Eles Não Usam Black-tie: A Peça, O Filme

Guarnieri debate 1

Edição e comentários: Reinaldo Cardenuto

Em setembro de 1983, no âmbito da mostra “O operário no cinema alemão e brasileiro”, Leon Hirszman e Gianfrancesco Guarnieri participaram de um debate sobre o filme Eles Não Usam Black-tie. Dois anos após a circulação comercial do longa-metragem no Brasil, o cineasta e o dramaturgo se encontraram no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) para responder às perguntas de um público interessado em conhecer o processo de criação que ambos desenvolveram entre os anos de 1978 e 1981. Em um contexto histórico atravessado por grandes inquietações, fosse em relação ao futuro do movimento operário ou ao processo de redemocratização da sociedade brasileira, os espectadores dividiram-se entre elogios e críticas à obra cinematográfica, provocando questionamentos acerca da visão política que os dois procuraram incluir na versão fílmica de Black-tie.

A conversa no MIS-SP, material nunca antes publicado, existente em duas fitas cassete armazenadas na midiateca do museu, torna-se uma rara oportunidade para entrar em contato com os intensos debates que foram travados, na primeira metade da década de 1980, em torno desse longa-metragem vencedor de vários prêmios internacionais. A partir da leitura do documento, levando-se em consideração que Hirszman nunca escreveu textos sobre seu próprio cinema, é possível obter novas informações acerca da realização do filme e das decisões que foram tomadas para a adaptação fílmica de uma peça escrita originalmente em 1956. Para além das reflexões em torno da arte política, o cineasta e o dramaturgo detalham suas visões de mundo, expondo inquietações relacionadas à condição de um país que ainda se encontrava submetido aos desmandos do regime militar.

Devido a problemas técnicos existentes na gravação original, em que parte das questões do público é inaudível, optei durante a edição por acrescentar algumas perguntas, formuladas a partir das respostas oferecidas pelos artistas. Também inclui um pequeno conjunto de notas de rodapé, informações extras para a melhor compreensão do conteúdo presente no debate. Com a recente descoberta de novos documentos, cavoucados em acervos públicos e privados, redefinem-se as possíveis leituras sobre o lugar ocupado por Hirszman na história do cinema.

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Guarnieri, como se deu o processo de criação da peça Eles Não Usam Black-tie?

Gianfrancesco Guarnieri – No geral, o fato de escrever uma peça não vem precedido de nenhuma organização mental, de nenhuma ideia pré-estabelecida. Eles Não Usam Black-tie foi escrita por uma necessidade de me expressar a partir daquilo que eu conhecia, a partir do meu engajamento. Na época, eu exercia uma militância que se voltava para o movimento estudantil, mas que chegou a ter um contato muito grande com as lutas operárias no Rio de Janeiro, onde se concentravam os sindicatos mais fortes. Eu era muito garoto e não me passava pela cabeça fazer da peça uma análise sociológica do problema. O que eu tentava jogar, e não tenho vergonha de dizer, era todo o amor e solidariedade que sentia [pela causa popular][1]. Eu comecei a fazer teatro quase como uma tarefa [política], porque descobri que o trabalho cultural, particularmente o artístico, era uma das melhores formas de organização dos estudantes e da juventude. Aos poucos, fui me apaixonando por esse meio, começando a trabalhar como ator e vendo a imensa possibilidade que o teatro oferecia para falar das coisas.

Nessa época, brasileiro escrever uma peça de teatro era visto como um hobby muito engraçadinho, mas que jamais poderia chegar a um resultado. O que se pensava era que teatro só poderia ser feito por intelectuais de países desenvolvidos. Black-tie foi escrita na calada da noite, [em 1956]. Eu chegava dos ensaios no Teatro de Arena e, sozinho no quarto, durante a madrugada, preparava a peça com a minha maquininha de escrever, uma Remington que eu havia ganhado de presente. Eu me divertia muito, chorava diante do que havia escrito. Para mim, aquilo era algo que terminaria na gaveta. A montagem de Black-tie só ocorreu dois anos depois, quando o Teatro de Arena ia encerrar as suas atividades. A companhia não tinha mais condições de prosseguir e resolveu encenar a peça para não fechar as portas de forma melancólica. Fecharia mostrando o que realmente queria fazer, incentivar a dramaturgia brasileira, especialmente aquela realizada por jovens.

Em Black-tie, pela primeira vez o operário era apresentado como protagonista [no teatro brasileiro]. Na peça, ao invés do ponto de vista do patrão, que era o mais comum, temos o ponto de vista da classe operária. Isso realmente causou um impacto muito grande naquele momento. O público percebeu isso. O resultado é que até hoje, mesmo depois de dez anos de censura [durante o regime militar], a peça continua a ser montada. Eu atribuo esse interesse à honestidade do texto, a algo que vem de dentro sem escamotear, sem querer ser o que não é. Há qualidades que levam Black-tie a emocionar e que interessaram o Leon, [em 1978][2], a adaptá-la para o cinema.

Leon, quando você começou a pensar na adaptação de Black-tie para o cinema? Como aconteceu o processo de criação do filme?

Leon Hirszman – Foi depois de realizar S. Bernardo (1972) que eu comecei, de fato, a me aproximar da temática operária, [a pensar na adaptação de Black-tie]. Eu tinha visto a peça em 1959, com 22 anos, e me recordo de ter chorado muito. Quando resolvi que faria Black-tie, que começaria a conversar com o Guarnieri [sobre esse projeto], a peça ainda estava sob  intervenção. Em 1974, já havia o processo de distensão, mas o texto acabaria liberado pela censura apenas em 1977. Realizar um filme como esse foi um desafio muito grande porque era preciso fazer uma avaliação do que tinha mudado no país entre 1956, [ano em que a peça foi escrita], e 1980, quando estávamos trabalhando na adaptação [para o cinema]. Precisávamos atualizar os problemas políticos, atualizar a questão da mulher e o personagem do pai, [o líder sindical Otávio].

Para isso, Guarnieri e eu fizemos um longo trabalho de debate. Nos encontramos com cientistas sociais e políticos, nos reunimos com lideranças operárias, tentamos nos aproximar daquela realidade nova que estávamos vivendo no Brasil do pós-milagre, da crise posterior a 1974. Para mim, foi muito importante ter acompanhado [e filmado] a greve dos metalúrgicos ocorrida na região do ABC, em 1979[3]. Ali eu me senti participando, entrando em contato direto com os operários. Essa experiência me enriqueceu muito. Vivi momentos fortes que me capacitaram a perceber essa nova realidade. [Depois disso], me reuni com o Guarnieri por quase um ano para debater a realidade brasileira e a dramaturgia popular. A partir desses encontros pudemos pensar nas necessidades de reformulação e de atualização da peça Black-tie[4].

Guarnieri, passados tantos anos da escrita da peça Black-tie, como você a vê hoje?

GG – Eu acho que Black-tie é uma peça profundamente política. No entanto, não a escrevi com a intenção de fazer [um texto didático]. Minha preocupação foi jogar para fora o que estava sentindo. Acho que é impossível falar da luta operária sem falar em luta de classe. Mas também acho que é impossível falar da libertação do operariado sem entrar em questões para além da política, em questões profundamente filosóficas. [Na peça Black-tie], cada personagem representa um segmento, representa os diversos confrontos nas relações de produção e as várias formas como o mundo pode operar modificações [nas pessoas]. O que eu acho legal na peça é a sua espontaneidade. Nunca houve, da minha parte, a preocupação em defender a classe operária mostrando o operário bom e o patrão mau. Bastou colocar concretamente a realidade social, a realidade da luta operária, para se chegar a mil conclusões. Felizmente, nunca tive a pretensão de ditar regras, de dizer que a verdade está ali ou o mal acolá. [Como dramaturgo], sempre fugi do maniqueísmo e procurei olhar as coisas de dentro. Sempre tive essa consciência. No geral, as pessoas caem do cavalo quando escrevem uma peça política para demonstrar tal e tal coisa.

Que alterações vocês fizeram ao adaptar Black-tie do teatro para o cinema?

GG – [Na versão de Black-tie para o cinema], o personagem que mais sofreu modificações foi a Maria. Penso que não foi apenas ela que mudou, mas também o modo como hoje olhamos para ela. Na minha opinião, não se pode mais encarar a questão da mulher como se fazia há vinte anos. [No texto de 1956], Maria era uma costureira. O máximo que podia fazer era trabalhar numa pequena oficina ou ajudar nos afazeres domésticos. Na versão da peça, a consciência [política] de Maria ainda é passiva. Embora ela se rebele contra a atitude de Tião, [que decide furar a greve], essa rebeldia não passa de uma liçãozinha [de moral]. Na peça, ela continua dizendo que não quer deixar o seu pessoal, não quer deixar o cruzeiro lá do alto, não quer deixar o violão do Juvêncio. Hoje, essa Maria [romântica] não é mais verdade não. Hoje ela tem uma participação muito maior. Foi durante a greve no ABC, [em 1979], que eu encontrei a motivação para modificar esse personagem. Certo dia vi meia dúzia de operárias de mãos dadas, uma delas grávida de nove meses, indo em frente a um cordão policial e chamando os caras pra briga. Pensando hoje na participação da mulher, no lugar ocupado por elas nesses movimentos todos, percebemos que a Maria não poderia mais ser tratada como há vinte anos. Seria um descompasso, uma coisa falsa. Esse personagem teria que ser modificado.

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LH – Independentemente das alterações ocorridas nos personagens, houve também [na versão para o cinema] uma mudança geral que está relacionada ao problema da violência. É que no Brasil dos últimos 20 anos houve uma mudança no caráter da dominação de classe. O novo problema foi a violência do regime militar, dos bolsões autoritários, que [agiu diretamente] sobre o povo. Surgiu uma violência interna ao próprio povo. Se agravou um processo que está relacionado com o Estado autoritário, com o Estado policial. [Em 1956] já existia, claro, a repressão na porta da fábrica. Mas o fato do sujeito roubar por centavos, cruzeiros, é uma coisa que hoje é muito comum. Esse fator é uma costura geral do filme. Tivemos que lidar com esse novo caráter da violência, com o fato do povo pagar um preço, não ter condições de autodefesa e nem de controle democrático. Uma questão que se encontra no filme e é muito complexa tem a ver com a defesa do povo perante a dominação do Estado. De que forma a organização da classe trabalhadora pode enfrentar o regime militar sem cair na provocação que interessa ao próprio governo?

Me parece que [na versão de Black-tie para o cinema tivemos que lidar] com outro substrato geral, com uma crise mais ampla da própria sociedade brasileira. É como se hoje não houvesse força possível e o Otávio refletisse isso. Antes, [em 1956], o Otávio era uma forma de onipotência, representava uma prepotência ideológica. Naquele momento, os partidos – marxistas ou não – disputaram muito esse tipo de intelectual. [Passados vinte anos, no entanto, ficou claro] que essa atitude prepotente serviu, na maior parte das vezes, para muito retrocesso e não para a efetiva acumulação de forças. Me parece que o Otávio teve então que perceber isso. Já o jovem que tem hoje condições de se manifestar contra as demissões em massa, o jovem que cresceu durante a ditadura e se manifesta contra a não participação política dos trabalhadores, não possui a [experiência] vivida por intelectuais orgânicos [como o Otávio]. Embora o personagem Sartini esteja com razão ao se opor à dominação [de classe], ele não possui a [memória] necessária para criticar a prepotência e [compreender] a necessidade de organização. A história não foi passada para ele pelos partidos de massa. Sem ter um conteúdo ideológico, Sartini vai ocupar o novo espaço da prepotência.

GG – [Vale a pena acrescentar que o filme é muito parecido com o texto de 1956]. A peça só não continha a morte do Bráulio. É que o Brasil passou por uma situação tão traumática nos últimos anos que seria um equívoco, hoje, não colocar essa morte na nova versão de Black-tie. Na peça, o Otávio era um personagem menos experiente e mais parecido com o Sartini do filme. Lá ele tinha aquela sanha de resolver as coisas de qualquer maneira.

A contraposição entre Otávio e Sartini já existia na peça de 1956? Ou seja: já havia no teatro o confronto entre um personagem que defende a maior organização política dos operários e outro mais dado à ação imediata?

GG – Não existia. Na peça, o Otávio continha, dentro dele, os dois elementos. Acho que precisamos entender um pouco o que significava um partido operário no ano de 1956. Vivia-se, naquele momento, uma unidade monolítica. Não havia fracionamentos no movimento operário. Era uma militância marcada pela certeza: a história já estava traçada e o negócio era apenas mirar naquela estrada e seguir adiante. Os obstáculos estavam presentes apenas como um parque de diversão. Com jeitinho, poderíamos superá-los porque chegaríamos de qualquer modo ao ponto desejado. A história, no entanto, veio demonstrar que não é bem assim, que é o próprio homem que constrói [o futuro] a partir de suas lutas. O problema é que o Otávio da peça conservava muito dessa crença na história como algo já traçado. Para ser franco, ele era stalinista e estava louco da vida porque declarações negativas a respeito de Stálin haviam aparecido [em 1956], no XX Congresso [do Partido Comunista da União Soviética]. Os rachas, porém, não existiam. Na peça, o personagem que tentava encarar as coisas de forma um pouco mais objetiva era o Bráulio. No filme, nós tivemos que dividir o personagem Otávio em dois. Agora ele é o Otávio de um lado e o Sartini de outro. O Sartini é aquele que não tem realmente uma consciência política. Ele tem vigor e ódio de classe. Já o Otávio…

No filme, vocês caricaturaram o Sartini. Ao contrário do Otávio, que é um personagem mais complexo, o Sartini sequer expressa a argumentação política do grupo que ele representa, vocês o estereotiparam…

GG – Não houve a intenção de fazer uma caricatura. Se a gente colocasse no filme tanta complexidade para os personagens, ele ficaria com umas cinco horas de duração.

LH – Mas essa caricatura existe. Eu já vi essa caricatura. Eu acompanhei de perto…

GG – Realmente isso existe. Não é brincadeira.

LH – Eu gostaria de dar um depoimento sobre o personagem Sartini. Porque o dogmatismo, o sectarismo e a falsa prepotência existem sim. E existem principalmente no jovem sem formação histórica, que não compreende o caráter de dominação do regime militar, e que acredita que [a ditadura] já acabou. Esse jovem que pensa que para lutar basta ter vontade e ponto. Ele não entende o problema da práxis e da acumulação. Para ele, as alianças políticas não são necessárias. Isso é uma herança do pior marxismo, para o qual existe apenas a questão da vanguarda. Embora tenhamos respeito pelo vigor do Sartini, [criamos esse personagem] para mostrar isso.

[No filme Black-tie], o Sartini não é um sujeito sem força. Pelo contrário. Uma das riquezas do nosso trabalho foi salientar a postura do conflito, ou seja, a necessidade obrigatória de se lutar contra uma situação opressiva, economicamente injusta e que não pode mais ser sustentada. [Essa rebeldia] é verdadeira no Sartini, mas também é verdadeira para um personagem como o Tião, que tem direito a uma vida digna, a comprar coisas, a se casar. No filme, a partir de mediações políticas, tentamos mostrar as tensões entre os personagens sem dar razão ideológica a nenhum deles. Tanto é que até o Otávio se transforma no final, quando vai participar dos [afazeres domésticos], quando separa o feijão. A Romana, que não tinha se mobilizado durante o filme, a não ser nas relações interfamiliares, vai se transformar também. Cada um deles sofre uma transição sem que se diga “isto é justo e aquilo injusto”. No filme, os conflitos se tornam vivos e o espectador, diante dessas tensões, terá ele mesmo que realizar a sua opção.

Terá que fazer uma escolha que vem da práxis política e não mais apenas da ideologia. Uma opção que leve em conta as condições reais de um país subdesenvolvido onde a luta de classes tem um caráter específico. [Hoje em dia] não dá para ignorar as questões culturais e a formação das pessoas. Esse é um dado crucial. É verdade que o Sartini é esquemático. Num filme operário, num filme de conflito social, há personagens que funcionam como “tipo”. É impossível desenvolver todos os personagens com um delineamento muito tênue e preciso. Evidentemente recebemos uma série de críticas. Em uma delas, fui acusado de anti-esquerdismo [por ter construído o Sartini desse modo]. Fui acusado de ser um homem de partido quando, na verdade, não realizei o filme em função de tendências partidárias. O personagem do Sartini é muito importante. Ele nos adverte de que podemos cair em um vazio ideológico e nos diz que não podemos avançar sem ideologia. Essa é a dialética[5].

O filme parece ter um final em aberto. Como se quisessem mostrar que a luta operária ainda está em processo.

GG – A proposta do filme é transmitir uma experiência da vida operária sem mostrar o seu desfecho. As coisas não terminam porque matam um companheiro ou porque uma família é quase estraçalhada. Pelo contrário. É a partir da dor e da luta que a classe operária se tempera para prosseguir adiante. Quanto mais ela tiver consciência de que o desemprego está relacionado a outras questões [sociais], mais ela percebe que precisa se organizar no sentido de solucionar os problemas. Esse é um dos apelos principais do filme. Ele não procura [defender] a greve [a qualquer custo]. O filme mostra que a greve pode ser um retrocesso quando utilizada de forma desorganizada, solitária e voluntarista. Porque a greve pode ser uma grande arma de luta quando realmente corresponde à vontade [popular], à necessidade de organização de todos os trabalhadores. Claro que o filme não pretende resolver a questão de como se faz política. A realidade histórica coloca novos problemas para a classe operária e é ela quem precisa resolver as suas questões a partir da luta e da escolha em um verdadeiro partido político de massas.

Guarnieri, você procurou, na peça e no filme, justificar o desejo individualista do Tião como algo que vem de fora da classe operária?

GG – Creio que esse é um ótimo ponto para o debate. Sempre penso se não foi um erro meu, na peça ter justificado que o desejo de ascensão social do Tião nasceu do fato dele ter vivido um tempo com os padrinhos ricos. Como se a meta burguesa, no seio da classe operária, só fosse possível [quando a pessoa experimentasse] outro tipo de formação [social]. Hoje, entre os operários – que obviamente não viveram com padrinhos – não encontramos a necessidade de ascensão, de passar em cima do outro, perdendo inclusive o sentido de solidariedade de classe? Essa ideologia que está aí há vinte anos, essa sociedade de consumo propagada pela ditadura, não penetrou na classe operária? Na peça, não terei sido romântico [ao considerar o desejo burguês como algo distante do proletariado]? Eu acho que fizemos uma autocrítica disso no filme, minimizando um pouco essa questão.

Mas vocês mantiveram essa leitura no filme. Não houve crítica. No cinema há a mesma explicação mecanicista.

GG – Isso apareceu no filme de forma muito atenuada. Na época em que escrevi a peça, eu realmente não podia admitir que um operário [tivesse desejo de ascensão burguesa]. Para justificar o pensamento do Tião, precisei [retirá-lo do morro e] colocá-lo no bairro do Flamengo. [Em 1956,] eu tinha uma tendência a glorificar [o povo]. Não tinha condições de escrever a peça de outro modo.

LH – Gostaria de destacar algo que as pessoas costumam ignorar: a riqueza do personagem Tião na peça do Guarnieri. Entre 1955 e 56, na época em que está subindo ao poder o Juscelino Kubitschek, no momento em que a ideologia imperialista do desenvolvimentismo vai se tornar a base para o individualismo, o Guarnieri percebe [a condição brasileira] do ponto de vista poético e não da sociologia ou da economia política. Esse é o dado fundamental do personagem Tião. Um dado que se mantém vivo até hoje. Quando você realiza um filme ou uma peça não pode ver as coisas somente a partir de uma face. A determinação concreta é a unidade do diverso. Na arte, isso é mais verdadeiro do que na sociologia. [Na peça Black-tie] há uma visão poliédrica.

[O Tião, portanto,] não se explica apenas por aspectos históricos da formação psicológica. Colocar as coisas apenas no nível histórico do desenvolvimentismo não é suficiente, pois  acaba-se por cair em mecanicismos. Há inclusive inter-relações edipianas que não podem simplesmente ser jogadas pela janela. Marx não jogou fora a mitologia e nós também não podemos fazer isso. Não podemos descartar a psicologia moderna, o que seria um absurdo para a constituição dos personagens. Se construíssemos o Tião apenas pelo desenvolvimentismo ou pela crise brasileira faríamos algo esquemático. Ele é rico porque é polifacético, porque tem múltiplas determinações. Essa é uma das genialidades da peça do Guarnieri. Trata-se de um protagonista que está inserido no processo do Plano Marshall, em um [modelo] de desenvolvimentismo no qual o processo político, [ainda] que democrático, solidificou certo tipo de dominação ideológica e deu lugar à constituição de um tipo de individualismo. É o processo real de constituição de uma classe e de um povo.

A obra de arte tem que partir da realidade objetiva e não da ideia. O marxismo não [pode] continuar idealista. Esse é o seu atraso. Até quando prosseguirá voluntarista? Não vai nunca [absorver] a realidade cultural e a formação histórica do país? Essas questões [centrais], a peça iluminava com os seus caminhos. [Vinte anos depois], esse foi o ponto de partida do filme. [No cinema, Black-tie] foi popular por conta disso. Ele emociona as pessoas na medida em que mostra, sem ser naturalista e de forma crítica, uma determinada realidade. O filme faz com que os espectadores se movam dentro dos conflitos, se emocionem e assumam um grau de consciência sem cair em descrições políticas. Black-tie não é um clube político no qual a pessoa sai edificada [da experiência]. Não é a redução da realidade em nome do prazer ou da manipulação cultural. Normalmente os filmes políticos, incluindo os norte-americanos, manipulam a linguagem. O cinema sobre a classe operária controla muito a relação com o espectador, por vezes [exaltando] a vitória do povo. Black-tie não é isso. [Nós quisemos] olhar para a cabeça da Medusa, olhar para essa face cheia de serpentes. Se a obra de arte não partir da realidade, se ficar apenas na vontade, não há condições de construir nada. Esse é o ponto fundamental em relação ao Tião[6].

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GG – O Tião é um sujeito que não faz nada com segundas intenções. Ele é daquela maneira e acredita estar completamente certo. Não justifica [as suas ações] e no fundo não entende o porque da Maria [ficar brava]. Não compreende os motivos de ser xingado [por ter se colocado contra a greve]. Na cabeça do personagem, ele também fez isso [pelo bem-estar da namorada grávida]. O seu desabafo é dar um murro no espelho ou na parede. [Ele demora] para entender que o conflito chegou num ponto que só pode ter um desenlace, que a crise chegou num grau de rompimento que o impedirá de continuar [morando com a família]. E ele sente isso de cabeça erguida. Sai muito machucado, mas realça que não furou a greve por covardia. O tempo inteiro ele leva o negócio para o lado moral. Realmente acredita que [a greve não é a solução], que as famílias dos operários continuarão numa porcaria de vida. Acaba, então, optando por uma saída [individualista].

E o seu pai, [o Otávio], compreende perfeitamente o pensamento do filho. [Ele expulsa o Tião de casa] porque acha que não há mais a possibilidade do convívio. Não é uma questão de castigo ou de ódio. Pelo contrário. Expulsa por conta de um amor danado. Esse é o modo como vejo as coisas. Claro que há interpretações as mais diversas. [Em 1958], no teatro, eu interpretava o Tião com a maior vontade de dar um beijo naquele pai. Minha motivação, como ator, era chegar para o Otávio, abraçá-lo e dizer: “não é nada disso, pai. Me entenda, pelo amor de Deus. Não estou errado, não sou um filho da mãe”. [Já em 1981], dessa vez ao atuar como Otávio, o meu pensamento ao falar com o Tião era: “mas eu não posso te entender, filho, não posso entrar na sua. Não há mais condições de você ficar aqui. Como posso te manter na minha casa? Como ficariam as relações com os companheiros? Vá procurar o seu caminho…”. Diversos críticos, incluindo um aqui presente, já analisaram como em minhas peças eu constantemente apresento relações entre pais e filhos.

Não são apenas os operários que sofrem exploração. No Brasil, é muito forte a dominação política sobre os estudantes. Há um paralelo muito grande entre o filme Black-tie e o movimento estudantil. Essa ligação foi intencional? Vocês buscaram um ponto em comum entre o movimento estudantil e a luta operária?

GG – Para falar honestamente, nunca pensei neste paralelo. Mas é evidente que todo sujeito explorado tem problemas em comum. É claro que há especificidades dentro da luta operária, mas tanto a peça como o filme [não se restringiram] apenas ao sindicalismo. Não tive a intenção de explicitar isso, mas concordo que pensei [em política] como uma questão mais ampla. O correto não é a divisão política. Os problemas precisam ser compartilhados e enfrentados em conjunto.

Da peça para o filme, uma das mudanças foi em relação ao personagem Alípio. No teatro, ele surge como oposto a Otávio. Parece haver uma contraposição entre o militante proletário-revolucionário e o comerciante pequeno-burguês. No cinema, já não há mais essa hostilidade e ele aparece como uma figura simpática, como um amigo. O que os levou a modificar esse personagem?

GG – Ontem mesmo nós estávamos em Vila Brasilândia, [na cidade de São Paulo], e o que se nota é aquilo que colocamos no filme Black-tie: existe uma solidariedade típica do comerciante, do dono da loja que realmente faz fiado. São figuras muito simpáticas. Quando escrevi a peça, que se passa num morro do Rio de Janeiro [e não num bairro paulistano como no filme], me inspirei em divisões que havia na própria favela, em especial na presença de figuras que [tinham pequenos negócios] e exploravam os operários. Leon e eu pensamos que no cinema o vendeiro daria mais certo se fosse solidário às pessoas…

Mas na peça ele era o personagem pequeno-burguês…

GG – Exato. Mas eu não encararia o Alípio do filme como um pequeno-burguês. Ele é um vendeiro que sofre junto aos demais. Penso que já conheci diversos Alípios. Me recordo, inclusive, de um sujeito que era dono de uma padaria na Vila Guilherme e que sustentou vários funcionários do canal 9 quando a emissora ficou meses sem pagar salários. Ele acabou indo à falência e teve que passar adiante o seu negócio. Tempos depois, quando as pessoas conseguiram novos trabalhos, começaram a pagá-lo para que ele refizesse a vida. É um tipo de solidariedade que ultimamente tenho notado muito. [Em 1956,] eu pensava nesse sujeito [apenas] como exploração. Algo próximo ao livro Quarto de despejo (1960), escrito por Carolina Maria de Jesus, no qual está retratada uma exploração [desenfreada]. Até quando ela ia vender o lixo sofria exploração. [Para a nova versão de Black-tie], repensei o personagem Alípio.

LH – Nosso trabalho não é de análise e descrição do real. Nossos parâmetros, [ao adaptar Black-tie], não foram no sentido de ilustrar uma realidade específica, como se tivéssemos que cumprir bem uma tarefa sociológica. Há questões que envolvem problemas de narrativa e de dramaturgia. Nossa proposta não foi ilustrar um comportamento pequeno-burguês determinado. Isso é uma deformação de certo tipo de realismo socialista. Nós nos concentramos em construir conflitos dramáticos, em evoluir a narrativa própria ao filme. Mesmo que 90% dos pequenos proprietários [de São Paulo] sejam monstros, o personagem Alípio não precisa ser assim. Ao fazer uma obra de arte você tem a liberdade de evitar as ilustrações do real. Esse dado fundamental da liberdade criativa nunca é debatido no cinema ou no teatro brasileiro. O atraso dramatúrgico é generalizado. A própria crítica parece não compreender isso. Pensam que a arte está aí para [imitar] o real. [Esse é o pensamento] de uma velha forma de naturalismo já criticado neste século por vários pensadores, incluindo alguns bem mecanicistas, até mesmo [alguns escritos] do Lukács.

Acho que o Guarnieri é um grande mestre da dramaturgia brasileira. Ele, o Augusto Boal e outros companheiros me ensinaram muito, muito, muito, muito a respeito disso. [Em 1959], quando tive a oportunidade de participar durante um ano dos seminários de dramaturgia do Teatro de Arena, dos seminários ocorridos em São Paulo e no Rio de Janeiro, o que aprendi foi isso: a arte possui uma autonomia relativa. Depois, o próprio Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho] também aprofundou essa questão. Não se trata de uma simples imitação da vida, na qual você faz da arte uma repetição dos instrumentos sociológicos de conhecimento. [Ao fazer um filme], você não deve a cada momento estabelecer os conflitos de classe e ilustrá-los. Quem fez isso foi um mau cinema, feito na China popular da década de 1950. Na União Soviética, na época em que Serguei Eisenstein teve seus filmes censurados, [predominou] certa visão do Proletkult a partir da qual os filmes se tornaram mera ilustração da luta de classes. A expressão artística [deve ser uma superação disso].

Por que vocês optaram por fazer do Bráulio um personagem negro? Foi algo simbólico relacionado à questão racial brasileira?

GG – No filme estamos tratando da questão da luta operária, na qual participam negros, brancos, amarelos. Todos participam. Nós pensamos que o negro tem uma importância enorme, mas tão grande quanto os demais. Se optamos por um personagem como o Bráulio é justamente para também colocar a participação do negro [no movimento operário]. No entanto, não vejo isso como simbólico. O personagem assassinado poderia ser um branco. Acontece que Bráulio era um sujeito com grande liderança, alguém que conseguia convencer os companheiros a resistir às provocações. Era um cara a ser sacrificado. Eu não veria nisso um problema de raça, mas de luta de classe em geral.

LH – O fundamental é o problema do regime militar. A arma que assassina [representa os interesses] do dono da fábrica e da ditadura. Quer dizer: a autoridade da polícia é política. Quem assassinou o operário Santo Dias [em 1979]? Não foram os fardados, mas gente civil[7]. No Brasil, por causa da formação histórica, as questões social e racial caminham juntas, encontram-se imbricadas. Só pude sentir isso intensamente porque fui criado em um subúrbio do Rio de Janeiro, na Vila Isabel. Meus pais eram imigrantes judeus, pobres, o que tornou intenso o meu contato com o povo, em especial durante a infância e juventude. Penso que a gente só consegue perceber essa ligação entre classe, cultura e etnia quando vamos a um país como o Peru, onde todos os que te servem são índios. Não há um branco servindo. Há ali uma articulação histórica determinante entre raça e classe. E é isso que muitas vezes não vemos [no Brasil]. No Rio de Janeiro, [nas eleições estaduais de 1982], o Leonel Brizola e o Darcy Ribeiro colocaram [a questão da raça no centro] de suas campanhas [para o governo]. Com isso, conseguiram uma penetração política maior do que ficar apenas no discurso da classe ou [da redemocratização]. [Aí está] uma questão que hoje desafia [a esquerda] e que não soubemos ainda compreender de fato.

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[1] Devido a partes incompreensíveis na gravação, mas também com o intuito de complementar informações para o leitor, no decorrer do texto optei por inserir algumas palavras entre colchetes. Tais acréscimos procuraram respeitar as ideias desenvolvidas por Hirszman e por Guarnieri durante o debate no MIS.

[2] Antes de Hirszman iniciar, no ano de 1978, o processo de adaptação de Black-tie para o cinema, três outros artistas procuraram levar adiante tal projeto. Após uma primeira tentativa malsucedida de Carlos Hugo Christensen, realizador argentino que deteve os direitos da peça até meados dos anos 1960, a adaptação também passaria, sem sucesso, pelas mãos do diretor teatral Alberto D’Aversa, encenador italiano que atuou no Teatro Brasileiro de Comédia, e do cineasta Roberto Santos, com quem Guarnieri trabalhou como ator em O Grande Momento (1958) e como dialoguista na transposição fílmica do livro A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965). O fracasso dessas tentativas não parece, no entanto, se restringir somente a possíveis dilemas pessoais enfrentados pelos artistas durante o processo de criação dos seus filmes: nos três casos, de modo mais dramático no segundo deles, para o qual já havia um roteiro pronto, a desistência se deu sobretudo como resultado da decisão do regime militar em proibir categoricamente a circulação da peça de Guarnieri, deslocando-a para um limbo histórico que durou cerca de doze anos, entre 1964 e 1977. Em 30 de agosto de 1994, Guarnieri concedeu essas informações sobre as adaptações malsucedidas de Black-tie para o projeto “Memória da teoria e da prática cinematográfica”, criado pelo MIS-SP para registrar depoimentos de cineastas e dramaturgos. O filme de Hirszman ficaria pronto somente no ano de 1981.

[3] Hirszman se refere à paralisação metalúrgica ocorrida entre março e maio de 1979, filmada por ele para a composição do documentário ABC da Greve. Essas gravações, que lhe ofereceram uma oportunidade de aproximação com o operariado, também serviriam como estudo para a preparação do roteiro de Black-tie.

[4] Hirszman e Guarnieri escreveram o roteiro do filme Black-tie no ano de 1979. As gravações do longa-metragem ocorreram entre 17 de março e 14 de junho de 1980. Para maiores informações, consultar o sétimo capítulo de minha tese de doutorado, intitulada O cinema político de Leon Hirszman (1976-81): engajamento e resistência durante o regime militar brasileiro. Disponível para download em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-02022015-160846/en.php

[5] O leitor pode encontrar uma análise de Black-tie no oitavo capítulo da minha tese. Dentre as questões estudadas, há uma longa reflexão sobre as dimensões políticas e ideológicas presentes no longa-metragem. Disponível para download em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-02022015-160846/en.php.

[6] Em complemento à essa fala de Hirszman, reproduzo aqui um trecho da entrevista que ele concedeu, em dezembro de 1981, para o número 102 da revista Cine cubano: “No hay una dramaturgia popular si no existe un respeto al personaje y sus contradicciones. Si yo me coloco dentro del personaje y lo resuelvo de acuerdo a mis ideas se acabó la contradicción, y se rompe el proceso interno del personaje. Se convierte entonces en un discurso ilustrativo de una idea mía. Y no se trataba de eso. Se trataba de exponer contradicciones y profundizar en ellas, intentando una comunicación popular efectiva, en la que el interés por las contradicciones se mantuviera internamente vivo en los espectadores (…). Cualquier tipo de idealización radicalizante sería destructiva para la identificación popular con la película. Y me parece que la perspectiva de un cine nacional y popular – que es la perspectiva que Ellos no usan smoking propone y asume – es una perspectiva universalista, en el sentido de que un obrero de cualquier parte del mundo encuentra puntos de identificación, de autorreconocimiento humano”.

[7] Hirszman se refere a um episódio ocorrido em 30 de outubro de 1979, quando na cidade de São Paulo, durante uma greve sem apoio do sindicato metalúrgico pelego, o operário Santo Dias da Silva foi morto pela polícia militar. Em Black-tie, na sequência em que Bráulio é baleado, o cineasta prestou uma homenagem ao sindicalismo assassinado.

 

Entrevista com Maria Hirszman

mariahirszman

Pedro Veras

Uma das responsáveis pelo acervo de Leon Hirszman, bem como por sua manutenção e disseminação, e também filha do diretor, é a jornalista e crítica de artes Maria Hirszman. Depois de anos trabalhando na cobertura do circuito de exposições de arte, principalmente em São Paulo, Maria se dedicou a um mestrado em que estudou a obra de Christiano Jr., fotógrafo açoriano que, por volta de 1865, realizou uma série de fotos de estúdio de pessoas escravizadas vivendo em situação de rua. Atualmente, ela contribui com várias publicações e instituições como Itaú Cultural, Revista Arte!Brasileiros e Revistam Zum.

*

Como é a sua relação com o trabalho de Leon Hirszman?

Além da admiração como filha e espectadora, a gestão de sua obra faz parte da minha rotina, em parceria com meu irmão, João Pedro. Recebo semanalmente pedidos de exibição, de autorização do uso de trechos, de informações, o que consome bastante tempo e atenção.

Historicamente, um dos maiores problemas enfrentados pelo cinema brasileiro é a preservação e a disseminação de cópias de filmes. Qual a situação da obra de Leon Hirszman nesse contexto? Qual o estado das cópias de seus longas e curtas-metragem? Há filmes e/ou vídeos perdidos? Sobre a obra televisiva dele, onde se encontram os arquivos? É possível para o público acessá-los com facilidade?

Sem dúvida. Neste quadro, temos notícias boas e notícias ruins. Felizmente conseguimos realizar há alguns anos um projeto de restauro e preservação da obra de meu pai, restaurando digitalmente praticamente toda a sua obra e lançando esses filmes em uma coleção de DVDs. Parte deste material ainda está disponível, agora na coleção do Instituto Moreira Salles. Também distribuímos cópias desses DVDs pelas principais bibliotecas do país e volta e meia são exibidos pelos canais especializados, como TV Brasil e Canal Brasil. Gostaríamos de disponibilizar os filmes em streaming mas aparentemente o interesse das empresas se volta para as produções recentes e não as produções históricas. Todas as tentativas fracassaram até o momento. Quanto ao acesso às cópias, a situação agora está bastante complicada em função da crise da Cinemateca. O desmonte desta instituição é um dos maiores crimes cometidos contra o cinema brasileiro.

Há, sim, filmes perdidos. Os dois casos mais terríveis são a perda do negativo de “Garota de Ipanema”, o que impediu o restauro desta obra, e a perda completa do filme “Que País é esse”, feito para a RAI italiana e que simplesmente desapareceu. Várias tentativas de localizar esse material foram feitas sem sucesso e aparentemente a RAI simplesmente descartou as fitas.

E não, ele não produziu para televisão, a não ser um trabalho para a RAI Italiana.

O acesso a obras antigas da nossa cinematografia é outra questão problemática. Existe algum acervo aberto com os filmes de Leon Hirszman? Sabe-se que alguns deles já circulam na internet em arquivos digitais para download ou acessíveis no YouTube, é o caso de São Bernardo, Megalópolis, Maioria absoluta e ABC da greve dentre muitos outros. Por acaso existe a ideia de criar um canal oficial para alguma plataforma digital online (como foi feito com a obra de Aloysio Raulino, disponibilizada na íntegra no YouTube) para disseminar gratuitamente a obra de Leon?

Esse é um sonho meu. Até porque essas obras disponíveis no Youtube muitas vezes não são as de melhor qualidade, não disponibilizam a versão restaurada. Mas é um trabalho insano retirar esse material do ar e criar um canal, gerir tudo isso. Não conheço esse projeto do Raulino, vou dar uma olhada.

Em 2005 o projeto “Restauro digital da obra de Leon Hirszman” ganhou vida. Você poderia falar um pouco sobre ele? Durante quanto tempo o projeto foi elaborado e como foi esse processo? Quando ele começou efetivamente? Como foi o processo de curadoria dos filmes (realizada por Carlos Augusto Calil)? Até o momento foram lançados 5 volumes da coleção em DVD (dois deles reunidos no box de Eles Não Usam Black-tie), há previsão de lançamento de outras obras dele em DVD?

As conversas sobre esse projeto começaram bem antes. Depois de muita conversa com Calil e com Lauro e Eduardo Escorel, formatamos a ideia desse projeto que gerou cinco DVDs. A estrutura pensada previa o lançamento de um conjunto de DVDs, articulados em torno de um filme longa metragem, que aglutinasse questões importantes na obra de meu pai, com a inclusão dos curtas e de um rico material extra, produzido especialmente para isso. Assim, começamos com a caixa dupla que vc menciona, na qual ABC da Greve e Eles Não Usam Black-tie assumem o papel de carro chefe. Esse dvd duplo contempla também o documentário feito por Eduardo Escorel sobre meu pai, que é uma bela análise sobre sua obra e o cinema brasileiro. Os DVDs contendo São Bernardoe A Falecida vieram na sequência. A ideia era lançar um por ano mas o financiamento foi se mostrando cada vez mais difícil. Apenas há dois anos conseguimos concluir o projeto inicial de restauro, com o lançamento da caixa dedicada à trilogia “Imagens do Inconsciente”.

Quanto à disponibilidade, a primeira caixa está esgotada. Negociamos o relançamento mas ainda não saiu do papel. A Falecida também não teve uma segunda edição. Não saberia dizer se ainda restam cópias da primeira, mas neste caso o relançamento seria mais difícil pois é uma das poucas obras de meu pai cujos direitos não pertencem a ele.

Há alguma extensão desse projeto com o intuito de expandir o alcance da obra de Leon, por exemplo, em escolas, universidades, bibliotecas, acervos públicos e outras instituições culturais? Do contrário, existe esse desejo?

Esse desejo é sempre presente. Não temos no entanto nenhuma estrutura que permita isso. Na verdade isso acaba acontecendo a partir da demanda dessas instituições, que nos procuram em busca de material.

Para além da obra, sabe-se que outro registro valioso são as entrevistas que Leon Hirszman deu ao longo da vida. É possível encontrar algumas delas em meios impressos e periódicos que foram digitalizados, mas são raros os registros gravados de entrevistas com ele. Existe algum trabalho de organização e/ou divulgação dessas entrevistas em vídeo e/ou áudio?

No filme do Eduardo Escorel ele mapeou esse material, que não é tão pouco nem tão raro assim. Só está disperso em diferentes instituições.

Quais são as maiores dificuldades que você destacaria, hoje, para a preservação, manutenção e disseminação da obra de Leon Hirszman?

A impossibilidade de ter acesso ao acervo dele depositado na Cinemateca. O apoio de uma instituição como essa é vital para a preservação da memória do cinema brasileiro e hoje os filmes estão praticamente inacessíveis. A inexistência de financiamento ou de suporte também é bastante prejudicial. Deveríamos ter políticas públicas claras que permitissem essa divulgação, com canais de exibição, criação de plataformas coletivas de gestão de dados. Enfim, canalizar forças para um trabalho coletivo. No momento, cada cineasta ou família luta para tentar manter intacta e vista uma obra em particular. Se houvesse algum tipo de base coletiva e de apoio logístico teríamos outro tipo de relação com nossa memória.

leon_hirszman

Enfrentamos um panorama sombrio para as políticas culturais neste esse ano e, pelo menos, no próximo. De que maneira você acha que isso pode influenciar no trabalho com a obra de Leon? O que seria preciso para se realizar, por exemplo, a restauração de sua obra completa?

Felizmente a obra está quase integralmente restaurada. As lacunas mais graves são “Garota de Ipanema”, por causa da ausência do negativo, poucos documentários e a eventual montagem do material que ele rodou nos anos 1970 para um filme sobre Gal, Gil e Caetano. Este último caso é mais complexo porque parte do material também se perdeu e é algo que exige a maturação de um projeto. Você tem razão quanto ao panorama sombrio. As más notícias só vão se acumulando. Felizmente há muita gente dedicada, que se esforça para encontrar saídas para os impasses e crises que vão surgindo dia após dia. Tudo indica que teremos novamente que contar com nossa criatividade e capacidade de improvisação para sobreviver, produzindo e divulgando cultura, nos próximos anos.

Dois Gestos, Um Projeto: Panorama Sobre Alguns Curtas de Leon Hirszman

Cinema mercado (João)

João Campos

I

O cinema de Leon Hirszman é comumente celebrado em função de obras-primas como São Bernardo (1971) e Eles Não Usam Black-tie (1981). Pouco se fala sobre seus documentários de curta metragem, obras que, apesar de se diferenciarem formalmente, compartilham elementos cuja leitura pode nos dar pistas relativas ao projeto estético e político do autor. No presente ensaio, farei uma breve análise comparativa, lançando um olhar panorâmico sobre os filmes Nelson Cavaquinho (1969); Megalópolis (1973); Ecologia (1973); Cinema Brasileiro: Mercado Ocupado (1975); Partido Alto (1982).

II

O primeiro ponto que gostaria de destacar é a presença de um gesto didático nas obras Megalópolis (1973), Ecologia (1973) e Cinema Brasileiro: Mercado Ocupado (1975). Esses filmes compartilham um desejo educativo particular, guiado por uma perspectiva econômica e sociológica claramente ligada ao materialismo histórico e à noção de uma cultura brasileira anti-espetacular. Em tais obras, a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo produz consequências nefastas para a vida humana é condensada em textos de caráter expositivo e emancipador. Desse modo, Leon Hirszman parece tentar travar um diálogo mais direto com as camadas populares, contribuindo para um processo de pedagogia popular através do documentário educativo.

Nesses filmes, o verbo é o principal. O texto não só explica, como indaga, questiona o espectador, projetando-o num futuro ainda incerto, dados os rebotes da expansão imperialista do capital estrangeiro, mas passível de transformação pela construção coletiva.

Ecologia

A aversão pela espetacularização da cultura brasileira – via importação, mas também pela incorporação – e hegemonia dos Estados Unidos na vida cultural do país, foi exposta mais claramente em Cinema Brasileiro: Mercado Ocupado. No filme, Hirszman narra a história do cinema brasileiro por um viés econômico, atentando para o perigo da ocupação massiva das nossas salas de exibição pelo cinema industrial dos norte-americanos: “Além da independência econômica, o cinema brasileiro precisa de liberdade cultural para viver com a intensidade e inventividade que o país espera dele. Esses dois universos estão interligados. Porque, em ultima análise, o cinema brasileiro será sempre uma consequência da situação em que o país se encontra”. Essa declaração, presente no final da obra, resume um ponto importante, defendido nos três filmes que citei acima: Hirszman não só destrincha temas, mas também lança pontos de vista críticos à realidade social que busca explorar. O tempo presente e o futuro a ser construído entram numa tensão dialética rumo ao desconhecido, mas almejado pela imaginação cinemanovista e revolucionária.

A possibilidade de uma revolução se encontra ainda longínqua e não é o foco dos documentários. Aqui, estamos no tempo da reflexão, da formação de uma consciência de classe, rumo à organização coletiva pautada por uma ideia de Brasil que tem como força e raiz a ralé, os trabalhadores. A opção estética pelo filme educativo faz completo sentido, uma vez que atentamos para este desejo de emancipação popular, tão presente na obra de Leon Hirszman. Talvez a beleza de seus filmes resida parcialmente no caráter metamorfo desse desejo – que é artístico, político e existencial.

III

Algo bastante diferente ocorre nos outros dois filmes do grupo que citei, nos quais o gesto didático e educativo dá lugar à explorações etnográficas de caráter mnemônico. Em Nelson Cavaquinho (1969) e Partido Alto (1982) outro tipo de relação entra em jogo. A centralidade do verbo dá lugar à potência do registro imagético de manifestações da cultura popular brasileira. A paixão e crença numa memória estritamente popular faz com que Hirszman busque detalhes às vezes inesperados, atento ao fora de campo. Em Partido Alto, sua câmera está sempre se deslocando bruscamente, dando imagem às personalidades, brincadeiras, movimentos, danças e cantos que resistem às torrentes planificadoras do grande espetáculo. Etnografia de sobrevivências, tais filmes nos lembram trabalhos de Jean Rouch em Níger, nos quais os comentários em voz over inserem uma reflexão menos objetiva do que compreensiva e afetiva sobre os contextos que o cineasta penetra, sempre buscando o vínculo, a comunhão.

Nelson (João)

O desejo de ir ao encontro do homem brasileiro ou das raízes do Brasil é uma característica um tanto geral do Cinema Novo. Contudo, a vontade de construção imagética, nesses dois filmes, de uma memória popular, não dá lugar à teleologia ou à construção de heróis da nação. Esses são filmes feitos “sob o risco do real” – para mencionar um termo de Jean-Louis Comolli –, realizações que se debatem com a realidade, tensionando-a formalmente. Hirszman conversa com os sambistas de partido alto em meio às suas refeições e reuniões coletivas, perscrutando a vadiagem, a bebedeira, enfim, a vida vivida, se colocando em relação com a resistência cultural que ele tanto admirava.

A diegese de filmes como Nelson Cavaquinho e Partido Alto é construída a partir do chão das pessoas que Hirszman se propõe a filmar. Como no plano em que a câmera segue, através dos pés, os passos de um sambista que demonstra uma categoria de samba de partido. Michel de Certeau já dizia: tudo começa com os pés. Como se toca, como se dança e, sobretudo, como se vive: essas são as preocupações de um cineasta que busca o que tem de belo e político tanto na festa quanto no palanque.

IV

Os filmes de Leon Hirszman refletem fortemente sua atuação política no PCB, configurando-se de modo a propor diálogos estreitos entre arte e vida, estética e política. Considero os curtas metragens aqui analisados materiais privilegiados para pensarmos o desejo do cineasta de participar ativamente da dialética do processo social em que se encontrava entrincheirado.

Neles, gestos que são comumente vistos como mutuamente exclusivos são executados – e o documentário educativo tradicional encontra o filme etnográfico. Ambos os processos parecem vir de desejos de transformação social que os colocam no mesmo devir: o cineasta se posicionando como agente histórico ativo, trabalhando tanto numa chave pedagógica quanto experimental. Sua obra documentária de curta metragem se caracteriza por essa criatividade incisiva e crítica, em que formas distantes se aproximam num projeto cinematográfico a serviço da vida humana, próximo às necessidades dos excluídos e atormentados pela sobrevivência do capitalismo no Brasil.

 

Cantos da Cidade e do Campo

cantos (hannah)

Hannah Serrat

O tempo do trabalho e o tempo das cantigas enlaçam-se aos corpos dos trabalhadores do campo de uma só vez, ritmados por seus movimentos repetitivos de arar a terra, descaroçar o cacau, recolher o barro do chão. Na cidade, ao contrário, é preciso ir para longe das fábricas, de seu trabalho árduo e contínuo, para melhor expressar os antigos cantos que, ali também, se transmitem de geração para geração: o samba de roda, o partido alto. Conhecido por seu engajamento político, o cinema de Leon Hirszman se dedica em Cantos de Trabalho (1974 – 1976), Partido Alto (1982) e Nelson Cavaquinho (1969) a encontrar, nas periferias rurais e urbanas, os corpos, os rostos e as vozes dos homens e mulheres que, em comunidade, partilham a vida, o tempo do trabalho e o tempo da invenção.

A série Cantos de Trabalho é constituída por três curtas-metragens realizados durante a atuação de Hirszman no Departamento de Assuntos Culturais do então Ministério da Educação e da Cultura, a partir de meados dos anos 1970. Primeiro, Hirszman retorna a Alagoas, estado em que pouco antes ele havia filmado São Bernardo (1972), e realiza Cantos de Trabalho – Mutirão (1974), interessado nos cantos de trabalhos realizados coletivamente no Brasil. Dois anos depois, ele vai com a mesma equipe à Bahia, em Feira de Santana e Itabuna, e realiza Cantos de Trabalho – Cana de Açúcar (1976) e Cantos de Trabalho – Cacau (1976), sobre os cantos dos trabalhadores durante a colheita desses produtos aos quais os títulos dos filmes fazem referência.

A proposta central dos três curtas é a mesma: registrar, sobretudo em função da necessidade de preservação e de um propósito educativo, alguns cantos entoados pelos homens enquanto trabalham coletivamente na terra. De certa forma, a cartela que informa sobre os mutirões, no primeiro filme da série, parece ressoar nos filmes seguintes que se interessam por trabalhos do mesmo gênero. Ela anuncia: “Mutirão, adjutório, bandeira, traição, faxina, ajuri, batalhão, boi, são algumas das denominações que exprimem diferentes formas de trabalho confraternizado, colaboração visual, ajuda mútua que se pratica em benefício de alguém, realizando-se trabalho que para um só indivíduo seria extremamente penoso ou difícil” (grifos originais).

Cantos

A inserção das cartelas, nos filmes seguintes, é substituída pela presença da narração em voz over interpretada por Ferreira Gullar, que nos faz breves contextualizações e pequenos comentários em alguns trechos dos filmes. Nem a entrada da narração, nem o uso das cartelas, no entanto, vêm se sobrepor às imagens fechando-lhes os sentidos ou direcionando sobremaneira a atenção do espectador. A câmera recuada, que articula planos fixos a um registro mais próximo dos corpos, apanha atentamente o movimento dos trabalhadores, com seus olhares e gestos, registrando tanto a interação entre eles (e, em raras vezes, inclusive com a própria câmera), como com a paisagem no entorno. De certa forma, trata-se de um registro que se aproxima do chamado “cinema direto”, optando mais pelo gesto observacional, sem interferência da equipe nas cenas (que não se propõe a realizar entrevistas ou a fazer quaisquer intervenções).

O principal comentário que se repete, de modo geral, nos dois filmes narrados por Gullar e que remonta certo espírito das realizações talvez seja este (retirado especificamente do Cantos de Trabalho – Cacau): “Os cantos de trabalho são uma forma cultural em extinção. As modificações que se operam no campo, a urbanização crescente e a influência dos meios de comunicação de massa tendem a fazê-los desaparecer”. Esse desejo de preservação, imantado de um lado por certa idealização do campo e certa nocividade dos processos de urbanização e industrialização das cidades, dita o caráter do registro e situa sua importância em meio ao assombro de uma provável desaparição. As questões sobre a miséria, a má distribuição de terras e dos meios de produção, e o analfabetismo, tão presentes em filmes como, por exemplo, Maioria Absoluta (1964), ausentam-se para dar lugar à riqueza poética e expressiva do trabalho no campo, ao mundo sensível daqueles cuja vida é constantemente expropriada pelos ditames do capital. Eis aí a manifestação de uma outra chave política no cinema de Hirszman, tão marcado por sua filiação marxista. O gesto parece ser semelhante em Partido Alto e Nelson Cavaquinho.

Nestes dois filmes, o cenário é o morro carioca e o principal interesse é o samba popular, expressado de um lado pela criação do artista e de sua personalidade, e do outro, pela invenção coletiva. Em Nelson Cavaquinho, Hirszman compõe um retrato (talvez um dos mais belos do cinema brasileiro) do célebre compositor e sambista, adentrando sua casa e acompanhando parte de seu cotidiano. A primeira imagem do filme é um primeiríssimo plano do rosto de Nelson Cavaquinho de perfil, vista ao som de uma de suas músicas enquanto ele fuma um cigarro. Seu rosto, filmado em primeiro plano, aparece diversas vezes no filme com uma gravidade singular– como se algo da força da personagem pudesse se inscrever nessas imagens, semelhante ao que acontece em A falecida (1965), em que Hirszman realiza, com maestria, aquilo que Ismail Xavier chamou de uma “dramaturgia de primeiros-planos” [1]. As canções de Nelson Cavaquinho são, então, articuladas a diversos momentos em que a câmera registra-o em casa, a andar pelas ruas ou a beber em um pequeno bar. Em alguns momentos, o filme recolhe seus depoimentos, pequenos e contundentes relatos concedidos a equipe do filme sobre a sua biografia. O que mais me interessa, no entanto, em trazer Nelson Cavaquinho para o diálogo com os outros filmes aqui citados é o modo com que os enquadramentos mais abertos aparecem sempre povoados por outros moradores, provavelmente, vizinhos de Nelson, a levar a vida ou mesmo a observar as cenas, a conversar e cantar junto dele… De certa forma, enquanto filma o sambista, Hirszman acaba por registrar também, seja no bar, nas ruas ou nas beiradas das portas e janelas, certa dinâmica do morro e de seus moradores, sua ociosidade produtiva, que vai ser alargada e potencializada anos depois em Partido Alto.

Nelson (hannah)

Este último filme, realizado com a colaboração de Paulinho da Viola, como o próprio nome indica, dedica-se a resgatar o “partido alto”, o gênero musical fundamental para a história e a preservação do samba popular. Pouco depois do início do filme, um corte apresenta-nos um plano fechado do rosto de Candeia, outro famoso sambista carioca. Ele faz uma breve caracterização do samba de partido alto e começa a cantar um partido da Mangueira. A câmera, pouco depois, volta-se ao seu entorno e apresenta um grupo de mulheres cantando, homens sentados ao fundo e, pouco a pouco, mostra-nos outros músicos dando especial atenção a cada um, aproximando-se dos seus corpos e fazendo planos mais fechados. A segunda parte do filme, Na Casa de Manacéa, consecutiva a essa cena, apresenta-nos os rostos de alguns homens que, a cada vez, comentam o que eles entendem por “partido alto”. Não há uma proposta de deslocamento dos entrevistados para algum lugar mais silencioso e tranquilo, onde seus depoimentos poderiam ser coletados com maior clareza. O filme se volta a essa escuta, em meio ao mundo, durante um almoço ou uma confraternização em um quintal, filmando-os enquanto eles comem coletivamente ou enquanto dançam e cantam, apanhando, no fundo, uma série de ruídos, com uma espontaneidade rara. A câmera na mão, muito atenta, parece imersa na situação, voltando-se a diferentes sujeitos, sempre que algo chama atenção no fora-de-campo.

Como no filme sobre Nelson Cavaquinho, os planos, desde o início do filme, são irrigados, portanto, pela presença de muitos sujeitos, que, desta vez, ao contrário de ocuparem as bordas do quadro, são enquadrados com mais centralidade e atenção. Ao final do filme, já de noite, como se o samba no fundo do quintal tivesse varado o dia, a voz de Paulinho da Viola compõe a faixa sonora, em off, dizendo: “A roda de partido é um momento de liberdade, o partideiro mesmo tira o verso de improviso, como fazia o João da Gente, o Alcides, Aniceto do Império, Candeia e tantos outros. Hoje, como não há mais essa obrigação, qualquer um pode dizer seu verso, mesmo decorado. Quando menino, eu via no partido uma forma de comunhão entre a gente do samba. Era a brincadeira, a vadiagem, onde todo mundo participava como podia e como queria. A arte mais pura é o jeito de cada um e só o partido alto oferecia essa oportunidade…”. A liberdade da roda de partido e o acolhimento de todos, em sua singularidade e diferença, descrita por Paulinho da Viola já no fim do filme, parece ecoar no modo com que Hirszman escolheu filmar esses homens e mulheres (sobretudo os homens) no morro, compondo planos capazes de acolher, ao mesmo tempo, a singularidade de cada um e a fraternidade entre todos. Impossível não nos lembrarmos imediatamente dos homens que aravam o campo e cantavam em mutirão. Lá, o trabalho os unia e mantinha os cantos vivos; aqui, é a vadiagem que possibilita o improviso e a inventividade coletiva do partido alto.

Partido alto (Hannah)

Dando um salto, lembro-me de um trecho (talvez longo, mas fundamental) de um texto de Jean-Claude Bernardet que compõe o clássico “Cineastas e imagens do povo” e que se dedica ao documentário de curta-metragem Maioria Absoluta (1964), de Hirszman. Esse trecho sempre me interessou bastante porque se volta, especialmente, à “passagem da palavra”, no filme, do cineasta para os povos que ele decide filmar. Bernardet comenta:

Há um corte que merece comentários. Com o plano 43 iniciam-se as entrevistas com camponeses. Logo antes vemos, em primeiro plano, numa feira nordestina, um homem olhando para o eixo da câmera – o vocativo visual -, e sobre ele incide um trecho da locução que diz: ‘passemos a palavra aos analfabetos. Eles são a maioria absoluta’. O plano 43 mostra um homem doente, sentado à porta de um barracão, atingido de forte tremedeira, incapaz de falar; ele emite apenas uma espécie de zumbido. Entra off a voz de uma mulher que a câmera descobrirá logo a seguir e ela comenta a doença desse seu parente. O que motiva a entrada desse plano exatamente nesse momento e o torna duplamente significativo? A força expressiva do doente, cuja imagem enche a tela, e a relação com a locução do plano anterior: passamos a palavra e só vem a gagueira. Os analfabetos não tomam a palavra; ela lhes é outorgada e mesmo assim não têm condição de falar, o que legitima que o cineasta tome a palavra – ou melhor, permaneça com a palavra; o que legitima que se fale no lugar daqueles que não falam. Por outro lado,  “passemos a palavra” indica ainda que o filme gostaria que eles falassem. Encontramos aqui essa contradição do intelectual progressista que espera que o povo fale e aja, mas, como ele elabora uma imagem passiva desse povo, toma ele a palavra, por enquanto…

O procedimento de montagem que Bernardet descreve e que produz essa relação entre a gagueira de um homem e o gesto de “passar a palavra ao povo” parece-nos bastante infeliz, tendo em vista que, pouco depois, o filme se abre a valorosos depoimentos de homens e mulheres conscientes de sua marginalização social. Ainda assim, se não é possível que os povos tomem a palavra neste momento, necessitando da mediação do cineasta, o que o cinema de Hirszman oferece, nos demais filmes aqui citados, é a aparição expressiva de seus rostos, seus gestos, sua inventividade e poeticidade próprias, capazes de retirá-los desse lugar passivo e miserável a que, recorrentemente, eles são lançados, ainda que com alguma finalidade política de engajamento e mobilização. Se não é a luta de classes que está em primeiro plano nos filmes sobre o samba e sobre os cantos de trabalho, nem por isso a política neles se ausenta, trazendo à tona outras forças que vêm reordenar o sensível, os modos de ver, de sentir e de fazer de uma comunidade política, para dizer como Jacques Rancière. 

____________________________________________

[1] Ver XAVIER, Ismail. A falecida e o realismo a contrapelo de Leon Hirszman. In: ________________.O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac &Naify, 2003.

[2]Ver BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 44 – 45.

 

Leon Hirszman e a Questão do Documentário Brasileiro

Megalópolis (Thomas doc 1)

Thomas Lopes Whyte

Existem alguns autores dentro da história do cinema com trajetórias absolutamente singulares, cujas tentativas de estabelecer paralelos e análises comparativas tendem a fracassar. Apesar das similaridades ideológicas com os demais realizadores que integravam a turma do cinema novo, Leon Hirszman se distinguiu principalmente pela heterogeneidade de sua obra. Se alguns autores possuem traços estilísticos bem delineados e costumam, mesmo que toscamente, ser enquadrados em perfis esquemáticos, que permitem a observação de sua obra a partir do conjunto, outros, como Leon, tornam esse tipo de simplificação que parte do geral em direção ao particular quase impossível. A não ser pelo fato de terem sido concebidos como prolongamento natural e direto da atuação política do diretor dentro de um horizonte concreto da prática militante, pouco têm em comum uma fita com a outra. Apesar disso, mas partindo-se dessa compreensão, as linhas que se seguem terão por objetivo ir exatamente de encontro a algumas das características gerais que unificam o pensamento do diretor. A partir da observação do binômio forma/conteúdo, as anotações a seguir tentarão buscar dentro de sua obra não-ficcional características próximas, resultantes não apenas de seus processos particulares, como também das forças exercidas pelos agentes sociais de seu tempo e lugar.

Para compreender os documentários de Leon Hirszman é preciso, necessariamente, ir além das fronteiras da análise que tem como objeto único o filme em sua forma elementar fechada, e tomar como premissa a ideia de uma obra que só encontra sentido quando confrontada com o ambiente que a cerca e estreitamente ligada às questões sociais do país durante a metade final do século passado. É impossível dissociar os filmes de Leon e sua atuação política. Para ele, o cinema constituía uma extensão natural da forma de pensar as relações sociais entre indivíduos e classes. Por influência do pai, polonês que havia perdido a família durante o holocausto, Leon ingressou no partido comunista ainda jovem, com catorze anos. Formou-se engenheiro e ainda na faculdade começou a se envolver com os círculos artísticos ligados ao teatro e cinema. Assistiu às apresentações organizadas pelo teatro de arena e participou, entre 1961 e 1964, do recém-criado centro popular de cultura, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Carlos Diegues, Ferreira Gullar e outros. A proposta do seu trabalho como documentarista, apesar da autonomia inerente ao fazer artístico e da subjetividade da qual pressupõe o cinema, sempre esteve associada à compreensão do mundo pela ótica marxista, através especificamente da militância do partido comunista brasileiro. Um dado não menos importante para a compreensão de sua atuação como diretor enquanto agente político está no fato da maior parte de seus filmes terem sido concebidos sob o período no qual vigorou o regime da ditadura civil-militar no Brasil. E assim como os filmes de ficção, seus documentários concentravam-se na necessidade de atuar como polo reativo ao sistema autoritário vigente e minimizar os efeitos da censura, que tentava interromper a tradição cinematográfica iniciada nos anos 50.

Em sua trajetória como documentarista, Leon conseguiu filmar quatro longas: o filme encomendado pelo canal italiano R.A.I, Que País é Este? (1976), ABC da Greve (1990), Bahia de Todos os Sambas (1984) e Imagens do Inconsciente (1983-86), composto por três partes. Filmou vários curtas, Maioria Absoluta (1964), que não chegou a finalizar, Nelson Cavaquinho (1969), Megalópolis e Ecologia, ambos de 1973 a série Cantos de Trabalho (1975-1978), Partido Alto (1976-1982) e Rio Carnaval da Vida (1978). Durante a década de 1970, idealizou um ambicioso projeto chamado BR-480, composto por uma série de filmes temáticos que teriam como objetivo discutir a história do país e as condições de vida da população brasileira. O projeto não saiu do papel, mas acabou servindo como base para a realização de Que país é este?.

Cantos de trabalho (Thomas doc2)

Considerando-se a longa carreira do cineasta, que durou quase 30 anos, são relativamente poucos os filmes realizados por ele durante esse período, marcado por um intenso engajamento em atividades políticas que envolviam as questões do cinema e da arte de sua época. A consciência desse ambiente abafado e pouco propício à expansão da realização autoral, talvez tenha despertado em Leon, certo sentido de urgência estratégica, uma necessidade quase inconsciente de aproveitar os poucos espaços conquistados, para projetar suas inquietações. Em um de seus mais belos filmes, Nelson Cavaquinho (1969), por exemplo, é evidente a utilização do objeto filmado como prolongamento da voz do próprio diretor. O tom melancólico das letras de Nelson, amplificado pelas condições modestas da periferia carioca, reflete-se na forma triste, como o músico se relaciona com a comunidade que o cerca. Paulinho da Viola, amigo tanto de Leon quanto de Nelson faz objeção a essa representação do compositor, ao dizer que a figura cabisbaixa captada pela câmera, não corresponderia à imagem extrovertida que o próprio Nelson faz questão de reafirmar em uma das cenas. A natureza dessa inconsistência, pouco importante para a fruição do curta é verdade, teria se originado pela morte recente de um sobrinho do cantor, ocorrida poucas horas antes da filmagem. Talvez por isso, em 1969, durante o período mais repressor da ditadura, o olhar preocupado e sem esperanças de Nelson, nos diga mais a respeito da condição do próprio Leon e não necessariamente do cantor.

Os temas: A representação do popular

Existe uma incansável repetição da crítica elaborada principalmente por parte do público, repetida quase como um mantra, que acusa a produção nacional de representar nas telas somente a miséria e a criminalidade. E, de fato, por mais que essa afirmação seja simplista e possa conter em si, o germe do pensamento autoritário de quem toma como régua a assepsia de uma produção completamente mercantilizada, há algo de verdadeiro por trás dessa informação.

Nosso cinema, principalmente a partir da década de 1950, como parte de uma estratégia que buscou fortalecer sua própria identidade, dedicou-se com afinco à representação do “outro”. Digo “outro”, porque apesar da sensibilidade social que cerca a produção nacional até os dias de hoje, ela ainda é majoritariamente praticada por grupos sociais muito semelhantes aos que iniciaram a aventura cinematográfica brasileira décadas atrás. Os italianos que, pela primeira vez, filmaram a baía de Guanabara deram lugar aos brasileiros curiosos de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Campinas, Rio Grande do Sul, que, por sua vez, abriram espaço para uma prática mais consistente sediada ora na antiga capital nacional, ora em São Paulo. De lá para cá, a partir do cinema novo, a produção se intelectualizou e passou por inúmeras transformações, mas nunca deixou de ser fabricada e consumida por uma parcela minoritária da população. Em 2014, segundo o IBGE, apenas 10% das cidades brasileiras possuíam ao menos uma sala de cinema.

De qualquer forma, a representação do popular configurou-se como o principal eixo temático da eztetyka da fome de Glauber Rocha. De forma mais abundante, pelo menos até 1964, em filmes de ficção como Vidas Secas (1963) Porto das Caixas (1962), Ganga Zumba (1963) e os documentários Garrincha, Alegria do Povo (1962), Maioria Absoluta (1964), além da primeira versão de Cabra Marcado para Morrer (1964). Após esse momento inicial de descobertas estéticas e maturação do cinema novo, alguns dos cineastas, inclusive Leon, tiveram que se reorganizar em torno de uma nova linguagem, mais metafórica e hermética, que pudesse se adequar ao espaço restrito deixado pela censura que perseguia as produções de ataque direto ao regime. Esse recuo é marcado na carreira de Leon pela aproximação com a música popular brasileira.

Maioria absoluta (Thomas doc 3)

O idealismo da fase inicial do cinema novo aproximou Leon da realidade distante do camponês. Assim como Eduardo Coutinho durante as filmagens, em 1964, da primeira versão de Cabra Marcado para Morrer, os diretores do cinema novo pareciam mais interessados em dedicar-se aos problemas do campo, do que aos conflitos que envolviam o trabalhador das cidades. A miséria urbana, quando representada, era geralmente ligada a questões mais específicas de violência e acesso à moradia , raramente aventurando-se pela discussão das relações de trabalho. Parece existir na figura do camponês um magnetismo que atrai os olhares do cinema, uma distância entre objeto e público que talvez assegure ao diretor um tratamento mais livre, fértil para o exercício de sua criação, mesmo no documentário. Seja pela força da tradição e de sua iconografia ancestral, que se constrói há pelo menos 11.000 anos, ou pela lógica de um estado liberal que força o deslocamento das mazelas do sistema para um território menos acessível ao olhar, o fato do camponês ter sido escolhido reiteradas vezes, e não só no Brasil, nos diz muito a respeito da trajetória de Leon Hirszman enquanto documentarista.

A forma: O cinema direto ao estilo brasileiro

Leon Hirszman talvez seja um dos documentaristas brasileiros que melhor exemplifica as características conflituosas e ricas de nuances que o documentário direto adquiriu por aqui. A urgência com a qual os temas sociais brasileiros recorrem à aproximação do cinema observacional esbarra com certa frequência na voz até então engasgada do diretor. Variação nossa do documentário clássico griersoniano. O cinema de não ficção brasileiro dos anos 1960 surge dessa fricção, de um duplo movimento de retomada. Ao mesmo tempo em que se renova a linguagem do documentário, com o surgimento do cinema direto na França, Estados Unidos e Canadá, renova-se também a temática, puxada principalmente pelo realismo do pós-guerra e por desbravadores como Nelson Pereira dos Santos.

Aqui, as demais expressões artísticas, mais antigas, já haviam se organizado e passado cada qual a seu momento, por períodos de profundas transformações impulsionadas por questões ideológicas. Faltava, porém, ao cinema brasileiro, esse momento de inflexão fomentado pelos impulsos internos de sua própria atividade intelectual e artística. Até então, os principais distúrbios ocorridos na produção brasileira haviam sido causados majoritariamente por forças externas, questões técnicas e oscilações de mercado, quando, por exemplo, as condições favoráveis que possibilitaram a prolífica produção entre os anos de 1909 e 1912, foram interrompidas pelo influxo do cinema estrangeiro. É compreensível, então, que os cineastas do período, assumindo a responsabilidade de reforçar o papel do autor na cadeia produtiva, não estivessem dispostos a abrir mão da exposição assertiva de suas visões de mundo, em prol de um cinema observacional, mais afastado, como pregava a primeira geração do direto nos estados unidos, encabeçada por Robert Drew. Sobretudo, nos documentários realizados dentro de um movimento essencialmente político, abrir mão do caráter manifesto da voz over, poderosa em sua onisciência, seria negar a participação do cinema no fervilhante caldeirão cultural brasileiro do final da década de 1950. Ao contrário, por exemplo, do movimento homônimo japonês, marcado principalmente pela individualidade acentuada de uma geração traumatizada, as obras brasileiras do cinema novo, pelo menos em primeiro momento, anterior à desarticulação operada pela censura, mantiveram entre si alguma coesão política, imbuídas principalmente de um forte idealismo e um trauma, diferente do japonês, de origem crônica e social.

Dentro desse contexto, o perfil articulista que Leon já exercia no CPC [1], reflete-se também dentro de sua produção documental. Em sua atuação política bem delimitada e pragmatismo adquirido dentro dos espaços de discussão em que exercia influência, Hirszman encarava seus projetos dentro de um horizonte estratégico relativamente bem definido e uma de suas preocupações, enquanto documentarista, era criar um canal narrativo de contra informação. Em Maioria Absoluta (1964), mais do que servir de ilustração ao método de alfabetização Paulo Freire e mostrar as mazelas do analfabetismo, o filme busca a partir da fala poética do camponês, desconstruir o senso comum, representado aqui pelo depoimento da classe média carioca no início da fita, que coloca o outro (pobre) na raiz do problema dos quais eles mesmos são as maiores vítimas. Pela primeira vez no Brasil, a novidade chamada por Mario Ruspoli de grupo sincrônico cinematográfico ligeiro, composto nesse caso por Leon, Arnaldo Jabor e Luiz Carlos Saldanha, foi capaz de captar a espontaneidade da fala popular com a força atestada somente pelo acompanhamento da imagem e pela liberdade da extensão do discurso em seu decorrer natural. A câmera, porém, não se move entre os depoentes e evita a abordagem jornalística, próxima aos métodos norte americanos.

Maioria absoluta (Thomas doc 5)

O cineasta nova-iorquino Robert Kramer, também militante de esquerda, define uma metodologia baseada na prática cinematográfica e elenca a partir de uma visão revolucionária três tipologias fundamentais de documentários que deveriam ser produzidos pela agência de contra informação criada por ele, chamada de Newsreel. De uma forma geral, os filmes deveriam ser produzidos de acordo com seu objetivo que poderiam ser: informativo, tático e educativo. Para além da forte ligação com o documentário clássico presente desde Aruanda (1959), de Linduarte Noronha, o cinema nacional orientou sua abordagem quase sempre a partir do eixo educacional, em seu formato híbrido, que trabalhava nos limites entre estilísticas próprias aos cinemas direto e clássico. Não é difícil compreender os motivos concretos que levaram o documentário brasileiro a enveredar por esse caminho em detrimento de atuações informativa e tática, que pudessem concorrer respectivamente com os meios tradicionais de comunicação e os movimentos revolucionários.

Seria quase impossível, no contexto do regime militar, travar uma batalha contra a televisão e o rádio, a partir de uma estrutura financeiramente tão mambembe quanto a do cinema brasileiro. As condições de realização dos nossos documentários eram tão precárias, que as razoáveis 25 horas de negativo virgem utilizadas por Leon em ABC da Greve, financiados pela Embrafilme, são consideradas um luxo, se comparadas às 8 horas utilizadas por Renato Tapajós, durante a realização de Linha de Montagem (1982). O abismo entre o cenário da produção autóctone e a estrangeira é evidente se compararmos, por exemplo, a quantidade de material filmado dos longas citados acima a obras como Zoo (1993), de Frederick Wiseman, também de pouca circulação, mas montado a partir de 80 horas de filme.

A precariedade sobre a qual se assentou o cinema nacional, desde seu nascimento, não só norteou o desenvolvimento estético do documentário brasileiro, como em consequência disso, delimitou seu campo de atuação política. Além de inibir experiências próximas às propostas de Kramer, o sucateamento da produção nacional resultou na necessidade de uma decupagem mais precisa do documentário. A falta de roteiro e a expansão das tomadas, típicas do direto, não impediram Leon, por exemplo, de criar um mapeamento inicial relativamente bem definido em ABC da Greve, apesar da imprevisibilidade no desenrolar dos eventos filmados. O culto às lideranças, a intervenção do estado no sindicato e as grandes assembleias podem ser eventos mais ou menos conhecidos e, até certo ponto, esperados pelo cineasta que filma um movimento de greve e pretende formular um filme de narrativa sólida. Até mesmo a brutalidade policial, reação de autopreservação do estado, infelizmente abundante até os dias de hoje, pode se enquadrar no formato chamado por Stephen Mamber, de crisisstructure [2], que em termos gerais, consiste na construção do documentário a partir de uma situação de crise iminente, em que há um potencial explosivo com elementos suficientes para a eclosão da imagem-intensa, dentro de um horizonte ainda assim espontâneo e indeterminado. Um dos motivos que imagino estar relacionado à resistência do cineasta brasileiro desse período em adotar o famoso posicionamento de mosca, distanciado de seu objeto, decorre justamente da necessidade de reduzir a extensão das tomadas e realizar filmes a partir de uma perspectiva mais controlável.

Outro bom exemplo das adaptações engenhosas que se originaram do improviso acontece em Maioria Absoluta (1964), primeiro filme brasileiro a utilizar o gravador portátil Nagra, que permitia filmagens com som sincrônico. O filme, pelo menos na obtenção de suas imagens, não é pautado pela relação entre sujeito e objeto. O cinegrafista é obrigado a recuar, em parte porque as câmeras à disposição, não possuíam blimp[3], fato que obrigou a utilização de teleobjetivas. A oposição entre o olhar distante da câmera e a captação próxima do som operado por Arnaldo Jabor, foi determinante para a obtenção de imagens tão ricas em sua ambiguidade. Do ponto de vista objetivo, maioria absoluta desafia as imposições limitadoras contidas nas definições do documentário direto e vale-se principalmente dessa relação desigual proporcionada pela precariedade de uma solução técnica em desacordo com os anseios estéticos propostos pelo movimento documentarista em sua esfera internacional.

Em entrevista exibida no documentário de Eduardo Escorel, Deixa Que Eu Falo (2007) Leon Hirszman, ressentido com a situação que o cinema atravessava, deixa evidente sua opinião acerca da disparidade dos investimentos realizados pelo estado entre os diferentes setores do audiovisual no Brasil.

A infraestrutura de televisão brasileira foi montada pelo estado, que investiu milhões e milhões de dólares. Agora, o cinema não teve nada de infraestrutura, só tem aplicação na superestrutura. Cria-se uma relação de dependência, uma relação paternalista.”

Deixa Que Eu Falo (Thomas doc 6)

Mas, se por um lado a TV tomou para si parte das atribuições do cinema, consequentemente diminuindo seu número de espectadores, por outro, essa clivagem do audiovisual contribuiu para o fortalecimento de um cine-documentário mais autônomo dentro da tradição brasileira. Esse novo tipo de filme autoral, oriundo do vácuo deixado pelo antigo INCE (instituto nacional de cinema educativo), continuaria a se ramificar, em direção a uma construção cada vez mais autoconsciente e madura. E, apesar da crise crônica que submete o documentário a uma condição marginal dentro do mercado, o número de produções, a partir da retomada, em 1995, segue crescendo pelos mesmos motivos que possibilitaram seu desenvolvimento cinco, seis décadas atrás. Barateamento dos custos de produção e em menor escala, a democratização instrumental.

Na ausência de um antagonista bem definido, o documentário político brasileiro arrefece, e o senso de urgência que encontrava na ditadura sua razão de ser, se dissolve. A miséria desencadeada pelas desigualdades, parece não encontrar no cinema, um canal que permita sugerir causas claras do processo de precarização da vida. Filmes como Boca do Lixo (1992) e Ilha das Flores (1989), ambos de um período de transição, possuem ainda os traços de uma narrativa preocupada em conectar causa e efeito, característica que seria deixada de lado pela tradição miserabilista do documentário nacional nos anos seguintes. O crescimento do setor de serviços em detrimento dos setores produtivos do campo e da indústria e a internacionalização do capital corroem as bases sobre as quais Leon havia pautado seus documentários. Antecipando-se a essa crise, o cineasta, como quem respira fundo antes de uma próxima investida, refugia-se nos universos interiores da mente quando filma a trilogia Imagens do Inconsciente (1987). É claro que tais suposições não passam de mero exercício de imaginação, aguçado pela morte precoce do diretor, mas não é difícil conceber um cenário em que Leon, na sequencia dessa incursão pelos labirintos da mente, figurasse, ao lado de Coutinho, como uma das principais forças da maturação do documentário brasileiro.

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Notas:

[1]Centro popular de cultura. Organização vinculada a UNE, criada em 1962 por intelectuais de esquerda com o objetivo de criar e difundir a arte popular pelo Brasil.

[2]MAMBER, Stephen. Cinéma Vérité in América: Studies in Uncontrolled documentary

[3]Dispositivo silenciador, desenhado para abafar o som produzido pelas câmeras. A introdução dessa tecnologia desenvolvida pelos canadenses da Office National Du Film, facilitou a tomada de som direto sincrônico.

 

 

Bahia de Todos os Sambas (1996)

Bahia 2

Amigos em Roma: Amico, Saraceni, Hirszman.

Joana Oliveira

“O verão romano de 1983 não foi um verão como os outros. Sobre as ruas e praças de Roma desceu uma invasão afro-brasileira que fez do espaço antigo do Circo Massimo o seu quartel general.” Assim começa a narração de Paulo César Pereio, escrita por Gustavo Dahl, em Bahia de Todos os Sambas, um documento musical, como chamou Paulo César Saraceni, que co-dirigiu o filme junto com Leon Hirzsman. O longa-metragem é um registro de nove dias de agosto de 1983, quando aconteceu, em Roma, um grande evento de música e cultura baiana reunindo artistas como Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nana Caymmi, Moraes Moreira, Naná Vasconcelos, Batatinha, o trio elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar, além de ritmistas, dançarinos e capoeristas. O documentário foi lançado somente em 1996, pois o projeto foi interrompido em 1984 e finalizado somente 17 anos depois por Saraceni.

O intelectual italiano Gianni Amico, que foi o idealizador do evento, começou a conhecer a cultura brasileira em 1960, quando dirigiu o primeiro festival de cinema latino-americano de Santa Margherita Ligure, cidade na região de Gênova. Aí, ele descobriu a Bahia pelo cinema. Naturalmente, quando Amico teve a ideia de organizar um evento de cultura baiana em Roma, ele também pensou em fazer uma homenagem ao cineasta Glauber Rocha, falecido dois anos antes, com a exibição de A Idade da Terra (1980) em sua abertura.

Mas Gianni não concebeu somente o evento, que reuniu mais de 100 mil pessoas durante suas apresentações. Ele também idealizou um documentário sobre a invasão baiana a Roma. Desde os anos 60, Amico conhecia muitos cineastas brasileiros por causa de seu festival de cinema. Paulo César Saraceni e Gustavo Dahl cursavam cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma à época e foram convidados para participar do festival de Santa Margherita em 1961, juntamente com Joaquim Pedro de Andrade. O curta-metragem Arraial do Cabo (1960), de Saraceni, em co-direção com Mário Carneiro, chegou a ganhar o prêmio do festival.Nesses dias em Santa Margherita, Amico conheceu os brasileiros e eles se tornaram amigos.

Gianni Amico conheceu Leon Hirszman mais tarde, em 1967, no Rio de Janeiro, apesar de já admirar o seu filme Maioria Absoluta (1964). Eles se reencontraram um ano depois e Amico escreveu sobre esse encontro em seu texto Dois Brasis, uma despedida a Glauber Rocha e a Leon Hirszman: “Nos encontramos e nos tornamos amigos, em Pesaro, em 1968. Foi um dos primeiros brasileiros a ver TRÓPICOS. Eu esperava, nervosíssimo, sua reação ao meu filme, que, entre outras, continha uma citação do seu MAIORIA (três enquadraturas de Brasília, do alto). Depois, com Paulo César, em um quarto do Piccolo Hotel, ficamos conversando até a madrugada, enquanto no banho, Julinho Bressane havia se fantasiado de papai noel com o creme de barbear.”

Então, em 1983, Gianni Amico convidou os diretores Leon Hirszman e Paulo César Saraceni para dirigir um documentário que idealizara sobre o evento cultural e musical baiano que ele iria organizar no verão romano.

O DOCUMENTÁRIO

Os diretores Leon Hirszman e Paulo César Saraceni desembarcaram em Roma junto com sua equipe de câmera, composta por Dib Lutfi e Luiz Carlos Saldanha, para filmar o evento e também depoimentos, bastidores e passeios dos baianos e baianas por Roma. O fotógrafo italiano Tonino Nardi também trabalhou no registro. O resultado foram 36 horas de material bruto filmado em 16mm. Não há, entretanto, créditos de som direto. É provável que o som do show tenha sido gravado pela equipe de produção musical do evento e sincronizado depois. O som das conversas de bastidores e dos passeios dos brasileiros por Roma devem ter sido captados pelos próprios fotógrafos com um equipamento leve de som usado na época em documentários: um gravador Nagra, um microfone direcional e um microfone de lapela. Em Bahia de Todos os Sambas, é possível ver que havia somente um microfone de lapela que ficava, cada hora, com um artista, nas tomadas mais abertas em que o microfone direcional não conseguiria captar bem a conversa. Na cena das duas baianas que caminham pela Fontana di Trevi, só uma delas leva o microfone.

Bahia 1

O filme tem momentos belíssimos como a interpretação de João Gilberto para a canção Estate, em italiano, acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Roma. Na maior parte da canção há um hipnótico primeiro plano do rosto de João Gilberto, uma decisão nada comum em registros de apresentações musicais. Outra apresentação marcante é a de Gal Costa, quando canta Índia. A câmera passeia pelo corpo e gestos da cantora, com zooms in e out, em um único plano. Um momento divertido acontece na sequência em que Gilberto Gil canta Aquele Abraço enquanto faz comentários e passeia por Roma, primeiro nas escadarias da Praça de Espanha e depois em um carro conversível.

Ao assistir ao documentário, é possível sentir a atmosfera carinhosa e afetiva que envolvia o evento. Nos bastidores, haviam muitos abraços e risos entre os artistas, Gianni Amico, equipe técnica e público. Esses momentos foram escolhidos na sala de montagem em uma provável decisão emocionada entre o diretor Saraceni e a montadora Maria Elisa Freire. Afinal, o filme foi finalizado após as mortes de Leon Hirzsman e Gianni Amico.

Uma série de contratempos fez com que o filme ficasse parado. Primeiro, os produtores do show queriam também se tornar produtores do filme, o que não era o combinado com Amico. Houve uma briga na justiça e, quando foi encerrada, Leon Hirzsman estava filmando Imagens do Inconsciente (1983). À medida que concluiu o filme, Saraceni começou a  realizar Natal da Portela (1988). Logo no momento em que, de fato, iriam recomeçar, Leon morreu.

Em depoimento em julho de 1999, no livro de Lúcia Nagib, “O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90”, Paulo César Saraceni conta:

“Depois, eu estava filmando Natal da Portela, e Leon estava acabando Imagens do inconsciente, e demorou um pouco mais, quando em 1987 chegou a hora de recomeçar, mas então Leon ficou doente e morreu. Aí, eu não quis mais fazer, não. Gianni insistia que eu devia terminar o filme, mas sem Leon eu não queria.

Fizemos uma tabelinha incrível, porque ele ficava atrás e eu improvisando com Dib Lutfi e Saldanha. Eu até filmei dançando, com a câmera na mão do Dib, pelo palco, tomando cuidado para não derrubar os instrumentos e as partituras. As pessoas riam de me ver dançando no palco, o diretor dançando. Sempre adorei dançar. Foram dias lindos. Gianni sempre quis fazer o trabalho. Leon tinha a ideia de filmar na Bahia, eu não entendia bem o que ele estava querendo, mas eu co-dirigia com ele. Ele já não acreditava. É que estava doente, lógico. Foi uma morte que trouxe imenso vazio para nós.

Bem, só consegui finalizar o trabalho em 1997, obedecendo a um desejo profundo de Gianni. Terminei o trabalho em respeito a ele e com muita emoção por todos esses amigos.”

Saraceni também contou em entrevista para a Folha de São Paulo, em 1997, que a maior dificuldade para conseguir patrocínio para finalizar o documentário após a morte de Gianni era que os negativos ficaram presos na Itália e ninguém acreditava que tal material existia: “Todo mundo acabou ficando muito mais importante que era naquela época.” Mas, a viúva de Gianni, Fiorella Amico, entrou no filme como produtora executiva e conseguiu levantar o dinheiro junto com outro produtor, Elio Ruma. O filme veio a estrear, finalmente, no Festival de Veneza de 1996.

 

 

ABC da Greve (1990)

abc da greve 02

A greve é pra ontem!

 Thomas Lopes Whyte

ABC da Greve (1990) é um filme realizado em dois momentos, por dois autores. Foi rodado entre 19/03 e 19/05 de 1979, rendendo a Leon Hirszman 25 horas de material bruto, dos quais quase 30% se perdeu durante a década seguinte. Em 1990, o negativo foi finalmente montado pelo fotógrafo Adrian Cooper, três anos após a morte precoce de Hirszman. O filme, em sua concepção elástica de tempo e autoria, é o resultado complexo dessas duas épocas e desses dois autores (Hirszman/Cooper). Ainda que o fotógrafo inglês tenha decidido seguir as orientações de Leon, seria de se supor que 10 anos de maturidade, aliadas ao desenrolar natural da história, tenham imprimido suas marcas no resultado final do filme, afastando-o aos poucos de seu modelo inicial.

À época, o diretor ocupava-se de adaptar, ao lado de Gianfrancesco Guarnieri, Eles Não Usam Black-tie (1958), peça de autoria do mesmo, escrita para o Teatro de Arena. Não só a proximidade temática como a necessidade de compreender a vida do operário e o universo encenado no palco, levaram Leon a interromper o projeto e se dirigir ao ABC paulista para realizar o documentário que serviria como um serviço prestado à classe trabalhadora. Nas palavras do próprio Hirszman, em entrevista realizada em 03/04/1979:

Isso que nós estamos editando aqui é um documentário, que deve servir à classe trabalhadora, à classe operária, mostrando uma experiência concreta determinada, vivida num ano determinado e que significou um passo na consciência de classe no Brasil. Em nenhum momento ele foi pensado como uso, senão como serviço. Por isso o filme é barato e só pode ser barato.” [1].

Houve, pela primeira vez no país, uma conscientização dos intelectuais ligados ao cinema,a respeito da importância do registro tirado a partir dos movimentos populares da classe operária urbana. Ao contrário das grandes greves que eclodiram na década de 1950, ignoradas pelas câmeras, os movimentos de 78/80 contaram com os olhares atentos de cineastas que se colocaram deliberadamente como vozes contrárias ao discurso oficial produzido pelo governo através, principalmente, da televisão. Um dos motivos que justificam a atrofia do cinema novo na representação do movimento operário dos anos 50 se explica parcialmente pela proximidade de seus principais protagonistas com o círculo burguês que se formava no Brasil durante o período. Ou seja, é possível perceber, inclusive, que existia uma espécie de pacto tácito de não agressão entre burguesia urbana nacionalista e a geração cinemanovista, oriunda desse mesmo lugar social. Fator que, segundo Jean-Claude Bernardet, direcionou em um primeiro momento a sensibilidade dos cineastas em direção ao território do campo, mais distante e idealizável, em detrimento do chão de fábrica. Com exceção talvez da representação quase circunstancial da classe operária em Pedreira de São Diogo, episódio de Cinco Vezes Favela (1962), dirigido pelo próprio Leon, e de Viramundo (1965), realizado pelo grupo de Thomas Farkas e Geraldo Sarno, a poética surgida no Brasil em meados dos anos 50 com Nelson Pereira dos Santos preferiu apontar suas lentes para outras paragens.

abc da greve 03

As greves do ABC começaram em São Bernardo do Campo, no ano de 1978. Na ocasião, o país se preparava para entrar em uma de suas maiores crises, o preço do petróleo subia vertiginosamente, o milagre econômico e o controle do governo militar sobre a produção cultural há muito já haviam perdido o vigor e a população pobre, oriunda do campo, amontoava-se nos grandes centros urbanos de produção. Principalmente no ABC, mais importante polo industrial do país, os trabalhadores impedidos pelo regime de se organizarem plenamente (e que muitas vezes não possuíam condições mínimas de moradia e acesso aos serviços urbanos), viam seus salários se desvalorizando anos após ano. As grandes paralizações voltaram a acontecer em 1979 e 1980 e contaram com a adesão cada vez maior de vários setores, não só da indústria, como dos prestadores de serviço e da igreja Católica. Na primeira ocasião, ocorrida às vésperas da posse do General Figueiredo na presidência do país, o movimento, com uma articulação sindical mais sólida, de onde já despontava a figura de Lula, colocou em pauta uma série de reinvindicações elencadas pelos operários. Dentre elas, estavam o aumento salarial, a melhoria das condições de trabalho e a estabilidade no emprego para os líderes sindicais.

Três principais trabalhos estiveram diretamente ligados aos movimentos grevistas do período. Além de ABC da Greve, os filmes Linha de Montagem (1981), de Renato Tapajós, e Greve! (1979), de João Batista de Andrade, também constituem importantes formas de registro acerca das ondas de greve de 1978/80 no campo cinematográfico, servindo mais tarde de material para Eduardo Coutinho realizar o seu Peões (2004) [2]. Em algum momento, durante ou após as filmagens, Hirszman decide mudar a perspectiva de seu trabalho. Talvez por não possuir a exclusividade da narrativa cinematográfica e/ou por não dispor da mesma organicidade que seus colegas diretores dentro do movimento sindical, Leon acaba assumindo uma postura menos pragmática e opta por extrair de suas imagens o panorama geral dos conflitos iniciados em 1978. Sejam quais forem os motivos, o atraso no lançamento de ABC da Greve, fez com que essa segunda proposta do filme fosse ainda mais realçada, imprimindo ao filme características que o aproximam da abordagem reflexiva de Coutinho. Contrariando a afirmação dada por Hirszman na entrevista durante as gravações, Adrian Cooper destaca em conversa com funcionários da cinemateca brasileira, ocorrida em 1990:

A montagem foi interrompida porque Leon resolveu fazer um filme para um público maior, com uma visão mais ampla, global, sem entrar diretamente nos méritos da política daquele momento, daquele sindicato, daquelas pessoas…”[3].

Na visão de Renato Tapajós, tanto o filme de Leon quanto o de João Batista Andrade, eram destinados à classe média. Em ABC da Greve não existe, ao contrário de Linha de Montagem, a preocupação em ser um canal de transmissão do discurso das lideranças sindicais, mesmo porque, se o fizesse em 1990, o filme estaria se dirigindo talvez a eleitores e não aos operários. As falas de Lula são utilizadas somente até o ponto em que ilustram as relações entre as lideranças e os demais personagens envolvidos na greve: operários, patrões e governo. Hirszman, apesar de ter vivido a greve em sua intensidade, consegue recuar e volta-se eventualmente para tomadas extraídas do lado de fora do olho do furacão, onde o vento é mais forte e os estragos mais visíveis. O diretor amplia o campo de visão e, além das questões particulares da greve, como as assembleias e as movimentações na porta das fábricas, procura acrescentar em um movimento mais amplo, as condições precárias de moradia, a participação da cobertura midiática nos acontecimentos e o apoio da igreja matriz de São Bernardo, que cedeu seu espaço para a reunião dos trabalhadores, impedidos pela polícia de utilizar o estádio da vila Euclides. A representação ampla, que mostra as condições de vida do operário do setor metalúrgico do ABC acaba servindo como resposta a uma forte ideia na época de que se encontravam ali, uma espécie de classe privilegiada de trabalhadores brasileiros.

abc da greve 04

Nesse sentido, Leon busca em suas próprias palavras, apresentar o papel dos três “rios” que compunham as forças de tensão naquele momento. A primeira das correntes antagônicas, o estado, é representado principalmente a partir da polícia, com sua atuação muitas vezes truculenta e da figura do ministro do trabalho, Murilo Macedo, que em um dos pontos chave da narrativa, decreta a intervenção no sindicato. A segunda corrente, o patronato, recebe menos destaque, e aparece ao lado de Lula, em reunião que estabelece o fim da greve e também em outra parte do filme, quando o cineasta, acompanhado por um funcionário, visita um bairro de luxo, onde moram os diretores das empresas.

Especificamente, dessa relação conflituosa entre patrões e empregados, surgem dois dos momentos mais brilhantes do filme, extraídos ao acaso pelo olhar atento de Leon e Cooper. Na única cena em que a voz de Hirszman é ouvida, o diretor entrevista um executivo, que em posição defensiva, assume em um primeiro momento os interesses dos industriais, questionando de forma agressiva a natureza das filmagens realizadas pela equipe. Mas, ao ser perguntado por Leon sobre sua opinião a respeito das greves, o funcionário, em resignado e angustiante silêncio, se retrai e não consegue formular uma resposta. O segundo momento em que a intensidade da construção cinematográfica de Leon se mostra mais contundente acontece no ambiente fechado onde os empresários discutem o rumo da greve. Ignorando a presença da câmera e tomado por um momentâneo lapso de sinceridade, um homem distraído, desenha uma metralhadora. Para que a imagem não passe despercebida, emerge junto a ela a voz de Ferreira Gullar, narrador do filme:

Um empresário risca a metralhadora que desenhara. O resultado da reunião tornava desnecessário o uso das armas”.

Mais generoso com a representação do outro, , Leon dedica a maior parte do filme ao desenvolvimento do ambiente onde acontecem os movimentos. Menos interessado em dar nome aos bois, o filme se apoia em uma espécie de cobertura total da greve. Percorrendo uma extensa área geográfica que vai de São Bernardo, epicentro dos conflitos, mas também se estende a Santo André, São Caetano e Brasília, o cineasta utiliza-se da mesma estratégia para determinar com abrangência os indivíduos das comunidades ali representadas. Leon entrevista não só os metalúrgicos ligados às lideranças, mas dá voz também às trabalhadoras, donas de casa, adolescentes e artistas apoiadores do movimento. Enfim, percorre os diversos espaços que, de acordo com Ricardo Antunes em seu livro “A rebeldia do trabalho (o confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978/80)”, já se movimentavam pela expansão de seus direitos antes mesmo da consolidação das organizações sindicais.

É interessante notar a forma como Hirszman, reiteradas vezes, enquadra os cartazes com suas palavras de ordem e exortações. O cineasta parece obter certo alívio nesses momentos, de sobreposição entre sua voz e a dos operários com a criação desses pontos de contato do discurso entre sujeito-câmera e objeto. O desbunde não é completo e nem poderia. A busca atenta da câmera pelas legendas que dão suporte às asserções do diretor, quase sempre partem de um esquema anterior à própria estrutura do filme. A abertura intuitiva do labirinto que compõem o mundo e por onde se aventuram o autor de cinema, não é infinita. O caráter reflexivo da mesa de montagem e, principalmente, no caso de Leon, a necessidade de criar um documentário claro, baseado em uma estrutura clássica de causa e efeito ligada à prática política.

abc da greve 01

Os conflitos internos e as inconsistências do movimento operário são deixados de lado. Essas relações entre sindicato e trabalhadores são vistas com maior clareza no filme de Renato Tapajós, que exibe de forma mais transparente o processo de desenvolvimento da organização dos setores e lideranças sindicais. Ponto em comum entre os dois documentários é a evidente transformação do movimento grevista, inicialmente de caráter econômico (não exclusivamente, é claro) em direção à sua versão política madura, que culmina no momento em que a voz de Lula, consciente de sua influência, funde-se à dos intelectuais, amplificando os gritos pela redemocratização do país.

Localizado temporalmente entre os filmes de Tapajós/Batista e Coutinho, ABC da Greve sofre com certo desajuste. Condição ocasionada  pelas várias dicotomias que compõe não só o filme especificamente, como o próprio Leon. Ao recusar a ideia de mostrar uma “experiência concreta determinada, vivida num ano determinado”, Leon abre mão da abordagem descritivo-jornalística adotada por Tapajós, em benefício de sua autonomia como autor, mas perdido entre a euforia de participar do movimento operário e o desejo de transmitir sua versão coerente da história, o cineasta arrisca um salto que na ocasião do lançamento do filme, em 1990, já se mostrava distante da leitura corrente. Em análise posterior ao lançamento de ABC da Greve, após a derrota de Lula nas eleições presidenciais, Lúcia Nagib atenta para o deslocamento ocorrido, talvez a contragosto, na interpretação do filme [4]. Pairava sobre os espectadores, certa desilusão, um sentimento não resolvido, muito distante da agitação que norteou a captação das imagens uma década antes. O problema tende a se agravar com o passar do tempo, e pelo menos até o momento, o caráter melancólico do filme de Leon se torna ainda mais acentuado, se considerarmos o contexto atual de crise política.

A utilização de recursos extra-diegéticos fomenta uma fratura no interior do filme, um conflito principalmente entre forma e narração. Feita por Ferreira Gullar, as asserções diretas enunciadas pelo texto parecem querer enquadrar e refrear as potencialidades da indeterminação da tomada espontânea. Esse problema se agrava principalmente em decorrência da natureza dilatada do filme. Os referenciais se deslocam e possibilitam a abertura de flancos por onde se infiltram os anacronismos dos quais o filme padece.

Depois de todos esses anos e da reflexão sobre o papel do narrador no cinema, com uma maior confiança nas imagens, decidimos tirar parte da narração…” [3].

Ao longo de sua carreira, parecem coexistir em Leon, duas formas de pensamento, que norteiam praticamente todo o seu trabalho. De um lado, o cineasta obcecado pelo controle, partidário de uma decupagem precisa e de um cinema consciente de suas escolhas. De outro, o artista dado ao desbunde e adepto da contracultura. ABC da greve resulta da síntese desses movimentos, no seu input, no ato da tomada, o filme torna-se filho do acaso e a metodologia do direto não permite, sob a pena de frustração, controlar a vida, a exemplo de Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia (1969). Ao contrário, no output, durante o exercício de costura que caracteriza a pós-produção, Leon, e mais tarde Adrian Cooper, voltam a exercer, de forma às vezes sufocante, o controle das imagens.

A noção de militância marxista de Leon dá forma a esse filho tardio do cinema novo, que exemplifica de modo certeiro o célebre e tão contestado aforismo de Glauber Rocha, da câmera, da ideia, da cabeça e da mão. No caso de ABC da Greve, somente a práxis do documentário direto militante, com a câmera e gravadores leves à mão, somada aos reflexos afiados da equipe, poderiam dar vazão às muitas ideias e asserções da cabeça de um incansável articulista como Leon Hirszman.

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[1]Entrevista de Leon concedida em 3/04/ 1979, durante as filmagens de ABC da greve.

[2]Para uma análise mais profunda da relação entre os três filmes e a representação da greve pelo cinema, ver: GRANATO, Maria Carolina. O cinema na greve e a greve no cinema. http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2008_SILVA_Maria_Carolina_Granato_da-S.pdf.

[3]Entrevista do fotógrafo e montador Adrian Cooper concedida em dezembro de 1990.

[4] NAGIB, Lúcia. Folha de São Paulo , “ilustrada”, 9/03/1991, p. 2-5.

 

Imagens do Inconsciente (1983)

imagens do inconsciente 1

Os náufragos da Barca do Sol

Douglas König de Oliveira

O roteirista Jean-Claude Carrière, em seu livro “A Linguagem Secreta do Cinema”, conta que o diretor Luis Buñuel, seu parceiro no roteiro de A Bela da Tarde (1967), dizia: “Quando se tem sorte suficiente para encontrar o verdadeiro mistério, deve-se respeita-lo. Dissecar o mistério é como violar uma criança”. Leon Hirszman se dispõe a documentar o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira à luz de concepções de Carl Gustav Jung, mas não o faz de forma invasiva e instrumental, tentando descortinar os casos psiquiátricos de forma exata. Assim como os pacientes tornados artistas, ele constrói com os recursos de seu cinema um tecido que comporta tanto o drama pessoal quanto a abertura para o inconsciente. O mistério de como pessoas, alheias à cultura formal e acadêmica, atingem espontaneamente concepções características de artistas consagrados como Marc Chagall, Van Gogh, Paul Klee, e remetem mesmo a criaturas mitológicas de tempos remotos, de culturas singulares de que hoje subsistem apenas em estudos e museus, tem sua fundamentação possível no que Jung tratava como inconsciente coletivo. Este seria um substrato comum à formação psicológica do homem e, como uma herança universal, nortearia a formação dos mitos e valores. Mas Hirszman não opta por explanar exaustivamente sobre isso, limitando-se a reproduzir os apontamentos de Nise da Silveira sobre o assunto.

O filme inicia mostrando as condições precárias da internação psiquiátrica, para depois deslocar a atenção para três desses internos, representando o trânsito entre biografia, condição psicológica e obra artística que surge durante o processo. Como uma máquina viva, as engrenagens da obra movem o emocional e o objetivo de forma integrada. Cada abertura para umas das etapas do processo de cura, de reorganização da psique através dos componentes artísticos, é retratada com o rigor formal típico do cineasta. E como em seu cinema documental e ficcional anterior, o ser humano é retratado em sua dimensão conjectural. Leon Hirszman segue a orientação de sua obra, eminentemente política, denunciando as condições a que os pacientes psiquiátricos eram submetidos antes da intervenção alternativa. Baseada na expressão de conteúdos plásticos da pintura e escultura, a terapia proposta por Nise da Silveira tentava construir uma ponte entre o mundo interior dos pacientes e o exterior, do qual se exilavam em sua degradação psíquica e emocional.

A vontade de realizar um filme sobre o que acontecia no Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, datava de meados da década de 60, época em que o Brasil vivia o endurecimento do regime militar, que assumiu o poder em abril de 1964. Uma época repressora por excelência contrastava com o senso de libertação que marcava o trabalho realizado no que viria a ser o Museu de Imagens do Inconsciente. A relação com Nise da Silveira se estendeu por este longo período, até a realização do filme, em 1983. Com uma carreira de certa forma estabelecida no campo artístico, mas que tinha sofrido com uma imensa dificuldade material até o sucesso comercial de Eles Não Usam Black-Tie (1981), Leon elabora seu próximo filme no auge de sua capacidade e confiança, ainda que o revés da doença o acometesse poucos anos depois. Sua escolha pela abordagem cinematográfica do que vinha acompanhando há anos foi bastante sensível, pois o material humano necessário para a empreitada tinha uma fragilidade que os sindicalistas de ABC da Greve (1979) não possuíam, por exemplo. Uma grande parte do esforço foi o de se aproximar dessas pessoas, os três artistas que retratavam nas obras suas crises e sua vivências conturbadas, respeitando suas limitações e reservas.

Carlos Pertuis, já falecido, foi representado pelo ator Joel Barcelos. Com uma produção em que os símbolos místicos são característica, desde o seu inaugural “Planetário de Deus” (representação/reflexo de visão delirante que o levou ao tratamento psiquiátrico) até a recorrência do tema da “Barca do Sol” no fim de sua vida/carreira, sua obra remete a concepções de arte e espiritualidade intuídas por ícones contemporâneos como Paul Klee e Wassily Kandinsky.  No início, suas pinturas recorriam a construções geométricas, ao estilo das mandalas, e à sistematização dos elementos de Piet Mondrian, no que Nise da Silveira identifica a busca de um refúgio em construções estáveis. Após, suas criações se abrem para figuras feéricas, permeando um mundo imaginário também habitado por demônios e entidades mitológicas, identificados na terapia como reinterpretações de mitos gregos, num registro mais livre, próximo de Henri Matisse. Por fim, neste apanhado sempre cronológico de catalogação das pinturas, destaca-se a série em que retrata o itinerário da Barca do Sol, equivalente ao mito egípcio do navio que conduz os deuses. Este sol austero, até um pouco triste, e seu caminho rumo a uma espécie de porto, identifica tanto a conclusão do documentário quanto a morte de seu protagonista. Marcantes também são as informações de sua maneira fragmentada e oblíqua de se comunicar e sua amizade incontornável com o cão Sertanejo, um entre tantos outros que auxiliavam na terapia com o estabelecimento de laços emocionais, degradados pela doença e pela inadequação social dos internos.

Imagens do inconsciente - Adelina

O episódio sobre Adelina Gomes também retrata os desdobramentos de suas pinturas partindo de concepções junguianas. Narra sua trajetória alienante, onde em muitos dos seus quadros representa figuras humanas amalgamadas ao vegetal, geralmente em forma de flor, algo que denota sua desidentificação como pessoa. Nise da Silveira relaciona isso ao mito de Dafne, transformada em loureiro para fugir das investidas amorosas do deus Apolo. Também a figura do gato (característica de seu primeiro surto psicótico, quando estrangulou a gata da família) é recorrente. À medida que supera o embotamento afetivo, que é a dificuldade de expressão de emoções e sentimentos, Adelina começa a retratar figuras humanas distintas das vegetais, e nesta fase é comum o tema da mãe e da filha, reminiscência de sua vivência conturbada com a mãe, figura opressora que contribuiu para seu distúrbio psiquiátrico em função da rejeição de uma primeira paixão, a qual a mãe se opunha. Interessantes também são os achados que se relacionam tanto com a pintura de Van Gogh que representa uma cadeira vazia, que Adelina utiliza para representar o lugar de ausência em seu enamoramento por Fernando Diniz, outro dos artistas que compõem o documentário. Também o tema dos noivos voadores, típico das obras de Marc Chagall, aparece em certo momento na produção de Adelina relacionado à satisfação com a companhia de Fernando. Visto que os pacientes na terapia ocupacional não têm nenhuma instrução formal quanto aos temas e técnicas da história da pintura, Nise da Silveira vê nessas identificações o material manifestado do substrato que Jung afirmava ser comum a todos os homens e que emergem em função das demandas expressivas, muitas vezes extemporâneas, levando os mitos a ressurgirem em todo o tempo e lugar em que a condição humana for estimulada para tal.

O capítulo dotado de menos intervenções explicativas é o inicial, que trata do artista Fernando Diniz. Após uma introdução geral, somos apresentados a uma série de desenhos que buscam ordem, mas de forma extremamente fragmentada e complexa, com elementos simultâneos e discrepantes. Fernando constituía um mundo ordenado através de geometrismos e abstrações, nos quais Nise da Silveira identifica não um afastamento completo do registro afetivo, como implicaria o pensamento psiquiátrico vigente contemporâneo ao seu, mas uma resistência ao caos, um refúgio ao temor da realidade que não encontra reflexo amistoso na sua mente em desequilíbrio. “Da matemática à fantasia”, nas palavras do próprio Fernando, que tinha formação em Engenharia.  Gradualmente, elementos da realidade se mesclavam a seus padrões geométricos, como que apontando uma ordenação de sua percepção do mundo, uma readequação. A cada retrocesso na condição psicológica, os elementos de sua pintura voltavam a se desagregar. Em uma fase de sua produção começam a aparecer elementos constituintes de ambientes, que Fernando vai justapondo e coordenado até formarem o interior de uma residência, que sua mãe identifica como a casa em que trabalhou e que frequentava também o filho. Nesta casa morava Violeta, moça por quem Fernando se apaixonou e cujo casamento com outro produziu nele um profundo desequilíbrio emocional.

Uma figura recorrente nesta fase é o piano, instrumento que Violeta tocava na casa burguesa que frequentou na juventude. A busca pela ordenação afetiva chega ao auge com a abertura para os elementos da vivência de forma figurativa. Mas quando retrocedia desse estado de apaziguamento das tensões psicológicas, Fernando se abrigava, novamente, na justaposição ordenada de elementos abstratos e esculturas de engrenagens, algo a ver com o futurismo de Marinetti e Duchamp. Neste capítulo, Hirszman opta por algo menos didático que nos outros dois, com a coordenação de cenas das obras e do próprio Fernando em ação no ambiente do ateliê servindo como ilustração do trabalho realizado por Nise da Silveira.

imagens do inconsciente 2 - fernando diniz

No seu surgimento, o cinema se dividiu criticamente em duas frentes importantes: a dos que o consideravam um recurso que redimensiona e enfatiza a realidade, capturando o espaço e o tempo como nenhuma arte até então, e os que o consideravam o meio mais incisivo de alcançar a linguagem dos sonhos, da fantasia e  da loucura. Imagens do Inconsciente (1983) se utiliza dessa dupla divisão do cinema, não em oposição, mas compatibilizando o registro documental a outro, que dá acesso a elementos de sonho e delírio constituintes das obras dos artistas que surgem da dinâmica ocupacional. As escolhas de Leon Hirszman para retratar tais enredos demandaram o máximo da depuração de seu cinema e apresentaram claramente o contraste do que esperaríamos de pessoas na condição social de Fernando, Adelina e Carlos, além do que foram capazes de realizar com os recursos das artes plásticas, num ambiente estimulante e integrador.

Eles Não Usam Black-tie (1981)

Black tie 3

Dilemas no quintal da política brasileira

Pedro Veras

A primeira imagem de Eles Não Usam Black-tie (1981) é embaçada e indecifrável. Essa visão turva do mundo que constata sua presença sensível, mas é incapaz de fazer dele uma leitura inteligível, aparece como choque necessário para atestar a potência do cinema. Leon Hirszman nos convida a pensar com as imagens. Entram, então, alguns acordes de um violão e um piano afinados que introduzem um samba. Hirszman parece buscar com esse procedimento a afirmação de uma arte da imagem e do som frente à força do texto que ele adaptará e enfrentará. Oriundo da peça homônima assinada pelo dramaturgo-roteirista-ator Gianfrancesco Guarnieri, escrita para o Teatro de Arena em 1958, o filme reabre feridas e não faz questão alguma de costurá-las novamente. Obra de ciclos que parece erguer pontes políticas e críticas entre 1958, 1981, 2017 e sabe-se lá até quando. Isso porque o seu tema é talvez a grande problemática que permanece insolúvel no horizonte brasileiro: a condição do operariado.

O momento é a Abertura Política, meados de 1979, quando foi sancionada a lei 6683, que concedeu anistia aos cassados pelo regime militar e também aos membros do governo acusados de tortura. Contradição interna que vai reverberar no discurso do filme. É o Brasil “saindo, mas nem tanto” da ditadura. Com as bocas (um pouco) mais abertas, o que dizer? O que pensar? Como agir? Questões que Hirszman coloca a suas personagens e a suas e seus contemporâneos. Questões que aparecem recolocadas para nós hoje. Com o ajuste do foco da câmera, o que surge é a porta de um cinema. Vemos o casal de jovens Maria (Bete Mendes) e Tião (Carlos Alberto Riccelli) saindo amorosamente de uma sessão. Ironicamente, vemos nos letreiros espelhados e legíveis apenas de trás pra frente, o nome O Campeão (1979), de Franco Zeffirelli, filme que acompanha o incansável tema de um ex-lutador de boxe nos Estados Unidos que luta para dar uma reviravolta em sua carreira. O que parece ser uma seca sátira ao cinema industrial estadunidense – reforçado pelo cartaz (ou stand) de Star Trek no hall do multiplex – acaba apresentando uma inesperada conexão com a válvula que complexifica Eles Não Usam Black-tie e as ambivalências de suas personagens principais. A questão é que o protagonista de lá, Billy Flynn (Jon Voight), o “boxeur derrotado”, tem como verdadeira motivação algo que atravessa insistentemente o espírito do protagonista de cá, Tião, o operário da fábrica local: “uma vida melhor para o filho e para a família, diante de um mundo tão duro”. No entanto, assim como no letreiro, essa “missão” também se cumprirá às avessas. O que Eles Não Usam Black-tie antecipa desde já é o grande dilema de Tião e de seus contemporâneos: a busca pela ascenção social individual vs. a luta pelo bem social comum.

As “questões pessoais”, que o filme traz para a discussão ou formação política, ganham contornos metafóricos na sequência em que eles chegam à casa dos pais de Tião. Graças à mise-en-scène, o casal se beija na sala e é capturado segundo um ângulo no qual os dois ficam bem em frente à porta aberta, com a chuva ao fundo. A imagem prefigura, de alguma forma, a turbulência que o amor do casal vai sofrer ao longo do filme, ocasionada pelas posturas pessoais e ideológicas de cada. Enquanto a chuva planta, cria, faz florescer, renova, ela também destrói, e essa parece ser a metáfora visual que Hirszman cria aqui. A metáfora parece se confirmar quando Maria revela que em seu ventre cresce uma criança, a flor alimentada pela chuva. É o primeiro elemento renovador, que rompe com a rotina do núcleo de personagens, que une e separa o casal ao mesmo tempo, essa mesma duplicidade que a chuva carrega. Decidem se casar em duas semanas. Em seguida quem entra é Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), o pai operário na mesma fábrica, que se apresenta via discurso sindicalista engajado, a grande antítese de Tião. Greve! É o segundo elemento renovador que rompe com a rotina. Gianfrancesco Guarnieri é Otávio, mas é também Gianfrancesco Guarnieri; parece trazer-nos para o interior de sua mente, ator-autor, e oferece uma atuação curiosa em que a transição personagem fictício e personagem histórica – do intelectual engajado – parece ser constante. O “pai de família pé no chão” recebe a notícia do casório de forma sóbria, preocupada. Na mesma conversa, a mãe de família Romana (Fernanda Montenegro), é apresentada, graças à mise-en-scène – caminhando por toda a sala, impaciente – como a figura preponderante nas decisões da casa, aquela que vai estar sempre dividida entre o sonhador e otimista “Nós vamos ficar noivos” (Tião) e o realista e desconfiado “Daqui a duas semanas” (Otávio). Noivado vs. Greve (os dois motores do filme) é a dialética com a qual ela precisa lidar na própria dinâmica da casa. Romana deflagra uma conexão quase inevitável com a suburbana carioca Zulmira, de A Falecida (1965), também Fernanda Montenegro, também dirigida por Hirszman e também adaptada de uma peça de teatro (homônima, de Nelson Rodrigues). A Zulmira que se encontrava em estado de alienação, ocasionada por uma dupla decadência – a de sua classe média (Hirszman) e a de sua moral (Rodrigues)[1] – ressuscita agora como a Romana experiente, que aparenta ter superado tais anseios e apenas observa a realidade dos dois lados com a parcimônia de quem “sabe das coisas”. Enquanto ela se senta, pensa, as personagens e nós aguardamos sua síntese, que é deixada “pro dia seguinte”…

Black tie 4

Maria volta para casa e entra pela janela pois o pai opressor (“Deu muito por aí” é o que ele dirá a ela mais tarde), Jurandir (Rafael de Carvalho) nordestino migrado – que é também alcoólatra e desempregado – encontra-se na sala, assistindo TV, o símbolo por excelência da “alienação operária” e do “controle midiático burguês”. Esse mesmo pai, assim como praticamente todas as personagens, receberá do filme um tratamento particularmente humano; ele não será encerrado em um estereótipo qualquer. A mãe (Lélia Abramo) aparece deitada e demonstra a fraqueza de um corpo dedicado à extenuante vida doméstica à qual é forçada pelo ciclo de opressão que Maria pretende quebrar. O irmão de Maria é Bié, interpretado por Fernando Ramos da Silva, nome que não aparece aqui entre parênteses de propósito, para restituir a ele certa singularidade diferente dos demais. Graças à sua aparição que, vista hoje, quase 40 anos depois, se torna anacronicamente fantasmagórica, o filme nos obriga a uma reflexão que extrapola sua dinâmica narrativa interna. Na iconografia brasileira Fernando é também Pixote, de Pixote, A Lei Do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco, um menino de rua de São Paulo cuja personalidade marcou o nosso imaginário oitentista. Mártir no cinema, mártir na vida, Fernando teve destino trágico semelhante ao de sua personagem: depois do sucesso relâmpago nas telas, voltaria à vida nas ruas e acabaria assassinado pela Polícia Militar de São Paulo em 1987. Um fato que não poderia passar desapercebido aqui, enquanto falamos politicamente de opressão, vida operária e violência policial, temas latentes; temas (que continuam) urgentes.

O filme caminha para momentos que chegam a ser didáticos de tão contrastantes, escancarando a oposição entre vida pessoal x engajamento político simbolizada pelo par Tião-Otávio. Inclusive, a montagem alternada – ora mostrando Tião em sua encruzilhada particular, ora Otávio lutando por melhorias sociais – torna-se o elemento da linguagem cinematográfica mais aliado ao discurso da fita. Exemplo disso é a sequência em que Tião surge jogando sinuca com o “amigo” Jesuíno (Anselmo Vasconcelos), visualmente caracterizado como o próprio “malandro da jaqueta jeans”. Um corte nos leva para a porta da fábrica, onde Otávio e o grande amigo de luta Bráulio (Milton Gonçalves), futuro mártir da causa operária, distribuem panfletos sobre a greve, mas são reprimidos pela polícia. Novo corte e voltamos para a cervejinha de Tião e Jesuíno. O malandro tenta cooptá-lo para ficar do lado da empresa, espionar a greve, e com isso ser promovido na fábrica. “O jeito é ficar do lado de quem manda”. A partir daí, os pares de opostos, noivado x greve / individual x coletivo, vão perseguir psicologicamente Tião, algo que marcará profundamente a interpretação de um Riccelli inspirado, sempre com um olhar ambíguo, oscilando humanamente entre a “cara de tacho” e a certeza absoluta de suas decisões.

Dos dilemas individuais passamos aos dilemas coletivos. Graças à força da montagem, passamos da sequência de um passeio quase onírico de tão relaxante de Tião com Maria, para  a cena de Otávio saindo da Associação dos Amigos do Bairro com Bráulio, na qual somos apresentados aos demais colegas de luta e a uma peça-chave para nossa leitura: Sartini (Francisco Milani). Sartini representa a contraparte de Otávio, a “esquerda dentro da esquerda”, invocada contra os métodos antiquados e burocráticos da via sindicalista, que clama pela luta nas ruas e pelo confronto direto, por isso, é tachado de impulsivo e ingênuo. O confronto entre Sartini e Otávio simboliza esse dilema do qual as esquerdas “velha” e “nova” até hoje não conseguiram se desvencilhar. Ação sindical vs. Ação violenta; articular com a instituição ou ir ao ataque frontal contra ela.

Nada de novo no front do cinema brasileiro! Essas oposições já eram elaboradas, pelo menos, desde os anos 60 com filmes como A Grande Feira (1961), de Roberto Pires, Barravento (1961), de Glauber Rocha, O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte e Sol Sobre A Lama (1963), de Alex Viany.[2] Talvez não com a mesma maturidade e apuro como o fez Leon Hirszman em 1981 – evolução proporcionada pelo tempo, pela resistência à ditadura e pela vivência com as imagens brasileiras. Por outro lado, fica evidente a não resolução de tais dilemas, apesar de tanto tempo ter passado. Debate que retorna no presente, travado entre as esquerdas de hoje, unidas pelas mesmas inquietações sociais, porém divididas quanto aos métodos distintos de ação.

De um lado, uma esquerda comprometida com as mudanças a qualquer custo e que, ao conquistar o poder, consegue implementar e perpetuar políticas sociais, mas não sem passar pelas latas de lixo do jogo político. Do outro, uma esquerda igualmente comprometida com a causa social, porém revoltada com as formas de poder já dadas e instituídas, e por isso mesmo, incapacitada de esboçar qualquer saída efetivamente propositiva. O que os filmes dos anos 60 e Eles Não Usam Black-tie nos anos 80 já problematizavam – e que continua a refletir o contexto brasileiro atual – é que ambas as esquerdas fracassaram – e fracassam – diante do poder opressor. Se algumas políticas sociais da via sindicalista são efetivadas, elas logo são aniquiladas pelo jogo político que vem “cobrar a conta”, já os anseios da via do conflito tampouco são realizados, uma vez que sua incapacidade de articular soluções factíveis parece deixá-la no mesmo lugar. Um muro aparentemente impossível de se pular, como aquele diante do qual Tião e Maria se beijam na imagem subsequente, que ocupa o enquadramento por completo. Com as demissões de operários engajados da fábrica, a tensão vai aumentando até que chega à mesa de jantar da casa da família, arena de combate e luta tão importante quanto a rua, mediada por Romana.

Black tie 1

Essa oposição continua reforçada pela montagem: mais colegas de Otávio demitidos da fábrica em uma imagem, e na seguinte o beijo do jovem casal ao som do tema principal orquestrado em versão lenta e terna. A greve oficialmente anunciada vs. o noivado cada vez mais próximo. Uma das sequências síntese – a conversa conciliadora entre pai e filho no café da manhã – demonstra mais do que a capacidade de pedir desculpas de Tião, mas sua desorientação total, seu estado de perdição, prestes a tomar decisões, privilegiando o afeto e a “família” em detrimento da ideologia política. Interessante notar o detalhe proporcionado pela direção de arte: a data no calendário de parede é 9 de outubro, mesmo dia da execução de Che Guevara na Bolívia, em 1967. O filme nos faz testemunhar a morte lenta do espírito contestador e crítico do jovem Tião.

Poucos dias antes da greve, um evento que vai deslanchar a reviravolta de Maria: o assassinato do pai, que estava se restabelecendo com um novo emprego, mas não conseguia largar o álcool. Aqui surge um dos planos mais sublimes do filme: Bié acompanha o rastro da cera ainda mole de uma vela com o dedo. Vista com distanciamento histórico, a imagem se torna uma prefiguração da morte trágica do próprio Fernando-Bié-Pixote, reavivado (eternamente) pelas imagens de seus filmes. Com a morte da grande figura opressora de sua vida, o pai, Maria agora não será mais a namorada carinhosa do impositivo Tião, e passa a tratá-lo com sobriedade. Mais tarde, Maria afrontará o machismo de Tião – que a agride com um “não tô pedindo, tô mandando… Eu não quero mulher minha metida em rolo”. Para espanto e surpresa de Tião, seu poder vai diminuindo em seu pequeno núcleo familiar. Mas, não só isso: ele perde sua aliada mais próxima ao marasmo e à sobreposição da individualidade sobre o coletivo. Essa atitude antecipa seu posicionamento no final da fita, quando ela opõe o “Meu anjo” dele com o seu “Anjo é o caralho!”. O ciclo que rendeu Romana e sua mãe como mulheres oprimidas em casa não vai render Maria, que escancara na cara do Tião individualista o seu ideal de uma “mulherzinha fazendo uma comidinha gostosa”, desarmando-o assim por completo. Acontece que nada é tão simples e o olhar que Hirszman extrai de Ricelli é precioso, deflagra não sua covardia (óbvia para uma leitura mais rasa e imediata), mas também toda a sua dúvida, sua desorientação, no fundo, sua infantilidade de aspirar pela vida burguesa da “comidinha gostosa”. Sua resposta: a força bruta e um tapa covarde no rosto de Maria, grávida.

Pressentindo o confronto, Romana apela para as cartas e faz ecoar o misticismo da falecida (novamente ressuscitada) Zulmira de 1965 que, na sequência de abertura, se consulta com uma cartomante para conhecer seu destino. Assim como em A Falecida, a previsão negativa se confirma e a greve explode apenas para evidenciar a impotência da classe operária, minada pelas próprias forças que se opõem internamente. Fracassado, violentado pela polícia, Otávio ainda testemunha a traição de Tião, o que nos leva para o derradeiro confronto entre pai e filho. O papo no quintal da casa que sintetiza o conflito entre os dois. A mise-en-scène aqui novamente toma posição, se faz política. Tião, rejeitado e humilhado pela namorada e pelos companheiros do pai, está agachado, de cara para o chão enquanto Otávio surge de cima, em pé e firme, mesmo depois de apanhar no DOPs. A camisa azul de operário une os dois. “Não é traidor por covardia, é traidor por convicção” diz Otávio ao fura-greve. Ainda assim, o filme expõe a ambiguidade e a confusão de Tião, ao tentar explicar que “só queria o melhor para ele e para sua nova família”. Família nova que já não existe mais. Hoje, verificamos que nem mesmo as “questões pessoais” estão imunizadas contra a política. A política não está mais restrita à fábrica, ao congresso ou às relações econômicas de trabalho. Aprendemos que o espectro político foi muito ampliado e temos consciência de que ele atravessa as relações diárias, cotidianas, familiares, comunitárias, sem excluir evidentemente as tradicionais das cidadãs e cidadãos com o Estado e dos Estados entre si (internacionalmente). Não é possível mais defender aquela posição do velho jargão: “entre amigos não se fala de política nem de futebol” que, no filme, é nitidamente combatido. É inútil tentar não “falar de política”, dela não se escapa. Finalmente, Otávio desce do morrinho e o vemos na mesma altura de Tião. É, afinal, a troca de “questões pessoais”.

Black tie 2

Tião vai embora, Otávio fica, Bráulio – homem negro – é assassinado. Com a penúltima sequência, talvez a mais lembrada de Eles Não Usam Black-tie, em que Romana separa os grãos de feijão ruins dos bons, Hirszman metaforiza visualmente a luta social que separa também “verdadeiras/verdadeiros” de “falsas/falsos” militantes. O som de cada grão caindo em sua bacia parece simbolizar a escolha “um a um” de quem de fato levanta as bandeiras da luta. O que poderia parecer óbvio, não é, e o filme reabre mais uma ferida. Em tempos de Lei da Terceirização aprovada e golpes diários contra os mesmos trabalhadores e trabalhadoras de 1958, 1981 e 2017; em tempos de uma esquerda que continua cada vez mais dividida e distante; em tempos que pedem com urgência por mais política nas “conversas de quintal”; cabe retornar a essas imagens, perguntar a elas e a nós mesmas e mesmos: afinal, quais são os grãos que entram na bacia de Romana?

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[1] Essa dupla via foi analisada por Jean-Claude Bernardet, em “Brasil em tempo de cinema”, de 1967.

[2] Fenômeno destacado, mais uma vez, por Bernardet no livro  Brasil em tempo de cinema (1967).

 

 

São Bernardo (1972)


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O meu peito se perdeu

Roberto Cotta

Sopesou os ovos, esboçou um meio sorriso e, fazendo uma expressão que sabia que jamais faria diante de qualquer pessoa, nem mesmo diante do espelho, começou a masturbar-se à janela, mal podendo conter a vontade de gritar e urrar, pois que se masturbava por tudo aquilo que era infinitamente seu, os negros, as negras, as outras pessoas, o mundo, o navio a vapor, as árvores, a escuridão, os animais e o próprio chão da fazenda.

(João Ubaldo Ribeiro, “Viva o Povo Brasileiro”)

De tudo que já foi dito sobre os primores de São Bernardo, seja do livro ou do filme, nada se mantém tão inescapável aos olhos quanto o peso da desgraça. No romance escrito por Graciliano Ramos, o malogro de Paulo Honório se concretiza em dois caminhos sem volta. Primeiro, na decadência econômica de sua fazenda, cuja obsessão de posse é seu combustível de vida. Depois, na dificuldade cada vez mais evidente de empreender a escrita de seu livro de memórias, subterfúgio para entendermos o modo seco e bronco como enxerga o mundo.

Já na adaptação de Leon Hirszman, a ruína definitiva se confirma por meio da sobrevivência, conforme a cerca de arame farpado que separa ascensão e declínio se afrouxa e, enfim, desaba. É pelo fato de Paulo Honório (Othon Bastos) permanecer vivo, firme diante das derrotas, que São Bernardo (1972) desgoverna nossa noção de fracasso. Apartado do mundo que erguera, não lhe resta mais a condescendência dos outros nem o desfrute das glórias passadas. À medida que a solidão o corrói, a propriedade vigora, ganhando corpo próprio e desgrudando-se de seus comandos. E não há nada a ser feito, restando-lhe apenas a necessidade de encarar a penitência da vida e a distância longínqua do leito de morte.

O filme é composto por omissões que nos orientam de modo mais crível que a narração do protagonista. Paulo Honório atesta que sua saúde jamais fora tão próspera, e que a altivez sobre os empregados nunca se mostrara tão austera, mas o que vemos é seu rosto sorumbático diante da penumbra, sem a submissão daqueles que um dia o cercaram. A menção à crise econômica é relatada numas poucas palavras, por ora esmagadas pelo canto lamentoso dos trabalhadores na lavoura, num dos momentos mais esplendorosos do cinema brasileiro.

O falecimento de sua esposa Madalena (Isabel Ribeiro) também é rondado por supressões. As pessoas se amontoam ao redor do cadáver frio enquanto o bebê recém-nascido chora. Quando o marido chega no quarto, depara-se com o velório em curso. A causa da morte é devidamente omitida. pois enquanto Madalena morria, tal qual fenda no tempo, observamos Paulo Honório mergulhar desnudo sobre a correnteza do rio, tentando limpar-se do massacre cotidiano imposto à companheira. A evidência do suicídio não transparece, mas a lacuna deixada pela morte o torna irrevogável. Não é possível imaginar outro fim a Madalena. Seu desfecho trágico é a conclusão de um suplício, uma morte a mais na conta de Paulo Honório, dessa vez um assassinato mitigado, escorrido pela convivência dos anos de matrimônio que ele geriu como latifúndio.

Nem no maior ato de coragem, Madalena é capaz de estar no centro das atenções. Bem como o córrego que divide a fazenda, sua presença só funciona como ponto de corte, divisa perfeitamente justa entre sofrimento e razão. E isso transforma em desespero o desejo incessante de Paulo Honório em possuir tudo e a todos. Quando mencionada pela primeira vez, a imagem de Madalena é fabulada: os homens da alta roda tentam descobrir sua idade (20, 25, 30 anos…), e o cálculo feito por eles não é lá diferente de uma disputa por cabeças de gado num leilão. Nesse momento, confirma-se o empreendedorismo impregnado em Paulo Honório. A obsessão em possuir a fazenda de São Bernardo logo se confunde com o desejo de tornar Madalena uma propriedade sua. A personagem não demora em ser posse consumada, mas aos poucos desestrutura os postulados de ordem impostos, estabelecendo uma tentativa de diálogo com os trabalhadores da fazenda.  A irritação de Paulo Honório logo se evidencia, promovendo total desconfiança, enquanto os ciúmes em relação à Madalena esmigalham sua aparente lucidez gestora. A razão se perde, o coração se apaga e a perpetuação do poder o destroça.

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O prenúncio da ideia de posse já nos é entregue na abertura do filme. Ouvimos os ruídos lamuriosos de Caetano Veloso, cujos incompreensíveis cantos se repetem como espécie de luto associado ao martírio de Madalena. Os créditos aparecem sobrepostos a uma nota de 5 mil-réis, onde vemos duas mulheres ao redor de uma angelical criança. De forma alegórica, próximas ao valor impresso na cédula, essas moças representam a força do comércio e da indústria no Brasil dos anos 1930. São Bernardo, assim, tem seu território demarcado. Trata-se de um filme no qual o protagonista enxerga as pessoas como objetos passíveis de serem adquiridos, e a todo custo é capaz de lançar sobre elas um valor de compra e venda.

Paulo Honório veio do lodo, porém, mesmo diante da imprecisão desse solo, conseguiu se levantar, fincar os pés no chão e mudar sua conjuntura econômica, fato raro no interior alagoano desbravado pelo filme. Se os demais personagens se encontram economicamente estagnados ou à beira da bancarrota (como Luís Padilha, antigo proprietário de São Bernardo que tão logo se torna empregado da fazenda), Paulo Honório prospera de forma repentina e ganha o respeito da sociedade local. Entretanto, falta-lhe o matrimônio e a efetivação de sua permanência no mundo com a germinação da prole. Para ele, Madalena é aquilo que divide a aceitação do presente e a materialização de um futuro vislumbrado.

O controle imposto por Paulo Honório estraçalha Madalena, tornando seu andar torto, seu olhar morto e seu riso nulo. O casamento anuncia seu revés e, sob a égide da dominação, ela pouco a pouco fenece. O jardim prometido transforma-se em campo de algodão, o campo de algodão torna-se chão de fábrica e o chão de fábrica vira sussurro fúnebre. Uma cena se sucede à outra brutalmente até que a morte venha a galope. Num determinado plano, o fascínio de Madalena em meio à plantação de algodão é interrompido pelo corte seco. No plano seguinte, vemos o olhar perdido dela tentando acompanhar o trabalho de um operário na fábrica têxtil. Em segundos, seus sonhos se dilaceram e o casamento logo se converte em tortura.

Depois disso, cada ação indica a impossibilidade de sua sobrevivência nesse mundo de aquisições. Se para Paulo Honório, Madalena acabara se tornando parte estimada de sua fazenda, pra nós, é pássaro silvestre trancafiado na gaiola à espera da morte. Madalena não resiste à chegada da foice, abraça-a antes que o destino lhe reserve mau agouro. Já Paulo Honório permanece de olhos abertos, mesmo depois que a luz se apaga. A distinção entre coragem e covardia nunca foi tão bem traduzida como nos fins reservados a esses dois personagens.

O filme é predominantemente composto por uma planificação estruturada em tableau, quase sempre ancorada em um posicionamento estático de câmera, que observa os personagens muitas vezes à distância e estabelece uma perspectiva discursiva que se contrapõe à narração de Paulo Honório (no começo do filme, o protagonista nos revela ter sido guia de cego para, em seguida, tentar nos guiar como se não enxergássemos aquilo que ele mostra). Nesse sentido, a mise en scène se constrói mediante uma articulação dissonante de perspectivas, cujas fronteiras segregam as diferenças entre as ações narradas e os gestos encenados.

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Paulo Honório fala, analisa, mas nem sempre vemos aquilo que ele acredita ter visto, embora percebamos em suas reações o fardo que carrega por imposição própria. Com ele, não partilhamos de um ponto de vista confiável, apesar de sua tentativa extenuante de condução dos fatos. Além do mais, o filme se engendra num formalismo rigoroso, e essa rigidez dialoga, sobretudo, com a auto-flagelação constante de Paulo Honório – e a punição que ele impõe a todos que lhe são subalternos – para que seus objetivos sejam obtidos, numa relação de dor e prazer que define o trabalho árduo, o pulso firme e a esperteza como os únicos elementos dignos de nobreza.

As escolhas estruturais feitas por Hirszman congregam a precisão monumental da composição dos planos, enquadramentos e angulações de câmera, algo próximo ao desejo controlador de Paulo Honório, com a impressionante economia existente nos gestos de Madelana, a beleza primitiva dos cantos de trabalho e as marcas do tempo que cortam as faces sofridas dos agricultores, apresentadas numa série de retratos na parte final do filme, a despeito de uma possível fratura de sua própria ambientação temporal. Afinal, temos aqui uma representação do Nordeste dos anos 1930 ou um arremedo de Brasil dos anos 1970?

Num primeiro momento, diria que as duas coisas, até porque, na obra de Hirszman, sempre interessa a permanência dos atos e seus impactos futuros. A desdramatização presente no modo como atrizes e atores pronunciam suas falas, movimentam seus corpos, gesticulam em cena e lançam seus olhares sobre outros personagens ou para o extracampo da imagem permite que o filme acumule um caráter extemporâneo. Por isso mesmo, é bastante tentadora a possibilidade de aproximação dos acontecimentos narrados durante o governo provisório de Getúlio Vargas (que tempos depois voltou ao poder e se estendeu por mais de uma década) com as situações vividas quando o filme foi feito, à época da ditadura militar, possivelmente confrontando o discurso estabelecido pelo poder dominante nos desdobramentos impulsionados pelo golpe.

Tendo em vista que o cineasta em questão é alguém tão engajado como Hirszman, cuja obra em grande parte confronta as relações de poder e os mecanismos de resistência no período em que vigorou o regime militar, tal analogia torna-se ainda mais sedutora. No entanto, São Bernardo apresenta-se como um filme consciente da impossibilidade de realizar qualquer curva histórica forçada. Nesse sentido, é preciso entender os valores de influência de um tempo sobre o outro. A prova disso é que as transformações de valores das classes populares, de fato, nunca conseguem ser concluídas. Paulo Honório surge da lama, tenta fugir dela, mas a ela sempre retorna, chafurdando-se em sua própria ignorância. Madalena busca resistir ao domínio do marido, articula estratégias de luta, porém sucumbe à própria fadiga trazida por essas tentativas de mudança. De soslaio, a consciência de classe visa ser discutida junto aos trabalhadores, é vez ou outra debatida por Madalena, Luís Padilha (Nildo Parente), Padre Silvestre (Jofre Soares), contudo é interrompida pela lógica dominante, de modo que a autonomia do proletariado não parece passível de ser alcançada. Nada mais definidor do que foram os anos 1930 e seus mecanismos frontais de repressão.

Na década de 1970, quando a alegoria passa a ser combustível quase totalizante na arte brasileira, as sementes da resistência também são a tônica de vida de certa classe intelectual que habita os grandes centros urbanos, indissolúvel mesmo na derrota, como percebemos no engajamento político do próprio Hirszman, nas proposições socioculturais existentes em cada filme seu e no modo como capturou o espírito de sua época, sempre à mira das possibilidades de transformação do país. Esse germe favoreceu a consolidação de classes operárias cada vez mais cientes das relações entre poder e servilismo, dominação e persistência, apriosionamento e liberdade. Apesar de todo o controle político e das opressões sofridas, o proletariado encontrou maneiras de sustentação de sua capacidade de luta, promovendo, bem ou mal, cisões que se desdobraram nas formas de condução do poder evidenciadas desde a redemocratização.

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Em São Bernardo, o poder e a fisiologia de suas relações se escancaram na aridez de Paulo Honório e nas contradições que habitam o personagem, vítima e algoz de si mesmo. O fascínio pelo socialismo paira no horizonte e ganha algum tipo de correspondência com os ideias dos anos 1970, também numa lógica verticalmente contraditória de compreensão sobre quem orienta a luta e quem, de fato, se apresenta no front de batalha. Porém, é curioso pensar que a única inexistência de contradição esteja justamente ligada à posse da terra, metáfora absoluta de todos os poderes. Enquanto todo mundo falece, mesmo com os corpos mantidos vivos, o solo arraigado da fazenda e a potência de seus hectares sustentam a autoridade até hoje intacta, independente de quem tenha governado esse ostensivo latifúndio nas décadas seguintes. Está aí o gesto de permanência definitivo que torna São Bernardo a obra impermeável que é, representação de cada desgraça da terra que mastiga e engole seus personagens.