidade. Um dos personagens se veste como um rock star dos anos 50; outro parece um figurão saído dos anos 90; a vampira já é bem moderninha, à la anos 2000. Não só o estilo dos personagens, mas também a cenografia e a própria estética em preto-e-branco criam um universo que existe por conta própria em um tempo indefinido. Isso é uma característica comum no cinema autoral, que os personagens existam em seu próprio universo particular e que, muitas vezes, causa um estranhamente imenso no público menos calejado pela experiência cinematográfica. Amirpour consegue imprimir na tela toda uma visão construída em sua própria mente, criando um mundo fictício real, permeado pelo fantástico.

Outro aspecto estético notável e frequentemente exaltado quando se fala em Garota Sombria Caminha Pela Noite é a trilha sonora brilhante, que varia entre uma espécie de rock inglês iraniano, eletrônica e um instrumental inspirado nas trilhas do spaghetti western. Tal mistura musical é outra faceta da condensação cultural e temporal que dá vida ao filme. O som das trilhas de faroeste, acompanhados de tempos dilatados e planos abertos mostrando uma cidade desértica,são responsáveis pela inclusão do ‘Faroeste’ na expressão “Faroeste de Vampiros Iraniano”. Em contrapartida, uma vampira que anda de skate e dança sozinha em seu próprio quarto ao som de indie rock trazem o filme para um universo pop bem contemporâneo e jovial.

A estética é, sem sombra de dúvidas, um fator preponderante em Garota…, mas ao contrário do que pode parecer, o filme não é um caso de “style over substance”, ou estilo em prol de conteúdo. Os tons de cinza que permeiam as imagens são bem representativos de seus personagens. Da vampira que vaga pelas ruas de Bad City usando seu xador (espécie de burca que deixa o rosto à mostra), ao traficante que atormenta algumas pobres almas com seu comportamento agressivo e visual bisonho, não existem personagens moralmente preto-e-brancos. Roubo, assassinato, prostituição, tráfico e vício são elementos comuns a estes, sem que sejam os únicos determinantes na personalidade dos mesmos.

Se há um tema subjetivo em comum entre os personagens, sem dúvidas este tema é a solidão. Amirpour opta constantemente por planos abertos que enfatizam o aspecto fantasmagórico e até onírico de Bad City, que parece ser habitada por meia dúzia de pessoas – e uma vampira, todos estes inicialmente muito distantes entre si e com dilemas fortemente marcados por esse distanciamento humano. A solidão costuma ser um tema recorrente em obras sobre o vampirismo, já que é um aspecto inerente à imortalidade e aos hábitos notívagos dessas criaturas. Neste caso especificamente, a Garota não é o único ser sombrio que caminha pela noite sozinha, apesar de ainda ser a única com gosto por sangue humano, gosto este, que vale frisar, parece estar diretamente atrelado a um certo senso de justiça, se considerarmos que suas poucas vítimas são homens violentos.

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Lado a lado com Amantes Eternos, de Jim Jarmusch – com quem Amirpour tem sido comparada constantemente -, Garota Sombria Caminha Pela Noite ocupa o lugar de mais influente e interessante filme sobre vampirismo da presente década, além de ser uma obra seminal do cinema independente e autoral nos últimos anos. Ana Lily Amirpour é uma das autoras nessa nova onda de horror independente que, merecidamente, conta com mais rostos femininos que nunca. Seu próximo filme, The Bad Batch, que ela mesma descreveu como uma história de amor pós-apocalíptica canibal, já é aguardado com ansiedade e com certeza terá distribuição maior, tornando desnecessário qualquer trabalho de caráter arqueológico.

Bone Tomahawk (2015), de S. Craig Zahler

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O horror que vem do oeste

Fábio Feldman

A origem do western se confunde, em certa medida, com a origem do cinema. E a partir de filmes como O Grande roubo do trem (1903), de Edwin S. Porter, responsáveis por impor uma iconografia que para sempre seria associada ao gênero; das contribuições, durante a década de 1910, de diretores como David W. Griffith e Thomas H. Ince, fundamentais para a propagação de convenções narrativas e visuais que se cristalizariam enquanto referências incontornáveis; e a ulterior sedimentação do primeiro grande ciclo clássico, o western se filiou, forte e continuamente, ao mito. Focando, sobretudo, o embate entre o herói civilizado, puritano, moral e a natureza inominável, selvagem e brutal – muitas vezes encarnada, metonimicamente, na figura do índio –, seus representantes propagaram uma pletora de imagens e tramas carregadas de sentido fundante, afins àquelas pertencentes a diversas outras grandes mitologias.  Tal ciclo mítico, porém, a partir, sobretudo, das décadas de 1960 e 1970, se esgota, dando lugar a um conjunto de outras variantes, menos relacionadas à oposição tradicional entre civilização e barbárie. O que se mantém é um mundo infernal, no qual a lógica dominante é a do explorador e a figura do herói é relativizada, parodiada ou plenamente desconstruída. Do reino do mítico, caímos no território da história.

Bone Tomahawk (2015), filme que marca a estreia diretorial do romancista S. Craig Zahler, configura-se, em certa medida, como uma espécie de retorno ao modelo clássico. Boa parte de sua estrutura e dos topoi de que se vale parecem estipular um diálogo bastante direto com integrantes desse modelo. Os protagonistas da obra refletem tipos reiteradamente contemplados pelo cinema de matriz fordiana – o xerife estóico, o vilão sedutor (unido a seu grupo por força da necessidade), o alívio cômico, o herói de bom coração. O arco que completam também remete ao referido universo de referências. Bone Tomahawk é, sem dúvidas, um herdeiro da tradição das narrativas de cativeiro, tipo de literatura popular produzida a partir do século XVII que se encontra na base conceitual do western enquanto gênero cinematográfico e que, invariavelmente, lida com representações do sequestro de alguma donzela (doce, virgem, afável e cristã) por índios. Tal situação pedirá a intervenção do homem branco, mítico portador dos bastiões da civilização, e desencadeará uma série de ações arquetípicas.

Entretanto, há algo em Bone Tomahawk que me parece cindi-lo da tradição em que se insere. De forma engenhosa, Zahler foi capaz de estabelecer uma ponte entre o western e o terror, salientando várias das similitudes que guardam. Um dos temas que dão coerência ao terror enquanto gênero é o da experiência do contato com uma auteridade radical, responsável por destruir, ainda que momentaneamente, quaisquer ilusões apolíneas. Diante do unheimlich, daquilo que transcende nossas faculdades cognitivas e constrange nosso julgamento, resta-nos apenas a vertigem, a náusea, uma sensação visceral e reveladora do sem-sentido que norteia a realidade. Em seu “Nascimento da tragédia”, Nietzsche assegura que qualquer sociedade erigida sob a égide solar de Apolo, quando exposta à ira de Dioniso, encontra-se fadada à destruição. Não há construto humano que sobreviva à experiência do absurdo.

Bone Tomahawk 3

É esse um dos grandes ensinamentos que repousam no coração da tragédia, de diversos relatos míticos e, obviamente, dos grandes filmes de terror. Em sua obra, Zahler torna claro que tal conteúdo encontra-se presente também no western clássico, sendo o embate entre o homem branco e o índio potencialmente revelador de mais do que a oposição entre os valores americanos e a resistência selvagem: em seu cerne, habita o choque entre um mundo codificado, estável, familiar e outro essencialmente noturno, estranho. O triunfo do cowboy, este típico cavaleiro moderno, sobre o índio mítico imortalizado pela Hollywood clássica é semelhante àquele gozado pelo sobrevivente de uma chacina em um slasher film ou o daquele cuja sanidade não é comprometida após entrar em contato com entidades sobrenaturais numa casa mal-assombrada.

Consequentemente, o diretor e roteirista revisita o western clássico, esvaziando-o ainda mais de quaisquer contornos sociológicos e saltando de cabeça no território mítico. Nos filmes de John Ford lançados, mormente, durante as décadas de 1930 e 1940, os índios são representados como extensões da natureza, desprovidos de traços psicológicos ou características que os distingam uns dos outros. Em Bone Tomahawk, eles adquirem uma dimensão quase fantástica, sendo transmutados em figuras demoníacas e traduzindo, grotescamente, a selvageria própria da natureza e tudo aquilo que o edifício da civilização busca reprimir. As mise-en-scènes construídas ao redor deles são elusivas, seus movimentos, algo fantasmagóricos.

É importante salientar que, logo no primeiro ato do filme, somos informados que tais personagens não são representativos da totalidade de nativos americanos que habitam as paradas desérticas do oeste selvagem. Antes, são descritos como pertencentes a uma tribo específica, um núcleo particularíssimo que se destaca por sua irascividade, sua sede de sangue e suas habilidades guerreiras. Essa distinção concede ao filme liberdade para subordinar plenamente a função histórica à função mitológica. Manifestações do não-familiar, os índios de Bone Tomahawk são, mais do que qualquer coisa, monstros de filmes de terror. E é, justamente, a diluição referencial e a ampliação da chave mítica através da incorporação de elementos relacionados a uma tradição cinematográfica que encontra seus precursores em Allan Poe, Lovecraft e outros mestres da literatura de horror, que concede ao filme sua originalidade.

Bone Tomahawk 1

Os protagonistas de Bone Tomahawk são, como mencionado, variantes de tipos clássicos. Interessantemente, o mundo que habitam e defendem é um mundo marcado pelo artifício. Impera entre todos os indivíduos um certo senso de polidez, refletido, por exemplo, no inglês formal e “literário” que empregam. Os enquadramentos de Zahler são rigorosos; a lógica estrutural que impera é causal, focada na plot e na organização e motivações dos heróis.  A partir do momento em que seguem rumo ao deserto, porém, o ritmo do filme é afetado, a montagem se desintensifica, tempos mortos são usados sem parcimônia e, embora o arco dos protagonistas continue, classicamente, a ocupar o centro da obra, sua atmosfera parece se rarefazer. As formas do oeste circundante passam a evocar menos as imagens de Monument Valley e mais o deserto beckettiano de Monte Hellman. Feito febre, Dioniso se infiltra no corpo de Apolo.

Uma vez que os sobreviventes alcançam seu destino – no caso, o covil onde habitam os índios que raptaram a mocinha –, parte substancial da caracterização do filme é alterada. Embora a iconografia relativa aos heróis seja preservada, aspectos do entorno, dos vilões e as ações perpetradas por eles passam a remeter, mais claramente do que nunca, ao universo do terror. E mais: a um ciclo contemporâneo e visceral de terror. Em dada cena, um jovem é erguido pelas pernas e rasgado ao meio como uma folha de papel. Encontramo-nos em território mais caro a Lucio Fulci do que mesmo a Sam Peckinpah ou Sergio Leone. O núcleo “indígena” já nada tem de propriamente indígena. E a posterior vitória do herói – súbita e algo dependente do acaso (ainda que engenhosamente planejada), como costuma ser o caso em boa parte dos mitos e lendas – relaciona-se menos à supremacia de uma raça ou povo sobre outro e mais à sofrida e precária vitória do projeto humano sobre a natureza satânica.

Em 2015, Kurt Russell teve papel de destaque em dois westerns: Bone Tomahawk e Os Oito Odiados (2015) de Quentin Tarantino. Curiosamente, tais filmes parecem se situar em tradições essencialmente divergentes. Enquanto o pós-moderno whodunnit tarantinesco abraça o legado deixado por Leone, Corbucci e outros grandes desconstrutores da década de 1970, pintando um retrato paródico, cínico e brutal da história americana, o western de terror dirigido por Zahler parte da história a fim de transcendê-la, criando, para tanto, uma ponte entre reinos estéticos aparentemente diversos, mas intimamente afins. É possível defender que Bone Tomahawk possui falhas – um certo excesso de esquematismo; a predominância de um estilo distanciado que não permite à audiência se conectar mais visceralmente ao enredo (quase um pré-requisito no que tange ao horror); a irrupção de um desfecho abrupto e, talvez, inverossímil. É também possível refutar críticas dessa natureza, partindo-se do pressuposto de que a obra é feita do material de que se constituem as lendas. Independente do ponto de vista, contudo, parece-me claro que se trata de um impressionante filme de estreia – e um adendo importante a, ambos, o cânone contemporâneo de filmes de terror e do western.