Infiltrado na Klan (2018), de Spike Lee

O que fazer quando não se escolhe as regras do jogo?

Leandro Afonso

Na apresentação de Infiltrado na Klan (2018), novo filme de Spike Lee, uma grua revela inúmeros mortos até apontar para uma bandeira dos Confederados, símbolo de toda uma tradição escravista norte-americana. Na resolução, vemos filmagens reais de um ressurgimento da popularidade de supremacistas brancos, seguidas por uma bandeira invertida dos Estados Unidos, perdendo sua cor. Tanto o início, com a retomada de uma cena de …E o Vento Levou (1939), quanto o desfecho nos mostram imagens que já existiam antes do filme. As primeiras foram feitas no auge do cinema clássico, marcado por obras que romantizavam variações de um filho de imigrantes europeus, valente e desbravador. As últimas mostram a valentia e o desbravamento transformados em belicismo desenfreado e preconceito orgulhoso.

Da mesma forma que não é um absurdo ligar esses dois regimes visuais, me parece que a melhor maneira de analisar o filme de Spike Lee é entendê-lo como uma obra que joga esse “jogo”, que quer uma fatia das imagens e das histórias, para poder torná-lo menos desigual. A imagem subsequente à cena de …E o Vento Levou tem Alec Baldwin, uma referência óbvia a Trump, cujas ideias fazem Ronald Reagan parecer progressista. Reagan foi o presidente (1981-1989) americano à época em que Spike Lee realizou sua obra-prima, Faça a Coisa Certa (1989), também um retrato e uma crítica ao racismo. Faço esse adendo para podermos compreender melhor a diferença da luta atual, tratada em Infiltrado na Klan, em relação àquela vivenciada no fim dos anos 80, já que temos cada vez mais evidências de que a briga agora está muito mais dura.

Assim, não sei se é possível culpar Infiltrado na Klan pelo olhar mais condescendente com quem tem traços do opressor, mas parece jogar junto (Adam Driver, aqui interpreta um branco, mas um branco judeu, num filme em que o ativista negro Kwame Ture cita o rabino Hillel), nem pela denúncia menos generosa à humanidade de quem o oprime. Traçar personagens que pareçam reais, com suas dúvidas e contradições, virtudes e defeitos, se tornou menos importante que contar uma história em que haja um certo direcionamento heroico e uma vingança catártica.

Se acrescentarmos aí a música popular, uma inacreditável história real adaptada a uma narrativa mais potente em dramaturgia, temos uma receita certeira de grandes sucessos americanos que vangloriam, via de regra, personagens brancos: os mesmos filhos de imigrantes europeus valentes e desbravadores. Spike Lee faz isso num filme que demoniza, com boa dose de razão, conceitos racistas, chapando personagens e abraçando convenções, e é ocasionalmente criticado por isso. Neste caso, vem a pergunta: qual o tamanho do problema de abraçar determinadas convenções, narrativas e estilísticas, para fazer um filme que quer criticar determinados preconceitos que, infeliz e inacreditavelmente, viraram convenções? É um problema priorizar a guitarra e uma orquestra conduzida por Terence Blanchard, ao invés de usar variações de Public Enemy? Qual o porém em querer entrar no “jogo” do branco para tentar modificá-lo?

Spike Lee volta a investir boa parte do tempo enumerando grandes nomes negros. Temos o didatismo que se encaixa na narrativa ao ouvirmos a história de Jessie, um caso aterrorizante que aconteceu em 1916, influenciado por O Nascimento de uma Nação (1915), de Griffith, a base de toda uma narratividade clássica até hoje influente e, não por acaso, um épico escancaradamente racista. Um dos trechos do filme exibidos em Infiltrado na Klan é, longe de ser uma coincidência, uma cartela escrita: “Dem free-niggers f’um de N’of am shot crazy”, que pode ser traduzido como “Esses criolos livres são muito loucos”.

Na maravilhosa montagem paralela que o filme propõe, com a presença de Harry Belafonte, a crítica aparece límpida, especialmente se pensamos que são exibidos os dois lados – supremacistas brancos e militantes negros. Todavia, é importante falar dessa cartela de O Nascimento de uma Nação e da questão da liberdade. Spike Lee recebe críticas pela forma mais convencional que escolheu pra filmar e também pelo tom conciliatório que há em determinadas situações. Se ser livre, no caso de uma obra que quer escancarar a ferida (mas não só), significa precisar escolher sempre um caminho pré-definido por determinados ideais, não estaria a liberdade bem próxima do dogma?

Também não deixa de ser bem simbólica, ainda na combinação retrato + crítica, a parte final do longa, que volta a passar o recado. “The black guy is a cop?” é um questionamento simples, direto e preciso de uma sociedade que enxerga no negro um possível criminoso, nunca um policial. Se um negro está querendo imobilizar uma mulher, ainda que ele diga ser um policial, ele não merece crédito, e um branco tem que vir para ter (e levar o) mérito na situação. Não menos simbólico é o final, com Ron Stallworth (John David Washington) e Patrice Dumas (Laura Harrier), o policial e a militante, numa imagem quase onírica, caminhando junto à câmera, apontando uma arma para o futuro. Um futuro em que a KKK e os casos de racismo permanecem vivos e, ocasionalmente, parecem até crescer. Um futuro de uma sociedade que pouco mudou.

“Ah, mas o filme trabalha com certa conciliação que pode ser forçada. Existem brancos legais (Flip) e brancos demoníacos (Felix). É tão chapado assim?”. Em Faça a Coisa Certa, mesmo o personagem de John Turturro ainda detinha algum grau de humanidade, enquanto os personagens de Felix e o policial demitido são apenas caricaturas do pior tipo de ser humano possível. Isso é um problema real em Infiltrado na Klan? Ou, se preferirmos, qual o tamanho desse problema num longa feito exatamente em 2018?

Ao final da sessão, na Mostra de São Paulo, um homem levantou-se e gritou: “Como é que vocês ainda têm coragem de votar em fascista?”. Sua fala poderia ser dita em vários outros países, talvez em todos os continentes. Problematizar de forma suave não tem surtido efeito, trazer as nuances de personagens também não, pois as pessoas não têm escutado – e todas essas questões parecem ser caras a Spike Lee, que reage com esse filme. Infiltrado na Klan assume ser resistência e provocação, utilizando-se de imagens (início e final), ferramentas (conceitos narrativos e de encenação), formas (o filme de gênero) e fórmulas (a vingança catártica) e, com isso, talvez atinja um público maior. Como no caso de Pantera Negra, é difícil mensurar o tamanho real da obra estando imerso nesse mesmo contexto. Porém, são inegáveis sua urgência e sua capacidade de, assim como acontece no filme de Ryan Coogler, jogar o jogo que quase nunca coube ao cinema feito por oprimidos.

Esse me parece ser o grande trunfo de Infiltrado na Klan: ser um Filme do Hoje, com éfe e agá maiúsculos. É domínio de linguagem e de estrutura, é escuta e confronto se passando por um “simples” filme (blaxploitation?) de crime, biográfico, histórico – visão de cinema e visão de mundo. Um longa em que a direção não fica escrava das vaidades autorais e, sim, a serviço daquilo que escolheu fazer e do que escolheu defender. A conciliação ainda pode demorar no mundo retratado, mas uma outra pode existir no cinema. No Cinema.

Halloween (2018), de David Gordon Green

Memórias do abismo

Letícia Badan

Passaram-se 40 anos desde a fatídica noite do dia das bruxas que aterrorizou a cidade de Haddonfield, Illinois, mesma distância em relação ao lançamento de Halloween (1978), filme que impulsionou a carreira de John Carpenter. David Gordon Green dirige a sequência dessa obra-prima num mundo que, antagonicamente, dialoga com o universo livre e ameaçador que rondava as pacíficas ruas norte-americanas dos anos 1970.

Green é enfático. Inicia sua versão com a negação, em princípio, de tudo aquilo que foge do universo central criado por John Carpenter e Debra Hill. Vemos, desde a abertura dos créditos, a lembrança da silhueta vívida da faca sobre a abóbora, que retraça sua força para brilhar mais uma vez na luz soturna do dia das bruxas. E, também nela, uma nova silhueta se forma, o perfil de Michael, ressurgindo incólume como o verdadeiro bogeyman. Michael Myers, o psicopata velado, incansável e insaciável, que busca mais uma vez, sem motivo aparente, retomar os passos de seus surtos psicóticos infantis, reencontrando na figura de Laurie Strode uma obsessão. O filme instaura-se como um novo pilar narrativo para esse tipo de trama tão conhecida do cinema de gênero, sustentado pelo embate entre vilão e heroína. Halloween (2018) cria uma nova trajetória, que segue uma via de concepção clara, baseada em um Michael Myers obstinado pela presa permanentemente alheia de seu contato. Assim como também temos uma Laurie obcecada pelo algoz, que havia tomado dela a liberdade de prosseguir com o caminhar seguro de uma vida média americana.

O início do filme nos carrega ao interior de Smith’s Grove, o hospital psiquiátrico em que Myers encontra-se internado desde 1978, juntamente com a dupla de jovens pesquisadores britânicos (grande MacGuffin da versão de 2018), que está ali para realizar um podcast e compreender os motivos que transformaram Michael Myers no assassino que é. Ali, o mundo parece congelado em meados de 1980. O espaço é de um ceticismo científico evidente, imerso em um espectro de sobrenaturalidade quase retirada de um filme de ficção científica, ou mesmo, se quisermos ser mais precisos, semelhante àquela algidez brutal do isolamento humano característico de Enigma de Outro Mundo (1982), do próprio Carpenter. A atmosfera prevalece dentro da loucura de cada indivíduo, imposta nas marcações do piso na área de lazer da instituição. Os equipamentos eletrônicos, com suas luzes de cores esverdeadas, resquícios de uma tecnologia inexistente no mundo livre dos homens sãos, parecem dizer respeito a um mundo de clausura e estagnação.

Assim é Michael Myers, o monstro inquieto que tanto perturba, por tão pouco ter a oferecer sobre sua condição. O mal puro e concentrado, como já dizia Loomis. Como o espaço que o cerca, Myers é alguém que se mostra intimamente vinculado ao passado, que representa o seu motor de destruição. Ele busca, sem fim, o retorno à cidade natal, onde outrora havia assassinado a irmã, além de diversos outros jovens. Dana e Aaron, os jornalistas, caminham em direção ao psicopata acompanhados do psiquiatra Dr. Sartain. Os personagens erguem em sua direção a máscara, numa tentativa de reaver uma memória distante dos eventos ocorridos no passado. A intenção é descobrir algo que revele alguma explicação sobre a crueldade dos homicídios que cometeu.

Vincent Malausa, na edição de outubro dos Cahiers du Cinéma, ao escrever sobre o filme, afirmou: “Myers não tem vícios como Freddy, nem o amor como Jason, ele é um bloco de nada assustador numa leitura totalmente psicológica, moral e ideológica, um simples objeto de estudo (…) revisitado pelo mito da criança selvagem”. Myers fascina justamente por ser um enigma. É como Loomis salienta, e como aqui já pontuamos, ele é pure evil. Nos anos em que foi tratado na instituição psiquiátrica, Loomis jamais conseguiu extrair dele qualquer indício que o enquadrasse nas chaves clássicas dos quadros de distúrbios psiquiátricos. Nesse tempo, Myers passou pelos cuidados de mais de 50 médicos, como Sartain evidencia. Não lhe sobrou nada, nenhum resquício de humanidade. A máscara anônima que recobre o rosto pouco conhecido, cujas feições vimos apenas em lances ao longo dessas quatro décadas de saga, os olhos tomados pela superficialidade abrupta do negro imaterial, descartam dele qualquer sentimento tido como motivador claro de um psicopata – a gana pela carnificina, o ódio, os vícios, amores, motivos como aqueles que Freddy, Jason e tantos outros pesadelos dos slashers possuíam.

Michael parece contaminar aquele que os cerca com sua loucura aparente, sobre a qual, em contrapartida, possui um domínio lúcido, absolutamente controlado. Loomis se mostrava completamente lunático, aterrorizando as crianças que tentavam adentrar a residência Myers no dia das bruxas de 1978, e Sartain não é diferente. Para ele, a melhor forma de compreender Myers é observando-o agir como um animal na natureza, fora da reclusão hospitalar. Arquiteta o plano para sua fuga e age, como ele, assassinando um dos policiais que cruza o seu caminho.

Mas o filme exibe uma dualidade que reconfigura os aspectos formais do slasher clássico. O longa de 1978, com o enfoque claro no cotidiano de Laurie, transmuta-se em uma alternância clara de focos, em que tanto a presa, quando o predador, possuem identidades importantes. Como Michael, Laurie parece igualmente atada a seu passado. Os grilhões que o mantém aprisionado ao hospital, refletem-se aqui em um mundo de clausura e distanciamento social. Ele, preso na instituição psiquiátrica, com as cercas metálicas que encerram a propriedade do manicômio. Ela, reclusa em uma casa afastada da civilização, espaço envelhecido tanto quanto ela, cercado de armas, de elementos de um passado que hoje pouco parecem lhe pertencer, como o pôster com o autorretrato de James Ensor, que decorava a parede do quarto adolescente.

A casa, toda em madeira, de iluminação sempre tênue, abriga uma vegetação exterior de crescimento desenfreado, que, de forma parelha a Michael, se estabelece como uma fortaleza. Se a branquidão asséptica do hospital desmaterializa qualquer senso de humanidade em seu espaço, o universo habitado por Laurie é sempre outonal, soterrado pelas folhas decompostas das árvores e, portanto, para ela, todo dia é halloween. Ali, armadilhas são postas em locais estratégicos, e o espaço de clausura, criado inicialmente sob o indício de manter viva a chama do trauma ainda presente, transforma-se em uma evidente força de vingança que corrói, como o fogo, tudo aquilo que o cerca. Nada mais prevalece, além da gana por destruir, enfim, aquele monstro tão terrível. São universos completamente opostos e, no entanto, ambos se completam. Isso é pontuado por Aaron, o autor do podcast, em certo momento do filme:

“Será possível que um monstro tenha criado o outro? E embora as barras de ferro e os arames farpados que separem ambos sejam fortes e afiados, as linhas metafísicas são embaçadas e fracas. Ambos existem em isolamento, restringidos pelo próprio medo e ódio que nutrem um pelo outro”

Eis que em meio ao recomeço de David Gordon Green, um contrabando aparece. Embora o filme deixe claro que abdica de todos os elementos narrativos e históricos posteriores à versão de 1978, ele insere elementos que aludem constantemente às produções que antecedem o filme de 2018. É evidente que estamos diante de uma produção que se quer valer do registro afetivo dos fãs e, nesse sentido, os easter eggs do novo Halloween estão todos ali presentes.

Em dado momento, relembramos a clássica fantasia de fantasma que recobre o corpo de Myers no filme de Carpenter. Aqui, ela se faz presente no cadáver de uma garota, uma de suas vítimas adolescentes. Outro signo reconstituído por Gordon Green é a personagem da senhora com o roupão cor de rosa de Halloween II – O Pesadelo Continua (Rick Rosenthal, 1981), que se distrai com a notícia televisiva da fuga de Myers e deixa de lado o sanduíche recém-preparado.

É fato que o remake de 2018 reúne memórias. E o jogo de imagens e referências ultrapassa a simples recriação visual de situações e momentos clássicos da trajetória “halloweeniana”. Laurie e Michael são ambos reflexos daquilo que vivenciaram em todas ou quase todas as versões que seguiram o filme original. Ele, como um ato mecânico, mimetiza as mortes dos antigos ataques. Crava, na parede, o jovem adolescente com a faca ainda cintilando sobre o peito, como fizera em 1978, com o amigo de Laurie pendurado de forma parelha sobre a porta do armário da cozinha. Os personagens jornalistas nos fazem recordar a sequência de Halloween H20 (Steve Minner, 1996), quando mãe e filha dividem o banheiro rodoviário com Michael num posto de gasolina. Laurie, com os atos inconscientes de autodestruição, a reclusão, o refúgio na munição, o alcoolismo, o abandono da filha, traz ecos de um passado oculto, preso nesse abismo da memória.

Halloween 2018 é carregado de passado, e como tal, mesmo que tente, não consegue negar suas raízes e sua trajetória. Fica, como Laurie e Michael, que carregam respectivamente em face e máscara, as marcas do tempo e da idade, dos traumas e de todas as cicatrizes vividas na memória amnésica de quatro décadas, sobre a qual a ação do tempo inevitavelmente vem marcar o seu peso. É um grande filme, que condensa com maestria o tráfico sinuoso pelo qual se deve valer uma sequência. Trafega entre os meandros da narrativa de forma inteligente, esbarrando em indícios, memórias e fragmentos que se instauram aparentemente sem importância, e que consolidam uma criação elucidativa, um olhar atual sobre temas que ficaram em imersão por décadas. É justamente nisso que se estabelece a força de Halloween. E mesmo ao fundo, diante da imensidão negra, é possível ouvir o eco da respiração ofegante que tanto nos assombra.

 

A Fábrica de Nada (2018), de Pedro Pinho

O filme de papel ou a disrupção da história

Larissa Muniz

A imagem cinematográfica, na tentativa de retratar pessoas e eventos, parece estar sempre num limbo entre o espetáculo e a representação genuína (se é que ela existe). De um lado, ela pode incorporar a caracterização superficial dos regimes de visibilidade (a imprensa, a publicidade, o cinema em geral), transformando tragédias em consumo estético. De outro, ela pode, em si mesma, carregar as contradições da própria encenação, expondo a construção artificial imbricada na origem da sétima arte – cutucando, embriagando, fraturando.

É assim que A Fábrica de Nada (2018), assinado por Pedro Pinho, faz do cinema um deslumbre que incomoda por sua intensidade estética, enquanto subverte suas próprias regras de expressão, arquitetando camadas narrativas e formais apenas para destruí-las posteriormente. Nessa construção, o sistema (as instituições e o capitalismo) é pensado como um jogo de ilusões cujas contradições são expostas e, acidentalmente, envolvem o humor e o drama. Assim, a obra se constitui como uma espécie de farsa da linguagem cinematográfica, assumindo as imbricações entre o documental e o ficcional para empurrar suas intenções até o limite e revelar, por meio do afeto e do esplendor da imagem, seu vigor como ferramenta de denúncia e composição sensível da vida e do social.

O caso real de uma fábrica autogerida por operários(as) em Portugal, a FATELEVA, produtora de elevadores, é o substrato para o desenvolvimento desse filme-memória-denúncia-revolução. Para capturar uma espécie de essência do absurdo e do desencanto, em uma situação com aparente capacidade de romper o sistema capitalista, o diretor evoca uma estrutura insana que se questiona constantemente e altera a sua constituição própria, a ponto da incerteza se impregnar na textura do filme e restar apenas uma terna nostalgia. Afinal, se a premissa dessa obra é a revolução, seu desenvolvimento é a inseparável relação entre a revolta e um universo de causalidades e afetações humanas.

O que está em jogo em A Fábrica de Nada é aborrecer as estruturas e lançar um sensível suspiro sobre a incontornável circularidade da história, que inicia levantes para depois suprimi-los e retornar à condição “normal” de poder. O filme oferece saídas não pelos grandes e heroicos atos, mas pelas miudezas que alteram a percepção e iniciam outras rotas de fuga. Por meio de olhares perdidos, relações afetadas e longas caminhadas, o sujeito absorve a água pesada que move a roda do mundo e, mesmo se nada efetivamente mudar, sua subjetividade sai transformada da ilusória empreitada. Por isso, talvez, sequências absurdas e banais sejam tão essenciais para o filme, tais como o súbito plano de um avestruz contra o céu de um campo; os close-ups dos operários apáticos pelo tédio; os trocadilhos infantis entre o operário e o estudioso numa terra de ninguém; a pescaria silenciosa; as conversas tardias sobre o esperma dinamarquês; a face da mulher corada pelo orgasmo. Em suma, toda e nenhuma relação com a greve, a ocupação e a revolução.

A própria estrutura da obra brinca com a ambiguidade da revolta, misturando os agentes da greve com os observadores da mesma. A encenação de personagens operárias (algumas realmente trabalharam na FATELEVA) que ocupam a fábrica de elevadores é misturada com uma narração aparentemente sem corpo que, mais tarde, é revelada como parte de uma conversa entre intelectuais acerca do capitalismo e seu destino insustentável ou inovação eterna. Algumas cenas são assumidamente ficcionais, enquanto outras possuem uma suposição documental, com uma câmera que acompanha a ação e se movimenta entre as personagens de maneira naturalista, destacando suas expressões individuais e sua formação como grupo.

Na articulação entre factualidade/simulação, pouco importa distinguir sob qual lógica o filme está se construindo, porque tudo é assumido como mutuamente documental ou ficcional. As personagens encenam uma situação “real” do passado, tendo que carregar nas interpretações toda a euforia e desamparo de tal responsabilidade histórica. Já as figuras intelectuais, tratadas como deuses do olimpo, que observam do alto a sociedade medíocre, fazem o diagnóstico do mundo sem participar efetivamente da realidade, intocáveis pela podridão desse sistema do qual tanto falam, mantendo uma conversa de jantar, carregada de teor político e pretensões de ação mas, ainda assim, um simples bate-papo.

Nessa imbricação, passado, presente e futuro tornam-se permeáveis à decisão espontânea do agora, o qual carrega a expectativa de afetar todo um sistema de exploração humana, enquanto, simultaneamente, está imobilizado e melancólico pela impossibilidade de agir. É como se a revolução fosse uma personagem invisível, cuja presença é tanto uma assombração quanto uma inspiração necessária. A princípio, seu espírito é transformado no próprio ato de filmar, dirigir e manipular a cena, pela interferência da figura que sempre filmou, dirigiu e manipulou a história e o cinema – a personagem de Danièle Incalcaterra, o intelectual, homem, com um interesse genuíno pela causa que nunca tocará verdadeiramente. Depois, essa mesma revolução é ressignificada pelas pessoas que sofrem mais diretamente os efeitos do sistema capitalista teorizado, como as únicas intérpretes com possibilidades concretas de estremecer suas bases.

Nesse sentido, a narrativa ironiza o papel do teórico e artista que transforma o povo em obra de arte, como uma tentativa de capturar a energia dos movimentos sociais para fingir vivê-la na própria pele, por meio da construção estética e do gozo em manipular suas personagens revolucionárias. É, assim, que o filme novamente zomba de si mesmo, expondo suas falhas incontornáveis sem, no entanto, deixar de buscar um lugar para a arte na transformação de qualquer coisa no mundo.

Por isso, talvez o ponto culminante da narrativa seja uma cena musical, tão absurda quanto coerente, numa narrativa cujas premissas iniciais não antecipam uma apresentação de tal gênero (bastante hollywoodiano). A única forma das personagens operárias lidar com uma notícia que significaria o sucesso da autogestão seria cantar ridiculamente. Entretanto, após o quase-final da performance, a personagem do intelectual se revela também um diretor, que avalia a cena e sugere alterações. É o ápice da sétima arte como espetáculo, no qual o final pressupõe uma resolução feliz. Contudo, em A Fábrica de Nada, isso ecoa como um grito do cinema que, assumindo-se como imagem em construção, nega o gozo completo do show ilusionista, quebrando com a suposta espontaneidade da cena e expondo o dispositivo, a câmera.

Tal interpretação resume o movimento instável do filme de centralizar a ficção para, depois,  jogá-la às margens, evocando a eterna dialética patrão e empregado, cinema-espetáculo e cinema-verdade, racionalidade e sensibilidade, opressão e revolução. O filme não dá respostas para nenhum dos lados, permitindo-se caminhar entre os dois, difundindo, misturando, bagunçando e transformando as fronteiras bem estabelecidas numa miscelânea metalinguística da imagem cinematográfica, da revolução e do ser humano enquanto sujeito social.

É a mulher, Carla, esposa do protagonista, José, que parece centralizar uma possível saída à espiral da história. De modo geral, seu papel pode ser considerado ambíguo. Com seu prazer, temos um dos primeiros planos da narrativa, assim como esse mesmo deleite nos conduz a uma das sequências finais. Nessas cenas, assume-se a linguagem do espetáculo, e a imagem é transformada numa pura admiração da beleza da mulher cinematográfica – com as bochechas coradas de sexo, o olhar decepcionado ao marido gentil e distraído. Carla é uma fiel esposa que não se intromete na greve do marido e vive suas frustrações pela ausência do homem com a amiga, enquanto trabalha como manicure e cuida do filho. Essa mulher, não envolvida na revolução da autogestão, é, de certa forma, a-histórica: o mundo está se transformando e ela se mantém à parte das mudanças.

Entretanto, tal a-historicidade, inicialmente redutora a uma representação complexa da figura feminina, é ressignificada no contexto de um filme desiludido com a história. Carla está às margens da ação, fora do jogo documental com os intelectuais ou a revolução dos operários, traçando seus próprios caminhos, e se recusando, talvez, à permanência do insistente mito de Sísifo, o qual empurra a pedra esperando que ela não desça novamente. A personagem, ao final, recusa sutilmente o homem, indicando desejo de sair daquele meio do nada, onde a revolução supostamente aconteceu e aconteceria novamente.

Entre tantas desorientações e possibilidades de linhas de fuga, a história, as personagens e o próprio filme são a fábrica que, no fim, desmorona como se feita de papel.

A Balada de Buster Scruggs (2018), de Joel e Ethan Coen

Relatos Selvagens do Oeste mítico

Odorico Leal

N’A Balada de Buster Scruggs (2018), os irmãos Coen retomam mais uma vez o universo dos westerns, destilando seis contos/curtas meticulosamente montados, cujos enredos, partindo de situações típicas do gênero, conseguem, em conjunto, expandi-lo, imprimindo ao Oeste mítico uma metafísica a um só tempo grave e lúdica, de ressonância shakespeariana.

Na primeira peça, a mais ligeira da coletânea, ataca-se o tradicional motivo do pistoleiro mais rápido do Oeste – aqui, o cantante Buster Scruggs, cuja destreza no tiro só se compara à habilidade de atordoar adversários com ginásticas verbais que preparam o desfecho invariavelmente fatal. Scruggs passeia pela típica cidadezinha ensolarada do Velho Oeste, multiplicando cadáveres com garbo e serenidade, algo assim como uma versão festiva do psicopata de Onde os Fracos Não Tem Vez (2007). Mas não tanto: Scruggs está fincado dentro do gênero e só ataca sob ameaça. A consciência segue limpa. Sendo a mais cartunesca das histórias, bem alinhada a certo veio da obra dos Coen, é também a única que apresenta uma clara lição de moral: por mais rápido e mortal que seja o pistoleiro, aparecerá sempre outro, ainda mais rápido e ainda mais mortal. Essa lição, contudo, serve apenas aos assuntos humanos e não encerra a história. Segue-se o epílogo musical cômico-fantasioso, com o agora defunto Scruggs em dueto vocal com o próprio algoz. O tema da canção é a viagem ao Paraíso. Em voice over, Scruggs, de harpa na mão, reformado na glória divina, reflete que deve existir “algum lugar lá em cima onde os homens não são desprezíveis”, pois, caso não exista, “de que mais tratariam todas as canções?”.

Esse derradeiro questionamento metafísico de Scruggs paira sobre as demais histórias da coletânea, todas elas ocupadas de uma forma ou outra com o sentido do padecimento humano num universo indiferente e violento, onde o golpe da morte é sempre imprevisível. E, a cada história, a pergunta de Scruggs se depara com um aspecto mais cruel e mais absurdo da existência, e a resposta se torna cada vez menos lúdica, menos fantasiosa – há uma espécie de gradação de insolubilidade. Na história seguinte, o assaltante de bancos – outro motivo clássico do faroeste –, vai de uma forca à outra, já calejado por subsequentes reviravoltas de vida e morte. Em vez do número musical e da ascensão fantasiosa aos céus, o único bálsamo para o padecimento da vida aqui é a visão mezzo beatífica da “moça bonita” na multidão, que lhe sorri virginalmente, como uma promessa solitária, um átimo de segundo antes do enforcamento.

Na terceira peça, a representação de um mundo marcado pela injustiça e o sofrimento, permeada pelo timing cômico deliciosamente impertinente dos Coen, alcança o paroxismo. Em palcos de lona montados sob os céus noturnos do Oeste, o empresário circense sem escrúpulos interpretado por Liam Nelson carrega literalmente nas costas a atração de cada noite: um jovem ator inglês, sem braços nem pernas, maquiado e vestido em estilo gótico, que recita textos clássicos da língua inglesa, de Shakespeare à Declaração da Independência, passando pela história bíblica de Caim e Abel. A plateia – sempre uma ralé de todas as idades e procedências, na qual rapidamente nos integramos –, acompanha entre a perplexidade e a comoção cada sílaba emitida pelo ator com absoluto virtuosismo. Os textos selecionados – uma espécie de greatest hits literários – são duplamente pertinentes, pois tocam ironicamente tanto a dor particular do personagem que os recita (como soa mais cruel, nessa situação esdrúxula, o verso de Shelley: “duas imensas pernas de pedra, sem tronco, perdidas no deserto”), quanto os desajustes e desconcertos do universo social que o filme abarca. A história de Caim e Abel remete à discórdia original e à inveja entre irmãos que leva ao primeiro assassinato, conflito que se reproduz por toda parte num Oeste feroz, banhando de sangue. O soneto 29, de Shakespeare, reapresenta o padecimento no inferno humano – também, aqui, atiçado pela inveja (“a desejar daquele homem a arte, e de outro o escopo”) – em tensão insolúvel com a esperança de um bálsamo, simbolizado no poema pela lembrança da amada (“pois teu doce amor, relembrado, tanta riqueza traz”) – amada que é apenas outra face do Paraíso, pois todas as canções, na intuição inicial de Scruggs, são de certa forma odes ao Paraíso perdido. A figura do ator romântico sem braços nem pernas, contudo, não encontra nenhum alívio, nenhum sopro lúdico ou sorriso cúmplice: as cenas em que o empresário o alimenta ou o auxilia com as necessidades fisiológicas básicas, em vez de apresentar algum semblante humanitário, sugerem, no final, apenas um homem de negócios cuidando da manutenção do seu curioso boneco de maravilhas, que, durante toda a história, só fala quando no palco, ocupando-se nas horas vagas apenas em olhar melancolicamente para o desastre da própria existência sem salvação nem sentido, que se encerra no fundo do rio, quando o empresário o troca por uma galinha capaz de realizar cálculos matemáticos.

O desfecho é tão repugnante que só a discrição da elipse narrativa o torna tolerável. E, no entanto, há algo de conto de fadas, que se reforça pela maquiagem gótica, a atmosfera mágica do palco e pela recorrência de um dos monólogos mais conhecidos de Shakespeare, retirado de “A Tempestade”, com que o ator encerra os espetáculos e que parece ser o ponto de vista metafísico que de fato triunfa em meio às ambiguidades contidas nas histórias de A Balada de Buster Scruggs: “Estes atores, / como os preveni, eram todos espíritos e / evaporam em pleno ar: / e como o tecido insensato dessa visão / (…) hão de se dissolver e, como este cortejo insubstancial desaparecido, não deixarão vestígios.” Apegos humanos são, portanto, inúteis. Tudo são apenas “revels” – divertimentos, brincadeiras, por mais sombrias e desesperançadas.

O quarto “conto”, contrapondo-se ao desfecho sinistro e ao tom noturno do anterior, abre com uma paisagem matinal idílica de regatos de água límpida e corujas fantásticas, cenário para outro lugar-comum do Meio Oeste: a busca pelo ouro. É Tom Waits quem encarna o velho garimpeiro arquetipal, perdido aqui na fronteira do mundo, no encalço de “Mr. Pocket”, um bolsão de ouro que se esconde em algum ponto à margem do rio. A solidão é tão descomunal que o personagem parece à beira da esquizofrenia. Mas, em vez da habitual loucura provocada pelo esforço inútil, o garimpeiro, de fato, encontra o bolsão de ouro, mas só para tomar parte mais uma vez numa reedição da história de Caim e Abel: é baleado pelas costas por um pistoleiro parasita e traiçoeiro. Segue-se outra reviravolta e um desfecho em aberto que disfarça o final feliz, como se acenando para a história de abertura. Visualmente, é talvez a peça mais deslumbrante das seis.

A penúltima peça é uma história de amor frustrado, que reforça, no diálogo cortês entre os amantes, o tema do padecimento humano e a reflexão sobre seu sentido. Nesse ponto fica irresistível notar que, embora não seja um filme político, ao retomar os arquétipos do Meio Oeste no atual clima cultural de guerrilhas identitárias que orientam cada vez mais os rumos do cinema contemporâneo, o filme dos Coen encontra frescor justamente ao recorrer ao universo patriarcalmente saturado dos westerns, sem, contudo, fazer as esperadas concessões a demandas revisionistas: o ponto de vista é sempre o ponto de vista do homem branco; os índios, quando surgem, são apresentados como forças de caos e violência, ameaçando a pequena e frágil comunidade cristã, representada pela caravana; a mulher transparece como a donzela em perigo, mas mais sagaz e psicologicamente complexa do que o irmão iludido; e o herói segue o estrito código cavalheiresco, mesmo em meio à barbárie circundante. O modo como os Coen representam o desabrochar da confiança e da cumplicidade entre os dois amantes, a forma como os diálogos se fundamentam não na paixão fulminante e libertadora, mas na sensata união de mentes e almas em prol de uma vida segura e correta, auxiliada pela crença religiosa, tudo é encenado sem ironia, num grau de pureza comovente, pureza que depende dos papeis sociais tradicionais que cada amante acata e encena à perfeição, como se fosse uma segunda natureza. Nesse ponto os Coen parecem estar concedendo a certo público tradicional americano a confirmação da superioridade de uma ordem social e de um imaginário cultural perdidos. O intuito dos Coen, contudo, não é político, mas estético-narrativo. Precisam estabelecer esse mundo de pureza espiritual, não para celebrá-lo, mas para encenar uma perversa variação da lenda de Romeu e Julieta, ou seja, para destruí-lo em prol de um sádico gozo artístico, que só pode ser conquistado pela construção não irônica daquele universo ideal. Mantém-se, assim, magistralmente apolíticos.

A última peça ecoa os temas anteriores, trasladados para uma espécie de barca do inferno, representada aqui pela carruagem onde se reúnem um primitivo caçador de peles para quem a humanidade é toda ela igual, como um bando de lobos; uma senhora carola segundo quem o mundo se divide entre pecadores e virtuosos; um francês que subverte e questiona tudo na melhor tradição libertina; e, por fim, uma dupla de caçadores de recompensas, pragmáticos, mas atentos ao sofrimento e, sobretudo, às ilusões humanas. Os diálogos são magistrais, e, como na história do ator sem braços nem pernas, logo nos vemos no papel de audiência para a qual se dirige o monólogo final do caçador de recompensas: quando comenta o olhar perdido das vítimas e como gosta de olhá-las nos olhos para vê-las “tentando negociar a passagem deste mundo para o outro”, esforçando-se para “dar algum sentido a tudo”, parece que é também para nós, espectadores, que diz aquilo, engajados como estamos em “dar um sentido” às perplexidades do filme que termina, às correntes subterrâneas de emoções que acabamos de atravessar, ao mundo fictício que estamos em vias de abandonar – como se estivéssemos prestes a adormecer ou a acordar de um encantamento muito parecido com o encantamento da própria vida: um tema, que é também uma técnica dramática de expansão do palco para abarcar o real – um jogo lúdico, mas também profundamente sério, com o espectador, próprio do teatro de Shakespeare, que, aqui, leva o universo do Velho Oeste a fronteiras desconhecidas.

Primeiro Homem (2018), de Damien Chazelle

Espelhamentos subjetivos

Daniel Rodriguez 

Neil Armstrong tornou-se imortal no momento em que seu pé tocou a superfície lunar, em 20 de junho de 1969. Na ocasião, proferiu o famoso dito “um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”. Salto este que, naquela ocasião, finalmente dava a dianteira aos Estados Unidos na corrida espacial contra a URSS, que até então havia desbancado os americanos em todas as empreitadas extraplanetárias dignas de nota.

A cinebiografia de Armstrong, dirigida por Damien Chazelle e escrita por Josh Singer, traz para o cinema a história de vida do astronauta segundo recorte feito por James R. Hansen, acadêmico e escritor americano, em seu livro “O Primeiro Homem: A Vida de Neil Armstrong”. A adaptação é composta por duas ramificações que correm em paralelo, sendo uma delas as missões junto à NASA e seus bastidores, e a outra, sua dinâmica familiar. O modo com que Chazelle guia essa história se assemelha aos seus trabalhos anteriores, ao mesmo tempo que se mostra bastante diferente.

É interessante ressaltar que Chazelle ascendeu enquanto cineasta graças ao sucesso de público e crítica de Whiplash – Em Busca da Perfeição (2014) e La La Land – Cantando Estações (2016), ambos agraciados com diversas premiações. Em comum, os dois filmes trazem uma concatenação absoluta entre imagem e som, cinema e música.

Em Whiplash, isso é especialmente observável na sequência de encerramento, em que o personagem vivido por Miles Teller atinge uma epifania performática enquanto executa o jazz de Duke Ellington em um ritmo apenas comparável ao da própria montagem do filme, que doma a explosão dos personagens em cena. La La Land impressiona ao concluir a trama por meio de uma condensação das diversas possibilidades estéticas do filme, ao mesmo tempo que dá vida e movimento ao estado emocional de seus personagens principais, expostos às contingências de um futuro que nunca será.

Os minutos iniciais de O Primeiro Homem (2018), assim como todas as cenas subsequentes retratando as missões espaciais, também se fazem valer de uma poderosa e impactante associação entre imagem e som, que busca expor as vivências de Armstrong em primeira mão, em toda sua tensão e estresse. Se, anteriormente, Chazelle optou por recorrer à montagem e à mise-èn-scene em harmonia com as opções musicais, aqui se cola ao ponto de vista de Armstrong, utilizando-se de planos escuros e fechados, presos no interior da cabine de uma aeronave rumo ao espaço. É nesses instantes, bem kubrickianos, com suas peças de metal, borrões de luz e barulhos sempre crescentes e ensurdecedores, devidamente potencializados pela tecnologia IMAX, que a pressão sobre o astronauta ultrapassa os limites da tela e recai sobre a audiência. Ao mesmo tempo que intenso e comovente, esse é a representação mais profunda possível do personagem, no geral tratado como um figurão calado e distante.

Fora do ambiente profissional próspero, Armstrong lida com a trágica perda da filha pequena, enquanto tenta ainda ser um pai para os outros dois filhos e um marido para sua esposa. Se as cenas no espaço lembram 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), a representação do cotidiano do astronauta segue um rumo bem distinto, remetendo a Terrence Mallick, mais especificamente a A Árvore da Vida (2011). Ambos tratam do mesmo tema, uma família suburbana sessentista que oscila entre momentos de perfeição idílica e pequenas disfuncionalidades. Assim como fez Mallick, Chazelle frequentemente escolhe uma filmagem de câmera na mão, com bastante movimento e liberdade, buscando uma conexão intimista, com luzes  que remetem a um sonho e uma montagem no estilo colagem, que salta entre diferentes situações e momentos, almejando não contar o que aconteceu nessas ocasiões, mas expor como essas pessoas se sentiram ali.

Os diálogos e silêncios entre Neil e a esposa Janet, por sua vez, são enquadrados de modo parecido com as cenas entre Sebastian e Mia, em La La Land. Observamos os dois casais no ambiente doméstico, sentados à mesa, em meio a discussões e pequenas demonstrações de afeto. Porém, se lá o casal vive uma relação permeada por canções que exaltam seus sentimentos e sonhos, aqui há uma apatia profunda, denunciada pelas reações contidas, olhos que não se encontram e escassez de toques.

O texto de Josh Singer, que tem em seu currículo filmes como The Post – A Guerra Secreta (2017) e Spotlight – Segredos Revelados (2015), notadamente burocráticos, frios e com uma distância que beira o documental, se aproxima bem dessa personalidade do astronauta, historicamente descrito como simples e humilde, apesar de seu feito. A escolha de Ryan Gosling para o papel sacramenta a representação de Armstrong como um homem contido e sereno. Talvez o momento em que isso se torna mais claro seja a cena em que ele chora pela morte da filha, às escondidas, lutando contra as lágrimas.

Estranhamente, essa postura do protagonista parece tornar-se um espelho diante do qual todos os outros personagens se tornam tão distantes quanto o próprio Armstrong. Se, durante as missões espaciais, as sequências são vibrantes, representando feitos homéricos, as relações humanas são majoritariamente ditadas por uma melancolia contínua, como se nada realmente importasse no fim das contas. Se a alunissagem parecia impossível, voltar para a terra – ou colocar os pés no chão – parece, no mínimo, tão difícil quanto.

Esse ar de dúvidas é um pouco acentuado em uma ou outra cena relacionada a manifestações políticas que questionam as operações da NASA e do governo Americano. Mais especificamente,  em dado ponto do filme, um negro do movimento hippie interpela seu público sobre o porquê de estarem sofrendo diariamente nas ruas da América, enquanto o homem branco passeia pela lua. Essa inserção parece existir mais como opção de montagem para representar uma passagem de tempo ou outro artifício plástico, quiçá para oferecer alguma contextualização do período de guerra fria e guerra do Vietnã, já que, num grande esquema, tem pouco ou nenhum valor dentro da narrativa e da estética do filme.

Quando finalmente chega à lua, talvez o maior feito realizado pelo homem, Armstrong parece ter alcançado uma realização pessoal. Ele se isola do companheiro de missão, Buzz Aldrin, ficando o mais distante possível de tudo e todos – o mais distante e só que qualquer outro ser humano jamais esteve.  Ali, ele finalmente consegue processar a perda da filha, sentimento transformado em ato quando ele solta a pulseira da menina em uma cratera. Um adeus como nenhum outro.

A frieza totalmente banal com que Neil e Janet se reencontram ao final da missão Apollo não condiz em nada com a grandiosidade do ato realizado por ele, pouco antes, reduzindo-os à mesma melancolia de outrora, regida por um amor que aparenta ser pura fragilidade e incerteza.

Em retrospecto, percebo ideias conflitantes, que funcionam bem, no geral, mas não dispõem de tanta harmonia quanto os outros filmes de Chazelle com roteiro dele próprio, assim como os filmes escritos por Singer, com direções mais coerentes com sua própria proposta de cinema.

Edição 6

Editorial – por Fábio Feldman e Roberto Cotta

Temáticos

#6. Realismo Poético Francês

Ensaios

Lançamentos

Livres

Especial

Editorial Edição #6

Memória é chama que não se apaga. Por mais que tenham havido esforços para que o realismo poético francês fosse historicamente soterrado, muitos de seus filmes permanecem essenciais e seus principais cineastas reverberam até hoje, embora costumem ser menos lembrados do que deveriam. O sexto número da Rocinante homenageia esse contexto cinematográfico, trazendo um dossiê composto por sete críticas, que analisam as obras A Última Cartada (1934), de Jacques Feyder; Paixão Criminosa (1935), de Pierre Chenal; O Crime do Senhor Lange (1936), de Jean Renoir; Camaradas (1936), de Julien Duvivier; A Mulher do Padeiro (1938), de Marcel Pagnol; Águas Tempestuosas (1941), de Jean Grémillon; e Os Visitantes da Noite(1942), de Marcel Carné. Há também um ensaio sobre as possibilidades poéticas do movimento e outro sobre os aspectos trágicos presentes em seus filmes. A seção conta ainda com um texto em formato livre relativo à obra de Jean Vigo.

Além disso, esta edição apresenta críticas de filmes lançados em circuito comercial nos últimos meses. Vale ressaltar que dois deles são obras brasileiras que trafegam pelas esferas do horror, consolidando a trajetória de seus respectivos cineastas. As Boas Maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra, ganha texto assinado por Larissa Muniz, enquanto Animal Cordial (2017), de Gabriela Amaral Almeida, é examinado por Fábio Feldman. Por sua vez, Daniel Rodriguez avalia as escolhas estéticas de Hereditário, terror americano de Ari Aster, e Ilha de Cachorros (2018), nova animação de Wes Anderson. Já Letícia Badan investiga Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017), da escocesa Lynne Ramsay, e Adolfo Gomes esquadrinha A Câmera de Claire (2017), uma das mais novas obras-primas do coreano Hong Sang-Soo.

Na seção Livres, Fábio Feldman e Duda Gambogi escrevem sobre, respectivamente, o clássico O Criado(1964), de Joseph Losey, e Os Amantes da Ponte-Neuf (1991), de Leos Carax. Feldman traz também um resumo do primeiro ciclo de exibições do Cineclube Rocinante, realizado em parceria com a Fundação Clóvis Salgado e a gerência do Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte. Marcando sua estreia em nosso corpo redatorial, Maria Ines Dieuzeide analisa três obras distintas de Claire Denis. Déficits históricos fizeram com que Letícia Badan e Pedro Veras dedicassem suas atenções a obras raramente repercutidas dos mestres Alain Robbe-Grillet e Nelson Pereira dos Santos. Por fim, temos a cobertura de Larissa Muniz sobre os filmes exibidos no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtas BH).

Fábio Feldman e Roberto Cotta

Águas Tempestuosas (1941), de Jean Grémillon

Entre dois mundos

Flávio C. von Sperling

É do céu que chegamos em Águas Tempestuosas (1941). No primeiro plano, aéreo, somos atraídos, feito mariposas, a uma luz acesa. É lá onde é celebrado um casamento de um marinheiro, pouco antes da tempestade interromper a cerimônia e chamar toda a tripulação do Ciclone de volta ao mar. O grupo, masculino, operando sob estrito código de conduta, isolado de algum mundo, sob a égide de um líder paternal (para o bem ou para o mal), lembra-nos um típico grupo hawksiano. No entanto, diferentemente das trupes de Grant (O Paraíso Infernal (1939)) ou de Wayne (Rio Vermelho (1948) ou Hatari! (1962), por exemplo), a de Gabin vive o isolamento mais como sina que como missão. São homens do mar, por natureza e destino. Desarticulados em terra, vivem sempre no iminente rompimento entre os dois mundos. Ciumento, o mar parece reger as vidas daqueles que lhe pertencem. O vento e a chuva, secretários do mar, são o raccord entre os dois mundos. Caprichosos e temidos pelas mulheres em terra, abrem e fecham portas e janelas ao seu bel prazer.

O fatalismo é velho conhecido de quem já passeou pelo cinema francês da década de 1930 (Remorques é projeto de 1939, mas teve sua feitura interrompida pela deflagração da Segunda Guerra e pela posterior invasão dos nazistas à França). Aqui, no entanto, ele se apresenta de uma maneira especialmente irônica, quase cruel. Toda sugestão de escolha é ilusória. Laurent (Jean Gabin) crê ter em suas mãos a escolha entre Yvonne (Madeleine Renaud) ou Catherine (Michèle Morgan), a mulher que veio do mar, entre a aposentadoria ou a vida a bordo do Ciclone. Yvonne crê que o marido em terra mitigaria sua enfermidade, não percebendo que sua morte é sacrifício incontornável para que o destino (aquele traçado por “essa mão desconhecida e vaga”, como escreve Vicente de Carvalho, o poeta do mar) se cumpra. No entanto as portas que se abrem, oferecendo-se como possibilidades, logo se fecham para que as peças sigam seu curso. A própria câmera de Grémillon pelo que enquadra e, sobretudo, deixa de enquadrar, por vezes parece sugerir outros caminhos, para logo mostrar-nos que não, não há escape. Nos seus recorrentes travellings para trás, a câmera parece rebocar as personagens para um rumo por ela já conhecido, caminhos já desenhados para as personagens, como se zelasse pelo cumprimento do destino. Catherine, corporificação poética do mar, mais nereida que sereia, é a única figura que parece saber de sua função, a de um certo desmantelamento de relações, necessários para que as personagens, peões de um jogo marcado, cumpram, por sua vez, suas próprias funções.

O terreno aqui é o tecido das Moiras, permeável e atravessado por fantasmas, mas de trama inquebrantável. A matéria-prima de Remorques é a linha, o fio, a corda. Laurent pertence ao mar, Yvonne tem que morrer – ligação que se rompe como a corda que decepa os dedos de Poubennec (Marcel Duhamel), o recém-casado, em alto mar. Yvonne se espanta quando ouve que o amputado voltará ao mar. O que mais ele poderia fazer? Ficar em terra? “Tricotar?”, pergunta Laurent a sua Penélope avariada. Ele também é do oceano, feito os marujos de Caymmi que vivem e morrem no, pelo e para o mar. A estes homens, restam a elegia, a amarração mútua – a unidade que os faz suportar sua sina (“Pessoas infelizes se reconhecem facilmente. Seria triste se não fosse assim”, observa o fiel tripulante do Ciclone), e o movimento em direção ao fim. Em Grémillon, só há poesia no movimento. A mortificação é poética, pois é processo contínuo ao qual seus personagens estão condenados, já a morte é estanque. Não nos interessa pois não faz mais parte do fluxo. Grémillon nos poupa da morte de Yvonne, num corte nos tira do quarto e nos leva àqueles que remanescem. Na banda sonora, ouvimos o urro do Ciclone, no porto, chorando a mofina de seu capitão. A cinesia na diegese, dentro ou fora de quadro, também é contínua em Grémillon: corpos e elementos sempre em motilidade. Mireille Latil-Le Dantec observa que Grémillon “renuncia a perfeição do momento a fim de descobrí-la no movimento” e acrescenta que, como Murnau, Rohmer e Bresson (eu juntaria Hawks à lista), Grémillon está entre os diretores mais traídos pelo frame, pelo quadro congelado. Como é possível dar conta, mesmo que minimamente, do que é o plano das sombras das nuvens que correm sobre a areia da praia (uma espécie de plano-síntese do filme) pinçando apenas um de seus fotogramas?

Libertado pela morte de Yvonne, pelo fio rompido, Laurent pode, então, sem epifania, fazer a roda da fortuna se mover novamente, retornar às suas atribuições para a consumação de seu destino. Na sequência que é o paroxismo da elegia de Grémillon, acompanhado dos fantasmas da tempestade, ao som de cânticos lúgubres, ele segue de volta à sua trupe e à sua embarcação. Nos despedimos de Laurent em um plano que imediatamente nos remete à Garbo de Mamoulian ao final de Queen Christina (1933) – outra fita de sacrifícios. E la nave va

Edição 5

Editorial – por Fábio Feldman e Roberto Cotta

Temáticos

# 5. Giallo

Ensaios

Lançamentos

Livres

Especial

Editorial Edição #05

Um gênero, um filone, uma variação ultra-estilizada do suspense/terror hitchcockiano; um verdadeiro caldeirão artístico no qual thrillers alemães, novelas pulp, emanações românticas, trilhas sonoras exuberantes e as cores de Kandinsky se misturam; um espelho de seu tempo e uma contínua fonte de inspiração para autores de diversos outros contextos. Tudo isso e muito mais, o giallo é a síntese perfeita do sublime e do grotesco, do sensacionalismo e da sofisticação formal, um universo fílmico a um só tempo monotemático e infinito, dada a beleza e a inventividade de suas composições.

Nesta nova edição da Rocinante, homenageamos esse universo, publicando críticas inéditas de filmes assinados por autores como Lucio Fulci, Umberto Lenzi, Sergio Martino e Francesco Barilli, bem como ensaios dedicados à Trilogia dos Animais de Dario Argento, à construção histórica do giallo e ao diálogo estabelecido entre o gênero e as artes plásticas. O número também possui uma entrevista exclusiva com Luigi Cozzi, especialista, crítico de cinema, colaborador constante nos filmes de Dario Argento e diretor de diversas obras, dentre elas o curiosíssimo Matador Implacável (1975). Através deste volume, buscamos abrir vias particulares de contato com tais filmes, tantas vezes vilipendiados pela crítica, tomados como exemplos menores do cinema popular italiano. Atingindo, em seus momentos mais intensos, o ideal de “cinema puro” idealizado e almejado por Alfred Hitchcock, o giallo é “um gênero em que se mata e se morre pelo olhar, e no qual a morte é, enfim, a grande virtude da arte.”, como sugere Daniel Dalpizzolo, um de nossos novos redatores.

Além do horizonte temático desta edição, apresentamos ainda críticas de lançamentos como O Dia Seguinte (2017), de Hong Sang-Soo; Visages, Villages (2017), de Agnés Varda e JR; Três Anúncios para um Crime (2017), de Martin McDonagh; Western (2017), de Valeska Grisebach; The Square – A Arte da Discórdia (2017), de Ruben Östlund; Confronto no Pavilhão 99 (2017), de S. Craig Zahler; e Zama (2017), de Lucrecia Martel. A seção conta também com a estreia de Gabriel Martins, dividindo sua leitura sobre Pantera Negra (2018), de Ryan Coogler. Diante desse conjunto de textos, torna-se ainda mais notória a variedade de correntes de pensamento e estilos de escrita manifestados pelo corpo redatorial da revista, condição autônoma que muito agrada seus editores.

Por fim, na seção Livres, Adolfo Gomes perscruta os múltiplos caminhos da trajetória documentarista de Glauber Rocha; Douglas König de Oliveira investiga a vida e a obra de Louis Le Prince, possivelmente, o verdadeiro “pai do cinema”; Leandro Afonso escreve dois ensaios, um sobre a obra de Lucrecia Martel e outro aproximando John Carpenter e David Robert Mitchell; Joana Oliveira, movida pelo passamento do grande Fernando Birri, publica belíssimo trecho de sua dissertação sobre outro gênio realista, Cesare Zavattini; Roberto Cotta analisa o iconográfico Pelo Amor e Pela Morte (1994), de Michele Soavi, filme essencial no processo de formação de diversos cinéfilos; e Larissa Muniz, mais uma nova integrante de nossa equipe, escreve sobre as famílias ficcionais de três diferentes autores: Wes Anderson, Michael Haneke e Lucrecia Martel.

Entre o final de julho e o começo de agosto, um adendo especialíssimo sobre crítica cinematográfica será adicionado à corrente edição. Por ora, aproveitem os textos!

Fábio Feldman e Roberto Cotta

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