Impressões sobre o cinema de Lucrecia Martel: um rigor generoso

Leandro Afonso

O curta mais famoso de Lucrecia Martel é também o último antes da realização de seu primeiro longa. Lançado seis anos antes de O Pântano (2001), Rey Muerto (1995) mostra as cartas que a cineasta tem para jogar ou, pelo menos, para começar seu jogo. O nome do filme é também o do povoado onde se passa a história, no noroeste argentino. A região é a mesma onde está localizada a Salta de Martel, mais próxima de Santiago, Assunção e La Paz, ou seja, das capitais do Chile, do Paraguai e da Bolívia, que do centro administrativo e financeiro de seu país. A cultura saltenha é muito mais andina que portenha, mas, no filme, o protagonista se reporta mesmo é a Buenos Aires, cidade mais europeia[1] que andina. A maior prova de quem legitima aquele noroeste argentino é a TV que abre o curta. É a ela que o protagonista masculino se dirige, num tom que mistura a galhofa e o desafio, dizendo que pretende ir à capital se entregar.

Nessa cena inicial, enquanto o homem conversa com a TV, o recado mais importante é dado pelo som, que se conecta ao final do curta através da noção de vingança que toma conta de seu eixo narrativo. A música de fundo apresenta Lia Crucet cantando El que a Hierro Mata. O ditado a que remete a música nos avisa: “Quem com ferro fere…”, mas esse homem não o escuta. No desfecho da história, sua esposa finalmente se vinga e, com ferro, ele é ferido. As palavras finais dela, em resposta à filha, trazem a mesma atitude de quem acabou de dar um basta. “Que ele volte, se quiser”.

Assim, Martel assume seu posto. Ela não é só alguém do país latino que, provavelmente, mais sofreu economicamente no século XX. Ela não é só de uma nação essencialmente nostálgica, com especial apreço por uma história que já lhe foi mais generosa que o presente. Ela é uma diretora de um país terceiro-mundista, do interior remoto argentino, mulher. Passados mais de 20 anos de Rey Muerto, Martel ocupa o lugar que já foi de Leopoldo Torre Nilsson, de Leonardo Favio e de Fernando Solanas. A cineasta-bandeira do país, que orgulha Salta e Ushuaia, que vai escutar o interior e a mulher, que vai fazer um cinema de gente grande e que, no entanto, pouco vai falar do cinema que a formou. Nas suas entrevistas, elegantemente, ela dá de ombros para a cinefilia. Assim, o que mais me motivou a tentar conversar com Martel foi justamente isso: por que ela, mesmo fazendo filmes que beiram a unanimidade crítica, parece dizer, em outras palavras, que prescinde de referências cinematográficas?

Em Rey Muerto, temos um filme recheado de violência gráfica, sequências de ação e muitos cortes. Na cena em que acontece a primeira agressão e na cena da vingança final, os procedimentos de montagem escolhidos afastam o filme de uma decupagem mais clássica (com quadros conectados entre si, buscando uma fluidez e uma invisibilidade), mas também não se aproximam da encenação moderna de certas vertentes do cinema contemporâneo, onde críticos e pesquisadores muitas vezes inserem seus longas. Durante uma hora de entrevista coletiva, não consegui fazer uma pergunta referente a essa estética tão distinta da continuidade de sua carreira. Nesse sentido, gostaria de saber até que ponto tais escolhas tinham a ver apenas com o momento histórico pessoal, com uma artista se experimentando e se descobrindo nas suas primeiras criações; ou se, uma vez que já assumiu um ciclo encerrado em A Mulher sem cabeça (2008), até que ponto ela cogitaria retornar àquela forma e àquela energia de filmar, tão diferente do que fez em Zama (2017).

Sem essa resposta, vamos do último curta para o primeiro longa. Na cena inicial de O Pântano, uma taça de vinho é pega por uma pessoa que não é um primor em matéria de coordenação motora. Tem-se primeiro o álcool, depois a tremedeira, por fim a protagonista. Na mesma sequência, percebemos a indiferença de quem coabita a área da piscina e enxerga essa mulher protagonista cair. O plongée que Martel escolhe para o momento tem a precisão de um manual. O detalhe da abertura, o movimento de câmera e depois a angulação vertical são de um rigor de quem é herdeira de Hitchcock. Porém, com uma racionalidade que geralmente faz sentido, mas nem sempre é questionada, Martel costuma ser posta na prateleira oposta à do cinema clássico e do maneirismo que tanto homenageia, revisita e reinterpreta. Desde o início de sua carreira, ela se conecta a uma estética mais contemplativa, moderna, ligada às ambiências, às atmosferas, ao fluxo. Um cinema que, às vezes, tem em sua narrativa um ponto menos relevante para sua concepção. Mas, desde seu primeiro plano e sua primeira sequência, Martel também dá sinais de quem pensa sua encenação de forma milimétrica no quadro e no movimento. Muitas vezes fluida, mas será sua obra tão atrelada ao cinema de fluxo?

Na cena da piscina, a protagonista é quem cai, mas o que vemos é o descaso de cada um de seus próximos, num plano que usa o plongée, o mergulho, com exatidão cirúrgica. Filma-se com um plano e poucos segundos o que a maioria dos cineastas, provavelmente, faria em muitas cenas. Não sei se falamos o suficiente do poder de síntese de Lucrecia Martel.

Uma das vertentes do fluxo recusa elipses, prefere uma crença na pureza da experiência, na imersão profunda naquele tempo e naquele espaço. Martel adere a essa escolha em parte razoável de cenas de sua filmografia, especialmente nos seus dois longas mais recentes. Contudo, no início de O Pântano, e em outras cenas que vamos ilustrar adiante, a potência da obra está, também, no poder de síntese. Em um ou dois planos, em poucos segundos, ela abrevia situações, resume personagens e as relações entre eles. Consegue o máximo narrativo com o mínimo possível.

Especificamente na cena da piscina, encontramos esse rigor discreto, fluido, por vezes generoso, que parece observar mais que julgar, que amplifica sutilezas do dia a dia alheio, um dos grandes nortes da estética marteliana. O ordinário ganha narrativa, imagens e sons em total sintonia para, então, atingir o extraordinário. Um olhar no espelho, um experimentar de roupa, um limpar os pés, tornam-se momentos extremamente sensualizados. Mas nada se consuma. Os momentos são sensualizados e reprimidos (características de seus personagens, extremamente críveis), adjetivos ainda mais explorados na obra-prima dela, seu segundo longa.

Suspense do cotidiano

A Menina Santa (2004) é, entre outras coisas, um dos grandes filmes de suspense deste século. Pode passar a impressão que, em sua narrativa, pouca coisa acontece, mas em nenhuma outra obra de Lucrecia tanta coisa é proporcionada, e com tamanha causalidade. Aqui, ela está mais próxima de Hitchcock que de Kiarostami ou de Claire Denis, cineasta feminina que, diferente de Martel, filma menos o desejo reprimido e mais o desejo realizado. Uma boa sessão dupla para A Menina Santa pode vir não apenas com obras de Denis, mas também com a de outra francesa, Catherine Breillat, e seu À Minha Irmã (2001). Dois filmes que pulsam com complexidades que, provavelmente, o masculino nunca entenderá por inteiro – não por acaso, são dirigidos por mulheres.

Na abertura de A Menina Santa, enquanto a personagem de Mia Maestro fala sobre a bíblia, Martel arquiteta composições em ótima combinação com a entidade que é o diretor de fotografia Félix Monti, hoje um octagenário. A religião que apresenta o filme (ou a interpretação feita dela) é a mesma que, pouco depois, faz uma menina ter dúvidas se o que presenciou foi o abuso de um senhor de meia idade ou o flerte de um ser enviado por Deus. O que ainda mais me impressiona em A Menina Santa, no entanto, é a capacidade de ocultar e mostrar, através de olhares e sons, a narrativa e a câmera.

Em poucas miradas e nenhum diálogo que diga respeito ao flerte, o início já esclarece uma tensão sexual entre Mirta e Jano (o “doctor Jano, cirujano”, que as crianças cantam em O Pântano). Olhares à distância, breves e potentes. Martel é sutil, sucinta e direta.

Logo depois, vem o contato de Jano com uma adolescente, que, em seguida, descobrimos ser filha de Mirta. A imagem fechada dá a certeza do bolinar que a personagem não tem – ou tem, mas que talvez queira negar. O abuso, a infração, acontece com quinze minutos de projeção e vai reverberar adiante em várias situações, incluindo uma das cenas mais emblemáticas do filme. Nela, a confissão do doutor Jano diz respeito à filha de Mirta, mas a mãe nem desconfia, tem certeza que ele fala dela, não de sua prole. Aos ouvidos de quem desconhece o crime cometido pelo médico, as palavras soam como uma declaração amorosa e libidinosa, provavelmente tornando-se um ápice de sofisticação narrativa no filme. Seu equivalente visual é o plano em que, já próximo ao final, temos o médico e as duas moças, com foco principal na vítima-mor, a filha. Entretanto, se Martel joga com o que nós sabemos e a personagem não sabe, ela também joga com o que as personagens sabem e nós sabemos.

O melhor exemplo disso talvez seja quando o doutor Jano percebe que está sendo acusado de abuso. Todos nós, os únicos além dos envolvidos a saberem que ele é culpado, imaginamos que ele será preso. Então, o que ela faz, como cineasta e narradora da história? Informa ao público, ávido por justiça, que o acusado de abuso é um outro homem, também médico. Enquanto um caso é punido, o outro segue impune.

Outra situação, mais sutil, vem após Helena paquerar, com cada vez menos disfarce, o doutor Jano. A conversa entre ambos é seguida por uma dança ao som de Cara de Gitana, de Daniel Magal (música que ganha uma versão brasileira com Sidney Magal). Ali, é natural pensar que haverá a concretização do desejo que não tem mais nada de latente. Enfim, eles vão transar. Mas, para surpresa geral, não é com o doutor Jano que ela baila. Na imagem seguinte, percebemos crianças que a observam e a imitam. Quando a libido se aproxima de ser saciada, Martel traz humor e inocência, com o ocultar e mostrar que sua articulação estética possui.

No clímax, abre-se mão da solução fácil, da revanche. Seria mais fácil trazer um constrangimento público, uma vingança, jogar para a torcida. Seria um final digno, justo e potencialmente catártico. É provavelmente o que vai acontecer, em algum momento, mas Martel escolhe acabar um pouco antes. Escolhe acabar com as meninas, na piscina, escolhe que cada um encerre a história e interprete os motivos pelos quais ela acabará ali.

No seu terceiro longa, A Mulher sem Cabeça, duas cenas me parecem as mais simbólicas do filme. A primeira, que acredita piamente no realismo e na entrega à personagem e à situação, dá origem à trama. Enquanto dirige seu carro, Verónica percebe o telefone tocar, tira os olhos da estrada e, repentinamente, percebe um baque. Ela bateu em algo que nem ela nem nós sabemos o que é. O impacto no carro é percebido na câmera e na personagem. Algo nada sutil ocorreu, um possível crime talvez, mas ela segue adiante e nós também seguimos com ela. Vamos ao filme com a incerteza da protagonista, com seu susto e seu olhar adiante. O respeito ao tempo e ao realismo da situação deverão acompanhar o espectador por muito tempo.

Em outro instante, em termos de conceito, temos uma mesma situação, mas com efeito diferente. Enquanto vive um dilema, após chorar sozinha no banheiro e ter admitido, numa suposição, “matei alguém na estrada, parece que atropelei alguém”, Verónica volta à rodovia. O canal ao lado da estrada ficou entupido, por causa de um cachorro ou uma pessoa. “É um cachorro”, ela escuta e se tranquiliza. Então, o que faz a câmera? Acompanha a protagonista, mais uma vez sem mostrar o que ela vê, mas também revelando muito pouco de sua presença física. Há quase um desligamento, simultâneo, da personagem e da história. Não vemos quem vê e também não observamos o que ela vê. Sendo assim, é possível que o cotidiano permaneça tão extraordinário quanto antes?

No final, escutamos Mommy Blue, uma espécie de canto triste do filho para a mãe. Música que poderia acabar seus dois longas anteriores e que, de fato, encerram não só a trilogia saltenha, como recorte regional, mas sobretudo uma trilogia temática. A família, a mulher, a religiosidade, o desejo e a repressão. Tudo está lá. Como o resumo de uma obra. Só que sem o mesmo frescor.

Piloto automático

Zama, para mim, padece do mesmo mal. O conceito venceu a prática, a ideia venceu a execução. “Sinta como eu sou bacana”, parece dizer a banda sonora. “Veja como sou bem composto”, afirma a imagem.

Em Zama, penso que não há complementação entre áudio e vídeo. Revejo o longa e penso num divórcio entre um e outro. De fato, o que de melhor existe no filme está, outra vez, no final, num protagonista com liberdade amputada. O que é a história dessa região tripartida entre a Argentina, o Paraguai e o Brasil? Ou melhor, o que é a história da América Latina, senão a de um grupo de pessoas com a liberdade amputada?

Numa conversa informal no facebook, Fábio Feldman, um dos editores da Rocinante, rabiscou impressões bem mais generosas imediatamente após assistir ao filme. “Fiquei pensando em como, nos dois primeiros atos, o personagem do Zama pode ser lido como uma variação do K., sempre atrás do Castelo, da razão por detrás do processo – de alguma esperança. A diferença, óbvia, é que ele (o Zama) vive num período em que as regras civilizatórias, ao invés de enferrujadas, estão ainda sendo forjadas. Aí, de repente, através de uma elipse, a gente salta do expressionismo tropical desse pseudo-Kafka pro meio do Grande Sertão! Ou de alguma mistura de spaghetti western e narrativa mítica à la Jodorowski ou Mal dos Trópicos. Esse corte é o osso do 2001 ao contrário, né? Retornamos ao antes, do Expressionismo caímos nesse proto-surrealismo dantesco, esse mundo mágico cheio de regras não-escritas. É Bosch sem o cristianismo. E o Nachtergaele é quase um Hermógenes, né?… Aquele plano final, com o corpo mutilado entre os jardins que lembra Marienbad (a Lucrecia dizendo que não gosta de cinema dá vontade de rir, né? Quantidade ridícula de referências…), é genial demais. Enfim. Só um jorro pra ver o que vocês pensam. Filme extraordinário!”

Peço imensas desculpas por não enxergar muita coisa que mexa comigo no filme e sentir que não tenho mais nada a falar sobre ele. Fábio, por exemplo, tem muito mais a dizer do que eu. Sinto uma obra que flerta com o western, gênero que Martel admitiu ter dominado sua infância. Mas, se por um lado ela consegue captar a beleza imagética num mundo ainda a ser desbravado e (re)colonizado, essa beleza tem dificuldade de sustentar-se quando o tempo dado ao plano e ao personagem parece maior do que o tempo que o plano e o personagem pedem. Ah, mas essa é uma vertente do cinema de fluxo, pode-se alegar. A meu ver, esse é o cinema de fluxo no seu modo automático.

Na entrevista que tivemos, as perguntas foram mais direcionadas justamente a Zama do que a qualquer outro filme feito por Martel. Questionou-se a transposição do livro para o roteiro, o trabalho com profissionais brasileiros, a relação com a fotografia e com a reconstituição da época etc. Questionou-se também uma possível relação entre o fato do filme ter mais de dez produtores com um eventual alcance multinacional da obra. Na minha vez, perguntei da cinefilia de quem via faroestes em casa. “Nunca tive cinefilia”, me interrompeu Martel. “Nem sobre esses filmes. O cinema que vi, eu vi na televisão. O que faço tem a ver com o relato oral. De minhas avós e da minha região”. Menciono uma conversa que tive com o próprio Fábio, que cita uma lembrança de Fellini no início de O Pântano. Ela ri.

“Há muitos críticos de cinema, e gente que ensina cinema, que acham que a relação mais forte que um diretor tem com o cinema é pelo cinema. E isso não é certo. A maior parte dos diretores, a relação deles e do desejo de fazer cinema, vem de uma observação do mundo, de estar no mundo, não de ver cinema. Do contrário, seria um solilóquio. Em A Mulher sem Cabeça, há uma homenagem-piada a Um Corpo que Cai porque a personagem principal pinta o cabelo. Mas não sou uma cinéfila para estar fazendo homenagem”.  Noto, naquele instante, que seria infrutífero discutir que cinefilia não tem relação necessária com homenagens, que esse caminho tende a não funcionar, e refaço a pergunta: “O que quero abordar diz mais respeito à história dos filmes que você viu, Martel. De que forma eles influenciam, de que forma você lida com essa história na hora de pensar escolhas estéticas para seus filmes e, mais especificamente, para Zama?”

Sua resposta é bem menos precisa que muitos de seus planos. “No cinema, não tenho nenhum problema. Nem em segui-lo, nem em afastar-me. Meu problema não é o cinema. Minha relação é com o real”. Ainda nesse raciocínio, Martel chega a dizer que “existe o mundo, existe o cinema. O cinema é uma má imitação do mundo”. Depois, como geralmente acontece em entrevistas com a cineasta, ela se afasta da conversa sobre cinema e começa a divagar sobre o mundo. As questões restantes vão no caminho justamente dessa visão, sobretudo relacionando-a com reflexões acerca da contemporaneidade.

Se o que ela filma representa uma impressão pessoal da América Latina, o que ela pensa do final do próprio filme, se se quer viver, se vale a pena viver. Esse final, que questiona de que forma compensa seguir existindo, retoma Rey Muerto. Ali, em 1995, o que encontramos é um homem, sem família e, talvez, sem visão. Um homem abusador que está pagando pelos pecados que cometeu. Podemos questionar apenas se o valor é justo, se está barato ou com juros excessivos, mas é justo que a conta chegue.

Em 2017, o início de Zama é com um personagem mirón (espécie de stalker in loco) e o término é com esse homem e seus braços amputados. Em ambos os casos, em Rey Muerto e em Zama, os protagonistas sentem falta de um passado. Lá saltenho, aqui europeu, sempre mais saudável para esses homens. Um passado nostálgico, uma tendência argentina que Martel, inclusive, admitiu ser um dos motores do filme. Se, por um lado, ela se remexe numa narrativa histórica desidealizando-a, por outro, seus personagens seguem nostálgicos, começando melhor do que terminam. Lá, um fica sem visão. Aqui, o outro fica sem tato.

Pode-se realizar uma leitura rasa que Martel, como mulher, está apenas se vingando de homens historicamente abusivos. Não é (somente) isso. Em A Menina Santa, no melhor momento para a revanche catártica, ela não quis. Usou a mesma elegância que tem para dizer que não é cinéfila. Seu cinema, assim como sua eloquência, é mais complexo e rico que um prato que se come frio. Pode ser que essa riqueza, aliás, seja até maior nos seus últimos filmes, com uma cineasta mais madura, e o erro esteja comigo. É uma dúvida que tenho. Só não tenho dúvida a respeito da importância que devemos dar àquela que hoje, provavelmente, é a mais relevante cineasta da América Latina (e que fez seus melhores filmes no começo da carreira).

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[1] Em 1910, 75% da população adulta do distrito central de Buenos Aires havia nascido na Europa (cf. KING, John. El Carrete Mágico).

Sete Orquídeas Manchadas de Sangue (1972), de Umberto Lenzi

Matar e Morrer Pelo Olhar

Daniel Dalpizzolo

O nome de Umberto Lenzi ainda ecoa com timidez na historiografia do giallo se comparado ao de compatriotas como Mario Bava, Lucio Fulci e Dario Argento. Essa aura de segundo escalão não deixa de refletir a efemeridade com que o diretor atravessou todas as principais fases do cinema popular italiano, não se filiando a nada além da necessidade de permanecer ativo em um sistema de produção extremamente dinâmico e imprevisível – condição que rendeu à sua filmografia uma série de projetos irregulares e impôs obstáculos para a consolidação de uma assinatura estética própria, que fizesse frente ao legado de artistas mais idiossincráticos, como os da ‘Santíssima Trindade’ do cinema fantástico italiano. Entre o início da década de 1960 até meados de 1990, Lenzi superou a incrível marca dos 60 filmes dirigidos (uma média de 2 por ano), embarcando em gêneros distintos, como aventura marítima, capa e espada, peplum, drama de época, espionagem, guerra, faroeste, thriller erótico, poliziesco, horrores de canibal, zumbi, sobrenatural etc, finalmente surfando na onda dos gialli, após o sucesso de O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), quando produziria, no breve período da carreira dedicado ao gênero, essa que é uma de suas obras mais belas e pungentes.

Sete Orquídeas Manchadas de Sangue revela em Lenzi uma habilidade notável e, em geral, subestimada, nascida justamente da necessidade de se adequar com tamanha frequência a códigos estéticos e narrativos tão distintos; um rigor com o qual, em breves e preciosos segundos, é capaz de compreender as chaves iconográficas de um gênero e transformá-las em sons e imagens, situações e plots, dotado de um olhar tão depurado que só pode ser obtido com muita virtude ou urgência. Desde o simbólico título, Sete Orquídeas Manchadas de Sangue pode muito bem ser encarado como mais que um giallo clássico, executado com uma consciência impressionante acerca das forças motrizes do gênero, mas, acima de tudo, uma carta de amor ao legado construído pelo movimento até 1972, resguardando em seu verso um manifesto que prenunciaria passos a serem trilhados em seguida por experimentos mais radicais.

Do choque entre essa reverência ao gênero e uma autoconsciência quase crepuscular, Lenzi extrai uma obra que se apresenta ao espectador sem segredos, pois nas primeiras imagens já descortina a essência da própria monstruosidade. Se a partir de A Tortura do Medo (1960), obra-prima maldita de Michael Powell, e Psicose (1960), embrião das principais transgressões estéticas e temáticas do giallo, o olhar do espectador cinematográfico seria perigosamente aproximado ao olhar do pervertido, por vezes confundindo-se um e outro de maneira a embaralhar impressões, sensações, desejos e gozos, Sete Orquídeas Manchadas de Sangue dirige-se a um público já consciente das convenções morais que devem ser abandonadas na antessala do cinema, ciente de que verá suas perversões espelhadas em tela e transformadas na mais alucinante matéria cinematográfica.

É determinante, portanto, que nossa inserção em Sete Orquídeas Manchadas de Sangue não se restrinja ao campo neutro de uma câmera observacional. Pelo contrário: sem aviso prévio, tão logo as luzes se apagam, em poucos segundos somos condicionados a ocupar o assento do automóvel pilotado pelo assassino até seu encontro com a primeira vítima – não somente como peeping tom, mas também imerso nos seus movimentos, com o ponto de vista subjetivo operando como interlocutor para o mergulho do espectador no universo do filme. Mãos aos volantes, carro na estrada, faca afiada ao bolso; isso minutos antes de manchar a superfície polida da lâmina com o vermelho intenso do sangue de uma dama. No tempo de espera até a primeira facada, estaremos com ele: o homem com a luva negra e a arma brilhante em punho, cuja identidade permanecerá escondida junto conosco, no extracampo, assinando o mesmo atestado de culpa.

Lenzi arquiteta uma abertura tão marcante que não seria exagero considerá-la um esboço do que Argento promove em matéria de imersão e subversão do olhar, com intensidade ainda mais vertiginosa e seu inconfundível traço barroco, em obras formalmente transgressoras como Prelúdio Para Matar (1975) e Suspiria (1976), lançadas num momento posterior, no qual o giallo parecia demonstrar esgotamento, até ser reescrito por um gênio. Ainda mais importante, com essa introdução também se evita o risco da não-correspondência: se o espectador pagou por sete orquídeas manchadas de sangue (numa metáfora direta para a aproximação entre desejo e violência promovida pelo gênero), aos 15 minutos de filme, já executou uma delas com os próprios punhos e acompanhou outras cumprirem seu destino das formas mais variadas, ilustrando todo um catálogo de signos do giallo que o filme compreende muito bem.

Dessa compreensão surge também um deslocamento determinante para o restante da obra. A um filme que se propõe experimentar as principais potências imagéticas e sensoriais do gênero logo na largada, o que sobra para o restante do caminho? É aí que outra característica fundamental do giallo entra em cena: a intersecção entre o prazer culposo e o medo. Os movimentos iniciais do assassino deixam uma sobrevivente, e é próximo a ela que permaneceremos no restante da narrativa, acompanhando o whodunit pelo ponto de vista dessa vítima acuada e do mais improvável investigador anônimo, uma dupla que terá em suas mãos a missão de reunir todas as pistas – as falsas, as verdadeiras, as inventadas – para desvendar um mistério que as autoridades ineficientes não conseguem compreender.

Como pano de fundo, surgem em cena resquícios de uma Itália profundamente afetada pela violência dos grandes centros urbanos e a falência de valores que refletem as transformações sociais do período, um horizonte determinante para o crescimento do horror e de seus subgêneros junto ao público durante as décadas de 1960 e 1970. E, sendo o giallo um movimento fundamental para o retrato desta violência no cinema, vale notar ainda que as imagens de Sete Orquídeas Manchadas de Sangue exibem uma brutalidade bastante ousada, com mortes que se consolidam das formas mais variadas e perversas, partindo da habitual facada até chegar à brutalidade de uma furadeira perfurando o torso – num registro da violência que passaria a se tornar cada vez mais audacioso nos anos seguintes.

Lenzi ainda é especialmente habilidoso em registrar e transformar o medo em matéria. Cada cena de espreita ou morte é especialmente impactante pela atenção da câmera à luz e às sombras do cenário, ao rosto e ao movimento das atrizes, e principalmente ao olhar arregalado da vítima segundos antes de morrer ou de um cadáver segundos após perder seus sinais vitais. Uma potência do filme transformada naquela que é, ao meu ver, sua cena mais memorável: o assassinato da artista visual diante da obra na qual a própria desenhava um rosto com dois olhos gigantes, que serão manchados de vermelho pelo assassino segundos antes de assassiná-la. É no encontro entre o olhar da vítima e aqueles olhos vertendo sangue que se dá a morte, numa cena que ilustra habilmente a essência demoníaca do giallo, gênero em que se mata e se morre pelo olhar, e no qual a morte é, enfim, a grande virtude da arte.

O Perfume da Senhora de Preto (1974), de Francesco Barilli

As essências do medo

Flávio C. von Sperling

O Perfume da Senhora de Preto (1974) é dos gialli que mais se aproximam da tradição gótica. Embora quando se faça essa associação entre o giallo e o gótico cinematográfico pensemos muito em fitas como Operazione Paura (1966), de Mario Bava, e o semi-díptico de Miraglia (La notte che Evelyn uscì dalla tomba (1971) e o superior La dama rossa uccide sette volte (1972)), que apresentam o gótico em sua superfície – geralmente lançando mão de toda uma iconografia já codificada pelo cinema –, é de uma maneira mais seminal que o gótico opera em O Perfume.

O filme de Francesco Barilli, o primeiro de suas duas obras no filão (sendo a outra Pensione Paura  (1977)) tem como parte de seu arcabouço o gótico que David Punter identifica como “ficção paranoica”, caracterizado pela ênfase na ambivalência da perseguição, pelo arraigamento na expressão psicológica dos conflitos, pela resistência a explicações e verificações convencionais e pela origem interna do “estranho” (o “retorno ao passado”, típico do gótico clássico, manifesta-se aqui de dentro para fora – é intranatural).

Embora essa definição caiba como uma luva no roteiro algo confuso de O Perfume da Senhora de Preto (que na verdade é fruto de um amalgamento de dois argumentos do diretor), todas essas articulações vão se manifestar de maneira visual no filme. Numa articulação tipicamente gótica, a paranoia da personagem é acompanhada pelo desenvolvimento e pela exacerbação das características expressionistas do mundo que a cerca e a oprime. O apartamento de Silvia (Mimsy Farmer), ensolarado e convidativo no começo do filme, gradativamente toma tons mais sinistros, como se fosse inundado aos poucos por um lamaçal. Tudo e todos se transformam em perigo iminente e figuras sinistras à medida que a paranoia de Silvia materializa-se e seus fantasmas do passado tomam forma. Até as personagens aparentemente mais simpáticas, como o vizinho Rossetti (Mario Scaccia) ou o porteiro (Renato Chiantoni), agora lembram serpentes retraídas prestes a disparar o bote.

Esteta austero, Barilli deixa evidente, em seus filmes, sua ligação com as artes plásticas, campo onde é muito mais ativo do que no cinema (o próprio cineasta diz não se considerar diretor, mas pintor). É curioso, em Pensione Paura, por exemplo, como alguns planos do filme nos remetem a quadros impressionistas: o primeiro plano de Rosa (Leonora Fani), remando o barco em meio ao caramanchão inundado, um tanto idílico, tem algo de um Monet ou de um Renoir. O mesmo acontece na cena onde as personagens de Jole Fierro e de Luc Merenda (uma espécie de Harry Lime wannabe) dançam à beira d’água. Essa atmosfera bucólica rapidamente dá lugar a tons mais sinistros, a outras pinturas cinematográficas de Barilli, numa modulação semelhante à que ocorre em O Perfume, porém um pouco mais vacilante.

Além do característico uso dos plongées, Barilli não raro opta por certa frontalidade da câmera, explorando de forma arguta a arquitetura e a profundidade de campo. Os corpos e elementos em cena estão quase sempre circunscritos no quadro, e muitas vezes se movimentam apenas no eixo da profundidade de campo. Vindo até nós, se afastando de nós. A câmera, quando se move, geralmente o faz de maneira lenta, gradativamente nos revelando um novo quadro (e/ou um novo elemento de perigo), enquanto os corpos em tela, em suas movimentações, o reconfiguram. O apuro estético é evidente. O comedimento com que Barilli usa o extracampo de forma dramática só aumenta a potência dos momentos em que ele o faz: geralmente numa situação em que, inesperadamente, a violência ou a ameaça (quase sempre um homem) irrompe do extracampo e viola o quadro, o espaço de segurança (ilusória) reservado à personagem.

Os gialli são quase sempre constituídos de set pieces e momentos narrativos que se intercalam. Estes, muitas vezes, são construídos de maneira mais prosaica e formulaica, em termos de linguagem, tendo por intuito principal levar a narrativa adiante ou explicar questões de caráter textual, enquanto os set pieces (em geral, sequências de violência, sexo ou suspense), despreocupados com a lógica narrativa, são elaborados e orquestrados para serem apreciados à parte, feito os números musicais em filmes do gênero. São os momentos em que os cineastas mostram, de fato, autoralidade, transgressão, empregando com mais afinco sua criatividade e inventividade (cineastas menores costumam, nos set pieces, cair num maelström de maneirismos e afetações). É aqui, no caso dos gialli, que mora o “verdadeiro filme”. Tomando emprestados os termos de Pasolini, os set pieces no giallo seriam o “cinema de poesia”, enquanto os demais momentos, de importância sobretudo narrativa, seriam o “cinema de prosa”. O Perfume da Senhora de Preto apresenta-se, nesse sentido, como um dos filmes mais poéticos (e mais autorais) do filão, pois parece constituído de um único grande set piece, ou de uma sequência ininterrupta deles, com alguns crescendos e alguns momentos mais ralentados, embora nunca estritamente a serviço da narrativa e nunca perdendo consonância com o resto do filme. A própria trilha musical, de Nicola Piovani, parece corroborar com essa ideia. Sem muitas variações, ela não chama atenção para si, evitando explicitar a marcação dos set pieces, como é usual nas trilhas de gialli.

O Perfume é imbuído em uma aura de tensão e de perigo iminente que paira sobre Silvia, um ar saturado que nos remete ao “perfume” do título. A saturação é marcante no filme todo, seja no espaço, nos planos onde parece operar uma espécie de força centrípeta, seja no décor (na saturação das cores ou, por exemplo, no horror vacui dos papéis de parede floridos, dos figurinos, etc). Além desse miasma de violência que ronda Silvia, vale lembrar também que o olfato é conhecido por ser o sentido das memórias involuntárias. Essas memórias, esses fantasmas do passado que se materializam para Silvia e para nós, surgem, geralmente, em superfícies reflexivas ou intermediados por instrumentos e procedimentos do olhar, e parecem ser encarnados a partir destes. A primeira aparição da mãe se dá no espelho. É na vitrine de uma loja que Silvia tem a impressão de ver o vaso que outrora fora de sua mãe (um vaso fálico, com direito a glande rósea, que posteriormente se materializa na casa de Silvia). Quando Silvia vê o estupro de sua mãe, embora veja a cena na cama à sua frente, ele acontece também refletido num espelho ao fundo do quarto. Silvia (e nós, em subjetiva dela) observa(mos) sua mãe pelo buraco da fechadura, antes que Silvia possa matá-la novamente (numa cena que será “espelhada” mais à frente, num dos suicídios mais singulares já filmados, no qual Silvia Criança (Lara Wendel) empurra Silvia Adulta varanda abaixo). O espelho e qualquer intermediador do olhar funciona aqui como um portal de passagem e materialização desses fantasmas e demônios. Não seria nossa tela de cinema também um desses intermediadores do olhar?

Matador Implacável (1975), de Luigi Cozzi

O operário da morte

Adolfo Gomes

É preciso ter escrúpulos para se escrever sobre uma obra-prima. Ao leitor, permita-me o desejo de que já tenha visto este Matador Implacável (1975) – e desde já sejamos cúmplices de tal prodígio. Ou, se ainda não conhece, que o encontro com o filme de Luigi Cozzi seja o mais breve possível.

Quando menciono escrúpulos, não me refiro à exigência pragmática (e algo paranoica) de manter o segredo, de guardar discrição sobre qualquer aspecto e eventuais surpresas da trama – precaução que não nos absolveria de nada!

Pode um crítico – e é comum isso – descrever, nos mínimos detalhes, um filme sem dele tocar sequer a superfície da sua poética. Devemos reconhecer: é trabalhoso partir sempre das aparências, do mundo exterior, no curto espaço-tempo que dura uma obra; e diante desse desafio projetar algo que dê conta de uma pequena parte (já podemos nos contentar), de tudo visto e originado na tela até o final da duração objetiva da obra.

Os portugueses batizaram de “O Segredo por trás do Segredo”, a primeira retrospectiva dedicada ao francês Jacques Rivette em Lisboa. Apropriada assertiva para resumir meu intento com esta espécie de carta-homenagem endereçada a Cozzi.

Nome oculto e obliterado da grande viagem do cinema italiano, relegado aos derradeiros vagões da historiografia convencional, Cozzi mantém, apenas, como traço de reconhecimento e humilde notoriedade, sua amizade e colaboração com Dario Argento. É só.

Mas Luigi Cozzi, se não tivesse sequer um cêntimo nos bolsos, bastava-lhe dos seus pertences apresentar Il Ragno, para que, de nossa parte como espectadores, despontasse uma fortuna. Que filme!

Godard sempre celebrou “os conquistadores” do mundo, não pelos feitos territoriais e ilusões de controle material dos desígnios do homem, pela imposição da força. Para Godard a conquista – a única duradoura e legítima – é a construção de uma memória comum, que possamos acessar e nos abrigar nos momentos de desespero, ao sentir os escombros dos nossos projetos de organização do meio que nos cerca (a mise-en-scène), começarem a irromper sobre nossas cabeças.

Consolidar uma memória que poderia ser transmitida de geração para geração, como gesto ancestral: caberia ao cinema isso? Se continua incerto afirmar que sim, há, de qualquer maneira, a hipótese. E se existe essa possibilidade, é por causa de filmes como Matador Implacável.

Quem não viu, pode zombar, reagir: “É exagero!”. Porém, respeitosamente, me concedam, uma vez mais, conjurar “o segredo por trás do segredo”, que impulsiona esse assassino monocórdio, pacífico e resiliente, do qual não podemos, em momento algum, atribuir-lhe o “pathos” de sádico ou psicopata. Talvez, com maior propriedade, possamos considerá-lo um operário, operário da morte.

Flagrado num momento de transgressão (o prazer de matar para o seu próprio deleite, incólume e livre das demandas externas), atacha-lhe a um homem (testemunha) disposto a se livrar da esposa. Então, ele, o “killer”, é, novamente, tragado pelas forças econômicas e de poder, agora sem a menor possibilidade de gozo. Tem que matar de novo, a mando de outros, às ordens do mundo que lhe encerra nos seus ardilosos acasos.

Há uma sequência exemplar da dimensão concreta dessa tragédia arquetípica: o paralelismo assombroso entre a violação da namorada de um jovem galanteador e o sexo casual do rapaz com uma loura apanhada à beira da estrada, após a pane do seu carro. A cada plano do frívolo recém-formado casal, um contraplano do estupro, sobretudo, do rosto do violador a reforçar e por em marcha a mecânica demoníaca detonada de forma aleatória (os carros, sempre os carros, submersos ou roubados).

Que este filme surja, conciso nas teias que enreda seus personagens, no pleno apogeu dos Gialli italianos, na seara dos filmes de gênero (tão aviltados pelas leituras simbólicas/semióticas ou pelas tentativas de decupagem artística); é demonstração do vigor e da transparência preservadas nesses “excluídos” da boa consciência cinéfila.

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Subversão

Deve-se considerar, num primeiro momento – como era intrínseco à natureza do cinema popular italiano da época (além dos gialli, os spaghetti westerns, as fitas policiais – poliziotteschi – e as comédias eróticas) – a prevalência do modelo norte-americano; mais associado aos anos 1950, do que a então Nova Hollywood em vigor. No entanto, essa espécie de mimetismo “mercantil”, no fundo – e na forma – provou-se extremamente subversivo na sua antropofagia “tricolori”.

O ritmo compassivo do assassino, a tentar impor sua cadência ao mundo, é outra das linhas de força do filme de Cozzi – e também instrumento da dialética de resistência do personagem a essa apropriação industrial, portanto veloz (a linha de montagem), da sua força de trabalho (matar).

O título original, Il Ragno (para além da “tradição gialli” em usar nomes de animais e até insetos nos seus genéricos), não evoca somente a rede fatalista tecida contra as vítimas dessa aceleração mortífera dos “tempos modernos”; acima de tudo, é um correspondente ambiental: a aranha se desloca pelo seu meio dentro de um paradoxo curioso; constrói lentamente seus caminhos e pontes com outras superfícies para lhe garantir a subsistência, porém, por assustadora e sorrateira que seja; em geral, ela é presa da sua própria parcimônia, diante, sobretudo, do seu irremediável caráter artesanal.

Assim, se a lentidão do matador de Cozzi, no âmbito da fauna do cinema de suspense e terror, antecipa/prepara a nossa sensibilidade para “os passos” de Michael Myers (Halloween, 1978) e Jason Voorhess (Sexta-feira 13, 1980), o desfecho dessa sistemática da morte é, radicalmente, diverso: enquanto seus pares norte-americanos, na serialização dos filmes, vão adquirindo traços cada vez mais sobrenaturais; o assassino à la italiana é, logo, logo (por sua latente e preservada humanidade) aniquilado.

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Enfim, eis-me aqui, no último parágrafo, no meu último esforço de evitar – pelo acúmulo de detalhes da narrativa e no desvelo das cenas – restringir a amplitude da experiência proporcionada por Il Ragno. A meu favor, requisito a irmandade e compreensão, infundida pela memória coletiva daqueles que já foram tocados pela encenação de Cozzi. Aos que não viram Matador Implacável, deixo um conselho/constatação do Mefistófeles, de Goethe: “A vida é curta e muito longa a arte”.

 

Entrevista com Luigi Cozzi

Fábio Feldman[1]

Influenciados por filmes de krimi alemães, literatura pulp, thrillers americanos da década de 60, referências contraculturais (visuais e ideológicas) e, acima de tudo, pelo cinema e o ideal de cinema criados por Alfred Hitchcock, o giallo é considerados por muitos fãs do suspense e do horror como um dos gêneros (ou filones) mais ricos a surgir na paisagem cinematográfica italiana pós-década de 60. Ao mesmo tempo perturbador e plasticamente deslumbrante, coeso e desconjuntado, sendo embalado por fortes torrentes psicanalíticas, o giallo foi arquitetado e expandido por artistas importantíssimos, dentre os quais Mario Bava, Lucio Fulci, Sergio Martino, Riccardo Freda, Umberto Lenzi e Luigi Cozzi.

Cozzi, como a maioria de seus colegas de geração, adentrou o universo do giallo aos poucos. Um fanático pelo gênero da ficção científica, iniciou sua carreira como crítico, posteriormente lançando O Túnel do Submundo (1969), ficção-científica experimental de baixíssimo orçamento que, com o tempo, tornou-se um clássico cult. Consolidando uma forte amizade com Dario Argento, ele passou a se interessar pelo universo dos romances de mistério e do então nascente giallo. Colaborou com Argento em diversas empreitadas, tendo coescrito o roteiro de Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971), sido assistente de direção de Síndrome Mortal (1996) e do segmento de Argento em Dois Olhos Satânicos (1990), além de ter produzido os efeitos especiais de Fenômeno (1985), dentre outras coisas.

Para além de suas colaborações cinematográficas com Dario, Cozzi também se estabeleceu como importante cineasta solo, dirigindo filmes de diversos gêneros – da comédia à aventura, do horror ao sci-fi. É autor do icônico giallo Matador Implacável (1975) e, ao longo das décadas, tornou-se um verdadeiro especialista no tema do horror italiano, tendo lançado livros de crítica e biografias.

Em uma conversa franca com a Rocinante, Cozzi declara sua enorme admiração por Argento – que considera o legítimo pai dos gialli –, reflete sobre sua história, as relações dos filmes com a política, outros cinemas e artes, e nos fala sobre seus próximos projetos.

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Em sua opinião, qual foi o primeiro verdadeiro giallo, o marco fundante, o iniciador do filone? E o que o diferencia dos thrillers italianos predecessores?

O primeiríssimo giallo de qualidade foi Aquele Caso Maldito (1959), de Pietro Germi, uma obra-prima que fez grande sucesso em nosso país. Mas não instituiu um gênero, porque, acima de tudo, tratava-se de um filme de autor. Em seguida, vieram Olhos Diabólicos (1962) e Seis Mulheres Para o Assassino (1964), do Mario Bava, dois gialli básicos que continham todos os futuros elementos do gênero, mas que passaram batidos na Itália por terem sido fracassos de bilheteria. O giallo não foi considerado um gênero comercial aqui na Itália até o final de fevereiro de 1970, quando o primeiro filme de Dario Argento, O Pássaro das Plumas de Cristal, estreou. Inicialmente, não criou imitações ou variações porque não foi um sucesso imediato. Porém, Pássaro se tornou um hit surpresa nos Estados Unidos, quando, em maio de 1970, abriu em Nova York como The Phantom Killer (O Fantasma Assassino), atingindo número 1 na bilheteria americana. Esse fato convenceu a distribuidora National General a encomendar à produtora italiana Titanus a filmagem de um segundo giallo assinado por Argento. O Gato de Nove Caudas (1971) nasceu e, quando estreou na Itália, no final de fevereiro de 1971, subitamente, se tornou um enorme sucesso, fundando um gênero seguido por toda sorte de imitações e variações.

No âmbito das influências cinematográficas e literárias, quais seriam algumas das mais importantes para a formação do giallo? E em que sentido vocês foram capazes de ultrapassá-las/subvertê-las?

Dario Argento era um ótimo roteirista e em seu Pássaro das Plumas de Cristal misturou vários elementos oriundos de diferentes fontes: elaborou a história principal, o background psicológico pervertido e a ideia de uma mulher sendo a assassina, a partir da leitura de um romance de mistério de 1949 chamado The Screaming Mimi, de Frederic Brown. Porém, moveu a história de Chicago para um cenário romano similar ao de Mario Bava em Olhos Diabólicos, adicionando também o assassino da luva negra e as longas cenas de assassinato inspiradas por Seis Mulheres para o Assassino. Outra influência de Argento foi o estilo dos krimis, thrillers alemães baseados em Edgar Wallace e lançados na mesma época, enquanto as cenas de jovens ameaçadas certamente vieram das sequências com Audrey Hepburn em Um Clarão nas Trevas (1967), de Terence Young. Todos misturados, tais elementos diferentes se tornaram a base do giallo enquanto gênero.

Em muitos gialli, o herói não precisa descobrir objetivamente a identidade do assassino. O que ele precisa fazer é liberar suas memórias reprimidas e encontrá-lo lá. O senhor acredita que houve um diálogo entre tais filmes e a psicanálise? E ela já lhe serviu, em algum momento, como fonte de inspiração? 

Nesse período (começo dos anos 70), logo depois dos levantes estudantis de 1968, jovens não gostavam da polícia, consideravam-na um braço do Estado. Muitos de nós, sendo homens de esquerda, também não gostávamos de policiais, e é por isso que na maioria dos gialli há tão poucos deles em ação. Além disso, há muito pouca ação policial representada em The Screaming Mimi, livro que Argento usou como inspiração para a construção do enredo de O Pássaro das Plumas de Cristal. Filmes do gênero giallo lançados ulteriormente se apropriaram dos moldes de Pássaro. Então, a psicanálise chegou nesse universo fílmico a partir de Argento, derivada por ele do romance de Brown. Livro que, não nos esqueçamos, é considerado nos EUA como fonte de inspiração para Psycho, de Robert Block, posteriormente adaptado para as telas por Hitchcock.

Conte-me um pouco sobre o cinema italiano durante as décadas de 60 e 70, período que nos legou Fellini, Antonioni, Pasolini, mas também autores como Monicelli, Leone, Bava e o senhor. Como eram as interações e trocas que ocorriam entre o mundo do cinema popular e a arena modernista/experimental?

Cinema era algo muito importante e popular na Itália durante os anos 60 e começo da década de 70. Foi um período em que filmes hollywoodianos começavam a perder impacto, enquanto a cultura jovem passava a ganhar poder e desenvolver novas formas de pensamento. Argento e outros como Bernardo Bertolucci trouxeram novas visões para a indústria italiana, que no final dos anos 60 havia sido quase totalmente renovada (como ocorreu em Hollywood na mesma época). Esse também foi o período em que comecei a trabalhar com filmes, possuindo apenas vinte e três anos de idade.  Claramente, havia muita interação entre jovens cineastas e a arena modernista/experimental. Um novo estilo mais moderno de cinema estava nascendo. Mais literário, mais político e cultural do que aquele geralmente feito no passado.

A maioria dos gialli são whodunits. Entretanto, tratam-se de whodunits muito peculiares. O nível de estilização aplicado à maioria deles é tão extremo que o enredo quase se torna abstrato… O senhor diria que eles se aproximam mais do ideal hitchcockiano de “cinema puro” do que das regras dos clássicos whodunits americanos, ingleses e alemães?

Os principais gialli não são whodunits clássicos e nunca tiveram a intenção de ser: o whodunit clássico já estava muito fora de moda no começo dos anos 70. Os primeiros modelos de Dario foram filmes como Silêncio nas Trevas (1946), de Robert Siodmak, ou romances como Black Alibi (1942), de Cornel Woolrich, ambos bastante diferentes e mais inovadores do que muitos dos whodunits. Além disso, Dario (e vários outros de nós) tinha grande afeição pelo ideal hitchcockiano de “cinema puro” e sempre foi fiel a ele. Também recriou as incrivelmente longas sequências de duelo forjadas por Sergio Leone, dando à luz as longas sequências de morte das vítimas dos assassinos.

Embora Argento seja considerado um mestre e tenha sintetizado todos os principais elementos do filone em suas principais obras, não há dúvidas de que Bava foi também um grande inventor. Como apontado pelo senhor, a maioria das convenções que Argento aperfeiçoou em produções posteriores já se encontrava em Olhos Diabólicos e Seis Mulheres Para o Assassino. Poderia nos falar um pouco sobre o diretor, seu legado e posição dentro do universo do cinema italiano?

Mario Bava foi um fantástico diretor de fotografia e, tendo sido também um pintor (seu maior hobby e paixão), ele amava brincar com as cores. Mas seus próprios filmes de horror eram quase totalmente ignorados pelas audiências italianas – exceto por alguns poucos jovens fãs entusiasmados com o gênero. Argento, sendo um deles, certamente foi influenciado, no início de sua carreira, pelos filmes de Bava. A principal diferença entre as obras de ambos é a seguinte: Dario, tendo sido ele mesmo um crítico, amava os clássicos e os modernos também, enquanto Mario, sendo mais velho, se inspirava, sobretudo, no estilo do cinema italiano das décadas de 40 e 50.

Na verdade, Mario era, acima de tudo, um diretor romântico e gótico, enquanto Dario era um cineasta mais contemporâneo. Além disso, Bava não era um escritor: ele colaborava em seus roteiros, mas nunca escreveu um inteiro sozinho, enquanto Dario era um escritor, e um escritor muito bom. Assim, Dario sabia compor bons roteiros que podiam fascinar todas as audiências (e ele fez isso, começando com O Pássaro), enquanto Mario sempre fez excelentes filmes graças, exclusivamente, a seu fantástico talento visual e cinematográfico. Os scripts com que trabalhava eram, frequentemente, horríveis, fora de moda e, em alguns casos, até estúpidos.

O senhor poderia descrever seu processo de criação no que tange a um roteiro de giallo? Iniciava possuindo um plot inteiro em mente? Ou começava com cenas elaboradas ou set pieces, prosseguindo daí? Em suma: era mais orientado pela história ou sua abordagem era mais “plástica”, associada à construção de momentos de intensidade?

Cada escritor tem seu próprio modo de compor seus roteiros ou romances. Muitos preferem delinear resumos exatos de cada parte do plot antes de começar a escrever. Alguns apenas sentam e esperam pela inspiração, sem saber aonde a história os levará. Outros usam sistemas de escrita diferentes… Para escrever Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971), eu e Argento partimos da ideia que o herói precisava ser um membro de um grupo de rock; então, começamos a escrever fortes sequências de assassinato, mesmo sem saber quem as vítimas e o assassino eram. Quando as completamos, começamos a procurar por um enredo, a fim de amarrar tudo. Em outros momentos, eu comecei roteiros de giallo sabendo apenas como a cena final precisava ser, posteriormente inventando outras que me levassem a ela… Os caminhos são muitos!

Desde seu primeiro filme, o experimental O Túnel do Submundo (1969), o senhor lidou com ficção científica e fantasia. É possível dizer que seu amor por tais gêneros precede mesmo seu interesse pelo suspense? O senhor é ainda um grande fã?

Eu tenho sido um fã de fantasia/sci-fi desde criança. Até ter conhecido Dario Argento, eu não era um especialista em mistério. Quando me pediu para escrever com ele o Quatro Moscas, a primeira tarefa que me deu foi ler livros de Cornell Woolrich, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Fredric Brown e Ellery Queen… Bem, ele foi meu professor de literatura giallo e, desde então, passei a amar os gialli também.

Temas fantásticos (especialmente conectados ao Oculto) foram gradualmente incorporados ao seu trabalho, assim como aos filmes de outros mestres. Por que o senhor acha que o gênero começou, em certo momento, a abrir suas portas para temas sobrenaturais?

No começo, Dario queria que elementos relacionados ao Oculto e ao Fantástico fossem mantidos absolutamente FORA dos roteiros de seus próprios gialli. Então, em 1973, O Exorcista veio: foi um gigantesco sucesso ao redor do mundo e ampliou toda a visão que se tinha dos gialli. Finalmente, Dario ousou mesclar giallo e o Oculto e fez Prelúdio Para Matar (1975), filme que se tornou um grande sucesso na Itália e convenceu vários outros produtores e diretores que o filone podia se misturar ao paranormal e, finalmente, ao horror também.

Falando em horror, após o giallo ter atingido seu pico, muitos de seus autores seguiram caminhos diferentes. Um diretor muito consistente foi Lucio Fulci. Tendo dirigido alguns dos gialli mais medonhos e naturalistas dos anos 70, ele permaneceu relevante durante a década seguinte, dedicando-se a filmes de horror perturbadores e sanguinolentos. Quais suas opiniões sobre, ambos, a fase giallo de Fulci e os filmes que fez posteriormente, como Zumbi 2 – A Volta dos Mortos (1979) e Pavor na Cidade dos Zumbis (1980)?

Fulci foi um ótimo cineasta profissional que, durante sua carreira, fez dúzias e dúzias de filmes, passeando por vários gêneros. Mas ele sempre fez aquilo que era mais comercial no período. Por isso, me parece ter sido um diretor imitativo – bom e competente, mas nunca um inventor. Na verdade, ele começou a dirigir gialli apenas após os filmes de Argento terem se tornado fenômenos de bilheteria na Itália. Da mesma forma, Fulci migrou do giallo para o horror após Suspiria (1977) ter feito bilhões aqui. Apesar dessa falta de originalidade, alguns gialli e filmes de horror dirigidos por Fulci são interessantes, porque neles, tentando ultrapassar os de Argento em quantidade de assassinatos e sangue, Fulci atingiu níveis absolutos de gore, criando alguns filmes visualmente absurdos e interessantes, como Zumbi 2, Terror nas Trevas (1980) e Pavor na Cidade dos Zumbis.

Gostaria de perguntar sobre o trabalho que o senhor desenvolveu no campo do horror, especialmente sobre Paganini Horror (1989). Uma das características mais fascinantes dos gialli e de outros tipos de filme dessa época é o fato deles combinarem, sem esforço, elementos de vários campos artísticos diferentes. A ideia de unir uma lenda urbana do universo da música clássica, horror e rock n’ roll é muito interessante! O senhor poderia nos falar um pouco sobre suas aventuras no horror durante a fase pós-giallo e sobre esse impulso pós-moderno que parece nortear seu trabalho e o de tantos de seus contemporâneos?

Na verdade, Paganini Horror parece ser um filme de horror porque foi escrito para parecer assim. Porém, ele é, realmente, um filme de ficção científica sobre tempo, espaço e teorias einsteinianas misturadas com física moderna, relacionadas à possível existência de outras dimensões.  Os mesmos temas se encontram em meus The Black Cat (1989) e Blood on Meliès Moon (2016), dois filmes que parecem horror, embora sejam, em essência, puras ficções científicas.

Por que eu gosto de misturar vários elementos diferentes em meus filmes? Bem, na verdade, se analisar a estrutura deles, você descobrirá que, basicamente, a maioria é bem similar: uma moça é a heroína, enquanto um homem é o vilão – um vilão que tende a ser mais idiota e/ou engraçado do que perverso, embora em alguns filmes ele se revele enquanto o verdadeiro herói e o único personagem simpático (como o Demônio em Paganini Horror ou o assassino em Matador Implacável).

Sobre essa estrutura básica, eu gosto de adicionar elementos incomuns, retirando-os dos livros ou filmes (ou música…) que mais gosto e os misturando, a fim de criar algo novo. Mas isso não é um método que eu tenha inventado! É apenas uma forma típica de criação aplicada a todos os “gêneros” de literatura e cinema. Todos que trabalham nesses campos (giallo, horror, sci-fi, western, romance…) sempre usam elementos previamente criados por outros, adicionando novos à mistura.

Alguns diretores também gostam de acrescentar a suas obras elementos tirados de campos criativos totalmente diferentes… E isso, Argento, eu e muitos outros também fizemos. Mas não se trata de um novo “método”: em todas as artes é raríssimo presenciarmos uma obra totalmente nova. Quase todo artista cria seus próprios trabalhos lembrando-se bem de tudo o que foi feito antes por outros criadores no mesmo campo (ou em campos diferentes) antes.

A seu ver, quão forte foi o impacto do giallo nas gerações futuras? O senhor consegue identificar referências a seu trabalho e aos dos demais mestres em obras de artistas como Léon Klimovsky, Brian De Palma, John Carpenter e Quentin Tarantino, só para citar alguns? E acredita haver cineastas contemporâneos capazes de manter viva a tradição aberta por vocês?

O giallo italiano teve um impacto muito grande sobre gerações futuras, de De Palma a Carpenter, entre muitos outros. A partir de Klute, O Passado Condena (1971), que rendeu à sua estrela, Jane Fonda, o Oscar de melhor atriz, muitos cineastas, do mundo inteiro, foram fortemente influenciados pela nova forma de arte cinematográfica criada, sobretudo, por Argento – incluindo dezenas e dezenas de diretores italianos também.

O senhor poderia nos contar um pouco sobre o que anda fazendo hoje em dia? Qual é a história por detrás da PROFONDO ROSSO, sua loja em Roma? E há novos filmes que planeja escrever e dirigir?

Em 1989, após terminar de trabalhar com Argento em Dois Olhos Satânicos [Cozzi foi assistente de direção na segunda parte dessa antologia, co-dirigida por Argento e George Romero], eu comecei a trabalhar na loja que ele fundou, PROFONDO ROSSO[2], a fim de transformá-la em um ponto de encontro para fãs do mundo todo. Assim, comecei a ter menos tempo para me dedicar a filmes e, desde 1995, após ter cuidado dos efeitos especiais de Síndrome Mortal, eu me dediquei completamente à loja e à publicação de uma série de livros sobre cinema. Apenas em 2014, decidi voltar a dirigir e fiz Blood on Méliès’ Moon, um longa de quase duas horas que cruza toda sorte de gênero, do giallo ao sci-fi. Esse novo filme recebeu críticas muito positivas e tem sido exibido em vários festivais internacionais dedicados, sobretudo, ao cinema fantástico, como o SITGES (Catalunha), o BIFF (Bruxelas). Agora estou trabalhando nos efeitos especiais de um novo filme dirigido por mim, The Little Wizards of Oz, uma fantasia a ser lançada até setembro de 2018.

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[1] Agradecimentos a Beatriz Saldanha, Flavio C. von Sperling, Leandro Afonso e Letícia Badan.

[2] www.profondorossostore.com

 

21ª Mostra de Cinema de Tiradentes – Em Busca do Real Perdido

 

Fábio Feldman & Roberto Cotta

Completando sua 21ª edição, a Mostra de Cinema de Tiradentes, mais uma vez, difundiu parte da produção cinematográfica autoral contemporânea, abrindo suas portas para realizadores de diversas formações e concentrando obras inéditas (ou pouquíssimo exibidas) no interior de um evento abrangente.

Apesar da quantidade prolífica de mostras e sub-mostras, homenagens e exibições paralelas, grande parte das produções pareceu se alinhar sob um mesmo gesto curatorial. Tal gesto valorizou um amplamente divulgado “chamado realista” – cinema enquanto forma de “intensificação do real”, abertura do real para aqueles que o experienciam, fabulação do todo-dia que lhe dá “dignidade estética”…

O fato de, ao longo dos debates relacionados aos filmes, tão pouco ter sido discutido acerca do sentido de termos como “real”, “realista”, ou mesmo “arte”, já se apresenta como um problema, por vezes evidenciado em alguns dos textos que compõem nossa cobertura. O maior deles, porém, diz respeito a parte substancial dos filmes exibidos nas três principais mostras do evento: Olhos Livres, Foco e Aurora – espaços oscilantes, mas preponderantemente reservados à validação de certas visões de mundo (e, por que não, de formas específicas de representação de tais visões).

Mais do que um lugar de liberdade, um laboratório de estruturas estéticas onde o “real” (seja lá como for compreendido) pudesse ser ressignificado, tais mostras apresentaram longas e curtas, bons e ruins, quase inteiramente associados a um conjunto unitário de temas e procedimentos. Olhos raramente foram menos livres.

Entre algumas evidentes exceções, salientamos o cinema pulsante de Sérgio Ricardo, que, depois de um hiato de 44 anos sem dirigir um longa-metragem, retorna com o filme Bandeira de Retalho (2018), e, claro, a direção cuidadosa de jovens cineastas que já apresentam um domínio maior de suas proposições formais, como é o caso de Marcus Curvelo e Marco Antônio Pereira, através dos curtas-metragens Mamata (2017) e A Retirada Para um Coração Bruto (2017), respectivamente.

Na presente cobertura, apresentamos críticas dedicadas a analisar os sete filmes exibidos na Aurora, todos inéditos, como exige a Mostra: Ara Pyau – A Primavera Guarani, de Carlos Eduardo Magalhães; Baixo Centro, de Ewerton Belico e Samuel Marotta; Dias Vazios, de Robney Bruno Almeida; IMO, de Bruna Schelb Corrêa; Lembro Mais dos Corvos, de Gustavo Vinagre; Madrigal Para um Poeta Vivo, de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho; e Rebento, de André Morais. Além disso, disponibilizamos um texto panorâmico relacionado aos dez curtas que compuseram a Foco.

Em relação à Olhos Livres, dada a inesperada desistência de alguns colaboradores, optamos por não cobri-la. Ainda assim, fica aqui registrado nosso apreço pelo documentário experimental Inaudito (2017), de Gregorio Gananian (vencedor do prêmio atribuído pelo Júri Jovem), e o pungente O Nó do Diabo (2017), longa episódico assinado por Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhesus Tribuzi: pedacinho imperfeito de um Cinema Real – maior que bandeiras, maior que Chamados, maior que o tempo.

MOSTRA FOCO: Um Mosaico de Nossos Agoras

Fábio Feldman

Formalmente falando, os dez filmes exibidos na Mostra Foco deste ano compõem um conjunto bastante heterogêneo: curtas experimentais, documentários, ficções de natureza clássica, de baixíssimo orçamento, de acabamento rebuscado – repletos de vida, repletos de potencialidade, repletos do mesmo. Entretanto, um forte gesto curatorial se evidencia quando analisada a temática da maior parte dos filmes. Dotados de natureza abertamente política, eles refletem diferentes lugares ocupados por figuras marginalizadas em nossa sociedade, dando voz, corpo e movimento a representantes de minorias identitárias, grupos histórica, social e culturalmente segregados, e vítimas contemporâneas dos ardis políticos que projetaram nosso país em meio às sombras.

1

A primeira sessão da Mostra foi aberta por Estamos Todos Aqui (2017), de Chico Santos e Rafael Mellim. O curta segue os passos de Rosa, jovem trans moradora da Favela da Prainha. Expulsa de casa, ela procura um novo lar em meio a paisagens desoladas, tornando-se cada vez mais consciente dos malefícios causados pelo projeto de expansão da zona portuária. Ao mesmo tempo uma estrangeira, em função de sua identidade, e uma representante de um grupo amplo, marginalizado e oprimido pelo peso da miséria e da desigualdade, Rosa se firma, gradualmente, como uma emblemática figura de resistência. E é sua sede e fúria que dão a tônica de Estamos Todos Aqui, obra urgente, apaixonada – mesmo que, creio eu, um bocado reiterativa e formalmente imatura (sua montagem frenética, marcada pelo uso de jump cuts, rapidamente se trivializa, exaurindo-a de boa parte de seu impacto). Irregularidades formais à parte, trata-se de um filme de momentos fortes, tendo servido de indicativo acerca dos mais promissores rumos tomados pela Mostra.

2

O mesmo não pode ser dito acerca de Iara (2018), de Erika Santos e Cássio Pereira dos Santos. Representando o encontro, às margens de um lago, de uma mãe e uma filha com uma figura feminina misteriosa, o filme, constituído sob uma chave naturalista, flerta com elementos do cinema de horror e fantasia. Nesse sentido, lembra produções de artistas como Marco Dutra, Juliana Rojas e Gabriela Amaral Almeida. Porém, enquanto em curtas como Uma Primavera (2011) e Um Ramo (2007), o cruzamento entre real e fantástico, o banal e o Estranho, ocorre de maneira orgânica, em Iara tudo parece artificial. A fotografia, os enquadramentos, as mise-en-scènes, tudo sabe à diluição. Más atuações e falta de potência dramatúrgica também não ajudam, embora o plano da Iara retornando às águas apresente certa intensidade imagética. Há quem leia o filme como alegoria de um relacionamento lésbico ou mesmo uma representação de diferentes variações do Feminino. A meu ver, trata-se, sobretudo, de um integrante menor – já que formalmente mais precário e menos original – de certo filão do cinema de horror brasileiro contemporâneo.

3

Peito Vazio (2017), de Yuri Lins e Leon Sampaio, o melhor filme do primeiro dia da Foco, em minha opinião, não se destaca radicalmente do cenário estético contemporâneo (são perceptíveis, por exemplo, os diálogos que estabelece com obras de autores como Adirley Queirós). Entretanto, tampouco pode ser considerado um mero exercício diluente. Posicionando-se entre o micro e o macro, o filme acompanha os passos de um jovem desolado com a rejeição de sua amada, enquanto o processo de impeachment de Dilma Rousseff se descortina diante dos olhos e ouvidos da nação. Paralelos sutis são estabelecidos entre a situação subjetiva do protagonista e a sombria constituição objetiva do Brasil: um coração partido, sangrando, precisa, por pressão da vida e do tempo, singrar; um país em choque, letargicamente, opta por não se entregar; e, morta, uma árvore melancólica dá lugar a uma nova. De uma perspectiva formal, creio que o filme peca por eventuais momentos de esquematismo (penso, sobretudo, na desnecessária cena em que dois jovens cantam um rap para o professor), mas, no geral, é capaz de sintetizar elementos de uma estética “suja”, realista, política, e traços poéticos singulares. Certamente, um dos destaques da Foco em 2018.

4

Outras (2017), de Ana Júlia Távia, fechou a primeira noite da Mostra. O documentário retrata a vida de várias mulheres que, vivendo na selva de pedra paulistana, se veem às voltas com o peso do racismo, da opressão e da misoginia – temática espinhosa e urgente. Entretanto, ousaria dizer que, de uma perspectiva cinematográfica, Outras decepciona. Sua estrutura básica (narração em off sobreposta a imagens das mulheres em questão) peca não apenas pela falta de inventividade como de funcionalidade. A relação entre as imagens e as palavras, nos melhores momentos, é repetitiva e maçante (ícones visuais se firmam como ilustrações pobres das palavras enunciadas); nos piores, incoerente. Boa parte do que vemos não parece dizer nada, apenas preencher espaço enquanto postulados são verbalizados. Não há tensão dialética, não há complementaridade: apenas repetição e vazio.

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A segunda sessão da Mostra contou com três curtas bastante diversos. Calma (2017), de Rafael Simões, vencedor do prêmio do júri da crítica, explora os espaços de um apartamento decadente. Nele, o tempo é dilatado: todos os gestos se desenham com enorme vagarosidade, os relatos se espraiam como que projetados do e para o além. Apesar da ausência de humor, o filme parece estabelecer conexões com a obra de Beckett, uma vez que embalado por um espírito forte de absurdismo (como comprova a imagem do homem abandonado no meio da sala, tão reminiscente de peças como “Fim de Partida”). Seria o limbo em que habitam os corpos sujos dos protagonistas um reflexo do estado de coisas que compõe o Brasil contemporâneo? A falta de voz dos marginalizados, a paralisia que doma suas vidas e neutraliza seus ímpetos – seria Calma um retrato do niilismo político que nos consome? Cinema experimental sem grandes experimentalismos (nada radicalmente novo é tentado aqui), o curta se filia a tradições marcadas pelas tentativas de expansão do trabalho com a imagem-tempo, a fim de produzir um efeito seja de afasia, incômodo ou maravilhamento. O resultado é rigoroso, sincero – ainda que, por vezes, desnecessariamente redundante.

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Sr. Raposo (2018), de Daniel Nolasco, dá uma guinada rumo à direção oposta. Pulsante, ágil, carregado de sexo e morte, ele representa, aparentemente, os últimos dias de um personagem acometido pela AIDS. A estrutura do filme não é linear ou visualmente coerente: entre a pornochanchada, o drama, o pornô propriamente dito, a (auto) paródia, o exercício pós-moderno e a linguagem popular(esca) típica das novelas e dos desenhos animados, o curta parece se configurar como uma espécie de sonho ou delírio. Pulsões primárias, de vida e de morte, são representadas dos mais diversos modos, seja no interior de construtos de encenação mais naturalistas, seja por vias abertamente artificiosas e afetadas. Visualmente, o efeito gerado é curioso: há inegável potência fílmica em Sr. Raposo. Entretanto, é preciso salientar o quão horizontal a obra é. A objetificação constante de todos os personagens, a redução de suas identidades ao desejo que os devora, a insistência (resultante do emprego de tantos procedimentos e dispositivos “carnavalizantes”) em resumir a história trágica de um homem à sua obsessão por corpos torneados – em suma, a falta de sutileza do filme, abraçada por tanto tempo e negada na “poética” cena final, me parece gerar curtos-circuitos incontornáveis. Nem Derek Jarman nem François Ozon, nem o antigo John Waters nem o jovem Guiraudie, Sr. Raposo é um fluxo estético queer à espera de algo mais bem definido a expressar.

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A grande surpresa da noite – e, quiçá, de toda a Mostra – veio na sequência: A Retirada para um Coração Bruto (2017), de Marco Antônio Pereira, filme de baixíssimo orçamento produzido no pequeno município de Cordisburgo (MG). Dadas suas características singulares, ele, por si só, já se configuraria enquanto um desafio a qualquer crítico que ousasse analisá-lo; posicionado no interior de uma Mostra tão coesa do ponto de vista temático, Retirada agiu como uma bomba, lacerando a tapeçaria discursiva que, até então, cobria a Foco. A sinopse do filme é, nesse sentido, bastante reveladora: após perder sua esposa, Ozório, um senhor de 70 anos, habitante de uma zona rural, passa os dias cuidando da casa e ouvindo heavy metal em seu radinho. Apaixonado pelo som da guitarra elétrica, ele resolve comprar uma pedaleira, mas não consegue plugá-la na velha viola. Felizmente, acaba por estabelecer contato com dois alienígenas que, saídos de um precário disco voador, o convidam a montar uma banda de rock pesado. Meio Aruanda (1959), meio The Eric Andre Show, o curta sinaliza caminhos algo inéditos dentro da paupérrima paisagem que abriga o cinema popular brasileiro contemporâneo. Irreverente, consciente de suas próprias limitações formais e disposto a transformá-las em material para gags, Retirada parece, ao mesmo tempo, honrar uma tradição de humor televisivo pré-youtube, muito em voga, sobretudo, na década de 90 (“Hermes e Renato” vem à mente), introduzir elementos visuais oriundos da cultura dos memes e, surrealisticamente, subverter uma série de expectativas narrativas sem nunca alienar sua audiência. Obra essencialmente popular, A Retirada para um Coração Bruto é, ao mesmo tempo, fruto e paródia de uma “estética da pobreza”, cravando no solo impenetrável da terra de Guimarães Rosa um interessantíssimo veio nonsense rumo ao futuro.

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O terceiro dia da Mostra foi iniciado com Febre (2017), de João Marcos de Almeida e Sérgio Silva. Embora também conte com um protagonista gay que luta para se estabelecer num mundo alheio, Febre não comunga de praticamente nenhuma similitude formal com Sr. Raposo.  Diferente deste, o curta de Almeida e Silva é bem mais clássico, estruturalmente coerente e focado. A presença de Helena Ignez e a godardiana inserção de um quadro de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) em uma das cenas não me parece fazer sentido intertextual claro. O filme não se filia, de modo algum, às tradições abertas pelo Cinema Novo, Cinema Marginal ou mesmo Cinema da Boca. Estudo de personagem, de tom “sério”, Febre lembra filmes da safra indie hollywoodiana do final da década de 90 e início de 2000, além de obras como Oslo, 31 de Agosto (2011), do norueguês Joachim Trier e Shame (2011), de Steve McQueen (como não associar a cena em que, circundado por ruídos dissonantes, o protagonista anda, salta e corre pelas ruas de seu bairro ao belíssimo plano em que Michael Fassbender, ouvindo Bach, cruza a melancólica noite urbana?). Os enquadramentos, as mise-en-scènes e, principalmente, os movimentos de câmera, são bastante rigorosos. Febre é, sem dúvidas, um filme sobre movimento – ou melhor: sobre um mundo que se move à revelia do protagonista, alguém que retorna de um país distante e precisa se reconectar com os escombros do passado. Infelizmente, assim como ocorre em diversos filmes de Caetano Gotardo (incluindo-se aí Merencória (2017), curta exibido esse ano na Mostra Panorama), parece-me haver em Febre um excesso “parnasiano”, um desejo artificioso de expressar sentimento e sensibilidade por vias verbais e visuais forçadas, falsamente “poéticas”. A lição rosselliniana é sacrificada em prol do que João Cabral denunciou como a “poetização do poema” – procedimento perceptível em vários esforços de artistas jovens, talentosos, mas ainda incapazes de entender o grande poder da simplicidade.

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Fantasia de Índio (2017), de Manuela Andrade, perfaz outro caminho. Seus planos iniciais, com fotos de crianças fantasiadas de índios, nos levam a pensar no tema da “apropriação cultural”. O curta, porém, não se ocupa dele – prefere, antes, falar sobre algo mais importante: o fato de tais trajes remeterem a imagens míticas, perdidas num istmo entre o imaginário e a história antiga. Fantasia de Índio deixa claro que, embora apenas um contingente vergonhosamente pequeno de representantes dos povos originários permaneça vivo e atuante, pelo menos 12 etnias indígenas residem no interior do estado de Pernambuco. Etnias que não foram silenciadas, que permanecem sustentando seus valores e visões de mundo e resistindo ao impiedoso peso do “progresso”. Formalmente, o documentário se vale de várias estratégias distintas. O uso do voz over é primoroso, cumprindo ora sua função informativa/complementar à imagem, ora uma demanda dialética. A inserção de animações em pontos-chave também me parece funcionar bem, criando distinções poéticas entre duas formas epistêmicas de se acessar o real. Dito isso, o filme é ainda carregadamente expositivo. A exploração dos espaços e comportamentos dos membros da Comunidade Xukuru é bastante superficial. Falta o gesto rouchiano, a coragem de, respeitosamente, penetrar o espaço do outro e o tornar real diante das lentes da câmera. Por mais que sua mensagem e diversos de seus procedimentos apontem para um lugar de extrema riqueza, a fragilidade dramatúrgico/composicional de Fantasia de Índio, por vezes, se coloca como obstáculo. Ainda assim, trata-se de uma opção instigante a despontar no panteão dos filmes sobre temática indígena lançados nos últimos anos no Brasil.

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Finalmente, fechando o último dia da Mostra, foi exibido Inconfissões (2017), de Ana Galizia. Construído a partir de imagens de arquivo, o documentário representa aspectos da vida de Luiz Roberto Galizia, artista teatral importante nas décadas de 70 e 80, e um tio que a diretora nunca conheceu. As imagens que compõem o filme são todas inéditas, tendo sido encontradas por Ana trinta anos após o falecimento de Luiz. Diferentemente de obras nas quais realizadores buscam acertar contas com o passado – ou mesmo, flertando com o modelo do thriller, recorrer a fragmentos a fim de montar uma narrativa (penso nos exemplos recentes de Coração de Cachorro (2015), de Laurie Anderson, e do belíssimo La Casa de Los Lúpulos, (2016), de Paula Hopf), Inconfissões não é um tributo convencional a seu objeto de análise. Entretanto, tampouco é uma forma de problematizá-lo, desconstruí-lo ou mostrar dele “a outra face” (como bem fez Maria Clara Escobar em Os Dias Com Ele (2014)). Mais do que qualquer coisa, Inconfissões é um filme de fantasma. O Galizia que vemos não é o ator, o acadêmico ou o fundador da Ornitorrinco. Ele não é exatamente o filho, o ativista ou o mentor. O Luiz de Inconfissões é uma presença – esquiva, mutante, incompleta. Tanto a trilha sonora quanto a brilhante montagem do curta ajudam a criar uma constante sensação de imprecisão: cenas bucólicas são atravessadas por fotos protocolares ou desconcertantes imagens de intimidade sexual. O homem, que parecemos conhecer tão bem ao final dos 21 minutos de projeção, nos é sempre um total estrangeiro, o esboço de uma figura sem margens. Há algo de hipnótico em Inconfissões, filme reflexivo, carregado de potência afetiva e, ao mesmo tempo, vazio de certezas. Com sua obra, Ana Galizia, conscientemente, atinge o oposto do que muitos almejam: coaduna cenas fortes, de modo forte, a fim de dar materialidade a um espectro.

Todas as coisas que vemos são ecos: as ruas sujas, as tardes nos jardins, as paradas, os apês. No poderosíssimo plano final, um homem performa sexo oral em um Luiz duplicado, diagonal, sem rosto. Assim como no filme que culmina, tudo em tal imagem é mistério: matéria do tempo, leve, destrutiva e enigmática. Em suma: pura Vida, puro Cinema.

Nenhuma obra poderia ter fechado melhor a Mostra.

 

 

 

 

Rebento (2018), de André Morais

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Melodrama em cinco atos

João Campos

Rebento (2018) começa com uma sequência de planos fechados das pernas de um bebê recém-nascido. Ouvimos o barulho da água que limpa o sangue do corpo da criança e cai na bacia. O ritmo arrastado prefacia a lentidão que domina todo o filme. Logo vemos uma mulher com expressão atônita, enquadrada de cima, introduzindo-nos ao espírito do longa: entre as formas de um corpo, enxergamos a sofrência nordestina até o extremo do melodrama. A parteira caminha com uma bacia cheia de sangue, mas faz uma pequena pausa dentro do quadro, a fim de que possamos dar uma boa olhada no sofrimento da mulher que jaz na cama. Logo após, a criança é embrulhada no lençol em que nasceu, guiada pelo sertão e, por fim, é afogada num riacho. O pacote boia, nós olhamos. Fade out e uma cartela: Maria.

A mise-en-scène composta por André Morais transborda melodrama, mas com uma roupagem artística que quer encantar o espectador pela duração, pelo tempo vagaroso com que busca contar sua história, sem deixar de lado o enigma do enredo. As ações são espaçadas, os diálogos sussurrados e lentos, como se o filme se arrastasse pelo sertão afora. Seja como for, o resultado é decepcionante. A câmera persegue uma personagem de suposta opacidade. Ela vem de longe, mas o espectador brasileiro já a conhece bem. “Tô de passagem”, diz para um rapaz que oferece carona. “Vem de onde?”, ele pergunta. “Venho de longe”, emendando, “O senhor não sabe onde fica. É muito longe”. A tentativa de embrulhar a personagem numa aura enigmática não condiz com a semelhança que esta carrega em relação a uma gama de personagens da Retomada do cinema brasileiro. Ela poderia estar em Central do Brasil (1998) ou na Guerra de Canudos (1996), mas aqui ela matou seu bebê e o espectador é obrigado a seguir seu martírio sem fim.

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O filme é dividido em cinco atos, intitulados Maria, Rosa, Ana, Clara e, por fim, Eu, marcando os nomes que a personagem recebe em seu percurso. O Eu só emerge no final, quando ela alcança seu pai moribundo, que logo morre e a deixa caminhando na desgraça. Ela beija os lábios do cadáver e, após um fade para branco, caminha rumo à câmera, o rosto distorcido pelo choro, o corpo fadigado, cheio de hematomas, sangrando. A mulher cai na terra e olha para a câmera, estimulando o espectador. Fade out e fim.

Esta é uma obra que procura extrair o máximo de sofrimento da personagem: uma mulher sertaneja que, não bastasse o horror do filicídio, precisa carregar junto ao ventre uma maldita melancia, fantasma que a acompanha em sua jornada para nos lembrar do rebento assassinado. Através do uso da trilha sonora nos momentos mais dramáticos, da prevalência de planos sequência e movimentos de câmera vagarosos, André Morais compõe uma valsa em volta de uma mulher martirizada. Um olhar sádico que se coloca na missão impossível de conciliar harmonia e convulsão.

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Lúcia Nagib[1] nos mostrou que o cinema da Retomada carrega uma nostalgia de momentos anteriores da cinematografia nacional, quando a utopia política era possível. Revisitar o sertão e a favela filmados pelo Cinema Novo e udigrudi foi prática comum de cineastas como Walter Salles Jr., José Padilha, Fernando Meirelles e Kátia Lund, mas a partir de uma estética limpa, harmônica e internacional (nos limites do palatável). Nos últimos anos acompanhamos o surgimento e estabelecimento de jovens cineastas que, de certo modo, abrem novos caminhos para a utopia no cinema (penso em figuras como André Novais de Oliveira e Adirley Queirós, por exemplo). Nesse contexto de tímida fratura, considero deplorável olhar um filme como Rebento. Da nostalgia da Retomada só ficou o melodrama. Tudo pelas lágrimas, nada mais.

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[1]NAGIB, Lúcia.   A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Madrigal para um Poeta Vivo (2018), de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho

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Mais um vagabundo iluminado

Fábio Feldman

Logo no início de Madrigal para um Poeta Vivo (2018), nos deparamos com um senhor sentado próximo a uma lápide, falando sobre a passagem do tempo, a efemeridade da vida e Fernando Pessoa. Seu nome é Tico, protagonista do documentário, escritor e coveiro.

Uma vez delimitado seu principal objeto de observação, o filme se abre como um fractal, valendo-se de estratégias formais muito distintas: gestos experimentais se cruzam com procedimentos jornalísticos; cenas ficcionais extremamente estilizadas são sucedidas por planos documentais que primam pela simplicidade. A divisão em quatro atos (aparentemente, uma homenagem a Brecht) não parece fazer muito sentido estrutural, uma vez que o foco do filme é cambiante: pontos levantados num dado momento são aleatoriamente retomados em outro, caminhos promissores são abertos só para serem abandonados em seguida, e nenhum arco parece ser devidamente desenhado.

Dito isso, há uma constante em Madrigal: o desejo de representar a vida de um mito. Na verdade, Tico não é o protagonista. O herói da obra é o Vagabundo Iluminado, o Artista Marginal, a Voz das Ruas, etc. Para tanto, o filme se vale de uma série de procedimentos, sendo o mais usual a fetichização do gesto literário enquanto forma de resistência. O interlocutor de Tico, interpretado por Renan Rovida, parece espelhar uma imagem inexistente, didaticamente representando para a audiência o gênio inconformista e contracultural daquele com quem interage. Para tanto, grita, em meio às águas, os nomes de Dostoiévski, Hemingway, Pessoa e Guimarães Rosa (como se a mera menção a tais nomes canônicos comprovasse o amor de Tico pela arte e o colocasse na posição de intelectual “perigoso”), embriaga-se diante de uma máquina de escrever e emula práticas surrealistas enquanto esbraveja contra a burguesia.

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O próprio Tico parece embarcar no projeto, mas, por vezes, apresenta visível desconforto diante do papel a ele relegado. É o primeiro a desafiar a noção romântica do “escritor coveiro”. Suas interações com o parceiro de cena não refletem grande entusiasmo ou habilidade. E quando divide suas visões de mundo, repete, sobretudo, clichês: o elogio dos loucos (“loucos pra viver, pra falar, pra serem salvos”…), o pessimismo diante da finitude e da absurdidade das coisas, a crítica ao capitalismo, e por aí vai. Assim como Renan, interpreta um papel. Porém, muitas vezes, não parece caber no figurino.

Curiosamente, os poucos momentos em que o filme brilha são aqueles em que Tico se impõe. Não a figura marginal, mas o homem: tímido, melancólico, desencantado, comum. Infelizmente, esses são instantes raros. Madrigal para um Poeta Vivo prefere, de modo canhestro, homenagear o indivíduo que nunca houve, optando por empregar adjetivos que, no afã de adornar um corpo vivo, acabam por sacrificá-lo.

 

Lembro Mais dos Corvos (2018), de Gustavo Vinagre

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Territórios esgarçados, relações a construir.

Thomas Lopes Whyte

Lembro Mais dos Corvos (2018), de Gustavo Vinagre, é um filme de estrutura simples. Sucinta, a sinopse nos indica, em uma única linha, o tempo (uma noite), a protagonista (Julia Katharine, atriz) e o formato (“Documentário” /conversa). Logo de cara, todo o espaço que abrigará o espectador pelos próximos 80 minutos é apresentado: uma única sala de apartamento, com mobiliário e elementos de decoração japoneses, dispostos de forma plasmada e perpendiculares à lente, que, pelo menos em relação à sua legibilidade, remetem ao cenário Kabuki. Ao despertar notívago de Julia no primeiro quadro segue-se um momento vagaroso, quando as incertezas de uma atriz ainda pouco certa sobre o papel que lhe cabe nessa conversa/entrevista vêm à tona.

Ao escrever sobre arte contemporânea e a desmaterialização do próprio objeto artístico, que tanto influenciaram o cinema do pós-guerra, Nicolas Bourriaud destacou o crescimento de uma produção estruturada a partir de relações entre 3 campos: o social, o histórico e o estético. Ainda que estejamos distantes de uma situação realmente democrática – como aponta um estudo recente da ANCINE, que indica a pequena participação de mulheres e negros na cadeia produtiva –o longa de Vinagre é fruto, mesmo que parcialmente, de uma tendência global de filmes socialmente engajados e que se inserem nas discussões de representatividade.

No campo histórico, porém, essa relação é menos sólida. Ainda que o tema da produção esteja atrelado a nosso zeitgeist, sua conexão com o passado parece vacilante. A impressão que se tem é que alguns filmes – e talvez seja esse o caso de Lembro Mais dos Corvos –, em virtude da urgência demandada por seus contextos, acabam partindo de um falso senso de novidade, uma tabula rasa que, ao tentar reescrever caminhos já traçados, acabam alinhando impulsos criativos originais a sistemas duros de signos já catalogados e nem tão revolucionários assim.

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É claro que o conceito de originalidade pode ser contestado, mas a proximidade formal, por exemplo, com o filme de Shirley Clarke, Portrait of Jason (1967), evidencia alguns anacronismos e cacoetes na abordagem dos temas. O mais recorrente talvez seja o insistente zoom in/ zoom out, típico do documentário direto dos anos 60, que não encontra na personagem de Júlia a mesma força dialógica que vemos no filme da diretora norte-americana. A busca pelos reenquadramentos no decorrer da conversa é, certamente, expressão de um gesto autoral em ambos os casos. Porém, no filme de 1967 o recurso vai além da condição de prótese e se justifica pela natureza exibicionista do protagonista, mais à vontade com a noção de uma teatralidade física que ocupa todo o espaço disponível do “palco”. Apesar disso, como quem afina um instrumento durante a apresentação, Vinagre, gradualmente, deixa de se preocupar com alguns desses referenciais estéticos e acaba aliviando a mão enquanto mergulha no universo de Julia.

Ao final da década de 1980, o artista Cubano Felix Gonzalez-Torres redefiniu os paradigmas da arte que tinha a homossexualidade como centro temático. A partir de um repertório singelo de objetos pessoais, cujas significações remetiam a experiências compartilhadas por quaisquer casais, Gonzalez-Torres foi capaz de apontar para uma direção oposta (ainda que igualmente contundente) à de Marlon Riggs em seu Tongues Untied (1989). Realizou uma série de objetos que extrapolavam os limites estéticos do círculo identitário, deslocando sua obra em direção a outros paradigmas, a partir de premissas igualmente vigorosas e politicamente relevantes.

A problemática expressa pelo binômio afirmação/desconstrução é também colocada no filme. Talvez as travestis e transexuais ainda tenham que percorrer parte do caminho já feito por outros grupos minoritários no Brasil. Se em Rainha Diaba (1974) e Madame Satã (2002), a representação se justifica pela potência das personagens como ícones e pela distância que isso implica da experiência do cotidiano, talvez dentro de algum tempo tenhamos na tela uma quantidade de vidas sendo retratadas para além da violência e dessa marginalização territorializada. E é Julia quem canta a pedra. A própria atriz, que também pretende se tornar diretora, é quem identifica no olhar de Ozu uma almejada representação dos espaços familiares, da carga dramática diluída e de um texto que revela sua força justamente a partir daquilo que não é verbalizado.

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É com franqueza que se apresentam não só essas questões, como também as incoerências de uma personalidade ambígua, que se esconde ao mesmo tempo que revela. Apesar de, às vezes, detectar no olhar do interlocutor uma espécie de curiosidade fetichizante, a atriz toma para si a responsabilidade de interpretar um duplo papel, sendo, ao mesmo tempo, objeto e sujeito. A partir do espaço negociado com Gustavo Vinagre, a protagonista reafirma sua existência complexa e passa pelos tempos agitados de sua juventude, enquanto oferece também sua caretice como contraponto.

No fim das contas, o filme parece ser menos a respeito de Julia e mais sobre sua relação com o outro, representado aqui pelo próprio autor/diretor. A maior virtude do longa está em sua capacidade de modificação, de se instituir enquanto obra processual, que cresce a partir de suas próprias contradições e das de seus protagonistas. Entretanto, tal movimento carece de certo amadurecimento: de modo paradoxal, são justamente os diálogos que impedem o filme de executar um mergulho mais profundo. Parece-me que, no vazio, localizado entre autor e personagem, Gustavo tropeça na quimera formada pela história que havia visualizado e o filme concreto, construído com Julia. Apesar de partir de procedimentos aparentemente semelhantes aos do cinema de conversação de Eduardo Coutinho, não há ali o jogo de cintura, que procura extrair um retrato através do subtexto, – característica verificada também nas ficções de Ozu –, e que, nas próprias palavras de Coutinho, elimina os espaços gerais, de tipos mais ou menos imediatos, coerentemente simbólicos de um grupo social.

Adotar certos pontos de vista nesse jogo de cena, que trabalha nos interstícios entre ficção e “realidade”, pode ser uma aventura desconcertante para o espectador. Os lembretes de que Julia, apesar de tudo, é também atriz, e “seu” quimono é na verdade um objeto de cena colocado ali pela equipe, tendem a funcionar como dispositivo que recoloca toda a natureza do filme em perspectiva. Mas se esse componente da farsa, das relações entre verdade/mentira, ficção/realidade, for apenas um recurso periférico e não condição de existência, ele corre o risco de ter seu potencial reduzido a um salvo conduto, um tipo de álibi, uma cortina de fumaça que tão somente turva as determinações e asserções que estão lá, mas não querem ou podem ser vistas.