Confronto no Pavilhão 99 (2017), de S. Craig Zahler

Descida aos infernos

Adolfo Gomes

Se acreditamos na dimensão física – tátil mesmo – do cinema, então Confronto no Pavilhão 99 (2017) é como a própria musculatura exposta desta arte. Nada escapa à retidão material de S. Craig Zahler. O cineasta norte-americano retesa cada fibra do filme com acachapante objetividade. É um trabalho volumoso, que se ergue sobre nós, em constante operação de encarceramento.

A história de amor que principia a queda, a descida aos infernos (a cela 99), é desidratada de qualquer idealismo. Um casal em ruínas quer reconstruir sua morada em outro lugar, ter um filho e continuar a vida juntos, a despeito das cicatrizes que vão levar consigo, sobre os corpos. Se há afeto ali, só pode ser infundido nos gestos exteriores – “afaste-se de mim, me dê um tempo, por enquanto”, diz Vince Vaughn a Jennifer Carpenter, após a reconciliação.

Para confiar nesse homem não será preciso fé, nem empatia. Sua integridade parece prescindir da usual composição dramatúrgica, vem de antes, do seu movimento em cena. O personagem é algo rude, intransigente, inarredável. Ao longo da narrativa, vai fundamentar em gestos (e em pouquíssimas palavras), o tipo de amor que tem a oferecer – e a defender. Do tipo capaz de gerar outra vida e garanti-la vir à luz à custa de si mesmo, da sua aniquilação na treva.

O automatismo de Vaughn, porém, não o isenta de cumprir a via-crúcis do herói trágico, nem o afasta do declínio e perdição. Cabe-lhe cerrar os punhos e fazer correr, entre socos e pontapés, as engrenagens da violência. O que, nesta altura, já lhe é também tudo que resta.

Ecologia vigorosa essa em que metal, vidro, sangue, osso, eletricidade e carne convergem para um vácuo inescapável; alinhada entre a tradição cinematográfica ateísta de Arthur Penn, Rafaelson e Siegel, e o ascetismo de Bresson e Dreyer – quaisquer desses polos, registre-se, não admite evasão.

Confronto no Pavilhão 99 pode ser visto, no seu entrecho gore, como um filme de horror, a serviço da premissa fulciana de que a alma não passa de um engodo (onde ela está, ao fim dos trabalhos de mutilação?). Mas, é, sobretudo, um filme de prisão, que estreita, estreita, até afundar-se num buraco abissal. No fundo dele, vislumbra-se a silhueta de um prisioneiro. Não é Kurt (Apocalipse Now (1979)): “Terás um filho, estás salvo!” É a promessa que ouve. Existe prova maior de vida? Pode existir algo mais materialista?

O Amarelo é a Cor do Medo

Marcelo Carrard

O cinema italiano pós-Segunda Guerra Mundial é marcado pela consolidação do neorrealismo e a imposição de uma nova ética e estética cinematográficas. Ainda no início da década de 40, um conjunto de filmes fundou esse movimento de grande influência para a criação dos “novos cinemas” mundo afora. Nesse contexto, Obsessão (1943), de Luchino Visconti, Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, e Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, por exemplo, são três obras fundamentais que ganharam a admiração do público e da crítica. Paralelamente ao renascimento da indústria cinematográfica italiana, marcada por um grande volume de filmes produzidos e uma diversidade de gêneros, começa a surgir uma produção cinematográfica mais popular, na qual filmes com temáticas ligadas ao universo fantástico começavam a ser forjados pelas mãos de diretores como Riccardo Freda e Mario Bava (por sua vez, filho do mestre dos efeitos especiais Eugenio Bava, um dos nomes responsáveis pela confecção do clássico Cabíria (1914), de Giovanni Pastrone).

Como os filmes de horror eram proibidos pelo regime ditatorial de Benito Mussolini, Caltiki – O Monstro Imortal (1959) e Os Vampiros (1957), respectivamente dirigidos por Freda e Bava, foram os primeiros filmes do gênero produzidos na Itália depois do fascismo. Em 1960, num trabalho solo na direção, Mario Bava lança o cultuado e influente A Máscara do Demônio. Com essa obra-prima do cinema gótico, ele fundamenta o horror cinematográfico italiano e inicia uma carreira capaz de influenciar todos os outros diretores que se aventuraram por esse gênero. Mas, o cineasta não parou por aí e, logo em seguida, lançou o clássico Olhos Diabólicos (1963) e a antologia As Três Máscaras do Terror (1963), na qual já se percebia o aperfeiçoamento de seu enorme talento. Quando realizou Seis Mulheres para o Assassino (1964), Bava criava, então, o thriller italiano, posteriormente conhecido como giallo, que se popularizou e se tornou o mais influente e bem sucedido dos filões do horror cinematográfico local.

Mas, em termos mais didáticos, o que seria o giallo? Para começar, giallo significa amarelo em italiano. Essa é a cor dos populares livros de mistério e crime da Editora Mondadori, que publicou a obra de autores populares como Agatha Christie, bem como autores ainda não tão conhecidos do grande público. As histórias de crimes violentos e barrocos cometidos por assassinos misteriosos, com um subtexto sexual sempre presente, marcam o conteúdo desses livros, transpostos para a tela a partir dos anos 60, mas cuja explosão de popularidade e bilheteria permaneceria na década seguinte, até mesmo fora da Itália, com o lançamento do clássico absoluto O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), de Dario Argento. O filme inicia a cultuada Trilogia dos Animais, composta também por O Gato de Nove Caudas (1971) e Quatro Moscas sobre Veludo Cinza (1972).

Dario Argento é um herdeiro e discípulo estético de Mario Bava. Vindo da crítica cinematográfica, é filho do produtor Salvatore Argento e da fotógrafa brasileira Elda Luxardo. A construção e o desenvolvimento de seu estilo visual singular criaram uma escola dentro do giallo e do horror italiano como um todo. A arquitetura, a pintura, as “cores da escuridão” que vêm de Bava, assim como a trilha sonora e os barroquismos operísticos, se fundem a uma representação cada vez mais extrema e estilizada da violência. Essa estilização explode nas telas quando ele lança o giallo clássico e fundamental Prelúdio Para Matar (1975). Muitas de suas obsessões estéticas estão nesse filme: a imagem dos olhos vigilantes na escuridão, a figura da mulher na janela etc. Primeiro filme de Argento com a colaboração do Grupo Goblin na trilha sonora e a presença em cena de David Hemmings, o cultuado ator do Blow Up (1966) de Antonioni, e Daria Nicolodi, que foi casada com Dario e é mãe da atriz Asia Argento. Das influências desse diretor, que é praticamente sinônimo de giallo, destacam-se obras clássicas de Edgar Allan Poe e William Shakespeare, passando pela grandiosidade da ópera e filmes como Internato Derradeiro (1969), de Narciso Ibañez Serrador, School of the Holy Beast (1974), de Noribumi Suzuki, e O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene. A arquitetura e a geometria criadas por Dario Argento passam a ser o cenário onde suas figuras homicidas vestidas com chapéu, capa de chuva e luvas pretas cometem seus crimes regados a profundas e abissais formas de insanidade, sempre portando suas lâminas que brilham na escuridão.

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De uma forma geral, podemos afirmar que Bava, Argento e os demais diretores que se aventuraram no giallo beberam de fontes comuns. Uma delas, com certeza é o film noir norte-americano, com suas derivações expressionistas. Essas influências já nos conectam a dois mestres extremamente fundamentais para várias gerações de realizadores: Fritz Lang e F.W. Murnau. Mas, além de Lang e Murnau, temos outros dois mestres com trabalhos posteriores aos deles, que se consagraram mundialmente com o passar do tempo: o britânico Alfred Hitchcock, que dispensa comentários, e o genial Diretor francês Henri-Georges Clouzot, trazendo sua profunda sensibilidade cinematográfica. Film Noir, Fritz Lang, Murnau, Hitchcock, Clouzot, Livros Amarelos da Mondadori: com esses ingredientes básicos, pode-se dizer que o fenômeno cinematográfico popular chamado giallo se consolidou e garantiu seu lugar cativo na história do cinema. Mas, para a sorte dos espectadores, cada diretor acrescentou seu molho especial nessa receita básica, criando filmes inesquecíveis.

Nesse sentido, é importante ressaltar que outros diretores tiveram vital importância para a produção de filmes gialli. Resumindo muito, vamos destacar alguns. É impossível falar sobre os filmes gialli italianos, sem citar os trabalhos do mestre Lucio Fulci. Popularmente, Fulci é mais conhecido do grande público como o “pai dos zumbis italianos” ou como o “godfather of gore”. Sim, sua Trilogia do Inferno, composta pelos filmes Terror nas Trevas (1981), Pavor na Cidade dos Zumbis (1980) e A Casa do Cemitério (1981), são de enorme relevância para a história do horror cinematográfico italiano. Mas Fulci também se aventurou por vários outros gêneros, incluindo até o western spaghetti. No giallo, o cineasta contribuiu com quatro títulos emblemáticos. O Estranho Segredo do Bosque dos Sonhos (1972) foi um filme polêmico, ambientado em uma pequena cidade italiana onde meninos são assassinados. A obra conta com a presença da atriz cearense Florinda Bolkan, que protagoniza uma das sequências mais perturbadoras da história do cinema, quando cruza o caminho de um bando de agressores. Outro destaque feminino do elenco é a atriz Barbara Bouchet, como a ambígua e sensual Patrizia, que protagoniza uma polêmica sequência de nudez e sedução de um garoto. Bouchet estrelou filmes gialli importantes como O Ventre Negro da Tarântula (1971), de Paolo Cavara, além do extremamente erótico Em Busca do Prazer (1972), de Silvio Amadio.

Florinda Bolkan trabalhou com Fulci no ainda mais polêmico Uma Lagartixa com Corpo de Mulher (1971), um giallo “embebido” em ácido lisérgico, ambientado em Londres, com forte acento erótico, trilha sonora inspirada do mestre Ennio Morriconee boas doses de violência gráfica que proporcionaram ao filme diversos problemas com a censura. Em 1977, Fulci lança Premonição. Protagonizado por Jennifer O’Neill, o filme surpreende por não ter uma violência extrema, mas ganha pontos por seu engenhoso roteiro e pela excelente atmosfera, acentuada pela antológica trilha sonora de Fabio Frizzi. Já em 1982, o cineasta realiza o violentíssimo e polêmico O Estripador de Nova Iorque. Esse giallo pode ser considerado o mais sanguinolento de todos, ao lado de Tenebre (1982), de Dario Argento, embora Fulci tenha ido mais a fundo – e de maneira mais perturbadora – na representação da sexualidade quase mórbida, bela e ao mesmo tempo abjeta de seus personagens. Uma dicotomia, aliás, muito presente nos filmes gialli.

Entre a década de 60 e 70, o cinema de autor feito na Itália era consagrado mundialmente pela crítica e por premiações em festivais de cinema e indicações ao Oscar. Paralelamente, a produção do chamado cinema popular italiano movimentava a indústria cinematográfica do país: os gialli, os westerns, os filmes policiais, os filmes de heróis mitológicos, os Peplum e as comédias eróticas (que tanto inspiraram nossas pornochanchadas) levavam multidões às salas de cinema. Depois do sucesso comercial da Trilogia dos Animais, de Dario Argento, muitos gialli foram produzidos. Sendo assim, outros diretores se destacaram dentro cenário, como é o caso de Umberto Lenzi, por exemplo, uma espécie de pioneiro dessas narrativas de mistério, crime e sensualidade, realizador dos clássicos O Louco Desejo (1959) e Tão Doce Quanto Perversa (1969). Este segundo filme conta com a presença de uma das musas do giallo Carroll Baker. Após essas incursões no thriller policial e no suspense, Lenzi parte para a produção de dois gialli violentos e cultuados: Sete Orquídeas Manchadas de Sangue (1972) e Gatti Rossi in un Labirinto di Vetro (1975). Além dessa contribuição importante, Lenzi também inaugurou outro subgênero italiano do horror cinematográfico: o ciclo dos filmes de canibais, com o clássico Mundo Canibal (1972).

É impossível falar sobre giallo sem citar os filmes que Sergio Martino dirigiu com o protagonismo absoluto da musa Edwige Fenech. Fenech foi uma atriz exuberante, cuja beleza, na opinião de muitos, remete à nossa musa da boca do lixo paulistana Helena Ramos. Sergio Martino obteve destaque em seu primeiro giallo, O Estranho Vício da Sra. Wardh (1971), trabalhando muito bem os elementos do subgênero e suas imagens. Em seguida, vieram o psicodélico Todas as Cores da Escuridão (1972), onde Fenech protagoniza rituais de “paganismo lisérgico” ao som da antológica trilha sonora de Bruno Nicolai, e No Quarto Escuro de Satã (1972), obra em que Fenech exercita sua mais completa vilania. Outro grande destaque de Martino, dessa vez produzido pelo poderoso Carlo Ponti, é o violentíssimo Torso (1973), estrelado por outra musa do giallo, Suzy Kendall. Ao lado de Banho de Sangue (1971), de Mario Bava, Torso é um filme-chave para a criação do slasher norte-americano, que teve seu auge de popularidade nos anos 80.

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Da gigantesca produção de filmes gialli concentrados entre os anos 60 e 70, vamos destacar mais alguns títulos de grande relevância não só para esse filão, mas para a história do cinema italiano. À época, essas obras eram, em sua maioria, desprezadas pela grande crítica, por sua vez dotada de um perfil mais acadêmico, interessado no ciclo de filmes políticos italianos e no trabalho de autores mais intelectualizados como Antonioni, Fellini, Pasolini, Ferreri, Scola, Pontecorvo e tantos outros mestres.

Começo destacando um diretor pouco incensado até pelos novos críticos, mas que dirigiu dois filmes gialli muito particulares: Armando Crispino. Em Macchie Solari (1975), somos transportados para um pesadelo durante uma escaldante onda de calor em Roma. A protagonista do filme, uma mulher sexualmente reprimida que trabalha em um necrotério, passa a ver os mortos se levantando e transando num surto delirante. Antes disso, Crispino havia realizado seu primeiro trabalho de destaque no giallo L’Etrusco Uccide Ancora (1972), pouco conhecido, mas muito bem realizado e até melhor que muitos filmes feitos na mesma época.

Outro nome a ser ressaltado é o do eclético diretor Massimo Dallamano, que fez duas importantes contribuições para a difusão do giallo como fenômeno de sucesso dentro do cinema popular italiano, destacando-se o impressionante O que Vocês Fizeram com Solange? (1972). Outros títulos de grande destaque dentro desse “universo amarelo” seriam O Carrasco da Mão Negra (1972), de ToninoValerii, famoso por causa da pesadíssima sequência de assassinato em que é usada uma serra circular; A Casa das Janelas Sorridentes (1976), do versátil diretor Pupi Avati, um dos mais atmosféricos e perturbadores gialli já feitos, que cita a cidade do Rio de Janeiro, através de um afresco de São Sebastião restaurado pelo protagonista numa pequena cidade italiana; e dois gialli do diretor Luciano Ercoli: A Morte Caminha de Salto Alto (1971) e La Morte Accarezza a Mezzanotte (1972). Os dois filmes foram grande influência para diretores que se aventuraram posteriormente no suspense/thriller, como Brian De Palma, por exemplo.

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De maneira extremamente resumida, tentei apresentar neste texto o giallo, o mais italiano dos subgêneros do horror cinematográfico, falando de suas raízes e de alguns de seus mais influentes e relevantes exemplares realizadores. Claro que muitos ficaram de fora. Espero que esta modesta contribuição instigue ao leitor a caçar outros filmes e mergulhar nesse mundo de mistério e alucinação. Esse universo de cores e delírios foi homenageado por um talentoso casal de diretores, Bruno Forzani e Hélène Cattet, nos recentes Amer (2009), A Estranha Cor do Suor do Teu Corpo (2013) e Cadáveres Bronzeados (2017). Além deles, o cultuado diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn, em seu polêmico e controverso O Demônio de Neon (2016), também faz transbordar na tela todas as “cores da escuridão” do cinema de horror italiano, homenageando Bava e Argento e, por consequência, o delirante, violento e sensual universo dos filmes gialli.

Com o surgimento das novas tecnologias (DVD, Blu-ray, torrent, streaming), os gialli foram redescobertos por jovens cinéfilos e críticos, com a benção de fãs famosos como Quentin Tarantino, Guillermo Del Toro, Tim Burton e Martin Scorsese. Quando Christopher Lee apresentou a série sobre os cem anos do horror no cinema, coincidindo com os cem anos da invenção do cinema, falou sobre Mario Bava em um dos episódios e até mostrou uma sequência de Lisa e o Diabo (1973). No final, atribuiu ao mestre italiano a frase que intitula esse artigo: “O Amarelo é a Cor do Medo”.

Visages, Villages (2017), de Agnès Varda e JR

A importância dos mistérios

Pedro Veras

É difícil – e talvez indesejado – exigir de um filme aquilo que ele não faça. Mas Visages, Villages (2017), de Agnès Varda e JR, complexifica essa orientação. Trata-se de uma obra que parece propor um determinado projeto estético – e por que não, político – mas que, ao mesmo tempo, lança mão de uma série de imagens e sons que resultam em algo distinto, por vezes afastando-se daquilo que efetivamente pretende fazer.

O filme aparenta ser norteado pela premissa de “uma busca pelo outro, através da compreensão de si mesma”, ao celebrar a obra de Varda – a cineasta vanguardista, hoje com 89 anos – ao passo em que elabora um pequeno ensaio a respeito da relação entre quem filma e quem é filmado. No entanto, diferentemente do recurso utilizado em As Praias de Agnès (2008), no qual surgem sucessões de planos dos vários filmes de sua carreira, Visages, Villages parece ser a tentativa da autora de meditar a respeito do fazer artístico em si, enquanto processo, recusando as imagens que realizou anteriormente – ainda que no início apareçam alguns planos preciosos de Cléo de 5 às 7 (1962) e Mur Murs (1981), entre outras obras suas. Varda decide, então, realizar este filme em co-autoria com o jovem fotógrafo francês JR, que se notabilizou por seus trabalhos de colagens grandiosas de rostos anônimos nos muros públicos das cidades, ou nas paredes e chãos de grandes galerias. Esse movimento de aproximação pode refletir a vontade da cineasta anciã de atualizar sua relação com as imagens através de um novo olhar – o de JR – carregado de inquietações que talvez já não sejam mais as dela enquanto artista.

Dá-se início ao trabalho colaborativo. Aliás, é na copa da casa dela onde cineasta e fotógrafo discutem os direcionamentos do projeto, e essas conversas são tão deliciosas quanto os doces e tortas que degustam (referência às madeleines de Proust?). Nesse sentido, vale pensar na maneira como a própria dupla é transformada em imagem ao longo de todo o filme. Varda, de um lado, surge por vezes em planos intimistas ou sutis, como o de suas mãos batendo sem motivo no prato, ou aquele do carinho em seu gato (um típico carinho que uma dona faz inconscientemente em seu animal de estimação) ou, ainda, de quando ela descreverá a doença que afeta seus olhos. São momentos nos quais transborda certa humanidade despretenciosa, própria da artista e possível graças à potente relação que a ela construiu com a câmera ao longo de sua carreira: a de estar muitas vezes filmando e sendo filmada. JR, paralelamente, aparece constantemente em performance, ciente da presença da câmera a todo tempo. Por ser um artista que cultiva certa persona que extrapola sua produção imagética, ele já se tornou uma personagem, algo também justificado por sua insistência em nunca tirar os óculos escuros – gesto de ícone que o fotógrafo se esforça para sustentar. Enfim, à mesa, discutem a empreitada: “– Faremos um filme, mas o que faremos? – Faremos imagens, juntos, mas de outra forma (…) – Iremos aos vilarejos, ver paisagens simples, ver rostos”. O objetivo é partir “para aqui, para ali” no interior da França, país-sede para ambos, onde trabalham e onde montam suas obras. Talvez tenha sido essa vontade de “devolver as imagens” a essas pessoas compatriotas que “estejam tão distantes das metrópoles”.

Ver rostos. Mostrar rostos. Iniciativa bem intencionada, mas cujo resultado material acaba gerando uma pequena rachadura na premissa a princípio engajada de “se voltar para o outro”. Apesar de o norte que guia Visages, Villages ser “a reflexão do fazer artístico”, me interessam (bem) mais as imagens efetivamente realizadas ao longo desse processo documentado meticulosamente, do que ouvir autor e autora debatendo a respeito de seus próprios trabalhos ou de seus métodos. Me interessam mais os prometidos rostos dessas e desses anônimos e a forma como surgem sensivelmente nos interiores dos enquadramentos. Visages, Villages não me parece realizar esse gesto verdadeiramente, pois não sinto uma entrega genuína e igual para “o outro” capaz de inaugurar um trânsito de humanidades entre quem filma e quem é filmado – que talvez fosse aquilo que o filme prometia fazer.

Pelo contrário, Visages, Villages promete retratos desse outro, mas entrega selfies de si. Não selfies no sentido estrito – de uma foto tirada por uma pessoa que também aparece na imagem, onde a extensão do braço remete à presença de uma câmera – mas imagens nas quais vejo muito mais JR do que as pessoas efetivamente figuradas. Não vejo o corpo de JR nessas imagens, nem seu rosto, nem seus óculos, mas seu estilo devora tanto as pessoas fotografadas que sinto sua presença suplantando as delas. Aos poucos, a obra vai assumindo o caráter de uma constante promoção do trabalho de colagem de JR, algo que impulsiona o fotógrafo para um lugar predominante – à frente da própria Varda – na construção visual das imagens. Planos aéreos ou feitos a partir de gruas (ou drones), que privilegiam muito mais a apreciação das formas e dimensões de seu trabalho fotográfico do que os rostos retratados.

O caso de Jeanine é emblemático desse fenômeno. Uma simpática senhora, moradora de uma cidade do Norte da França – “a última habitante de uma rua de casas iguais que iriam ser demolidas” – Jeanine resiste frente às forças de destruição. Mas o filme não se ocupa de sua história, fixando sua imagem em um determinado tipo que favorece a narrativa que querem construir, aos moldes de uma matéria de telejornalismo. As falas da moradora coincidem com o discurso antecipado por Varda e JR em suas narrações em off. O filme não se abre para o que possa vir a desviar desse programa. Em contrapartida, são muitos os planos de JR e sua equipe subindo em andaimes e colando nos muros de tijolos as imagens de arquivo encontradas, em grande escala, de mineiros e operários da região. Mas quem comenta a “homenagem aos mineiros” é JR, não a própria comunidade. Esse auto-encantamento do fotógrafo começa a arranhar o projeto do filme, e criar um problema para a balança entre o “contar as estórias de outras e outros”, de um lado, e o “refletir sobre meu próprio trabalho enquanto artista”, do outro. Para finalizar essa sequência, a dupla decide estampar o rosto – sempre em grande escala – de Jeanine no muro de tijolos de sua casa. Um travelling horizontal passa por cima do trabalho de colagem, no qual vemos na imagem os corpos dos mineiros estampados nos muros, seguidos pelo grande rosto imponente de Jeanine.

De certo, parece louvável a intenção de resgatar e dar corpo a essas figuras do passado – operários de físico calejado – assim como do presente – o rosto poderoso de uma resistente, inimiga dos sistemas de destruição. No entanto, a forma como a imagem é construída – aliada à trilha musical alegre e destoante – promove uma sensação ambígua: a de que vemos mais uma janela de exposição para o trabalho de JR, do que efetivamente uma exaltação das e dos sem-nome, das ordinárias e ordinários. O fotógrafo – e consequentemente o filme – parece acreditar mais no espaço de exposição do que propriamente na matéria exposta. Ao olhar para o rosto de Jeanine ampliado, vejo muito mais o trabalho de JR, vejo seu estilo, vejo sua opção pelas cores cinzentas usadas em uma infinidade de outros trabalhos, vejo sua estética-slogan gritando, mas vejo pouco de Jeanine. Vejo os tijolos, mas não vejo suas rugas.

O operariado é tema de outra sequência na fábrica de Château-Arnoux-Saint-Aubin. A dupla se propõe a criar um mural com a imagem de trabalhadoras e trabalhadores da fábrica. Contudo, JR, como verdadeiro diretor de gestos, guia o movimento dos e das fotografadas para “a foto perfeita”. Mais uma vez as histórias, os gestos espontâneos e os rostos singularizados dão lugar ao processo artístico rígido e arranjado de foto-colagem. Para completar, a “imagem-produto” se presta a um desserviço para a luta operária, pois sugere muito mais uma relação alegre, resignada e conciliadora de trabalhadores com a fábrica empregadora.

Mas não é só de imagens conformadas que é feito Visages, Villages. Destacam-se também os momentos em que as pessoas fotografadas e filmadas escapam desse lugar ilustrativo que às vezes parece reservado a elas. É o caso do tocador de sinos de Bonnieux, Vincent, que convida Varda e JR para acompanhá-lo e assistí-lo em seu ofício. Nesse momento, a câmera se abre para que ele se auto-apresente, mostre seus gestos, sua atividade de badalar sinos como habitualmente o faz: pulando, movimentando-se rapidamente e dando uma imagem “borrada” de seu corpo e rosto, sem a mediação discursiva da dupla de artistas. Não há como pedirem para que ele se posicione seguindo uma espécie de “mise-en-scène fotogênica”, para obterem determinado ângulo, uma vez que o espaço da filmagem é apertado. Aqui, é a câmera que se adapta ao ambiente e ao corpo que filma, e não o contrário. Outra presença que gera um abalo nesse programa é a de Nathalie, garçonete na mesma cidade, que expõe seu constrangimento com o resultado da colagem feita a partir de uma imagem sua, dizendo que não imaginava que a foto ficaria tão grande – “minha cabeça ficou menor do que meu pé”. Ela se incomoda bastante em ver tantas pessoas tirando fotos suas e as compartilhando excessivamente em redes sociais. Porém, o filme não se curva perante esse incômodo da própria retratada e, graças à montagem, neutraliza seu desconforto ao apresentar, logo depois de seu relato crítico, o filho da garçonete tirando uma selfie com a imensa imagem da própria mãe. E, num plano final, o mostra fazendo “cócegas” no pé tamanho-slogan da garçonete, aderindo assim ao seu olhar infantil e despreocupado de quem se impressiona diante do espetáculo de uma fotografia ampliada. A possibilidade de auto-crítica, calcada na decepção da própria pessoa fotografada, é jogada para debaixo do tapete. A “imagem única” perde força diante das infinitas reproduções e selfies.

Por um lado, Visages, Villages parece reforçar – porque se há crítica, ela está por demais implícita – a um tipo de figuração que a indústria do consumo impôs ao corpo e ao rosto humano. Imagens-espetáculo que reclamam por reações de maravilhamento, entretenimento e choque. Por que esse fetiche pela imensidão, pela grandiosidade? O que terá acontecido com essa “pequena fotografia” – e “pequeno cinema” – dos retratos singelos, espontâneos, cotidianos? Será que as fotografias encontradas por acaso em gavetas ou em páginas de um livro aleatório, os frames de um filme raro, não portam mais uma potência para o fascínio? Precisam necessariamente serem ampliadas para gerarem algum tipo de sensibilidade? Visages, Villages aponta para onde exatamente? Para o fim dessas imagens? Seria a ampliação das figuras, ou a exposição excessiva dos corpos, o futuro incontornável para uma era saturada de imagens?

O filme, no entanto, se abre. E, na sequência final, talvez ofereça uma resposta, que surge do (não)encontro da dupla com Jean-Luc Godard, amigo de longa data de Varda, na cidade de Rolle, Suíça. Godard engana a amiga Varda e o jovem JR ao marcar uma entrevista filmada, mas acaba “dando um bolo” no momento do encontro e ainda deixa um recado cifrado para a diretora, escrito em sua porta de vidro, tonificando sua ausência ou seu desinteresse em fazer parte do projeto da dupla. Não se sabe ao certo se, na verdade, tudo se trata de uma grande peça orquestrada pela própria cineasta – que sabemos ser irônica – mas a recusa do convite de ser capturado pelo olhar de Varda e JR parece ser também uma recusa a ceder seu rosto e seus segredos à grandiloquência de Visages, Villages. Ao fim, JR decide tirar os óculos escuros para Varda, para confortá-la diante da frustração do não-encontro. No entanto, o plano fechado de seu rosto surge fora de foco: vemos seus contornos, mas não vemos seus detalhes. Também não acessamos seus segredos. Através do truque godardiano ou vardadiano – como numa lição final da diretora para JR, seu jovem pupilo – o filme agora realiza um gesto oposto ao que vinha sendo feito em seu programa: o de exacerbar a potência da ausência, o de evocar a importância dos mistérios para o reino das imagens.

Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (1971), de Lucio Fulci

O médico e o monstro no paz e amor desacreditado

 Leandro Afonso

Inicialmente um diretor de comédias, Lucio Fulci não dispunha do mesmo domínio cômico de um Federico Fellini, um Dino Risi ou um Mario Monicelli. Sendo assim, aproveitou seus primeiros longas para se familiarizar com a câmera, que posteriormente utilizaria para captar menos sonhos e risadas que pesadelos e mortes. Com esse foco, o cineasta demonstrou crença inabalável não no quadro, mas no plano, não na fotografia, mas no movimento, indo muito além do fetiche pela sanguinolência explorado em seu cinema, especialmente, do fim dos anos 1970 em diante. Em Que o Céu a Condene (1969) e Uma Sobre a Outra (1969), Fulci começa a assumir o gosto pelo mistério e pelo horror, antes de consolidá-lo de uma vez por todas em Uma Largartixa num Corpo de Mulher  (1971).

Nesse whodunit à italiana, cria-se um quebra-cabeças em que as peças estão sendo (re)embaralhadas o tempo inteiro. O maneirismo da encenação se encaixa no habitual horizonte de expectativas de um giallo, mas Fulci – crítico de arte antes de se tornar cineasta – vai além. Uma Lagartixa num Corpo de Mulher é, em certo aspecto, o resgate de uma iconografia tradicional italiana, ao mesmo tempo em que é uma possível resposta à pergunta: como entender o mundo e o cinema em 1971?

A protagonista sofre de um transtorno de dupla personalidade, o que nos leva a “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, livro lançado no final do século XIX, mesma época em que nascia a psicanálise freudiana. Essa protagonista, com suas personalidades, faz psicanálise. Porém, ela se consulta no período influenciado pelo flower power de Ginsberg, pelo summer of love e pelo movimento hippie, momentos fincados nos anos 1960, quando também é fundada a Escola Freudiana de Paris. Todos esses elementos estão lá, na época e no filme, mas o roteiro se desvia das expectativas óbvias. Ele engana quem acredita que a protagonista é uma releitura de Dr. Jekyll, de “O Médico e o Monstro”. Engana quem acredita que ela contou a verdade para seu psicanalista. Para encerrar, engana também quem acredita no movimento hippie como inofensivo. A psicodelia do ácido, presente no imaginário coletivo da época, é interpretada menos como uma experiência sinestésica transcendental que como um delírio agressivo. Hippies se divertem confundindo um ser-humano com um réptil, mas também se divertem assassinando. Em Uma Lagartixa num Corpo de Mulher, resumindo muito brevemente ideias complexas, essa mescla entre o autoconhecimento profundo e o pacifismo idealizado não é harmônica. O quebra-cabeças se mostra pouco generoso com os modismos, por mais bem-intencionados que eles sejam. Para Fulci, pelo menos aqui, o paz e amor freudiano só poderia existir em conjunção com suas dualidades e contradições.

Analisado em perspectiva, o longa pode ser crucificado por esse olhar. A cena dos cachorros e suas vísceras parece existir não exatamente por sua importância estética ou dramatúrgica, mas pelo desejo do diretor mostrar sua simpatia pela medicina, curso que abandonou antes de fazer cinema. Outro ponto fundamental diz respeito à posição do cineasta diante da psicanálise. O personagem do terapeuta pode passar a impressão de estar mais interessado em narrar o filme que o cineasta apresenta ao público do que, necessariamente, exercer suas atividades profissionais.

Fulci, contudo, é alguém essencialmente do cinema e, fundamentalmente, do cinema de horror. Este é o fim que todos os meios se esforçam para alcançar, não importa qual seja seu método. Além de captar a libido e o homicídio com o mesmo desejo lascivo-estético (um afago às pulsões de vida e morte?), o cineasta deixa claro esse desejo também nas cenas familiares, na conversa entre pai e filha (dá para parecer mais incestuoso?) e nas paredes pintadas com facas, só para citarmos alguns exemplos. No filme, a experiência plástica é sempre mais forte que a inventividade de suas resoluções narrativas.

Isso não significa, todavia, que Uma Lagartixa em Corpo de Mulher se resuma a um exercício de estilo requintado e narcísico na sua tradição giallo. Ele também compra brigas. Em palavras mais diretas, o filme não acredita na psicanálise e não acredita no movimento hippie. Pode-se dizer que pesa a mão numa abordagem preconceituosa, especialmente no que diz respeito aos efeitos alucinógenos do LSD, mais fieis às ideias do diretor que aos impactos usuais da droga. Por outro lado, é fácil jogar pedras no longa com o olhar contemporâneo, capaz de encontrar qualquer informação a poucos dígitos e um clique. À distância de quase meio século, parece mais adequado salientar a coragem de quem pondera: desconfie, sempre desconfie…

Essa desconfiança, sublinhada aqui, visa esclarecer que o filme vai além da potente experiência sensitiva a olhos e ouvidos. Ele é, de fato, menos pedagogia que estética, menos um estudo de personagem e mais um estudo de linguagem. Entretanto, também é menos um panfleto ideológico e mais um texto crítico, embora às vezes enviesado. A desconfiança ser maior que a fidelidade é algo que está em sintonia com o whodunit, mas o longa pega os modismos da época e os encara na contramão. Em suas imagens, em seus movimentos e em sua dúvida, Uma Lagartixa num Corpo de Mulher é o reflexo de um cineasta desassossegado, que, provavelmente, atinge ali sua maturidade como artesão de uma imagem que aceita o inverossímil ou, até mesmo, o ideologicamente contestável, mas não aceita nenhum plano ordinário.

A Trilogia dos Animais

Beatriz Saldanha

Trilogia dos animais é como ficou conhecido o conjunto composto pelos três primeiros longas-metragens realizados por Dario Argento. Pássaro, gato e mosca aqui não possuem um significado literal, mas funcionam como representações alegóricas essenciais para a resolução dos crimes que figuram em nestas obras. Tal recurso é comum em narrativas de mistério, já que provoca curiosidade e instiga, de modo intenso, seus espectadores. Sendo assim, é importante salientar que essa ideia é um ponto de partida fundamental para a cinematografia de Argento, cujos filmes se assemelham a um jogo no qual somos peça fundamental.

De forma geral, a trilogia segue a fórmula tradicional dos gialli estabelecida por Mario Bava em Olhos Diabólicos (1963), por sua vez, baseada na cinematografia hitchcockiana: uma pessoa comum – frequentemente um turista em um país estrangeiro – se envolve em uma trama de assassinato e precisa resolver tudo por conta própria. A premissa remete a diversos filmes de Hitchcock, mas em especial O Homem que Sabia Demais (1956). Tal influência é evidente desde o primeiro filme da trilogia, O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), no qual um escritor americano (Tony Musante), em viagem à Itália, testemunha uma tentativa de assassinato e acaba assumindo a investigação. O Gato de Nove Caudas (1971) tem dois protagonistas, um senhor cego (Karl Malden) e um repórter (James Franciscus), envolvidos na averiguação de uma série de mortes. Em Quatro Moscas sobre Veludo Cinza (1971), um músico se vê encurralado por um chantagista que o flagrou matando um homem que o perseguia. Ele também vai ter que arregaçar as mangas para assumir o controle da situação.

As semelhanças com o cinema de Hitchcock, no entanto, não se limitam à premissa básica ou aos galãs americanos e suas belas amantes loiras. A curiosidade que move o protagonista e a obsessão que o leva a discutir o assunto com outras pessoas, por exemplo, evocam um cinismo muito associado ao cinema hitchcockiano. Com efeito, ao pensar na trilogia de Argento, de maneira sistemática, muitas outras semelhanças surgirão, quase como citações diretas. Em O Pássaro das Plumas de Cristal, temos um tipo caricato, o pintor que se alimenta de gatos, algo próximo ao que acontece em Ricos e Estranhos (1931). Além disso, também contamos com a presença de Reggie Nalder, ator que interpreta o assassino contratado para matar o Primeiro Ministro em O Homem que Sabia Demais, reprisando o mesmo tipo de papel. Outros importantes fatores associativos que podemos perceber são o mote da culpa católica, com o vilão despencando como quem cai para o inferno (Sabotador, 1942), e o reflexo do famigerado final pleonástico de Psicose (1960), com uma explicação um tanto leviana sobre transferência psicótica.

Já em O Gato de Nove Caudas existe uma vontade ainda maior de emular o estilo do mestre inglês, com a trama secundária sobre espionagem industrial; a teoria sobre delinquência juvenil que serve de MacGuffin; o momento pitoresco no barbeiro que lembra o desconforto de Leslie Banks no consultório do dentista na versão original de O Homem que Sabia Demais (1934) ou os constrangimentos do pequeno Desmond Tester em O Marido Era o Culpado (1936), assediado por um obstinado vendedor de rua em uma cena tragicômica; o copo de leite envenenado (Suspeita, 1941); e, o mais interessante, a divisão de protagonismo entre os personagens de Karl Malden e James Franciscus, causando efeito semelhante ao que Hitchcock fizera em Intriga Internacional (1959). No filme de Argento, Karl Marden representa o cérebro da trama, ajudando a resolver o enigma através de sua inteligência, enquanto resta a Franciscus o confronto corporal, ou seja, a prevalência física.

Por fim, em Quatro Moscas sobre Veludo Cinza, há um maior distanciamento referencial em relação à obra de Hitchcock. No filme, cada cena é carregada com o frescor e a euforia de um iniciante que desejava dizer a que veio. São longos e desafiadores os travellings; é contundente a recorrência aos cortes secos na montagem, bem como ao uso subjetivo da trilha sonora; a decupagem é repleta de angulações inusitadas de câmera como, por exemplo, aquela em que vemos uma subjetiva de um violão. Além do mais, há um empenho comovente em filmar as cenas de assassinato da forma mais cruciante possível, mas de maneira poética e orquestrada, como quem quisesse dar à morte um status de arte. Outro dos recursos usados por Argento é, evidentemente, a câmera subjetiva do assassino, uma das características mais presentes dentro do giallo, mas que sempre alcança efeitos inesquecíveis.

A trilogia já traz, com força, a característica mais autoral do cinema de Argento: a obsessão pela imagem. Há também uma influência de Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni, que se manifesta com maior evidência em Prelúdio para Matar (1975), mas que o acompanha em toda a sua carreira. É fascinante como, para desvendar o enigma de seus filmes, o protagonista precisa interpretar uma imagem estática. Algo que ele viu anteriormente ficou registrado em sua memória, de modo que se torna necessário que essa lembrança seja acessada para a obtenção de uma resposta. O herói não tem uma motivação muito clara da razão de estar envolvido com aquilo, trata-se muito mais de uma busca espiritual do que uma batalha por justiça. É como se, interpretando a imagem, ele pudesse encontrar a si mesmo. Por esse motivo, seus filmes são muito visuais, com Argento chegando a reproduzir em estúdio, com pessoas, o mais célebre quadro de Edward Hopper, “Nighthawks”.

Em O pássaro das Plumas de Cristal, o quadro de um pintor naïf, representação de uma cena violenta, nos leva à conclusão do mistério, além de ser a motivação para os assassinatos que tomam conta do filme. Já em O gato de Nove Caudas, uma fotografia dá pistas para chegarmos ao criminoso. Isso porque, mesmo cego, o personagem tem a sensibilidade de reconhecer o potencial da imagem. Para isso, ele conta com a ajuda de sua sobrinha pequena (Cinzia De Carolis), cuja presença funciona como a representação de seus próprios olhos. Quatro Moscas sobre Veludo Cinza, igualmente, é sobre a imagem, já que o protagonista é visto e fotografado lutando e supostamente matando um homem. Nesse filme, pesquisadores criam um artefato que consegue identificar a última imagem visualizada pelo olho humano, o que nos auxiliaria no desvendamento dos assassinatos, já que certamente a última visão da vítima seria o seu algoz (curiosamente, esse detalhe da trama é similar a um projeto de Hitchcock que nunca foi filmado: The Blindman, um roteiro original cuja trama era sobre um pianista cego que recebe as córneas de um homem assassinado – um caso nunca solucionado – e passa a enxergar a imagem do criminoso). Contudo, o exame revela que a última coisa vista foram quatro moscas sobre veludo cinza. E essa é a imagem que deve ser investigada. Através da obsessão pelo pictórico, Argento cria ícones com muita eficiência, como se quisesse gravar seus filmes na retina do espectador, ou, como diz Godard sobre Hitchcock, quisesse assim ter o controle do universo.

O Estranho Vício da Senhora Wardh (1971), de Sergio Martino

 Objetos de desejo, contornos de poder                                                                                                                        Daniel Rodriguez

O primeiro plano de O Estranho Vício da Senhora Wardh (1971) escancara a predileção pela temática psicossexual que perpassa os gialli de Sergio Martino. A câmera, posicionada no banco de trás de um veículo em movimento, acompanha um homem imerso em sombras, enquanto ele vaga por uma ruela repleta de garotas de programa sadicamente expostas. O espectador, diante desse plano inicial, nada mais é do que um mero voyeur adentrando um mundo perverso. Ali mesmo, o homem seleciona sua vítima e a retalha com uma navalha. Acima deles, passa um avião com os motores em potência máxima, ocultando os gritos desesperados da moça. O voo e o som das turbinas são interrompidos bruscamente, dando lugar a um letreiro com uma citação de Freud, que propõe uma possível hereditariedade da violência, baseando-se no mandamento bíblico “não matarás”, algo que me parece tanto uma provocação como uma antecipação da índole dos personagens.

Em meio a essa apresentação desoladora de mundo, surge a grande musa de Sérgio Martino, a francesa Edwige Fenech, que aqui interpreta o papel da Senhora Wardh. A simples introdução de Fenech ocorre de forma elusiva e misteriosa, em um plano que revela uma escada-rolante, com vários transeuntes. Descendo a escada, vemos um par de pernas brancas sob um vestido vermelho pulsante, que contrasta enormemente com a escuridão dos planos anteriores. O choque de cores aponta para uma conclusão óbvia, de que estamos diante de alguém cuja beleza e o fascínio são inquestionáveis. No entanto, é apenas uma mulher qualquer, rapidamente sucedida por várias outras, sempre pouco focadas ou mal enquadradas. A câmera aguarda, como se estivesse desviando dessas mulheres, até encontrar, finalmente, o rosto marcante e apolíneo de Fenech.

Não há como citar uma trama central no longa, considerando a tendência de Martino em adotar um estilo psicodélico e narrativas ultra-complexas de crime. Em seus filmes, é muito comum a presença de amálgamas de histórias que se entrelaçam para criar várias camadas de significação, e aqui não é diferente. Apesar disso, em O Estranho Vício da Senhora Wardh, a protagonista ocupa um lugar fora do comum, funcionando como um centro gravitacional ao redor do qual orbita toda a construção narrativa e estilística da obra.

No trajeto do aeroporto para o hotel, ela mergulha em lembranças do passado, mais especificamente numa briga com seu amante Jean (Ivan Rassimov). Ocorre, então, uma transição de ambientes, da noite na cidade fria e escura para uma vista campestre, chuvosa e diurna, acompanhada de uma música instrumental melodiosa que extravasa uma aura bizarra. Após uma discussão dentro de um carro, Wardh tenta fugir de seu amante, mas acaba estuprada no chão da floresta. Sem qualquer som diegético, a sequência tem contornos incomuns para uma cena de estupro. O ato é filmado bem de perto, utilizando-se de close-ups que evocam um conteúdo erótico, de tal maneira a criar uma dicotomia que transforma a cena em um espetáculo fetichista. Dentro dessa sequência, é possível pensar o vício da Senhora Wardh como algo do campo da submissão ou do masoquismo, ao passo que seu algoz Jean ocupa o lado oposto da moeda, tornando-se um dominador sádico. Essa relação com o passado retorna ocasionalmente ao filme, através de lembranças e sonhos que não distinguem a imaginação da realidade.

Representar a violência como um panorama de cores e jogos de câmera é característica predominante nas obras que compõem os gialli italianos. Dito isto, Martino é especialmente experimentalista nesse aspecto, buscando sempre composições inusitadas e ângulos que privilegiam o ato carnal, seja no sexo ou no assassinato. Há, por exemplo, uma recorrência de cenas em que a câmera se aproxima do emaranhado de corpos que se atracam no prazer e na morte, a tal ponto que estes se tornam objetos indistinguíveis para o espectador. Ainda na primeira parte do filme, a Senhora Wardh vai a uma festa onde conhece seu próximo amante, George, interpretado por outro ator recorrente no cinema popular italiano dos anos 70, George Hilton. Lá, ela também reencontra seu dominador Jean. Em meio aos diferentes afetos despertados pelos dois convidados, surge um elemento narrativo supostamente relevante para a trama de conspiração que irá se desvelar ao longo do filme. A câmera de Martino se entrega completamente a um episódio disruptivo no meio da festa, em que duas garotas arrancam as roupas uma da outra, para o delírio dos outros convivas alucinados.

No curso traçado por Martino no início dos anos 70, período em que lidou com o giallo, essas digressões explorando sexo e violência assumiram diferentes contornos, atingindo seu apogeu psicodélico em Todas as Cores do Medo (1972) e, logo em seguida, retrocedendo parcialmente em Torso (1973). Em O Estranho Vício da Senhora Wardh também é perceptível certa similitude com outro gênero cinematográfico completamente distinto, o faroeste. Essa proximidade se dá por meio de enquadramentos e movimentos de câmera muito característicos do spaghetti western, vide o fatídico encontro entre Jean e George, no qual esses dois antagonistas se veem frente a frente, longe dos olhares da Senhora Wardh, momento em que um grande plot twist é revelado.

Alguns elementos oriundos do plot foram transmitidos para outras obras do cineasta, também capazes de dialogar com esse mesmo espectro de encenação. O título original de No Quarto Escuro de Satã (1972), por exemplo, é uma passagem retirada diretamente de uma mensagem provocativa deixada por Jean para a Senhora Wardh: “seu vício é um quarto fechado e somente eu tenho a chave”. O teor psicológico e sexual conjugado com uma boa dose de psicanálise freudiana, bem como a constante experimentação das formas cinematográficas, são os principais traços presentes nesse recorte da filmografia do diretor. E tal aspecto encontra um ápice de sofisticação em Torso, cujo título original traduzido literalmente para o português seria “O Corpo Apresentado Traço de Violência Carnal”, encapsulando toda uma representação de assassinos brutais comuns ao gialli. Essas figuras sempre assombreadas, vestidas de preto e trajando luvas de couro negro, brandindo navalhas e facas e perseguindo vítimas insuspeitas remontam, sobretudo, ao cinema de Dario Argento, tais fatores se tornaram mais pungentes na caracterização desses homicidas.

Nos gialli de autores como Argento e Bava, há uma recorrência do whodunit, com o criminoso sendo desmascarado já nos minutos finais. Martino se distancia dessa estratégia ao apresentar um serial killer que atua paralelamente à trajetória da Senhora Wardh, sem nunca cruzar seu caminho. É por sua existência que outra trama criminosa surge, e o pavor que o assassino instiga garante que Wardh seja sua vítima ideal. A paranoia da protagonista, que acredita piamente no fato de Jean ser o tal matador de mulheres, a deixa com nervos e emoções a flor da pele. De certo modo, essa paranoia extrapola os limites da tela, exatamente pela estrutura narrativa estranha, cheia de histórias que se atravessam e suas pontas aparentemente soltas ou sem tanto sentido. A experiência propiciada é de constante inquietação e vulnerabilidade, ante as imagens que se sucedem. A presença de um misterioso facínora que não se conecta diretamente com o personagem central da trama se repete em No Quarto Escuro de Satã e aponta para a predileção por enredos secundários regrados à selvageria, viabilizando a construção de personagens centrais profundamente perturbados psicologicamente, confundindo incessantemente a morte com o sexo.

Uma sequência em particular salta aos olhos, ao representar os desejos mais profundos da Senhora Wardh. Trata-se de um episódio de um onirismo deslumbrante, em que personagens irradiados por uma luz direcional em um ambiente escuro se revezam no papel de dominadores, enquanto a protagonista é acometida por ondas de pavor, sutilmente transformadas em um arroubo de prazer sexual. Sons ecoam de maneira insólita, enquanto as imagens rodopiam e se retorcem, entrando e saindo de foco. Apesar de não recorrer a nenhum tipo de transição que anuncie a entrada no inconsciente da personagem, essa intenção é patente no modo sui generis como Martino traduz para a imagem as pulsões destrutivas de Wardh. O ato de aproximação entre o sexo e a morte, diante das lentes, trabalha essa ideia de um conflito de pulsões, nos quais a busca por uma satisfação psíquica se dá somente através de uma situação de violência.

Na parte final, o assassino de outrora já não cumpre papel algum na trama, ao passo que Wardh se vê livre para viver seu amor com George. Transportados para um paraíso espanhol, encontram-se em um momento de paz que parece anunciar o fim da história. Novamente, Martino aproxima a plasticidade estética com o estado de espírito da personagem que, assim como nós, crê estar diante de um final feliz para si mesma. A partir disso, uma série de reviravoltas inesperadas e labirínticas começam a desembaraçar a narrativa. Porém, o resultado mostra-se confuso, exatamente pelo enredamento excessivo de sub tramas que não são propriamente evidenciadas ou exploradas ao longo da projeção, dada a predileção por evidenciar violência, sexo, devaneios e perseguições, em prol de observações mais atentas acerca da história e motivação dos personagens.

Difícil e desnecessário fazer qualquer juízo de valor em relação a isso, se pensarmos que Martino se destaca exatamente pela aparência plástica e por representações artísticas de fenômenos de origem psicológica. O conteúdo psicanalítico que permeia esse recorte do gialli em sua carreira ainda atesta pra sua intelectualidade, que presume um notório conhecimento do gênero, especialmente ao tratar de pulsões sexuais violentas de maneira tão incisiva e imageticamente complexa.

O Dia Depois (2017), de Hong Sang-soo

Meu amigo é um babaca

Pedro Veras

O preto-e-branco das imagens de O Dia Depois (2017), de Hong Sang-soo, não busca uma tradução visual para o tema central da narrativa – o adultério e suas pequenas tragicomédias –, mas para o interior cinzento de Kim Bong-wan (Kwon Hae-hyo), o editor de livros protagonista do filme. E, como o cinza é a interseção entre esses extremos, uma cor ambígua – que ora assume o calor do branco estourado, ora a sobriedade e o mistério do preto –, o filme elabora uma tese igualmente inexata, imprecisa e, por isso mesmo, extremamente potente.

O Dia Depois trata das relações complexas que Bong-wan, o bem-sucedido chefe da Editora Kang, mantém com as mulheres que o circundam. Graças a uma montagem muito perspicaz, o filme é construído a partir de uma série de elipses que bagunçam os sentidos e a experiência de quem assiste, da mesma forma como Bong-wan confunde as mulheres da sua vida, com seu misto de passividade extrema e canalhice. E é aí que reside a grande força do filme: ao mesmo tempo em que são expostas as patifarias desse macho auto-centrado, elas também são “abraçadas”, na tentativa de compreensão da nebulosidade que atravessa as atitudes do personagem.

O longa explora essa ambiguidade, que não é particular a Bong-wan, mas a muitos dos que se auto-proclamam “homens contemporâneos”. Em sua relação com as mulheres, ele não quer “fazê-las sofrer”, mas faz. A primeira delas, sua esposa, Song Hae-joo (Jo Yoon-hee), o interpela no café da manhã, preocupada com as mudanças de hábito do marido – perdeu peso, tem saído muito de madrugada – cujo silêncio por si só já incomoda. Yoon-hee vai se alterando, visivelmente perturbada, até que chega à conclusão de que ele tem uma amante, afirmação que Bong-wan recebe com pequenas gargalhadas irônicas, em tom de superioridade que, inconscientemente, machucam – e muito – a companheira. São risadas que a ridicularizam. Ainda assim, ele é incapaz de responder. Silêncio. Um silêncio que incomoda tanto quanto as suas mastigadas e sugadas grotescas e exageradas, que parecem um “desprezo-extra” pelo sofrimento da esposa. Nessa sequência, que aparenta representar um mero ciúme cotidiano, O Dia Depois explora as pequenas violências que esse homem comete, já que na próxima cena – que surge após a primeira e importante elipse do filme – vemos o editor bêbado (na noite anterior ou na mesma noite?) carregado pela ex-funcionária Lee Chang-sook (Kim Sae-byeok), com quem manteve uma relação extraconjugal, confirmando a teoria da esposa.

A construção de sua canalhice é lenta e se dá por meio de inúmeras sutilezas do dia a dia, reforçadas pelo encadeamento de acontecimentos e apresentadas por meio das já mencionadas elipses. Ainda assim, o filme não se apressa em julgar Bong-wan tão rasteiramente, evitando jogá-lo em uma lata de lixo moralista. Por isso, não é de se ignorar os planos nos quais vemos um Bong-wan acabrunhado, chorando expressivamente. A tese é ambígua, cinzenta: não se trata de apresentá-lo como um “fracote”, um chorão ridículo; mas por outra via, essa leitura também é perfeitamente plausível.

Diante desses complexos, Bong-wan se refugia nos labirintos de livros e estantes da pequena Editora Kang, onde Song Ah-reum (Kim Min-hee) chega para ser sua assistente. Em uma prosaica conversa na sala de estar do escritório, a funcionária recém-contratada fala de sua vida. Esse plano será de suma importância na construção que o filme elabora para Bong-wan, pois ele mantém relação visual direta com outro plano que surge no fim do longa, no qual se repetem quase a mesma decupagem e mise-en-scène. Em seus filmes, Sang-soo sugere uma predileção pelos longos planos de conversas à mesa. Geralmente, eles são filmadas lateralmente, permitindo que as personagens – e, consequentemente, as atrizes e atores – encarem a si próprios, recusando a estratégia do plano/contraplano. Não são cortes, mas sim os inúmeros zoom-ins e zoom-outs nos rostos das personagens ou objetos que geram novos sentidos para o mesmo plano, ressignificando também os cenários e os elementos que compõem as cenas (como o maço de cigarro, “The One”, apoiado na mesa do restaurante ou as imagens de Brahms e Bach impressas nas caixas de CDs, que enfeitam seu escritório).

As personagens de Sang-soo falam para si e não para uma câmera que aguarda ansiosamente suas reações expressionistas e transparentes. Elas nos convidam para dentro do universo que cada filme cria. E essa longa duração dos planos permite evidenciar as ambiguidades não só das personagens, mas também de quem as representa, pois expõe o jogo da interpretação. Daí surge uma nova relação entre as pessoas filmadas, que parece extrapolar aquela prevista nos diálogos roteirizados. A beleza desses numerosos planos habita essas pequenas fissuras, que nos dragam para esse misterioso universo de ambivalências. Nesse sentido, após essa primeira conversa, Ah-reum sai da sala para ir ao banheiro e deixa Bong-wan sozinho dentro da imagem, nos permitindo acompanhar sua reação: primeiro seu olhar preocupado e tocado pela história que a moça acaba de contar, em seguida, um novo olhar, penetrante, ambíguo e, de certa forma, também desejoso.

O espaço do restaurante, para onde ele aparentemente costuma levar suas funcionárias, também se apresenta como mais uma “zona de conforto” – em todos os sentidos que essa expressão oferece – para o editor, mas acaba sendo reformulado durante o longuíssimo plano de mais uma conversa entre ele e Ah-reum. Se, de início, Bong-wan se sente aconchegado e esbanja sua falsa modéstia ao receber os elogios que a nova funcionária faz aos escritos dele, logo fica angustiado e assume um semblante sério e agressivo quando a conversa deixa o tom cerimonial e se torna mais filosófica. Diante da pergunta “Por que você está vivendo?”, feita por Ah-reum, o protagonista fica sem graça – como as mulheres que ele constantemente desconcerta – e nada consegue expressar além de um desleixado sorriso. “Por amor?”, ele se pergunta, com uma frase de efeito banal. “Então realmente não sabe”, diz a assistente, que ainda o acusa de viver covardemente.

Covardia. Graças a uma nova elipse, sabemos que nesse mesmo restaurante, nessa mesma mesa (que ele compartilhara com Chang-sook em outro tempo) sua covardia – essa palavra que ele tanto odeia, talvez porque ela fustigue seu ego machista – já havia sido exposta antes. Incapaz de se divorciar da esposa, Bong-wan nada pode fazer para aliviar o sofrimento da ex-funcionária, desesperada por “Odiar o fato de que ama um covarde”. Ele evoca a imagem da filha, outra mulher em sua vida, como tentativa de cessar o choro de Chang-sook, gesto quase caricatural agressivamente confrontado pela amante – “Você gasta seu tempo para me mostrar a foto da sua filha!”.

A sucessão de acontecimentos expõe as contradições éticas de Bong-wan, que culminam em mais violências contra as mulheres que o cercam. Mas é preciso lembrar do cinza. Se o filme denuncia seu personagem como um babaca, também o abraça como amigo, justamente por entender as ambiguidades masculinas. Isso talvez se manifeste em um plano magistral, no qual o editor surge literalmente escondido entre várias pilhas de livros em sua mesa de trabalho, enquanto lê uma mensagem de sua esposa na qual ela o chama de “demônio”. Bong-wan não sabe nem mesmo expressar com palavras – ele que escreve tão bem – sua vergonha, ou arrependimento, por não conseguir elaborar esses machismos; fica encurralado e tudo que lhe resta é chorar. Um choro engraçado talvez, mas, ainda assim, um choro.

 

Sang-soo parece projetar em Bongwan as crises e complexos desse “homem contemporâneo”, o qual, embora bem intencionado, é incapaz de se desvencilhar dos impulsos sexistas, transparentes nas suas atitudes e na sua relação com as mulheres. Um homem incapaz, inclusive, de reconhecer esses impulsos. Isso surge nos gestos, nos olhares, nas posturas de um Bong-wan que se contorce e que se perde em um permanente estado de incômodo. Ainda assim, o gesto não é o de condená-lo, mas de ampará-lo, uma vez que o diretor, aparentemente, faz de O Dia Depois um esforço de auto-reflexão, para ele e para os homens. Não aponta o dedo para condená-lo, mas o entende como igual – talvez como amigo – exatamente por denunciar que dentro de cada homem há um pouco (ou muito) de Bong-wan.

A presença da arte no giallo: Fulci, Argento e Miraglia

 

Letícia Badan

As relações entre cinema e artes plásticas, independente do viés pelos quais sejam exploradas, não deixam de negar um caráter de duplicidade no vínculo entre o objeto artístico e o fílmico. Essa via de mão dupla reflete um aspecto dotado não apenas de múltiplos sentidos, mas também de questões submersas, cuja chegada à superfície se dá através de fricções, comparações e análises entre ambas as esferas. Desde os seus primórdios, o cinema de ficção é pródigo de conexões com as artes plásticas, buscando no referencial pictórico certo ideal de representação por vezes artístico, histórico ou documental. Seus realizadores nutrem-se de imagens e ideias amplamente figuradas pela pintura, fazendo com que a vida do objeto escolhido seja prolongada e adquira novos olhares, quando posta em diálogo com o cinema.

No horror, no thriller e na ficção científica, para além da sobrevida característica dessa relação visual, certo traço macabro perpassa tal intersecção. Uma pintura, que, em princípio, não apresenta um caráter de fantasmagoria, pode revelar esse mesmo aspecto quando em contato com o gênero. Diversos filmes de horror contemporâneo insistem nessa chave. Para citar apenas alguns exemplos, basta ter em mente o retrato de Valak, entidade demoníaca de Invocação do Mal 2 (2016,) de James Wan e a tela modiglianesca que perturba o jovem Stanley em It A Coisa (2017), de Andy Muschietti. Outros aspectos ainda podem ser salientados. No cinema de horror, até a mais harmônica e plácida das pinturas, o singelo nascimento de uma deusa, é capaz de despertar os mais profundos horrores naqueles que a observa[1].

O cinema produzido na Itália, especificamente através dos filmes de gênero dos anos de 1960, trazia à tela temáticas relacionadas ao poder fantasmagórico da arte, fosse ela de ordem pictórica ou escultórica. Vale salientar que esse aspecto é consideravelmente recorrente na obra de cineastas como Mario Bava (A Máscara do Demônio, 1960), Giorgio Ferroni (O Moinho das Mulheres de Pedra, 1960) e Camillo Mastrocinque (Um Anjo para Satã, 1966), por exemplo. Nas produções dos anos 70, 80 e 90, outros aspectos são identificados. Há uma notável presença da “Guernica” de Picasso, na Manhattan distópica de 2019 – Depois da Queda de Nova York (1983), de Sergio Martino. Em Noite Maldita (1991), de Umberto Lenzi, são as gravuras de Rugendas que narram a angustiante sina dos escravos zumbis, os quais, noite após noite, levantam-se de seus túmulos arrastando seus grilhões e vingando-se dos habitantes de uma fazenda brasileira. Ou, ainda, A Síndrome Mortal (1996), de Dario Argento, que se utiliza das artes de maneira mais contundente, numa exploração dos efeitos psicológicos das obras em seus espectadores. Para além do horror sobrenatural, o gótico e a ficção científica, o giallo igualmente se fortalece de aspectos diversos do objeto artístico, mas nos atentaremos aqui para um elemento muito específico: a relação de duplicidade entre arte e espectador.

Argento, cineasta nascido em Roma, em 1940, possui um amor declarado às artes plásticas, fator de inspiração para grande parte de sua filmografia e produção bibliográfica. Em “Horror – Storie di Sangue, Spiriti e Segreti”, livro de contos recém-publicado pela editora Mondadori, o autor dedica uma das histórias à sua conhecida visita noturna às salas da Galleria degli Uffizi, atordoado com a feição diabólica dos santos de Rosso Fiorentino e a voz feminista que ecoa de “Giudita che Decapita Oloferne”, quadro de Artemisia Gentileschi. Em seus filmes, notamos o atravessamento entre as artes das formas mais variadas possíveis. Prelúdio para Matar (1975), por exemplo, cria um tableau vivant da pintura “Nighthawks”, de Edward Hopper, em meio aos edifícios da Piazza C.L.N., em Turim. Já em Trauma (1993), a pintura de Millais imediatamente trará à memória de David a imagem de Aura Petrescu, e em O Fantasma da Ópera (1998), Argento reconstitui a “Madalena Penitente”, de Georges de La Tour, sob a pele da filha Asia Argento.

Mas é logo em seu primeiro trabalho de direção que o tema das artes plásticas se faz notar com maior veemência. O Pássaro das Plumas de Cristal (1970) narra a história de Sam Dalmas (Tony Musante), um escritor americano que reside com a namorada Giulia (Suzy Kendall) na Itália e se encontra mergulhado em um bloqueio criativo. Certa noite, caminhando pelas ruas de Roma, depara-se com uma cena de violência no interior de uma galeria de arte. Um homem, trajando chapéu, sobretudo e luvas pretas parece atacar uma mulher. O aparente violador foge, e Sam, na tentativa de salvar a vítima, vê-se preso entre duas grandes portas de vidro que selam a entrada do estabelecimento. O espaço interior da galeria, de uma claridade ofuscante, constitui-se em um salão branco com esculturas de grandes proporções, forjadas no que aparenta ser bronze. Os objetos apresentam uma ligeira união temática, uma visão quase modernista de artefatos tribais (alguns se assemelham a armas ou utensílios de caça, outros a totens e deuses). O local é amplo, livre de ornamentação, salvo pelas esculturas dispostas em seu interior. Tal solução contrasta com os demais espaços do filme, em suma escuros e reclusos, nos quais um aspecto diverso de claustrofobia é salientado. A brancura e os reflexos da luz nas portas aproximam a cena das produções hiper-realistas americanas, sobretudo aquelas de Richard Estes, como notado em outras produções de Argento.

Ao longo do filme, descobrimos que o assassino velado de Argento nutre uma forte ligação com o mundo das artes. No passado, ele sofrera um ataque quase mortal que o levou a desenvolver um trauma. Após entrar em contato com uma das pinturas do artista naïf Berto Consalvi (Mario Adorf) – a qual representa a cena fatídica de seu encontro com o agressor –, o trauma ressurge, levando-o a um distúrbio de personalidade que o faz cometer assassinatos. A pintura, porém, não apresenta um caráter assombroso apenas para o assassino. A namorada de Sam, ao observar uma reprodução em preto e branco da obra, igualmente sente repugnância e pavor. Perante a imagem, Giulia se mostra amedrontada e abraça o companheiro. A obra de arte aqui tem uma função crucial para a narrativa. Ela conforma um papel no qual porta-se não apenas como objeto de decoração, mas como sujeito, dialogando intimamente com o passado assombroso de seu espectador.

Além de Argento, outros cineastas italianos também conceberam tramas capazes de propor algum tipo de identificação entre o espectador e a arte, como é o caso de Emilio Miraglia em La Dama Rossa Uccide Sette Volte (1972). A narrativa do filme se desenvolve em torno da história de Kitty e Evelyn Wildenbrück, duas irmãs fadadas a repetirem a maldição que assombra sua família. A lenda se faz visível no retrato das antepassadas, conhecidas como Rainha Negra e Rainha Vermelha. Na tela, ambas, trajadas com as respectivas cores de seus títulos, são exibidas numa trágica cena de assassinato e vingança. Apesar da tentativa do avô de dar fim ao destino trágico das netas, o poder emanado pela obra de arte ultrapassa os próprios limites da lenda familiar. Antes mesmo de ouvir a história que circunda a família, Evelyn, quando criança, sofre as influências da pintura. Diante do quadro, ela se vê hipnotizada. Caminhando de uma extremidade à outra do aposento, com a boneca da irmã nas mãos e sem desgrudar os olhos da tela, repete alucinadamente os dizeres: “eu sou a Rainha Vermelha e Kitty é a Rainha Negra, eu sou a Rainha Vermelha e Kitty é a Rainha Negra”. O punhal utilizado para cometer os assassinatos no passado é exposto como uma relíquia pelo avô, logo abaixo da pintura, sobre uma almofada de fino veludo rubro. Evelyn empunha a arma entre os dedos e perfura repetidas vezes a boneca, arrancando-lhe a cabeça sob o eco de uma risada maligna. Evelyn não compartilha o sangue dos Wildenbrück, mas isso não impede que seja igualmente atingida pelos efeitos da composição pictórica.

O poder latente das imagens, expresso nos casos acima citados, ganha força, à medida que elas deixam de ser estáticas e transformam-se em objetos vivos e pulsantes. No cinema de horror, esta constituição estética foi amplamente explorada por Lucio Fulci. Sua filmografia versa, de forma considerável, sobre a questão da arte e da arqueologia. Demonia (1990), por exemplo, resvala sobre as catacumbas das freiras satânicas. Já Manhathan Baby (1982) se vale dos assombros causados por um amuleto egípcio. No entanto, são quatro de seus filmes que apontam diretamente para as potencialidades das artes plásticas atravessadas pelo cinema: Terror nas Trevas (1981), Enigma do Pesadelo (1987), Vozes do Além (1991) e Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (1971).

Nos concentremos, então, nesse último que, diferentemente dos anteriores, não se utiliza de uma pintura original, realizada especificamente para a produção, mas de obras conhecidas e consagradas no mundo das artes. O filme apresenta a história de Carol Hammond (Florinda Bolkan), uma mulher de classe média-alta residente em um bairro nobre londrino, cujo estilo de vida difere-se consideravelmente daquele de sua vizinha, Julia Durer (Anita Strindberg), com a qual sustenta uma relação tortuosa. Carol sofre com um pesadelo recorrente no qual envolve-se amorosamente com Julia e em seguida a assassina. Seus sonhos são relatados ao analista, que busca desvendar o significado das imagens de seu inconsciente. Certo dia, o corpo de Julia é descoberto em seu apartamento, e Carol passa a ser investigada pela polícia local pelo homicídio.

Assim, Uma Lagartixa num Corpo de Mulher conserva a progressiva e dúbia reciprocidade dos opostos. Em primeiro lugar, a contraposição feita por Fulci entre as casas da protagonista e de sua vizinha é um importante elemento de reiteração trazido pelo filme. Temos a divisão dos ambientes em split screen. De um lado, um aposento completamente estruturado e sóbrio, o jantar silencioso e a ornamentação antiquada da residência da família Hammond, contrastando com o espaço psicodélico e dionisíaco do apartamento de Julia. Ali, veludos, tapetes, drogas e orgias mesclam-se com o alto volume da música.

Contudo, algo chama a atenção na decoração da casa de Carol Hammond. Enquanto o ambiente – e os residentes ali – são completamente estruturados e austeros, presos nas regras de etiqueta e moralidade, a arte entra para trazer um aspecto de desequilíbrio e desconforto no local, tornando audíveis os problemas camuflados pela máscara de normatividade social que enclausura a família. São diversas as obras presentes na residência, mas algumas parecem colaborar com a atmosfera onírica que perpassa a trama, sendo elas “Bacchanale”, de Salvador Dalí – a primeira de suas pinturas para o balé homônimo de Leonide Massine –, além de diversas pinturas de autoria de Francis Bacon, sobre as quais trataremos em seguida.

É somente no domínio do inconsciente, onde as obras outrora silentes e presas em sua harmonia interna encontram uma voz, que o filme consegue mesclar os conflitos interiores de Carol e os dilemas sociais de sua vida cotidiana. O cisne, retratado na pintura de Dalí como uma referência ao mito grego da rainha de Esparta, Leda, ganha dimensão e peso no sonho, perseguindo Carol num grande campo gramado. As telas de Bacon, por outro lado, se fazem notar numa escala ainda maior. Em meio à coleção de pinturas do referido artista, uma salta aos olhos. Trata-se de um dos estudos inspirados no “Retrato do Papa Inocêncio X”, realizado por Diego Velázquez em 1650. A tela consegue transformar a imagem do Sumo Pontífice, que, com um olhar austero, empunha em mãos a carta com a dedicatória e assinatura do grande retratista espanhol, em uma condição assombrosa, imersa em um ambiente claustrofóbico e obscuro que não parece ter começo ou mesmo um fim. O olhar certeiro, revelador e irrefutável da autoridade retratada reverte-se num grito, uma representação brutal, grotesca e fantasmagórica do Papa.

Serão esses os elementos presentes na pintura, a serem descortinados no inconsciente da personagem. O horror presente na obra, incialmente recluso nos limites da composição, é posto em evidência no plano do subconsciente. O homem que ocupava o trono papal na tela, metamorfoseia-se em todos os familiares de Carol, os quais um a um são vistos por ela tal qual a pintura, mimetizando seu urro atordoante. De feições cadavéricas e bocas abertas, eles se sentam com as palmas abertas sobre os apoios laterais das poltronas, parelhas à imagem presente na composição de Bacon. Ali, na infinitude obscura do universo mental da protagonista, realidade e sonho se embaralham, criando um mundo brutal e aterrorizante, revelado tão somente pelo contato com a pintura.

É interessante notar como todo o espaço de vivência dos Hammond reporta indiretamente a aspectos da pintura. Bacon trabalhou sobre o tema com insistência, criando uma série de dezenas de estudos, nos quais é perceptível a retomada de diversos elementos. Em diversas telas, identificamos ao redor do trono do Papa linhas finas que parecem encarcerar a figura em seu interior. De forma semelhante, são observados na decoração do quarto de Carol, elementos de ornamentação que se reportam às composições de Bacon. O dossel da cama, de um dourado metálico, traz à mente a estrutura de tons amarelos que encerra o troco papal. No consultório de seu analista, no quarto da falecida Julia, o preto parece imperar, nos reportando igualmente tanto à tela quanto ao pesadelo caliginoso de Carol.

Mesmo que de maneira indireta, a arte presente no filme detém um poder e exerce uma constante influência sobre a personagem. Assim, o filme trafega entre os limites do real e do ilusório. Se inicialmente a realidade alucinógena de Julia é replicada nos sonhos de Carol, transformando a ordenação de seu mundo real em um universo cada vez mais caótico e alucinatório, a presença macabra das pinturas de Bacon reitera o aspecto soturno do consciente e inconsciente da personagem. Sua relação de duplicidade com a obra ultrapassa a simples identificação com o personagem, como em Argento ou Miraglia. O domínio da arte se estende a todo o seu entorno.

O poder ameaçador da pintura, nos três filmes acima explorados, reflete como a arte é capaz de despertar sensações de medo e tormento naqueles que as olham. As imagens, em sua totalidade, parecem desenvolver um papel primordial em seu cinema, onde tal característica se mostra como uma obsessão. Elas enganam e elucidam, revelam e omitem. A pintura se mostra como uma porta de entrada para o mundo do inconsciente. Fulci e Miraglia igualmente trafegam por essa via. Não se trata apenas de um mero objeto inanimado. A arte é vista com a importância e presença de um personagem. Desde a identificação do assassino de O Pássaro das Plumas de Cristal à associação visual entre os personagens e as telas de Francis Bacon em Uma Lagartixa com Corpo de Mulher, é possível perceber como, por meio desse paralelismo com a pintura, um processo de transformação dos personagens se faz emergir.

O caráter de duplicidade ou mesmo de identificação entre arte e espectador é um tema que foi amplamente explorado nas diversas produções culturais, sendo inúmeros os autores que trataram do tópico no cinema, na literatura, na ópera e no teatro (Marcel Proust, Alfred Hitchcock, François Truffaut, Brian de Palma, Edgar Allan Poe, Thomas Harris, Lord Byron e H.P. Lovecraf). Assim, percebemos que são diversos os casos em que a pluralidade de questões tecidas no interior das imagens é salientada. O contexto específico do giallo italiano se estabelece no tipo de relação entre objeto artístico e sujeito. Nele, a arte é sempre nociva. Ela revive traumas, desperta medos e, por vezes, até mata.

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[1] Faço referência aqui ao efeito inquietante que o quadro em questão desperta em Anna Manni (Asia Argento), em Síndrome Mortal (1996), de Dario Argento.

Olhos Diabólicos (1963), de Mario Bava

Profanar o visível

Hannah Serrat

Olhos Diabólicos (1963) é sumariamente conhecida como a obra que deu início ao Giallo na Itália. O título original, La Ragazza Che Sapeva Troppo (cuja tradução literal para o português seria: “a garota que sabia demais”) faz referência direta ao filme The Man Who Knew Too Much, de Alfred Hitchcock, lançado originalmente em 1934 e regravado em 1956. Ainda assim, o título em português, que oblitera essa referência e parece recobrir o filme de uma aura muito mais macabra, é bastante propositivo. Afinal, Olhos Diabólicos, antes de guardar os traços que dariam lugar aos Gialli, trata de operar, de certo modo, uma constante profanação do olhar (que vê e/ou que é visto), entre o delírio, o desejo e a pulsão de morte.

A geometria dos enquadramentos (que é trabalhada, quase sempre, a partir da centralização dos corpos ou dos rostos das personagens no quadro) e a iluminação rigorosa do filme, último de Bava filmado em preto e branco, localizam seu interesse não apenas sobre aquilo que rege a ação dramática, mas sobre os olhares, expressões e os campos de visibilidade. Esse gesto, que coaduna com a construção de contracampos diametralmente opostos e com a operação da própria câmera assumindo momentaneamente o ponto de vista objetivo (e não subjetivo) de um personagem ou de um observador distante, além de colocar em jogo os dois lados da cena, parece convocar também certa espectatorialidade do cinema. Olhos Diabólicos interessa-se, assim, pelas dinâmicas do olhar não apenas de quem ocupa a cena, mas também de quem se vê diante dela.

Se lembrarmos de alguns filmes de terror na história do cinema, pensando mesmo em filmes do próprio Bava, como O Alerta Vermelho da Loucura (1970), por exemplo, é impossível não pensar no modo com que certa misoginia mobiliza, em grande parte, a composição das narrativas. De que modo um filme como esse, por exemplo, em que o protagonista psicótico dilacera os corpos de jovens noivas, as estupra e queima seus corpos em um forno industrial por não ter suportado ver sua mãe em segunda noite de núpcias, se destinaria às mulheres espectadoras? Qual seria, nesse sentido, o interesse do cinema pelos corpos femininos esfaqueados, incinerados, perseguidos e violentados, a não ser que ele se projetasse, exclusivamente, em uma espectatorialidade masculina? Em Olhos Diabólicos, o trabalho junto aos corpos das mulheres e aos olhares que a elas se destinam foi um pouco melhor desenvolvido por Bava, ainda que ele não chegue a se dedicar, propriamente, às questões políticas que concernem um recorte de gênero.

O filme acompanha a jornada da jovem americana Nora Davis (interpretada pela atriz italiana Leticia Román) durante alguns dias de passeio por Roma. Logo após a sua chegada, ela presencia a morte súbita de sua anfitriã, a Sra. Ethel, uma antiga amiga da família que já se encontrava enferma. Ao tentar buscar ajuda pelas ruas durante a noite, Nora é assaltada e jogada no chão por um homem desconhecido que foge em seguida. Quando consegue se levantar, com a vista ainda turva, a jovem testemunha, solitariamente, o assassinato de uma mulher. Assustada, Nora desfalece e recobra os sentidos, no dia seguinte, já em um hospital, sendo apontada como louca, neurótica, alcoólatra e mitomaníaca, ao narrar o que antes havia testemunhado. Sem se convencer de que a lembrança do crime havia sido apenas uma alucinação (como queriam fazê-la acreditar), Nora decide investigar sozinha a verdade sobre o assassinato, enquanto passeia por Roma como uma “perfeita turista americana”, na companhia de Marcello (interpretado pelo ator americano John Saxon), o médico italiano que cuidava da Sra. Ethel e que passa, então, a cortejar a jovem moça.

A protagonista é, portanto, uma mulher jovem, turista em uma cidade estrangeira, levada a passear pelas ruas, praças e monumentos, a alienar-se dos problemas, da vida e de si mesma, a esquecer seus testemunhos e tormentos. Antes ainda, o locus da narrativa é Roma, berço da beleza ocidental, onde tudo só poderia levar à contemplação desengajada e ao encantamento. “Este parece o tipo de lugar onde mulheres são esfaqueadas?”, pergunta Marcello à Nora. A jovem, no entanto, insiste no seu relato e se esforça para reconstruir a cena da noite anterior. Vemos a encenação, aparentemente delirante, de Nora no meio da escadaria, enquanto homens e mulheres, bem vestidas e de óculos de sol, passeiam normalmente no segundo plano.

Junto aos olhares que, mesmo em uma cidade turística, anseiam pela regularidade e pela ordinariedade da vida, Nora devaneia. Sua insistência surge como um ponto de tensão que nos dirige à loucura, ao desvario e à necessidade de interdição. Podemos lembrar, nesse sentido, outros importantes personagens que se aproximam de Nora: o jornalista que abandona tudo e passa anos obstinado em descobrir a identidade do “assassino do alfabeto” (como é chamado o serial killer que teria cometido outros delitos parecidos com o que Nora presenciou); o homem acusado injustamente de ser o assassino e que acaba em um sanatório após enlouquecer na prisão; e a personagem psicótica que perde a razão e é levada a cometer a sequência de delitos que Nora investiga. Ainda assim, é como se a regularidade do mundo é que estivesse fora do lugar. Como se aqueles tidos como loucos e delirantes viessem fraturar a conveniência das narrativas. Ver demais e, por consequencia, saber demais é incorrer em risco de morte. O desejo de ver é também um desejo de morrer ou, ao menos, de colocar-se em perigo.

Tendo isso em vista, há uma cena que me parece interessante. Depois de acompanharmos Marcello e Nora, tensos, à procura de uma pista que poderia esclarecer o assassinato testemunhado pela protagonista, vemos um pequeno deque de madeira sobre o mar. A câmera faz um movimento descendente e enquadra o corpo de Nora, deitado de biquíni na areia. O movimento continua lateralmente e seu corpo seminu é filmado da cabeça até os pés. Pouco depois, em plano-sequência, vemos a areia sendo tomada pela água do mar que vai e volta com pequenas ondas. Ao lado, Marcello está sentado, comendo amendoins, com a camisa sobre o ombro e o semblante muito sério, observando a jovem. Esse registro, ao mesmo tempo, reitera o desejo de Marcello por Nora e mobiliza, também, nosso próprio olhar, enquanto espectadores, diante do corpo da personagem que se apresenta com uma sensualidade singular. Não me parece que se trata, propriamente, de um gesto que objetifica a personagem, mas que atua na construção ativa dos olhares e dos desejos postos em cena.

Depois que percebe estar sendo observada, Nora senta-se e pergunta assustada: “Por que está me olhando assim?”. Marcello responde: “Não percebeu?” e se dirige em direção à jovem, enquanto ela grita: “Não, Marcello, não!”. Eros e Tânatos povoam a cena, com suas pulsões de vida e de morte. Se Marcello trata de mobilizar um desejo romântico, capaz de se encerrar com um beijo, Nora parece, ao mesmo tempo, recusar e desejar que esteja diante do assassino que tanto procurava. Incapaz de se projetar, aparentemente, no ímpeto amoroso de seu companheiro, a busca contínua de Nora surge não apenas de uma necessidade de esclarecer os fatos objetivamente, mas de se implicar no delito testemunhado, de lançar aí seu corpo e seus desejos, colocando-se a todo tempo em situações de risco e ansiando, constantemente, pelo confronto com o assassino. Ora, sem as ameaças e os riscos de morte, talvez a vida também se veja ameaçada, em sua força de mobilidade, de busca e de desestabilização.

A Dupla Face no Escuro (1969), de Riccardo Freda

A meio caminho da culpa

Thomas Lopes Whyte

 “Pecado oculto é pecado meio perdoado”

(Giovanni Boccaccio)

À vertiginosa sequência de perseguição que abre A Dupla Face no Escuro (1969), segue-se uma desastrosa e burocrática cena que retrata a paixão no começo do matrimônio entre John Alexander (Klaus Kinski) e Helen (Margaret Lee). Essa construção inicial serve para dar estofo às motivações do protagonista, oferecendo um referencial de passado fugaz para onde sua memória se volta, enquanto seu corpo vaga em busca de respostas. Um truque narrativo conveniente, mas que serve como representação fugidia de um paraíso que complementa o purgatório de sua vida burguesa e o inferno das ruas repulsivas por onde transita, apinhadas de patifes e prostitutas.

Logo no início da trama, após trocar o marido por outra mulher, Helen se envolve em um misterioso atentado e desaparece. John, seu herdeiro natural, se vê envolvido numa série de eventos misteriosos que o fazem vagar pela cidade em busca de um suposto assassino. Durante a jornada, sua natureza violenta é trazida à tona, em um crescendo que pode culminar num desfecho ainda mais trágico. Sendo assim, o diretor Riccardo Freda e o roteirista Lucio Fulci concentram os arquétipos gialli na figura do protagonista. Ao mesmo tempo, ele se apresenta como um simulacro dos detetives noir, mas também como uma tradução iconográfica dos ardilosos vilões de chapéu, sobretudo e luvas de couro. Por causa dessa ambiguidade representativa, a trama passa a cogitar a possibilidade de Helen estar viva, tornando a hipótese mais atraente que o próprio crime realizado.

Do ponto de vista taxonômico, o filme de Freda é uma produção multinacional dotado de uma mistura entre gêneros, tendo sido adaptado de um texto do britânico Edgar Wallace, protagonizado pelo alemão Klaus Kinski, rodado principalmente em Londres e co-produzido por estúdios italianos e alemães. É também uma obra encravada entre as estéticas do giallo e de seu predecessor alemão, o krimi. Apesar de conter em si, muitas das convenções do subgênero germânico, o longa parece aproximar-se mais dos filmes de Dario Argento e Sergio Martino. Contudo, vários dos pressupostos estilísticos incontornáveis ao giallo não se encontram lá. Quase não há violência gráfica ou mortes mirabolantes, também não existe um vilão sem face, e a trama não se desenrola a partir de assassinatos em série. Entretanto, o longa compartilha com seus sucessores italianos o estilo carregado de um exploitation operístico, alinhando-se à tradição exuberante do cinema popular feito por lá.

O filme, mesmo sendo uma espécie de proto-giallo (ou krimi tardio), não é necessariamente uma obra seminal. A fundação das tradições que compõem o núcleo duro do gênero ficou a cargo de outras experiências fílmicas. Por ter o compromisso duplo de agradar aos públicos de Alemanha e Itália, Freda talvez tenha optado por realizar um filme mais seguro e de menos contraste. De um lado, espectadores já familiarizados com uma tradição de quase uma década e, de outro, um mercado que já se acostumava com a sedimentação de novas estéticas, principalmente com as incursões de Mario Bava nesse novo subgênero cinematográfico.

Seria possível continuar falando, em termos gerais, de uma lógica formal do giallo, no entanto, assim como em todo e qualquer filme de gênero, o exemplar em seu estado puro não passa de mero espectro, ou seja, uma ilusão de caráter muito mais sugestivo que normativo. Mas, como a discussão individualizada das obras é permeada pela aproximação com seu gênero, é possível afirmar que A Dupla Face no Escuro está fadado a carregar um asterisco, com a seguinte observação: este filme, que é filho de dois pais, está naquela região pantanosa que as categorizações superficiais carregam consigo. Além dos aspectos geográficos da cadeia produtiva, o krimi e o giallo parecem representar tradições cinematográficas espelhadas, cujo principal eixo temporal é exatamente o período de transição entre o fim dos anos 60 e o começo dos 70. Época que representou muito mais que uma inflexão político-social, ao deslocar também vários dos paradigmas estéticos presentes na história do cinema.

A partir desse período, o cinema mainstream começa a se valer das contribuições opositivas ao sistema narrativo clássico, permeado por uma sistemática transformação estrutural na indústria cinematográfica. Nesse sentido, torna-se fácil perceber, de forma pragmática, a complexidade dessas alterações pelo viés estilístico. Se, por exemplo, observarmos a utilização da câmera subjetiva em três períodos distintos do cinema norte-americano, é possível ver a evolução acarretada por um virtuosismo barroco cada vez mais presente: em A Dama no Lago (1947), de Robert Montgomery, tínhamos a rigidez de experiências primevas mais radicais; em O Beijo Amargo (1964), de Samuel Fuller, percebíamos um domínio coreográfico totalizante no início do filme; e, em Operação França (1971), a expressividade frenética na perseguição de carro evidencia um controle absoluto desse recurso exercitado por Friedkin. Já no que diz respeito aos gialli, a subjetiva constitui um elemento difundido e, a essa altura, amadurecido pela história do cinema, permitindo que Freda explore sua ambiguidade, soltando pistas falsas ao longo do filme.

O filme de Freda foi lançado em 1969, ano em que as reverberações contraculturais culminaram na renúncia do general Charles de Gaulle na França. Do outro lado do Atlântico, os norte-americanos comemoravam a chagada de seus astronautas à Lua, ao mesmo tempo em que começavam a comandar a retirada de tropas do Vietnã. A morte de Sharon Tate nas mãos da família Manson e o assassinato de Meredith Hunter no show dos Stones anunciavam a transformação de uma cultura lisérgica que teria seu fim decretado pela cocaína. Começava a ressaca de uma década que não conseguiu permitir a existência de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. É esse o exato momento em que o cinema passa a filmar predominantemente em cores, apropriando-se das experiências formais dos jovens turcos, dos cineastas experimentais e dos pioneiros do cinema direto/verdade. Mas, ao contrário do technicolor das décadas anteriores, a policromia passa a ser utilizada para nos lembrar da feiura que habita o mundo, que é também feito de sangue, néon e muita violência. A textura da imagem que compõe o estilo cinematográfico moderno passa a depender da textura do mundo real, com suas paredes descascadas, sua poluição publicitária e sua cada vez mais sufocante sobreposição de signos urbanos em metrópoles como Roma, Londres e Nova York.

Das três alegorias dantescas mencionadas (paraíso, purgatório e inferno), duas delas estabelecem um espaço social a ser desvendado dentro do filme. O paraíso, tomado como uma miragem presa ao passado, possui um peso menor e não nos interessa tanto neste caso específico. Já o purgatório fílmico é o espaço burguês por excelência, que John compartilha com o sogro, um industrial milionário. É o casarão pesado, cheio de adornos, repleto de cimalhas e papeis de parede ao estilo William Morris, que amplifica, como uma panela de pressão, as angustias e neuroses do personagem. Ao inferno, cabe o espaço do gozo e do desperdício, do hotel-espelunca, das orgias e dos bares decadentes frequentados por John. São nessas paragens de semianonimato, livres de qualquer tipo de coerção social, que se manifesta a brutalidade masculina explícita de uma vida em descompasso. John Alexander guarda algo de Travis Bickle, protagonista de Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese. Ambos são incapazes de reconhecer as reais origens de sua ansiedade e, na tentativa desesperada de organizar o mundo fragmentado ao redor, acabam recorrendo a uma espécie de violência, compreendida por eles como a única forma de reestabelecer a ordem e a justiça.

Embora faça parte de um cinema vernacular, o giallo não costumava se interessar pela representação das camadas mais empobrecidas da população. Nesse sentido, é bastante comum que seus vilões, mocinhos ou anti-heróis pertençam às classes sociais de maior poder aquisitivo. Se, para resolver um mistério policial, o senso comum pede que apostemos as fichas no mordomo, o filme de Freda, bem como vários outros gialli, indica que talvez precisemos desconfiar dos proprietários da mansão, comprovando, assim, a centralidade econômica de seus personagens. Além disso, o filme não lança mão de arquétipos das classes populares tão comuns às narrativas de suspense, tais como o jornalista bisbilhoteiro ou o policial desajustado. Na contramão, quase todo o desenvolvimento do plot está ligado aos conflitos psicológicos de John, fato que distancia de vez a obra de uma diversidade socioeconômica.

O mundo da alta roda no qual o protagonista se insere é travestido de aparências. O mesmo território desintegrado que nos é mostrado nas ruas de Londres é também aquele do interior da alcova, distinguindo-se apenas em suas abordagens psicológicas. No primeiro caso, a câmera urbana movimenta-se de forma desimpedida, mais ou menos subjetiva e espasmódica, mostrando a cidade noturna, sedutora e decadente, a partir dos reflexos no capô branco do carro. Já no segundo, de forma contrastante, as tomadas de interior são carregadas de uma teatralidade arcaica e movimentações de câmera contidas. Entretanto, tomando-se a figura de John como centro organizador desse universo, a única diferença entre esses lugares é a forma como se manifestam. O interior-exterior são faces distintas de uma mesma moeda, expressões opostas do mesmo mundo brutal.

A violência em A Dupla Face no Escuro não ocorre de maneira explicita, com navalhadas, sangue, violação de cadáveres etc. Ela está lá, na forma de sexo (não no ato em si), paranoia, repressão e quase sempre sob um manto muito fino de aparente normalidade. A exibição da nudez nos cinemas populares, geralmente, está fora da esfera atribuída à obscenidade, entendida aqui como o desvelo de algo interdito que implica a quebra de uma moralidade vigente e específica. Esse tipo de cinema dos anos 60/70 é concomitante à revolução sexual em curso e, por esse motivo, já incorpora, com certa naturalidade, alguns padrões imagéticos – principalmente a nudez feminina -, que seriam impensáveis em outros contextos sociais. É bom lembrar que, apesar de todo o apelo sexual dos gialli, é muito raro que as vítimas, em sua maioria mulheres, sejam estupradas por seus algozes.

A redefinição dos limites da crueldade acontece em campos que dialogam com a psicologia e a representação das perversões (sejam elas criminosas ou não), e não propriamente com a violência sexual em sua forma explícita. A exploração da obscenidade e da sexualidade em A Dupla Face no Escuro é quase sempre observada através de suas lacunas. Uma ausência de poder, seja material ou não, é transformada em força destrutiva e neurose por um homem que vê o afeto, as mulheres e o poder como commodities, que deveriam ser suas por direito. E é da fenda gerada a partir do mundo real de privações e das maquinações delirantes do protagonista-vilão que surgem os desvios e taras que o destroem. É a partir daí, da exposição de tabus outros, e não da nudez, que o giallo constrói seu sentido de transgressão.

É por esse viés que se justifica a descida de John ao submundo. Só a partir do atrito entre indivíduo e sociedade que sua violência, até então adormecida, começa a se revelar. Aos poucos, o interesse investigativo que coloca a trama em movimento teleológico, cede lugar às digressões narrativas que misturam doses de prazer oculto com pitadas de sadismo reprimido. A perversão e a violência não são apenas a chave das interações do personagem com esse ambiente sórdido. Ela também o contamina e o conecta com o passado, representado pela aparição fantasmagórica da esposa morta, em um filme pornográfico que é uma espécie de síntese hipnótica do universo snuff. No fim, todo o mistério desemboca em uma arapuca, tramada pelo sogro, que, na tentativa de livrar-se das acusações do assassinato da própria filha, arma um flagrante contra John, ao tentar induzi-lo a um novo homicídio. Por mais complexo que isso soe, a questão colocada é simples e resumida no clássico beco sem saída da criminalística que é a psicopatia. O que separa o protagonista do assassino é uma camada circunstancial finíssima.

A dupla face de John só não descamba para o ato último do crime, por mero acaso e falta de oportunidade. Em uma das melhores cenas do filme, quando ele ameaça uma mulher com uma garrafa de vidro quebrada, é possível perceber a volatilidade de uma personalidade que anda sempre no fio da navalha. O principal problema do filme, no entanto, é tirar o pé do acelerador. Ao recusar o mergulho em profundidade nos temas que apresenta, o longa se perde em meio a muitas cenas desnecessárias, relacionadas principalmente à sua narrativa investigativa confusa. As várias questões elencadas são colocadas de forma morna e quase sem contraste. Há um recuo em relação à natureza expressiva do próprio giallo, o que faz com que poucas cenas sejam memoráveis, ainda mais se pensarmos a obra dentro de uma tradição que privilegia justamente o efeito estético.

Seja em qual registro for, realista ou não, o filme segue por um terreno neutro, sempre na penumbra e sem radicalidade. Os cenários (principalmente os internos) e a ação padecem de uma artificialidade anacrônica, muito distante daquela experimentada por diretores como Dario Argento e Mario Bava. Se, de um lado, não há a explosão expressiva de cores de Seis Mulheres para um Assassino (1964) ou Prelúdio para Matar (1975), tampouco existe a sujeira realista de Cães Raivosos (1974). Nem mesmo as tradicionais reviravoltas rocambolescas, que geralmente eximem o filme de uma pretensão visual maior, estão lá. A jornada interna de John não se complementa organicamente com a trama paralela de investigação da polícia, que, em termos narrativos, serve apenas para resolver forçosamente os problemas de roteiro, como artifício deus ex-machina.

Mais velho que os principais expoentes do giallo, Freda parece um pouco desajeitado na articulação de seus referenciais e pouco confortável com o novo horizonte cinematográfico gerado a partir da transição entre krimi e giallo. Ao contrário dos demais, o ciclo de horror que se iniciava demarcou o período final da carreira do diretor, e não seu auge. Se, em A Iguana da Língua de Fogo (1971), vemos um filme mais impetuoso e explosivo, em A Dupla Face no Escuro, para continuar com a terminologia religiosa empregada até agora, vemos uma obra que sugere um mergulho ao inferno, mas parece não possuir fôlego suficiente para ir tão a fundo em sua investida. No fim das contas, assim como John, que termina a história em suspensão, o filme acaba agonizando no purgatório.