Purgatório Heróica (1970), de Yoshishige Yoshida

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Os fantasmas de Kiju

Thomas Lopes Whyte

Geralmente, quando nos perguntam do que se trata um filme ou pretendemos indicar algum a alguém, costumamos falar um pouco do enredo, dos personagens e até usamos, de vez em quando, outras obras como referência para deixar as explicações mais claras. No entanto, descrever a trama de Purgatório Heróica (1970) não só não diz absolutamente nada a respeito do filme, como pode acabar gerando uma ideia equivocada a respeito da essência do trabalho desenvolvido por Yoshida.

O filme pertence a uma trilogia, no sentido vago do termo, ao lado de Eros + Massacre (1969) e Golpe de Estado (1973). As três obras, ambientadas durante períodos conturbados da política japonesa, não só apresentam, como discutem os processos de formação social do Japão a partir do século XX e coincidem com a fase mais experimental da filmografia do diretor.

Yoshishige Yoshida, conhecido também como Kiju Yoshida, foi um dos mais prolíficos diretores da Nouvelle Vague japonesa. Ao lado talvez de Nagisa Oshima e Masahiro Shinoda, foi um dos principais responsáveis pela renovação do cinema japonês durante as décadas de 1960 e 1970. Autor de algumas das mais criativas obras do período, o diretor se notabilizou, principalmente, pela heterogeneidade de seu trabalho, e realizou, com sucesso, filmes com as mais variadas propostas estéticas. É possível dizer, sem muito rigor conceitual, que a obra de Yoshida, em todas as suas vertentes, é uma boa síntese do movimento de renovação do cinema japonês. Durante sua prolífica carreira, desde seus primeiros filmes na Shochiku até sua fase independente, realizada com o aporte da Art Teather Guild, o diretor conseguiu se manter fiel à sua política de cinema de autor, baseada em um conceito pessoal que preconizava a reinvenção de si mesmo e permitia o surgimento de novos impulsos criativos, fundamentais para a renovação constante de seu trabalho.

Mas afinal, qual é a trama de Purgatório Heróica? O filme apresenta a visão de Yoshida do que seria a síntese do ambiente onde se desenvolveram as lutas dos movimentos estudantis japoneses durante o período que se seguiu à ocupação norte-americana. A história inicia com o aparecimento de uma jovem na residência de um casal, trazida pela esposa, interpretada por Mariko Okada. A partir da visita de um homem que se diz pai da mulher mais jovem e da introdução desses dois corpos estranhos que alteram a dinâmica de convívio estabelecida entre os personagens principais, o marido Rikiya Shoda, começa a reviver o passado, em que frequentava a universidade e participava dos movimentos estudantis. Dá-se início então a uma série de conspirações e reviravoltas, definidas menos pela objetividade das situações e mais pela subjetividade das interpretações pessoais de Yoshida acerca do mundo.

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A leitura de Yoshida da ação militante, colocada como pano de fundo do filme, difere da visão idealista de outros artistas e cineastas próximos a ele. Dono de um posicionamento mais sutil e distanciado, o diretor prefere negar a institucionalização da política e vê com desconfiança a atuação dos diversos agentes envolvidos na reconstrução democrática do Japão. Para ele, o embate político dicotômico, fortalecido pela Guerra Fria, gera uma situação de inerente violência institucional, uma disputa de poder exercida, principalmente, pela força e acentuada pela radicalização ideológica, muitas vezes incentivada por seus próprios colegas cineastas, a partir da exploração gráfica e explícita da violência. Algumas dessas características se refletem nas ações dos personagens do filme, que, ao contrário do que poderia se esperar de uma trama política com suas reviravoltas, conchavos e violência, são desenhados de forma a desempenhar seus papéis da maneira mais maquinal e econômica possíveis. A farsa do próprio jogo político reverbera na forma artificial com que as situações são expostas no filme, quando por exemplo, em determinado momento, o diretor passa a integrar o elenco, juntando-se aos demais revolucionários.

Purgatório Heróica é um filme de características expressionistas em que os processos narrativos se dissolvem em benefício dos efeitos sensíveis causados. Os contornos da história e dos traços psicológicos dos personagens tendem a uma incompletude e preferem o refúgio da subjetividade encontrada no inconsciente. As pessoas de Kiju possuem um espírito opaco, seco, e parecem constantemente assombradas por um vazio insolúvel que as impele à condição de personagens dentro do purgatório cenográfico da obra. Mantêm um tipo incompleto de existência, cuja forma artificial e maquinal dos deslocamentos e os movimentos bem marcados ganham ainda mais expressão quando delimitados pela ambientação estéril e a música fantasmagórica que permeiam todo o filme. À semelhança dos filmes Kwaidan [1], existe uma aura etérea e um certo horror psicológico imanente capazes de criar uma sensação de constante tensão e desconforto.

Assistir a Purgatório Heróica é, sobretudo, uma experiência sensorial, por mais vaga que essa afirmação possa soar. A precisão e linearidade com as quais as sequências são projetadas, o desequilíbrio consciente na composição de massas que se alternam durante o desenrolar das cenas, mapeadas e delimitadas por uma fotografia que explora o contraste, proporcionam um estranhamento que não ousa se opor à clareza e inteligibilidade completa das formas propostas pelo diretor.  A quase totalidade de sequências é rodada em ambientes antrópicos, galpões, rodovias e pátios industriais, que fornecem pontos de referência sobre os quais se desenha um preciso sistema de enquadramentos. Yoshida propõe a construção de uma linguagem universal, baseada em uma estética pura, de eixos, geometrias, ortogonalidades, perspectivas e contrastes que lembram em linhas gerais os conceitos teosóficos de Mondrian, sua sacralização do abstrato e a valorização da elementaridade e individualidade dos corpos. Tivesse optado por filmar em cores, Yoshida as teria explorado talvez como entidades indivisíveis, isoladas, uma continuação do próprio modelo de contraste radical que nega por completo a composição pictórica e imprecisa das manchas cromáticas.

É interessante, porém, ressaltar os riscos decorrentes dessas escolhas: o diretor caminha ao lado de um perigoso e tênue limite que o separa, por pouco, do formalismo às vezes hermético de um cinema puramente experimental. A montagem privilegia a autonomia de cada sequência, transformando o filme em uma sucessão de fragmentos, cada qual com uma lógica interna própria e sua correspondente micronarrativa dos espaços. Recurso cômodo que, em determinados momentos, parece esconder uma insegurança do diretor em manter os pontos unidos de forma mais coesa.

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É possível fazer leituras localizadas e destacar alguns temas que atravessam a macroestrutura do filme. Dentre eles, além das questões histórico-políticas já mencionadas, a sexualidade japonesa representada, principalmente, através das personagens femininas, é um ponto fundamental na proposta da obra. É evidente hoje, para quem está um pouco familiarizado com aspectos da cultura japonesa, que a sexualidade ali é extremamente complexa e singular. Apesar da estreita relação do binômio arte/sexo possuir raízes profundas no Japão, a exemplo da arte Shunga e das famosas xilografias eróticas de Hokusai, o despertar de uma cinematografia que tratasse do tema com relativa liberdade só ocorreu após um longo período de militarização e de forte censura. Além do fim dos 50 anos de repressão, que separaram a retomada do tema no último período democrático anterior à guerra da era Taisho [2], o rápido e tortuoso processo de ocidentalização do pós-guerra e a mudança do público frequentador dos cinemas para uma população mais jovem, forneceram os ingredientes necessários para o florescimento de um dos mais fortes fluxos de cinema erótico do período. Fenômeno que teve relevância não só na indústria de filmes local, mas também em mercados distantes, como o brasileiro, que após a exibição de Império dos Sentidos, de Oshima, em 1976, se viu forçado a intensificar o conteúdo pornográfico de sua produção, acelerando o processo de decadência de movimentos como o da Boca do Lixo.

No filme de Yoshida, o erótico é latente durante a maior parte do longa e manifesta-se sobretudo através das quatro principais personagens femininas da trama, que tipificam certas noções dos papéis sociais da mulher japonesa. Antecipando a leva de Pink Movies [3] e algumas das temáticas que seriam exploradas de forma mais gráfica no cinema japonês dos anos de 1970, as personagens de Purgatório Heróica se envolvem em relações que abordam pontos referentes não só à sexualidade, como também de gênero e violência. Através das características psicológicas de cada uma das quatro mulheres, a narrativa constrói uma teia cujo centro parece ser o engenheiro Rikiya Shoda. A partir daí, assentam-se questões do mais amplo espectro, que vão das relações conjugais e sutil solidão de Mariko Okada a expressões mais obscuras da psique, como bondage, incesto e hipoxifilia.

De qualquer forma, até mesmo em um território de ruptura como a Nuberu Bagu, Purgatório Heróica se sobressai como um filme de difícil apreensão. A ordem da ação é constantemente invertida, a função dos personagens é alterada a todo momento e a impressão que se tem é que Yoshida estabelece um tipo de jogo abstrato, cheio de lacunas e com peças suficientes para uma montagem apenas parcial do quebra-cabeças. Tentar compreender o filme baseando-se exclusivamente nos eventos narrados pode se tornar um exercício às vezes frustrante e quaisquer tentativas determinadas a estabelecer paralelos de tempo e espaço com maior precisão poderiam não passar de meros palpites. Poderiam, porque apesar do caráter elusivo, é possível em algumas passagens identificar com clareza os mecanismos simbólicos utilizados pelo autor, como expressões de suas neuroses e conflitos internos.

Se a Nuberu Bagu reivindicou para si o ato político de negar o sistema aplicado pelas grandes produtoras e proclamou a autonomia do autor, foi através de Yoshida e, principalmente, em Purgatório Heróica, que a expressão da individualidade (às vezes, impenetrável) do artista aconteceu em uma de suas vertentes mais potentes e radicais. Seu esquema formal ainda parece um pouco duro e preso a uma concepção pragmática e pouco orgânica, bastante distante do Antonioni que Yoshida admite ter como inspiração, mas o ato de submeter o filme somente ao crivo pessoal, entrincheirando-se contra produtoras, outros diretores e até mesmo público, coloca o diretor e sua obra no centro de uma discussão importante a respeito da soberania autoral. A partir de certo ponto, a atmosfera da obra não consegue ser mais transposta e o filme, enigmático, passa a ser somente de Kiju e de ninguém mais.

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Notas:

[1] Os Kwaidan, filmes de fantasma, existem pelo menos desde a década de 1930, mas se popularizaram principalmente a partir dos anos de 1950, com o diretor Nobuo Nakagawa. São obras baseadas em contos de vingança, protagonizados principalmente por mulheres. Um subgênero também muito popular dos filmes de fantasma é o Kaybio Eiga, contos sobrenaturais sobre gatos monstruosos, possuídos por espíritos vingativos femininos.

[2]O período Taisho, inicia-se em 1912 com a morte do imperador Meijie prolongou-se até o ano de 1925. Foi uma época turbulenta, de grande efervescência cultural,que precedeu a era Showa, marcada no pré-guerra pela intensa militarização, crescimento do nacionalismo e censura.

[3]Pink Movies, conhecidos no Japão também como Pinkueiga, são filmes com temática sexual e nudez feminina. Popularizaram-se no mercado interno japonês a partir de pequenas produtoras que exploravam o vácuo deixado pelo fracasso do sistema de estúdios nos anos de 1960. São filmes do tipo exploitation, geralmente realizados com pouco orçamento, com narrativas simples e que recorrem com bastante frequência à violência gráfica.

Demônio de Neon (2016), de Nicolas Winding Refn

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A exuberância de uma caixa vazia

Douglas König de Oliveira

No cinema, nunca foi fácil definir os termos da tensão entre forma e conteúdo.  Alguns os consideram elementos indissociáveis, enquanto outros identificam realizadores que investem claramente em apenas um deles. Existem cineastas que têm seus ideais morais e políticos decalcados em cada instante de suas obras, no que se convencionou chamar de cinema engajado. Outros preenchem seus filmes de um discurso estético cifrado, que comunica algo mais (ou menos) que a crônica dos fatos que a câmera focaliza. Algumas vezes ocorre de, em certa fase da carreira, diretores conseguirem homogeneizar estes dois discursos, o material imagético e sonoro com o texto, ou melhor, com a síntese discursiva que a obra vislumbra. Mas é comum se refugirem no que fazem de melhor ou no que lhes interessa realizar através do cinema. Disto nasce tanto o estilo e a abordagem características de um cineasta, quanto as limitações e muitas vezes os pontos de estagnação ou ruptura de sua obra.

Essa possível dinâmica crítica nos auxilia na ingrata tarefa de “avaliar” uma obra cinematográfica. O cineasta se coloca com o seu aporte dispendioso de pessoal e equipamentos, além da aventura nem sempre tão gratificante de transferir suas ideias para um filme. O avaliador busca seus índices, compara, tenta decifrar um sentido tácito. Não um significado claro e unívoco, mas um lastro que não torne prepotente a tarefa de se aproximar do filme, de fechar um juízo. Pois o filme nasce também de várias lacunas, e sua encarnação muitas vezes é fruto de um processo de decantação sobre o qual nem os diretamente envolvidos têm total controle. Posto no mundo, nas duas horas em que geralmente dura, ele suscita um encontro que só interessa criticamente se o tomarmos como algo entre o realizado e o provisório e, ativamente, o completarmos com nossas impressões, tanto intelectuais quanto emocionais.

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Quando um crítico se aproxima da obra de um esteta, artista que se empenha mais na forma do discurso do que no seu sentido ou no valor que este sentido teria fora das fronteiras da obra,ele pode fazer algumas escolhas, e cada uma trará consequências diversas. Ao analisar a obra de um diretor como Stanley Kubrick, um eminente esteta a partir de certa fase de sua carreira, dificilmente saberemos sua opinião,até mesmo sobre o assunto que aborda no filme, pois seu compromisso não é com a transmissão clara de uma mensagem, mas uma construção sobretudo visual, que admite o obscuro, o irônico e o controverso. Não é tanto a ideia de um ser superior em 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), a alienação do escritor em meio a influências sobrenaturais em O Iluminado (1980) ou as consequências da ultra-violência em Laranja Mecânica (1971) seu foco principal, mas a forma como as reporta através da técnica cinematográfica. Ou seja, através de seus filmes não sabemos com certeza se Kubrick acredita em Deus, na manifestação dos mortos ou se uma sociedade em que a violência é uma força expressiva relevante é viável. Estetas são também Hitchcock, George Lucas e Gaspar Noé.  Já num filme de Michelangelo Antonioni, Luis Buñuel ou Lars Von Trier, o tema é a força primordial do discurso, apesar de serem autores de importantes inovações formais. Com todo esplendor visual de O Eclipse (1962), O Discreto Charme da Burguesia (1972) e Dogville (2003), o discurso de crítica social dessas obras continua marcante, em consonância com os credos dos próprios autores. Certamente, Antonioni se opõe à troca dos sentimentos por bens da sociedade capitalista, assim como Buñuel ironiza os valores burgueses e Von Trier os que edificam a sociedade norte-americana. Não é possível realizar uma hierarquia de qual cinema é mais valoroso, pois encontramos qualidades e exceções a este modelo em inúmeras ocasiões. Um equívoco que pode acontecer é tomar uma espécie de cinema pelo outro e tentar realizar, com recursos exclusivamente próprios, de crítico ou espectador, a síntese da obra com elementos que ela não possui, e mesmo opostos a ela.

Esse pequeno histórico serve para classificar o novo filme de Nicolas Winding Refn na categoria de uma obra de esteta. Existe um discurso critico que por vezes eclode do filme, mas que é logo acachapado pela utilização de recursos visuais bastante atraentes e bem executados tecnicamente. Se no inicio do filme existe um registro claro e realista que remete ao aclamado Drive (2011), prometendo um enredo simples de uma jovem que busca ascensão no mundo da moda, a segunda metade se adéqua ao que também costumamos ver em outros filmes do diretor, como Apenas Deus Perdoa(2013), em que o enredo se torna uma sequência de cenas delirantes e de forte simbolismo (forte não exatamente por ser eficaz para a trama).

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Em Demônio de Neon (2016) a protagonista não tem uma preexistência relevante e as tramas em que se envolve posteriormente também não são interessantes ou trazem uma identificação marcante. O desenvolvimento inicial aparenta algo da desdramatização de Um Lugar Qualquer (2010), de Sofia Coppola, tanto pela beleza das cenas e composições quanto pelas atuações sensíveis dos atores e o encadeamento claro das situações, mesmo sem os tempos fortes. Exceção absoluta neste início de filme para a atuação risível de Keanu Reeves, num deslocamento exagerado até para o seu limitado espectro dramático. O que se segue a partir da metade do tempo de duração é a antítese desse momento inicial, com uma marcada trama de concorrência entre as poucas personagens do mundo da moda, em que a protagonista é vista como uma perfeição idealizada, e seu sucesso como o sinal do ocaso da carreira dessas modelos experientes. Para este “segundo ato”, Nicolas Winding Refn não se furta das mais explícitas intenções e ações dos personagens, além de estratagemas provocativos que vão do canibalismo até a necrofilia. Não que estes expedientes sejam vetados a uma produção cinematográfica de relevo. Peter Greenaway utilizou de forma original e mesmo divertida a necrofilia em Afogando em Números (1988), e Ingmar Bergman foi por vezes provocativo em filmes dramáticos com episódios de mutilações e vampirismo. Mas o escopo da crítica que Refn realiza ao mundo da moda é frágil demais para saltos de intensidade deste tipo, soando forçados e apelativos.

Voltando à distinção inicial, podemos achar valor nas construções imagéticas de Demônio de Neon. Para muitos isto basta no estágio atual do cinema, com sua tendência à reminiscência e a reciclagem de materiais, e a relevância da abordagem do tema fica para outras instâncias, como se para o cinema bastasse uma lógica de satisfação interna, desvinculada de outras expressões no mundo. Essa é a virtude dos estetas e pedir mais que isso deles é problema do crítico, ou do público, não do realizador. Podemos cavar trincheiras e nos armarmos com estes signos na página em branco, como eram as impressões datilografadas ou registros manuais a lápis ou caneta (ou tinta e carvão, antes de existir cinema). Mas o diretor de cinema escreve com um material caudaloso, que é o fluxo encantatório da imagem. Se ao final não temos um arremate digno de figurar fora das telas, sendo assunto no posterior da sessão ou reclamo sobre algo que repercute para além do filme, como foi o comentário pífio de Nicolas Winding Refn sobre o mundo da moda, talvez haja um processo de esgotamento do filme em si, e só quem se contenta com o mundo exclusivamente mediado pela tela iluminada numa sala escura vai se dar por satisfeito. O crítico vive entre duas dimensões, a da obra cinematográfica e a da área comum às outras expressões, onde cada gesto e discurso compõe o panorama da agência humana, muitas vezes, representada tão bem pela arte. Fica para o lado de fora, onde as coisas realmente acontecem, e os filmes às vezes nos fazem ver melhor, balizar o grau de sua (ir)relevância.

 

 

Nanami – O Inferno do Primeiro Amor (1968), de Susumu Hani

 

11 NanamiConto da inocência do olhar

Adolfo Gomes

“Os bebês são apenas olhos – têm de ser. Não sabem nada e educam-se pelo olhar”.

 (Donald Richie)

O Pós-Guerra parece ter encurtado o tempo. Hoje temos uma ideia precisa dessa nova cronologia, provavelmente imposta pelo desencanto. É preciso se distanciar do horror o mais rápido possível, daquele que passou e do que subsiste no nosso cotidiano. Um mal-estar perpassa Nanami – O Inferno do Primeiro Amor (1968), mas não como sintoma da fugacidade das coisas. O que o filme de Susumu Hani nos oferece é ainda mais radical: a renúncia completa a uma ideia do futuro.

As personagens de Nanami dirigem-se ao passado, à infância, por mais traumáticos que possam ter sido os primeiros anos de suas vida. Tudo começa com um movimento interrompido: um encontro amoroso não concretizado. Tudo termina antes desse encontro se efetivar, a despeito de haver (ou emergir) amor ali – ao longo do percurso. Hani acredita que os gestos sociais, a fatalidade da história e o meio-ambiente não são capazes de conspurcar a inocência original do nosso olhar sobre as pessoas e a natureza.

É no olhar que ele edifica o seu filme, entre o voyeurismo e “a mecânica do ver” – tal e qual uma câmera, “inescrupulosamente capta o real” (Bresson). É menos interessante, para não dizer demasiado esquemático, o desenvolvimento da trama: a operação, ora oportunista, ora preguiçosa, de acomodar as informações essenciais para a progressão narrativa dentro de um regime naturalista, quase documental.

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A imagem, no entanto, é mais livre aqui, seja pelas diversas texturas utilizadas por Hani, seja pela irrupção memorialista que a origina. A busca por esse olhar fragmentado, mental, resulta, em última instância, no que Nanami conserva de mais eloquente, para além do verniz da época: a contestação e a quebra de paradigmas. Em entrevista a Lucia Nagib, para o livro “Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa”, o cineasta comenta que o movimento cinematográfico francês ajudara a legitimar o processo de implosão do modelo de produção dos estúdios nipônicos no período. Há sempre uma questão econômica em qualquer ruptura, porém, a expressão artística requer algo menos circunstancial para continuar em curso, para escapar à sua temporalidade.

E se o filme de Hani, sob a capa do explotation existencial, do teatro macabro da fetichização do corpo, ainda respira é, em grande parte, por conta da inocência do (seu) olhar que nos alcança.  Longe de ser uma inocência pacífica, conciliatória, atenuante, ela está no centro do drama, da crise. “Se o personagem é realmente inocente, tem que parecer deslocado, destrutivo, criminoso”, define o próprio cineasta.

A criança, ou até mesmo a morte, conforme essa poética,  surge como o refúgio – e também como negação – à contaminação do nosso olhar. Neste sentido, a inflexão de Hani permanece vigorosa. Nanami é o revés intrauterino do filme sobre a juventude. Tem a violência do nascimento, o desespero da vida e a promessa de que nossos olhos podem ser livres e incólumes àquilo que nos olha sem cessar: o horror e o vazio da existência.

O Enforcamento (1968), de Nagisa Oshima

8 EnforcadoO último dia de um condenado qualquer

João Campos

“Condenado à morte! Ora, por que não? Os homens, lembro-me de ter lido em não sei que livro, no qual apenas isso de bom, os homens estão todos condenados à morte com sursis indefinidos. O que tanto teria mudado na minha situação, então?”.

(Victor Hugo, “O Último Dia de um Condenado”)

I

Uma obra paradigmática, um filme-manifesto. O Enforcamento (1968), primeiro projeto inteiramente planejado e realizado pela ATG (Art Theatre Guild)[1], nos confronta com sua potência poética e política. No filme, Nagisa Oshima vai de encontro à delicada realidade da pena de morte, através de formas ousadas e, sobretudo, provocativas. Nesse texto, proponho uma leitura livre de tal obra complexa e incômoda, bela pela asfixia que nos proporciona.

Para dar início à reflexão, voltemos nossa atenção para outra obra canônica, mas da literatura: “O Último Dia de um Condenado”, de Victor Hugo. Neste livro, o autor explora as curvas da sensibilidade de um condenado à morte até seus últimos instantes de vida. Experiência estética e política que marcou a história da literatura mundial, exercendo grande influência em diversos autores posteriores, entre eles Dostoiévski, essa obra pode nos servir de base para interpretar o filme de Oshima. Ao deslocar nossa atenção para a intimidade do condenado, abstendo-se de todo e qualquer julgamento moral e jurídico, Victor Hugo e Oshima nos apresentam, cada qual à sua maneira, o invisível ou invisibilizado: a pessoa por trás do criminoso, sua intangibilidade, isto é, sua sensibilidade.

O trabalho literário de Victor Hugo representa, com efeito, uma cisão formal e temática. Devemos lê-la, simultaneamente, com uma grande obra de arte e um eficaz tratado abolicionista. No prefácio de 1832, escrito pelo autor, encontramos o seguinte trecho sobre o livro:

Ele declara, portanto, e repete, e insiste, em nome de todos os acusados possíveis, inocentes ou culpados, diante de todas as cortes, todas as audiências, todos os júris, todas as justiças. Este livro é dirigido a qualquer um que julgue. E para que a defesa fosse tão ampla quanto a causa, ele teve – e é por isso que “O último dia de um condenado” foi assim escrito – de extrair de todas as partes de sua matéria o contingente, o acidental, o particular, o especial, o relativo, o modificável, o episódico, a anedota, o acontecido, o nome próprio, e se limitar (se é que isso é se limitar) a defender a causa de um condenado qualquer, executado num dia qualquer, por um crime qualquer. Será feliz se – sem outra ferramenta além de seu pensamento – conseguiu perscrutar o suficiente para fazer sangrar o coração sob aes tríplex do magistrado! Feliz, se conseguiu tornar lamentáveis os que se acreditam justos! Feliz, se à força de escavar o juiz, pôde algumas vezes encontrar um homem![2]

É exatamente isso que Oshima realiza com O Enforcamento: ao escavar o juiz, a lei, o processo, ele encontra o homem. Na mise-en-scène, o filme transforma o que se considera justo em lamentável e, devo acrescentar, ridículo.

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II

O Enforcamento começa com uma espécie de survey, demonstrando que a maioria da população japonesa (71%) é contra a abolição da pena de morte e, logo após, provoca o espectador com a pergunta: “mas vocês, 71% que se opõem à abolição, já viram uma câmara de execução?”. Depois de uma incursão etnográfica na câmara de execução, para mostrar aos 71% com uma precisão matemática o espaço físico do coração das trevas, o filme mergulha nos interstícios entre o onírico e a realidade documentária.

Após sobreviver à sua execução, R, um criminoso coreano acusado de estuprar e assassinar duas garotas, sofre de amnésia, talvez pelo choque do enforcamento, talvez por outra razão. O que se sabe é que esse acidente dá início a um evento inédito: sem ter consciência de seus antigos delitos, R não pode ser executado novamente, pois precisa assumir sua culpa e confessar seu crime para que o processo da execução recomece. Sob a égide da lei e do protocolo, os carrascos levam os condenados ao cadafalso. A banalização do mal também se encontra em tais situações, em que se mata para seguir a lei. Porém, a lei não dá conta da contingência inesperada. Para resolver o problema, os carrascos buscam injetar memórias em R através da encenação. Se a lei não consegue enquadrar o deslizamento, a performance, sem dúvidas, o fará.

O que se segue é um grande teatro da contingência, onde a realidade estanque da lei e do protocolo entra em curto-circuito com a poética, o imaginário e o episódico. A possibilidade do inesperado ou impossível nos solicita um exercício interpretativo. Somos levados a esticar o real, abrir caminho para o desejo e, sobretudo, o delírio. Aqui começa um confronto entre o sonho e a vigília.

III

Podemos dividir o teatro supracitado em três camadas, sendo que na passagem de uma a outra, o espaço cênico vai se misturando com a realidade crua. Ao mesmo tempo em que Oshima mergulha no onírico, os delírios tomam forma de real. No primeiro terço da obra, os carrascos reencenam os delitos e o histórico de R dentro da câmara de execução, buscando inculcar a culpa no condenado para que esse confesse seus delitos e, assim, possa ser executado. Tal processo atravessa todo o filme, levando-nos a pensar a obra como uma versão realística e intensificada da peça desenvolvida dentro dela. Em outras palavras, essa performance coletiva toma forma de real na medida em que o imaginário é assumido enquanto real. Assim, R vai entrando no jogo teatral, buscando compreender quem de fato é, enquanto seus assassinos passam pelo mesmo processo, mas com a finalidade de cumprir o protocolo, isto é, matar.

No segundo terço, o número de personagens na trama de Mnemosine aumenta, papéis são distribuídos aos carcereiros, ao padre e R entra no jogo. Aqui, a câmara de execução também sofre uma transformação. Os espaços da performance e do público (no caso, o promotor de justiça, abaixo da bandeira do Japão) são destacados, jornais são colados nas paredes, indicando que algo distinto ocorre ali. Nosso enredo se alastra para a história familiar de R e um drama surge: o suplício do estrangeiro, mais especificamente, dos coreanos em solo japonês.

Enfim, o palco se torna a rua. Nessa etapa, todos se encontram imersos no intrigante universo imaginário criado pelos carrascos de R. O delírio toma, para os espectadores, forma de real. O cotidiano urbano se combina com o experimento iniciado no cadafalso. Nessa espécie de ritual, o retorno à câmara sinaliza uma mudança gradual entre estados. R assume ser R, mas nega sua culpa. Como nos ritos de passagem, uma renovação é germinada no âmago do personagem, uma travessia ocorreu. R se torna um foco de resistência, metáfora histórica do martírio estrangeiro. O grito do condenado ressoa: “eu não sou culpado”. Ao nos depararmos com o vazio na forca que executa R, encaramos a opacidade da pena de morte.

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IV

Creio não ser necessário insistir que O Enforcamento é um filme político. A política dessa obra está no deslocamento que Oshima provoca ao dar a ver os deslizamentos e incongruências de um sistema legitimado, porém, injusto. Ao focar nossa atenção no episódico, na intimidade de um “condenado qualquer”, Oshima realiza um filme com uma potência próxima do livro de Victor Hugo.

Num movimento que buscava a radicalização temática e estilística, Nagisa Oshima propõe, com O Enforcamento, um filme, um tratado, uma rebelião, um rito de passagem. Como costuma ocorrer nas experiências performáticas, ao termos contato com o filme, algo de nós muda. Esse desconforto é essencial para o cinema que, antes de mais nada, deve nos deslocar de nós mesmos. Como escreveu o personagem de Victor Hugo, “os homens estão todos condenados à morte com sursis indefinidos”. Todos estamos condenados à morte, mas não ao assassinato.

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Notas:

[1]Grupo formado por artistas independentes que buscavam renovar o cinema japonês através da experimentação estética, à margem dos grandes estúdios.

[2]“Prefácio de 1832”. In: HUGO, Victor. O último dia de um condenado.  Estação Liberdade, 2010.

O Homem nas Trevas (2016), de Fede Alvarez

Jane Levy stars in Screen Gems' horror-thriller DON'T BREATHE.

Entre sombras

Gabriel Leal 

Em O Homem nas Trevas (2016), o diretor uruguaio Fede Alvarez quis se afastar de elementos sobrenaturais, aproximando-se mais do suspense do que do terror. Porém, o diálogo com esse último gênero é predominante. Pode-se dizer que ao invés de seguir uma das convenções mais tradicionais do terror, que pode ser resumida como violação das leis da natureza que conhecemos (seja a partir de monstros ou ameaças sobrenaturais), o filme viola as leis morais como a conhecemos, abrindo um caminho para a exploração de aspectos sombrios do homem. De todo modo, o filme é, em geral, fiel às convenções do cinema clássico de Hollywood, mas o domínio das convenções permite quebras, como a de reverter a lógica do subgênero Home Invasion, tornando os invasores em vítimas.

Em uma introdução direta e sucinta, O Homem nas Trevas apresenta três jovens assaltantes de casas em Detroit: Money (Daniel Zovatto) é o valentão/mandão do grupo; Alex (Dylan Minnette) é o “cabeça”, o que tem acesso aos códigos de segurança (e as chaves) e entende das leis; já Rocky (Jane Levy) é a musa sedutora do grupo e quer o dinheiro dos assaltos para fugir do seu ambiente familiar nefasto. Apesar dos três personagens serem apresentados de modo equilibrado, Alex tende a balança para ser o protagonista/herói, pois é ele quem, nos termos de Joseph Campbell, recebe “o chamado da aventura” e, em seguida, faz “a recusa do chamado”. Obviamente, após a recusa, Alex acaba por aceitar a proposta de assaltar a casa de um Homem Cego (Stephen Lang), pois não resiste aos encantos de Rocky e, com tudo isso, indica que a jornada será pela busca de ter seu amor correspondido.

Ainda na primeira parte, junto com a apresentação dos personagens e do conflito, há várias inserções de informações que mais tarde serão retomadas (técnica básica e muito usada em roteiros, conhecida também como plantar e recompensar). Isso ocorre de diversas maneiras, desde a promessa de Rocky para Diddy que elas irão para a Califórnia, até um pequeno caco de vidro que faz com que o Homem Cego perceba a janela por onde Rocky entrou e então a obstrua com pedaços de madeira. Essa técnica, baseada na repetição de elementos em uma espiral, é importante para criar uma sensação de progressão dramática, mas pode também ser usada de modo mais sutil e relacionada apenas com o subtexto da trama. Por exemplo, o porta-malas, que no início faz parte do cenário de uma história traumática de Rocky, se torna ao final uma armadilha para prender o rottweiler insano. Nesse caso, o porta-malas se torna um motif que pode representar o arco de mudança de Rocky de uma menina indefesa diante da violência do mundo para uma mulher forte que responde a essa violência.

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Mais à frente, quando eles entram na casa do Homem Cego, são plantados objetos a partir de uma narração onisciente, ou seja, a câmera mostra informações que só nós espectadores temos. De fato, essa narração é apenas pontualmente onisciente e no restante do filme se limita à perspectiva dos três jovens. Porém, quando eles entram na casa a câmera enfatiza (dando mais atenção do que os próprios personagens parecem dar) alguns objetos como: um martelo, um caco de vidro, as botas, a fechadura no porão e até um certo local no closet, etc. Essa narração se mostra plenamente onisciente ao passar por debaixo da cama e mostrar uma arma escondida. Todos esses objetos terão alguma função dramática ao longo do filme e o espectador atento sabe disso, mas ainda não sabe como. Esses elementos são bem pensados e brincam com as expectativas do público, criando tensão bem ao modo Hitchcockiano. O caco de vidro, por exemplo, é lembrado, imediatamente, quando, ao entrarem, os jovens tiram os calçados, pois cria-se uma fantasia antecipatória no espectador: “alguém vai cortar o pé naquele caco de vidro do corredor”. Porém, o caco de vidro terá outra função, como já foi citado, e as botas servirão para o Homem Cego descobrir que há mais pessoas do que ele supunha na casa.

A narração, que enfatiza certos elementos do cenário, criando suspense, também é utilizada para criar estranhamento e mistério. O retrato da filha do Homem Cego, virado de cabeça para baixo, cumpre essa função, pois, a princípio, passa despercebido. Porém, no final, ao ser quebrado com um tiro equivocado do antagonista, reitera certo motif desse objeto com o Homem Cego, assim como o porta-malas e Rocky. O motif pode representar a relação invertida e mal resolvida do vilão com a morte da filha e, que ao final, não consegue ser mantida e se quebra.

Com exceção de tais momentos oniscientes da narração, a história se atém ao ponto de vista dos protagonistas e em nenhuma situação toma o ponto de vista exclusivo do antagonista. Esse ponto, além de permitir uma maior identificação com os jovens, cria situações de surpresa, pois as ações que o vilão comete longe dos demais personagens principais são omitidas e mostradas de modo inesperado.

Diante do desencadeamento dos eventos, há uma cronologia bastante linear que colabora com a imersão na trama, mas há uma única exceção que é a cena de abertura em um flashfoward,mostrando o Homem Cego arrastando Rocky pelos cabelos. Essa cena, por ser a de abertura, não provoca uma quebra abrupta da cronologia dos eventos, o que é um dos maiores problemas na inserção desse recurso, tanto no uso do flashfoward como do flashback. Assim, o uso desse recurso no filme, além de não atrapalhar, fisga o interesse da audiência e prepara o clima de terror. Para tal efeito, o filme o faz de modo bastante cinematográfico: começa com um plano aberto, que mostra um bairro abandonado, e vai se aproximando do geral para o particular (assim como Hitchcock faz na abertura de Psicose (1960), indo da vista panorâmica da cidade de Phoenix até se aproximar e entrar pela janela de sua personagem icônica). Essa imersão imagética acompanha uma imersão sonora, através da utilização de alguns sons diegéticos da cidade e da natureza, ambos em um volume baixo, sendo sobrepostos por uma trilha musical de terror que vai aumentando de volume.

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Em relação à dimensão espacial e temporal do universo narrativo, percebe-se que elas são bastante condensadas e, assim, colaboram para a vivência no “aqui e agora” da trama, facilitando também a imersão e gerando ainda mais tensão. Todo o tempo em que a história se passa deve ser de uma ou duas semanas e todo o espaço é a cidade de Detroit, sendo a cena final no aeroporto. Porém, a maior parte do filme (por volta de dois terços) se passa dentro da casa do Homem Cego e dura da madrugada até o amanhecer. Essa escolha, nada ao acaso, intensifica o arco dramático e, por vezes, até o acompanha, como, por exemplo, na maior virada dramática, a morte de Alex, que ocorre justo quando o sol está nascendo e quando os protagonistas estão prestes a sair da casa.

No que tange a essa virada, em que o suposto protagonista morre, tem-se uma exímia preparação e, por isso, é surpreendente. No começo, são inseridas falsas pistas, já citadas, levando a crer que a narrativa é sobre Alex e sua busca por ter seu amor correspondido, quando, de fato, é sobre Rocky e sua luta por liberdade e independência. Esse tipo de mudança é mais do que geralmente se espera em filmes do gênero e, guardadas as proporções, lembra a mudança de protagonismo ocorrida em Psicose (Fede Alvarez parece ter uma relação de aprendiz com o mestre do suspense).

Obviamente um cinéfilo, Alvarez não bebe só da fonte de Hitchcock. Após a derrota do Homem Cego, Alvarez se utiliza de um plano centralizado e em contra-plongèe de Rocky. Essa imagem, somada ao movimento de câmera de aproximação, gera um efeito catártico, mostrando o triunfo e a superioridade de sua protagonista, elemento que marca o estilo de Tarantino.  Porém, o que por vezes em Tarantino é maneirismo, em Alvarez é um recurso discreto e marca mais uma função na trama do que uma linguagem própria. Além disso, em filmes como À prova de Morte e Kill Bil Vol.1 e Vol.2, Tarantino coloca a personagem feminina em uma jornada de poder e superação em relação à figura masculina, algo que também pode ser identificado aqui em O Homem nas Trevas.

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Em suma, o filme, ao comprimir tantos elementos com coerência narrativa, torna a história mais verossimilhante e, assim, torna o vilão mais humano, compreensível, sendo também mais aterrorizante. Dito isso, a partir daqui irei me permitir sair de uma análise “centrípeta” do filme e propor uma análise “centrífuga”, fazendo associações mais amplas e filosóficas. Diante da injustiça de não ter a mulher culpada pela morte da sua filha presa, o Homem Cego precisa agir para encontrar certo ideal perdido. Desse modo, pode-se interligar-se o agir acima da lei e da moral com a filosofia de Nietzsche, em especial com o conceito do übermensch ou além-do-homem.

Essa associação ganha assertividade com as poucas falas do Homem Cego: “Deus? Não há Deus… É uma piada. É uma piada ruim”; “Não há nada que um homem não possa fazer quando ele aceita que não há Deus”. Essas falas reverberam as falas da anunciação de Zaratrusta de Nietzsche quanto à morte de Deus, situação que justifica a vinda do além-do-homem. Para Nietzsche, o conceito de übermensch é moldado como contraponto ao conceito do último-homem da filosofia pragmática inglesa, que seria: o homem do presente, ao dominar a técnica e a ciência, acredita também dominar a felicidade. Assim podemos relacionar o Homem Cego ao além-do-homem e os jovens, em especial Alex e Money, ao último-homem.

“A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. “Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois a gente precisa de calor.” (Za/ZA, Prólogo, § 5)

Esse trecho de “Assim falou Zaratustra” elucida bem a característica do último-homem, que, como os personagens jovens, querem sair de Detroit, onde é difícil viver, e ir para a Califórnia, onde há calor. Em contrapartida, o além-do-homem é um ideal concreto, que se realiza a partir de uma espécie de atitude para com a realidade, visando a superação pessoal como consequência de um esforço para ir além daquilo que lhe é dado no presente. Assim, o Homem Cego pode ser visto como alguém que, ao menos, se coloca mais próximo desse caminho de esforço e superação de si e de suas condições.

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É claro que essa aproximação conceitual funciona somente enquanto especulação, mas é interessante pensar nesses termos, pois permite entender o porquê desse tipo de personagem gerar cada vez mais admiração no público. Um exemplo disso é o personagem Hannibal de Silêncio dos Inocentes. Apesar das diferenças, é também um homem extremamente capaz intelectualmente e mantém argumentos sofisticados que explicam suas motivações e atos. Nesse sentido, os dois se colocam para além da moral, se aproximando do além-do-homem, abominando e desprezando o último-homem (sentimento que Nietzsche deixava claro em seus escritos). Interessante também pensar que, nos dois casos, há uma protagonista feminina que confronta esses personagens. Aliás, o Homem nas Trevas e O Silêncio dos Inocentes têm outras características que os interligam. Em primeiro lugar, a questão fronteiriça entre o terror e o suspense; em segundo lugar, nos dois filmes temos uma situação de um homem problemático (para dizer o mínimo) sequestrar uma mulher e a colocar em seu porão. Inclusive, nos dois filmes são utilizados o efeito da visão noturna na cenas nos subsolos.

Por fim, talvez sejam esses alguns dos fatores que fizeram O Homem nas Trevas se destacar, tanto em termos de crítica quanto de público. Assim, o filme nos deixa com um final aberto (próprio de franquias de terror) que, independente de uma continuação, nos mostra ser possível fazer filmes que dialoguem com o gênero, mas que vão além, ao utilizar, de modo clássico e eficiente, recursos cinematográficos em função da narrativa, sem deixar de manter um olhar atento para questões do nosso tempo.

 

A Mulher da Areia (1964), de Hiroshi Teshigahara

6As vicissitudes da areia e do homem

Daniel Rodriguez

Ao longo da história da arte, diversos criadores associaram sentidos poéticos à areia, relacionando-a, por exemplo, a temas como o tempo, o sono, a mutabilidade, a morte e a solidão. Em A Mulher da Areia (1964), o diretor Hiroshi Teshigahara concede a tal imagem uma posição central, preservando sua dimensão metafórica e, por vezes, subvertendo nossas expectativas. Adaptado do romance homônimo de Kôbô Abe, romancista que trabalhou com Teshigahara em mais de uma oportunidade, o filme acompanha um entomologista que, em viagem pelo litoral, é ludibriado por um grupo de vilões que o abandonam no fundo de uma cratera, onde vive uma mulher. Lá, ele se vê forçado a escavar areia continuamente, juntamente com sua nova companheira, para impedir o soterramento da casa.

O primeiro quadro do filme, que surge logo após os créditos iniciais em forma de documentos, é um plano-detalhe que dá um enfoque microscópico em um grão de areia. Os planos seguintes são ampliações que mostram uma confluência de grãos, empurrados pelos ventos, formando e reformando continuamente as dunas. O protagonista é, então, introduzido pela primeira vez. Solitário e isolado, ele se encontra perdido em uma região árida. Esta logo se revela como uma área litorânea, nos arredores de um vilarejo. Neste ambiente, o entomologista, cujo nome não nos é revelado até o último frame, fotografa e captura insetos de forma prazerosa e cheia de admiração.A cultura japonesa tem uma relação com insetos completamente oposta à ocidental. Se por aqui temos no inseto uma fonte constante de nojo, medo e incômodo, no Japão os insetos são muito celebrados, especialmente entre as crianças que, desde cedo, criam uma conexão afetiva com eles, comumente tomando-os como animais de estimação. São também considerados símbolos de transição de estados, fortemente ligados à mudança de estações, por exemplo. Indo mais além, analisando por um viés linguístico, a palavra japonesa para inseto – mushi – significa espírito, residindo aí uma relação anímica, que se manifesta no filme de forma bem particular em um momento posterior.

A atividade de catalogar e registrar insetos é pragmática e aponta para um traço característico do protagonista. Segundo ele, a própria ideia do registro é uma tentativa da sociedade moderna de validar coisas e pessoas e não se deixar enganar pelas mesmas. Ainda nessa cena inicial, há um momento em que a areia já parece remeter ao sonho: o entomologista deita em um barco quebrado e fecha os olhos, dando início a uma sequência onírica, com alguns planos sobrepostos e uma figura feminina misteriosa, que aparenta ser uma ex-esposa. A cena é interrompida por uma elipse, recurso recorrente ao longo do filme. Aparecem algumas pessoas e ele é levado até uma casa, na qual, supostamente, poderia se hospedar pela noite. Na casa, que se localiza no fundo de uma cratera, vive uma mulher solitária que passa os dias recolhendo areia.

A relação dos dois marca um encontro de dois mundos opostos. Ele, um homem de Tóquio, afeito pela ciência. Ela, uma camponesa trabalhadora que vive, literalmente, em um buraco e cujo conhecimento de vida é oriundo da experiência cotidiana. Tal diferença é notada no diálogo dos dois sobre as propriedades físicas da areia, que está ali presente em todos os lados. A areia cai do teto e entra pelas janelas, regulando cada ação dos personagens, que se movem para se desvencilhar dos grãos. A forma com que Teshigahara enquadra suas cenas e a estética em preto e branco dão à areia um aspecto espectral, sempre presente em cena, carregada de significados.

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Conforme o destino do entomólogo se torna claro e ele se entende como prisioneiro, tanto sua postura quanto a relação estabelecida com a mulher se transformam. A passagem do tempo é anuviada, irreconhecível. O confinamento e a solidão começam a trazer à tona afetos diversos, especialmente os de natureza erótica. Em um dos momentos mais intensos de A Mulher da Areia, os dois se atracam impetuosamente após uma briga, mas essa, rapidamente, ganha contornos sexuais e é interrompida. A mulher se oferece para dar-lhe um banho, para limpar a areia de seu corpo, o que culmina, obviamente, em sexo. Nessa sequência, a areia, contrariando expectativas, é tida como algo erótico e excitante. A cena é composta por uma série de planos fechados enquadrando partes de ambos os corpos, agarrados e retorcidos, tornando-se uma massa indiferenciada, até culminar em um plano aberto que revela apenas as dunas, escorrendo lentamente – um paralelo não apenas com o orgasmo alcançado, mas também com um processo de transformação vivenciado por ambos, que parecem se fundir.

Com sua vida na cidade grande se distanciado cada vez mais, a prisão torna-se uma realidade torturante e enlouquecedora para o homem. A secura daquele deserto e a ânsia por água fazem com que sua psique se resseque e rache, em um processo excruciante – sendo aliviado apenas com a chegada de recursos trazidos pelos moradores. As interações com os habitantes da vila tornam-se cada vez mais comuns e os objetivos destes se tornam mais claros, ainda que absurdos. Durante uma conversa, a mulher revela que é preciso escavar a areia diariamente para evitar que a casa seja soterrada, o que desencadearia uma série de outros problemas para a vila. Porém, os jovens que ali vivem têm o costume de abandonar suas casas e ir para Tóquio, onde existem maiores possibilidades de emprego e qualidade de vida. Assim, com um número reduzido de pessoas disponíveis, eles precisam recorrer a métodos pouco convencionais para encontrar homens que possam continuar o labor. A tarefa de ambos, o protagonista e a mulher, sinaliza um ato de resistência, não apenas contra a areia, mas também contra as mudanças sociais características de um país em rápida ascensão. Ao mesmo tempo em que lutam contra essa transição, há uma sensação implícita de se estar lutando por uma causa perdida, pois, assim como as dunas continuarão a se mover enquanto houver vento, a sociedade também se renovará. Não obstante, o sequestro de homens da cidade grande para trabalhar nessa função é também um outro ato de resistência, porém mais agressivo.

Ao longo do filme, as elipses continuam acontecendo com frequência, de forma que só é possível identificar o tempo pela fala dos personagens. Ora passam-se semanas, ora três meses. Um outro recurso fora do normal para o cinema da época, mas recorrente ao longo do filme é a utilização de planos sobrepostos, representando, na maioria das vezes, estados de espírito de seus personagens, como na cena em que o entomólogo olha para a porta de casa e tudo que vê é uma miragem de água.

4 Mulher da areia

A vontade e a resistência do povo do vilarejo parecem inabaláveis, mesmo com um objetivo insensato. O mesmo não pode ser dito do entomólogo, que se prova incapaz de sustentar sua oposição ao cárcere e ao trabalho forçado. Pouco tempo depois de uma fuga fracassada, sua transformação se concretiza e é evidenciada em uma das cenas mais relevantes e minimalistas do filme. Sentado junto da mulher, ele acende uma fogueira e lá joga todos os insetos de sua coleção particular que o haviam levado àquele lugar. Considerando a ideia do mushi – inseto/espírito, é possível considerar este ato como um ato de entrega, de destruição do seu espírito e daquilo que o conectava à sua vida anterior. A partir de então, seu movimento se torna não de resistência, mas também de transformação dentro daquela nova realidade. Pouco depois, há uma outra cena que merece destaque especial, não pela importância narrativa, mas pela estética irretocável. O povo da vila se reúne à beira do penhasco ao redor da casa e demanda que os dois façam uma exibição pública de sexo. Com o acréscimo de percussionistas mascarados entoando uma canção ritualística, Teshigahara cria uma sequência estonteante e hipnótica, que mais parece um pesadelo, na qual o entomólogo aceita a exigência do povo, por considerar-se alguém que vive como um animal. A violência sexual aqui presente também se manifesta como um traço do cinema de sua época, até então incomum.

O último plano do filme, que revela o nome do personagem principal, ainda brinca com o discurso do mesmo sobre registros, questionando a existência do próprio protagonista. Em meio às constantes transmutações do tempo e do espaço, Teshigahara constrói um filme formalmente belíssimo e cheio de significados, paradoxalmente, atemporais e específicos de seu tempo.

Eu, Daniel Blake (2016), de Ken Loach

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Quem é Daniel Blake?

Thomas Lopes Whyte

Com um roteiro simples e abordagem formalmente tradicional, Ken Loach conduz Eu, Daniel Blake (2016). Seu protagonista é um senhor viúvo, morador da cidade inglesa de Newcastle, e sofre de uma condição cardíaca que o impede de continuar trabalhando como carpinteiro. Suas características definidoras parecem representar a vontade do diretor Ken Loach de criar o tipo mais ordinário possível de personagem, uma figura simbólica de todos nós, mais ou menos como o fizera King Vidor, décadas antes, em A Turba (1928), com seu John Sims. O fato é que nenhuma dessas características/atribuições, de forma isolada, é imprescindível para o desenrolar da narrativa. Daniel Blake poderia se chamar Nelson, ser motorista de ônibus e morar em Betim. Mesmo assim, o conjunto desses fatores faz de Blake um Herói genérico ideal – pelo menos no imaginário do público acostumado a filmes de circuito mais restrito.

Um dos traços incômodos de Blake é a intransigência, refletida na forma radical como se opõe às coisas. Em texto que discorre sobre as relações entre teatro e cinema, André Bazin escreve sobre a influência do Vaudeville nas comédias do início do século XX e desenvolve a ideia que chama de “fenomenologia da obstinação”, um mecanismo cômico, de natureza linear, através do qual se pode levar às últimas consequências o mais elementar dos problemas por meio de uma sucessão de gags cada vez mais radicais. A insistente repetição das ações acaba por dissolver o objetivo inicial e as motivações se rarefazem, até o momento em que o personagem entra em uma espécie de transe irracional, responsável pela atrofia da ação. No filme de Loach, cujo desfecho não é exatamente elementar, o desenvolvimento tende a replicar a lógica esquematizada por Bazin. Daniel Blake é um personagem duro (no sentido do fazer), não permite concessões, parece desgovernado e disposto a se chocar frontalmente contra o muro erguido pela burocracia.

Em Lola (2009) do cineasta filipino Brillante Mendoza, a protagonista idosa (Lola é o termo Filipino para avó) enfrenta problemas semelhantes aos de Blake. No entanto, as situações de conflito se revelam quase sempre de forma mais sutil. Não há uma pressão externa para que o espectador tome partido, está tudo na tela, ao alcance dos olhos. O caminhar vagaroso e vacilante em uma rua degradada pela falta de manutenção pode ter muito mais a dizer sobre as relações corrosivas entre instituições e pessoas, que o descaso sofrido em uma repartição pública. E também não é preciso que Lola seja orgulhosa ou imbuída de um apurado senso de dever para que o público possa se apiedar de sua situação. Por outro lado, o esforço de Loach em tornar o espectador cúmplice de Daniel Blake é tão grande que, para isso, ele transforma sua morte em um martírio, convertendo-o antes em santo.

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Em crítica recente, Marcelo Miranda aponta o posicionamento do também crítico Adriano Garrett, que compara Daniel Blake ao britânico médio, pertencente a uma classe empobrecida e corresponsável pelo Brexit. Se Blake pertence a essa categoria, ele se insere nela de maneira incompleta e as semelhanças se dão apenas enquanto efígie e a partir das características superficiais do personagem. Os seus maneirismos, a dificuldade legítima de lidar com a tecnologia e o senso de humor do ator Dave Johns, certamente, contribuem para a criação de um vínculo imediato com o espectador, que vê na imagem de Blake um reflexo de si mesmo. Mas, apesar de assemelhar-se aos integrantes de um grupo, que nos Estados Unidos e Canadá é conhecido como W.A.S.P [1], Blake está muito impregnado da visão do próprio Loach, que, por sua vez, não permite o surgimento de questões outras, diferentes daquelas pautadas por ele próprio. Na tela, o esforço em tornar o herói um modelo das aspirações pessoais do diretor, empurra o personagem para um estado de conciliação com valores que o separam da parcela de uma classe média conservadora e reacionária. Quase que por acaso (e aí se encontra a inconsistência), Daniel Blake parece partir de um patamar moral ideal, para que, então, na função de herói construído a partir de mecanismos superficiais e externos à narrativa, possa confrontar o Estado. Os atritos raciais, a xenofobia e o moralismo são sublimados em prol de uma coesão social ilusória.

Faço aqui uma digressão para escrever um pouco a respeito de um fenômeno que atualmente me parece relevante e está em evidência no campo do discurso do qual o filme de Loach faz parte. Com o atual cenário de crise global, me parece ter havido um crescimento na demarcação territorial dentro dos campos de disputa ideológica. Sob o risco da normalização da barbárie e esfacelamento das noções de direito, o tom denuncista continuará sempre pertinente e é preciso se opor, identificar e principalmente contestar os sistemas cada vez mais complexos de opressão. Mas, no afã de arregimentar adeptos, estabelecendo vínculos rápidos e nem sempre profundos com o público, alguns autores têm optado por esvaziar os textos e personagens de suas obras, privando-os, muitas vezes, de suas características transversais, ambiguidades e complexidades. Parece-me ainda notável ressaltar o quão preocupante é que uma parte significativa das obras dramáticas, gestadas nos setores mais progressistas, estejam se engajando em criar substratos tão frágeis para afirmar suas teses. Se por um lado é cada vez mais urgente dialogar, fazê-lo de forma atabalhoada pode surtir o efeito contrário.

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Apesar disso, o filme, lançado em momento oportuno, consegue atingir seu objetivo primário de comover, o que talvez explique parcialmente seu sucesso de crítica. E convenhamos, não é difícil se deixar enredar pelo carisma de Daniel Blake e desenvolver compaixão pelo personagem. É quase como se as falhas da obra pudessem ser atribuídas apenas ao autor, que não resolve o descompasso entre ele e seu personagem. Se, ao começar o texto, a afirmação era a de que Daniel Blake representa um pouco de todos nós, a verdade é que ele falha também, justamente, por não ser a representação de ninguém.

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Notas:

[1] W.A.S.P: termo popular nos Estados Unidos para designar o cristão (protestante), branco, de origem Anglo-saxônica . (White  Anglo-Saxon Protestant).

 

 

Onibaba – A Mulher Demônio (1964), de Kaneto Shindo

 

1 Onibaba

Assombros do tempo, do corpo e da terra

Hannah Serrat

O corpo da mãe que espera o filho voltar da guerra envelhece, ao mesmo tempo, rijo e frágil, enquanto o vento bate vigorosamente nas folhas dos juncos ao redor de sua pequena cabana. Elas balançam, juntas, para um lado e para o outro, mas permanecem em pé firmemente: é preciso resistir aos imperativos da vida e da morte, com a vida e com a morte. De maneira geral, os filmes de Kaneto Shindo, realizados entre os anos 50 e 70, dedicam-se às formas de sobrevivência em um mundo pouco acolhedor, assolado pela guerra.

Em Onibaba – A Mulher Demônio (1964) (ou, como gostaria Jairo Ferreira, em uma crítica de 1970, “a mulher abutre”, para melhor nomear a fita que estreava no Brasil naquele ano com a infeliz alcunha “O Sexo Diabólico”), a mãe (Nobuko Otawa), abandonada pelo filho que vai lutar nas batalhas do Japão Medieval, vive dos corpos dos samurais que ela, com a ajuda da nora (Jitsuko Yoshimura), consegue matar para saquear seus pertences. A mulher-abutre, que se vale da morte para manter-se viva, esforça-se para sobreviver aos mundos dos homens (que nunca acolheu as mulheres), dos bichos (que se valem, sobretudo, de seus instintos) e dos espíritos (que, constantemente, vêm ameaçar e perturbar os vivos). A câmera, por sua vez, parece alternar entre esses mundos, filmando do alto e à distância, como se realizasse pequenos sobrevôos; entre as folhas dos juncos, como se estivesse sempre à espreita de algo; e muito próxima aos corpos dos personagens retratados entre luzes e sombras pela belíssima fotografia em preto e branco.

As músicas que constituem a trilha sonora do filme, compostas junto às batidas fortes e ritmadas dos tambores, associam-se à aparição constante e misteriosa das folhas dos juncos, corroborando para criação de uma atmosfera sombria que contribui para articular a sensação de pavor e receio das personagens (diante do provável abandono, da fome, da morte) à força de desejos e pulsões proibidas (o sexo, a liberdade, a inventividade)… É preciso que o filme entrelace, então, a brutalidade da vida à ingenuidade e à vivacidade juvenil, colocando juntas a velha senhora e sua jovem nora, encampando forças contraditórias, mas não dissociadas.

Sem título

Pouco depois do começo do filme, Hachi (Kei Satô), um guerreiro desertor que consegue fugir da captura de seus inimigos, chega à cabana das mulheres, trazendo a notícia de que o filho e o marido por quem elas esperavam havia morrido. Ainda desolada e incrédula com a notícia que vem lhe furtar quaisquer esperanças, a senhora logo percebe o interesse de Hachi por sua nora e a adverte para que não se deixe seduzir, receosa de acabar sozinha e sem forças. Apesar de resistir inicialmente às investidas de Hachi, a jovem logo se deixa levar pelas propostas do guerreiro e decide fugir, durante as noites, para encontrá-lo em sua cabana. Certa feita, a senhora acorda e, percebendo a ausência da nora, decide segui-la, descobrindo o envolvimento entre os dois. Ao vê-los juntos, ela foge imediatamente dali com um misto de terror e desejo, e se agarra a uma árvore, como quem quisesse, de fato, trepar. De uma só vez, essa cena reforça o receio da senhora de morrer sozinha, mas também revela o desejo de estar, ela mesma, deitada com o guerreiro, ainda que a juventude já lhe tenha escapado. A câmera a filma agarrando-se ao tronco e, em seguida, com um movimento ascendente, mostra-nos os galhos secos e dilacerados da árvore, traduzindo ali certa impotência da personagem. Seu corpo já calejado pela vida se opõe à leveza da jovem que, a cada noite, corre livre entre as folhas para encontrar seu amante.

Vendo que nada podia fazer para convencer Hachi ou a nora de esquecer o envolvimento entre um e outro, a senhora decide reproduzir uma estória que ela escutou de um sacerdote em Kyoto sobre a existência do inferno e dos demônios que viriam para castigar os adúlteros. “As almas andam com quatro patas, caem no inferno e são torturadas com ferros em brasa”, ela diz à nora que desconsidera a estória, mas titubeia em acreditar. Colocado em perspectiva, o relato moralista sobre os pecadores, utilizado pela senhora para assustar a jovem, acaba por constituir uma crítica ácida à moralidade interessada e egoísta dos homens e mulheres que vêm reprimir corpos e desejos, mas que é aqui também recuperada como instrumento de guerra, fundamental para a sobrevivência da personagem.

A força das mulheres, tão presente na chamada Nova Onda japonesa, habita os filmes de Shindo com vigor fundamental. Se lembrarmos de seus filmes mais conhecidos dessa época, além de Onibaba, Filhos de Hiroshima (1952), A Ilha Nua (1960) e O Gato Preto (1968) são todos filmes em que o protagonismo feminino ganha relevância própria (talvez com relativa exceção de A Ilha Nua, em que Shindo dedica-se de modo geral ao retrato de uma família de agricultores em uma pequena ilha, mas cuja presença feminina protagonizada, como nos demais filmes, por Nobuko Otawa, ganha força considerável). Neles, não basta que as mulheres estejam em cena, ocupando o primeiro plano da imagem. Sobretudo em Onibaba e O Gato Preto, elas aparecem como sujeitos de desejos e de palavras, rompendo radicalmente com um gesto recorrente na história do cinema mundial (e não apenas japonês) em que o modo de aparição e enunciação das mulheres, seja ele subserviente ou mesmo supostamente libertário, ainda vem responder aos desejos dos homens, no interior dos filmes e fora deles. Além disso, há, nesses filmes, um procedimento narrativo recorrente que faz uso de certa circularidade das ações, como a nora que, em Onibaba, vai buscar, dia após dia, água perto da cabana e, noite após noite, vai se deitar com Hachi. O registro de atos repetidos coloca em cena certa inevitabilidade do cotidiano, um sufocamento da vida que Shindo filmou com maestria em A Ilha Nua e que parece incidir, de certa maneira, em seus outros filmes, ainda que haja uma passagem em seu trabalho de uma inicial abordagem social e coletiva para uma atenção mais voltada ao âmbito da vida individual de suas personagens.

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A Ilha Nua é um filme sem falas sobre uma família pequena, composta por pai, mãe e dois filhos, que precisam plantar todos os anos em uma pequena ilha para sobreviver, buscando água, todos os dias, em um riacho longe de casa para molhar a plantação, levando e buscando os filhos de barco à escola na cidade, subindo e descendo os morros da ilha… Um belíssimo retrato sobre a expropriação incessante da vida pelo trabalho. Antes dele, em Filhos de Hiroshima, uma professora de ensino básico visita a cidade pouco depois do bombardeamento na Segunda Guerra Mundial para reencontrar ali seus antigos alunos e companheiros, e depara-se repetidamente com os horrores da guerra, com a miséria daqueles cujos corpos foram condenados pela radiação e com a desgraça das crianças e seus familiares que se esforçam para resistir ao passar dos dias, tomados também pelo trabalho incessante.

Entre um e outro, o desejo de mudança e redenção ainda presente em Filhos de Hiroshima dá lugar à rigidez e ao enfrentamento das personagens na luta contínua pela sobrevivência. Talvez porque o que vem perturbar os filmes, a partir de então, já não seja mais o passado, com as ruínas da guerra, nem o futuro, que já não reserva horizontes possíveis, mas o presente vivido diariamente. Mesmo em O Gato Negro, em que, no Japão Medieval, mãe e nora, também à espera do filho/marido voltar da guerra, após serem brutalmente estupradas e assassinadas, retornam, em espírito, para matar e sugar o sangue de todos os samurais do mundo, o maravilhoso plano de vingança posto em cena é o que acaba por aprisioná-las pela eternidade. Se já não há perspectiva de futuro e o passado não mais as perturba, como escapar à brutalidade do presente?

Sob o impacto dessa questão, relembro o buraco que habita silenciosamente o campo de juncos, em Onibaba, e guarda “a escuridão que existe desde os tempos antigos” (para lembrar as cartelas iniciais do filme que precedem o título). As corridas alegres ou amedrontadas em meio às folhas no entorno da cabana são por ele confrontadas: é preciso saltá-lo para prosseguir o caminho ou deter-se em suas bordas interrompendo a caminhada. Para garantir sua sobrevivência, é preciso que a senhora adentre-o e busque, em meio aos cadáveres, a máscara de um samurai perdido que ela arranca à força para assustar a nora. Esta, por sua vez, reconhecendo na máscara a face do demônio que viria puni-la por seus pecados, acabaria deixando de se envolver com Hachi. Quando a máscara, como uma maldição, acaba por deformar para sempre o rosto da velha senhora e se faz necessário, mais uma vez, saltar sobre a escuridão do mundo, o filme sugere o vigor necessário para enfrentar nossa própria desgraça (como já sugeria Jairo Ferreira, de modo bastante otimista: “é aí que se vai descobrir que o homem [ou a mulher] é dotado de forças para superar sua condição miserável”), mas também, ao nos oferecer, pela primeira vez, a imagem de seu rosto desfigurado, devolve-nos a seu estado de assujeitamento. À necessidade de sobrevivência frente aos horrores e privações da guerra (ou, simplesmente, da vida humana), acercam-se os assombros do mundo – ao mesmo tempo, com seus temores e deslumbramentos.

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Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho

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Duas famílias                                                                              

                                                                 por Odorico Leal

O oráculo de Delfos tinha uma máxima terrível aos peregrinos que não o compreendiam: Apolo não ensina, Apolo revela. Assim é a arte. E o cinema. Quando quer ensinar, Aquarius (2016) cai em esquematismos didáticos; quando dedica-se a revelar, brilha. Como já acontecia em O Som ao Redor (2012), o novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho procura tocar numa constelação de temas, de forma direta ou alusiva. Destaco aqui aquele que me parece central ao projeto artístico do diretor pernambucano: o tema da família.

O Som ao Redor e Aquarius são, sob certo aspecto, estudos sobre famílias – mais especificamente, sobre famílias de elite, infelizes, à sua maneira. Ambos tratam de relações de poder – as famílias de Kleber Mendonça Filho gozam de poder e influência – e de conflitos entre as gerações do clã. A família do coronel de engenho de O Som ao Redor habita o mesmo Recife da família de classe média alta – com concebíveis raízes no engenho – a que pertence Clara, a protagonista de Aquarius. É possível que os dois tenham até se cruzado numa rua ou numa padaria. Não na praia: Clara vai ao mar de dia, sob o sol e o olhar de terna cobiça do salva-vidas; o coronel desce à noite e nada entre tubarões. Nessas idas ao mar, em ambos os casos, há um fundo de angústia, envolvendo o tempo, o corpo e a velhice: Clara trata essa angústia com delicadeza, seguindo um senso de preservação; o coronel, com força ríspida quase autodestrutiva.

Esse é o universo de Kleber Mendonça Filho – o cenário urbano do Recife contemporâneo assombrado por fantasmagorias arcaicas. Em O Som ao Redor, visitamos a origem social de Pernambuco – o engenho de cana de açúcar, a cachoeira de sangue, o tempo heroico do matar ou morrer e dos alpendres. Encontramos desolação, mas é esse mundo de mortos que volta e vem acertar as contas com o coronel aburguesado, inserindo a obra, num fecho magistral, na tradição nordestina das narrativas de vingança e crimes de honra. Aí também o tema são os laços familiares.

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Em Aquarius, visitamos os anos 80, o aniversário de tia Lúcia, figura totêmica, guardiã do espírito liberal da família de Clara que, aqui, aparece jovem, de cabelo curto, tendo vencido um câncer. Dado curioso: na mesma época, anos 80, o velho coronel de engenho manda matar o pai dos meninos que, ao final de O Som ao Redor, décadas depois, vão buscar vingança. Aqui, malgrado a presença dos criados que aponta para a senzala, a cena é harmoniosa – não há desolação, mas família e comunhão festiva. Em O Som ao Redor, o passado violento vem em busca do presente; em Aquarius, a imagem do passado é amorosa, mas é também a fonte do conflito atual– é a memória pela qual Clara luta e da qual não pode se desapegar.

Cada descendente do coronel de O Som ao Redor lida com a herança do patriarca ao seu próprio modo, mas todos sofrem de alguma patologia existencial: o mais velho é um saudosista que não quer a casa murada; o do meio é o jovem com algum senso de justiça social – defende o porteiro exaurido e voyeurista -, mas é apático, sem vigor e incapaz de estabelecer laços profundos (a namorada que o acompanha até o engenho sai de cena como se nunca tivesse existido); o mais novo é um aprendiz de criminoso, mimado e irresponsável, de personalidade arrogante e violenta. Todos gozam do patrimônio do patriarca, mas numa atitude hipócrita e infantil de isenção e alheamento. De acordo com a moral do tempo heroico, nenhum deles serve para nada: não vingarão o avô, que é abatido enquanto se desenrola um aniversário de família, numa atmosfera carinhosa e integrada como a do aniversário em Aquarius.

Os descendentes de Clara são menos explorados – Aquarius centra-se na personagem de Sônia Braga, em oposição à abordagem difusa de O Som ao Redor. Mas há duas atitudes em relação à jovial matriarca Clara: os filhos são pragmáticos, menos perdidos pelos descaminhos melancólicos da memória e defendem a venda do apartamento. Já o sobrinho, mais novo, enxerga na tia uma figura exemplar a quem  apresenta a namorada, uma carioca de classe média que sofre da mesma candura cuidadosa pelas coisas velhas e esquecidas. Em O Som ao Redor, é também o descendente mais jovem que mais se aproxima do temperamento do avô, tomando-o também como figura exemplar – é o avô que o neto emula ao descer para arengar arrogantemente com os vigilantes, numa cena memorável (“Essa rua aqui, ó, é da minha família. Gente grande, de dinheiro”).

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Em ambos os filmes, retrata-se a perda de valores comuns entre as gerações, que se espelha na contradição entre os espaços sociais do passado e do presente. Clara não quer abrir mão do apartamento onde criou os filhos, da sala onde guarda seus discos, da janela de onde vê o mar, sempre mais eterno do que os empreendimentos imobiliários. Pede que os filhos a visitem mais e compartilhem dos valores do seu mundo, encantem-se com ele. Não é outra coisa que o coronel de engenho de O Som ao Redor deseja: ele também não abandona o engenho, implora para que o sobrinho visite mais a fazenda, leve a namorada, quer que os descendentes conheçam a origem. Clara e o coronel são profundamente solitários.

De certa forma, O Som ao Redor e Aquarius são filmes complementares: no primeiro, estuda-se uma família sob a égide de um patriarca tradicional com raízes no Nordeste arcaico; no segundo, uma família sob o exemplo de uma matriarca urbana e progressista, de educação cosmopolita. No fim, ao patriarca, Kleber Mendonça Filho concede a morte ao gosto heroico; o vigor e a pujança são transferidos para a matriarca de Aquarius, sua Musa ideológica, que, ao final do filme, confronta e emperra com êxito as forças do progresso desgovernado.

Edição 2

Editorial – por Fábio Feldman

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#2. Cinema da Boca do Lixo

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