Editorial Edição #02

E eis que Rocinante completa uma nova missão!

Com equipe ampliada, maturando antigas propostas e abrindo novos caminhos, chegamos a um segundo número, cientes de que o percurso rumo a uma identidade bem consolidada é longo, mas também rico e prazeroso.

E é justamente o entusiasmo cinéfilo que nos guia o responsável por termos eleito o cinema da Boca do Lixo como tema central da corrente edição. Possuindo como representantes autores tão distintos quanto Carlos Reichenbach, José Mojica Marins, Jean Garrett, Claudio Cunha, Adriano Stuart, John Doo, Francisco Cavalcati e Fauzi Mansur, o cinema da Boca, ainda menos analisado do que merece, destaca-se como um estranho e fascinante arquipélago em meio ao oceano de produções cinematográficas brasileiras. A um só tempo populares e experimentais, coniventes e radicais, extremamente inventivas e, sob diversos aspectos, formulaicas, as obras produzidas na famosa região boêmia de São Paulo ao longo de, sobretudo, a década de 70, são impressionantes exemplos de inventividade. Por seu conjunto, ecos godardianos se cruzam à ética e motivos exploitation, enquanto gêneros clássicos são homenageados e antropofagicamente subvertidos.

Em nossa sessão Temáticos, críticas de cinco grandes filmes do período (A Força dos Sentidos, de Garrett, Ritual dos Sádicos, de Mojica, A Noite do Desejo, de Mansur, Lilian M: Relatório Confidencial, de Reichenbach e Palácio de Vênus, de Ody Fraga) dividem espaço com três ensaios, dedicados ao exame da relação entre os cineastas da Boca e a censura, das representações do feminino na obra de Garrett e de particularidades do subgênero a que se convencionou chamar de “pornochanchada”.

Para além de tais textos, apresentamos também críticas de lançamentos que traçam um panorama do que, atualmente, de mais interessante se encontra disponível nas salas de exibição brasileiras: dos novos filmes de Woody Allen e Pedro Almodóvar a Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert; do tocante As Montanhas se Separam, de Jia Zhang-Ke ao divertido blockbuster americano Dois Caras Legais; do último Hong Sang-Soo ao último Sokurov.

Finalmente, na sessão Livres, uma crítica de Assuntina das Amérikas, dirigido pelo autor carioca Luiz Rosemberg Filho, estabelece diálogo com três ensaios (dotados de naturezas bastante diversas) relacionados a aspectos das obras do documentarista Thom Andersen e das diretoras Naomi Kawase e Helena Ignez – a eterna mulher de todos!

A família cresce, os interesses se ampliam e as reflexões se desdobram. Completamos uma segunda etapa.

Fábio Feldman

Dois Caras Legais (2016), de Shane Black

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O Bom, o Mau e o Tolo

Daniel Rodriguez

Dois Caras Legais (2016) é o novo longa-metragem dirigido e parcialmente roteirizado por Shane Black, figura consideravelmente desconhecida pelo grande público, apesar do envolvimento direto em filmes bem populares. Ele é, por exemplo, o criador da série Máquina Mortífera, tendo roteirizado todas as quatro partes da franquia. Composta basicamente por “filmes pipoca”, sua trajetória enquanto roteirista é marcada por uma atenção especial à dinâmica entre personagens, costumeiramente carregada de rispidez e sarcasmo. Seus protagonistas são, geralmente, um anti-herói e um tolo, forçados a se unir a fim de resolver diversas pelejas, de forma a cair nas graças do público mais descompromissado. Além de em Máquina Mortífera, esse estilo se faz presente, em maior ou menor grau, em quase todos os outros trabalhos do roteirista, que incluem também O Último Boy Scout (1991) e O Último Grande Herói (1993), dentre outros. É ainda perceptível a forma com que ele frequentemente trabalha com “heróis” de sua época: Mel Gibson, Bruce Willis, Arnold Schwarzenegger e, mais atualmente, Robert Downey Jr.

Após quase vinte anos roteirizando para cinema, Black finalmente assumiu a cadeira de direção pela primeira vez com o neo-noir satírico Beijos e Tiros (2005), que obteve certo respaldo crítico e até um status cult, mas não atingiu o esperado retorno do público. Um hiato de 8 anos se estendeu, no qual Black praticamente não trabalhou na indústria, até que, em 2013, ele voltou a trabalhar com o astro Robert Downey Jr. quando assumiu o comando do terceiro filme da franquia Homem de Ferro. Neste último trabalho, Black introduziu seus temas recorrentes dentro de forma mais característica do cinema blockbuster. A submissão ao grandioso projeto da Marvel resultou em um filme confuso e que, ao contrário de Beijos e Tiros, desagradou a crítica, mas alcançou um sucesso estrondoso de público, tornando-se a décima maior bilheteria da história. Impulsionado pela confiança e prestígio obtidos com o sucesso estrondoso de Homem de Ferro 3, Black conseguiu realizar Dois Caras Legais, filme que mistura com harmonia sua pegada sempre perpassada por humor ácido e pouco convencional, e violência exagerada, porém utilizando uma estética bem atual, de fácil aceitação e personagens deveras carismáticos.

Logo no início de Dois Caras Legais, após um bizarro prólogo no qual uma atriz pornô é vítima de um acidente fatal, a dupla de protagonistas se apresenta por meio de narrações, nas quais eles próprios já se colocam como parcialmente incapazes de realizar o que lhes é demandado. Shane Black rapidamente introduz ao público a dupla de anti-heróis tão recorrente em sua obra. O primeiro é o brutamontes Jackson Healey, interpretado por Russell Crowe e o outro é o enrolado Holland March, em brilhante atuação de Ryan Gosling. Ambos são detetives particulares, atuando de formas distintas, porém igualmente ineficientes. De um lado,Holland investiga a misteriosa aparição de uma jovem até então considerada morta, enquanto, do outro, Jackson busca impedir que tal investigação avance. O confronto dos dois personagens resulta em uma terceira frente, com desdobramentos atrelados a uma grande conspiração.

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Se fosse possível isolar o núcleo da trama, sem dúvidas obteríamos uma partícula de filme noir. Jackson e Holland ocupam a posição de investigadores cínicos e de moral questionável, enquanto a femme fatale Amelia os arrasta para o epicentro de uma conspiração envolvendo assassinato, sequestro e morte, com a violência cumprindo um papel chave no desenrolar da ação. Bem, Amelia não é exatamente o que se espera de uma femme fatale, considerando que estas são notórias pela capacidade de manipulação, e a violência, por muitas vezes, está diretamente atrelada ao lado cômico do filme –de forma que as referências noir que atravessam Dois Caras Legais encontram-se sempre algo diluídas entre típicos “shaneblackismos”.

Embora a violência presente seja exagerada e se relacione com o tom de humor negro satírico do filme, em momento algum se pode dizer que seja gratuita, pois, assim como no próprio noir, existe como facilitadora para o desenvolvimento do enredo e dos personagens, que nunca passam intocados pelo confronto com a selvageria com que se deparam. Há sempre uma reação acovardada ou amedrontada, principalmente por parte do personagem de Ryan Gosling, que quebra com o paradigma super-heróico dos blockbuster se resulta na comicidade do longa. O humor, um dos elementos mais bem estabelecidos aqui, se dá tanto através dessa quebra de expectativas como da relação entre os personagens e sua situação corrente. Muito da comicidade é suscitada de forma puramente visual:a utilização de elementos presentes dentro e fora de quadro compõe planos igualmente bem elaborados e divertidos, que buscam prender a atenção do espectador durante toda sua extensão. Reside aí um dos maiores méritos de Black enquanto diretor.

Ryan Gosling, que já havia exposto seu lado cômico em filmes como A Garota Ideal(2007) e Amor a Toda Prova (2011), é igualmente responsável pela eficácia do filme em fazer rir. O ator interpreta o texto de Black com naturalidade, criando um personagem incapaz e irresponsável, e um marco em sua própria carreira. Russel Crowe está do lado menos inspirado e original da dupla, com seu brutamontes standard, mas complementa de muitas maneiras o personagem de Gosling. A relação entre os dois é típica dos roteiros de Black, conflituosa do começo ao fim, cheias de rispidez e diálogos marcados por digressões em relação à trama, com a dupla engajada em discussões sem nenhum sentido mais amplo ou sequer relevante. É importante ressaltar uma terceira figura, Holly March, que existe como articuladora dessa relação entre seu pai Holland e seu amigo Jackson. Além das duplas de heróis questionáveis, é também recorrente na obra do autor a presença de crianças como um contraponto humanizador na jornada de seus personagens. Holly não apenas cumpre esse papel, mas o faz quebrando todo e qualquer tipo de expectativa que se possa ter em relação a uma criança de doze anos e, mais especificamente, uma menina, quando, por exemplo, dirige o carro para o próprio pai, tenta contratar os serviços de Jackson para agredir uma colega de escola ou ainda quando assiste filmes pornográficos juntamente da atriz protagonista, com grande naturalidade.

Se o filme parece ter pouco apreço pelas convenções e seus personagens vivem num limiar ético, estas características casam perfeitamente com a ambientação nos anos 70, época marcada pelos filmes exploitation, a cultura dos filmes pornográficos e uma Hollywood cada vez mais em conflito com a moral e os bons costumes. A atenção dada para a recriação do período é louvável, passando pelo trabalho da direção de arte que dá conta das extravagâncias do mundo pornô, até a tipografia dos títulos que reproduz com exatidão os títulos de filmes dá época.

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Um outro artifício utilizado para tornar a ambientação mais plausível e de fácil identificação é o uso recorrente de citações visuais e auditivas em forma de televisão, manchetes e músicas correspondentes às daquela época, recurso que acaba se tornando um pouco repetitivo no decorrer do filme e que, por vezes, não tem função ou encaixe, se resumindo a um artifício plástico e esquemático, meros acenos em direção ao público para que possa notar as referências. Em Boogie Nights (1997), por exemplo, Paul Thomas Anderson usou desse mesmo recurso, contudo,buscou inseri-lo dentro do contexto e universo específicos de sua obra de forma bastante sutil, obtendo assim um resultado muito mais homogêneo. O filme de PTA guarda outras semelhanças visuais e temáticas com Dois Caras Legais, já que ambos buscaram reproduzir os anos setenta e o mundo da pornografia, especialmente em termos de figurino, cenários e cores. Ambos possuem uma estética própria, característica da mise-en-scène de seus criadores (notadamente mais bem elaborada e complexa no filme de PTA), mas há ainda um outro fator que assegura a Boogie Nights uma atmosfera análoga à da estética do período com que dialoga, que é ter sido rodado em filme, assim como era nos anos setenta, enquanto que Dois Caras Legais foi rodado em digital, o que não chega a ser um demérito, mas uma diferença curiosa.

Apesar de deixar a desejar nessa utilização dos artifícios que remetem aos anos setenta,a balança ainda pende a favor do filme. Dois Caras Legais funciona muito bem enquanto neo-noir, mas é na comédia que mais se destaca, combinando diálogos cheios de digressões, bem característicos de Black, performances marcantes, especialmente de Ryan Gosling, e um humor visual em que a quebra de expectativas se faz presente o tempo inteiro.

 

 

Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert

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Fragmentos Fluídos e Desconexos de uma Identidade

Veriana Ribeiro

Na antropologia, o processo de definição de uma identidade está relacionando com a noção de alteridade, ou seja, é necessário que exista o outro para podermos definir as características que nos tornam únicos. No filme Mãe Só Há Uma (2016) da diretora Anna Muylaert, que ficou famosa no ano passado após o sucesso de Que Horas Ela Volta? (2015), acompanhamos a jornada de Pierre (Naomi Nero) um adolescente que, através do seu conflito com os ‘estranhos’ à sua realidade, tenta descobrir quem é.

Com sua sexualidade fluida e gênero não binário, Pierre é um personagem que precisa existir. Ele se posiciona livremente entre os conceitos de homem e mulher, macho e fêmea, hétero e gay, figura que não costuma ter espaço nas produções cinematográficas, mas existe na vida real. Ele coloca em debate a questão da identidade de gênero e sexualidade desde a primeira cena, em que leva uma garota ao banheiro e durante o sexo descobrimos que usa uma calcinha.

A proposta de Muylaert é apresentar uma narração fragmentada da história de Pierre, que foi roubado quando bebê e criado por outra família até a adolescência. Inspirada pelo Caso Pedrinho, ocorrido em 1986, a diretora construiu sua narrativa – diluindo, entretanto, os momentos aparentemente mais importantes: o reencontro do filho perdido com os pais biológicos, os instantes de ternura entre irmãos, o sofrimento da mãe biológica, o conflito entre Pierre e a irmã com o fim da vida que conheciam. Um exemplo é o momento em que Pierre conhece a família biológica. Em uma história contada de forma tradicional, a narrativa se concentraria em mostrar a primeira vez que a mãe e o pai abraçariam o filho perdido, de preferência com uma trilha sonora emocionante, dando maior carga dramática ao momento. Em vez disso, segue Joca, o irmão mais novo, para fora do restaurante, se envolvendo em uma conversa que nada acrescenta para a trama. Quando ele retorna ao restaurante, o irmão já está lá, inserido ao núcleo familiar. Sem abraços, sem lágrimas. É uma cena que esconde mais do que mostra. Não temos aqui um filme sobre o reencontro de uma família: Muylaert prefere se concentrar em momentos banais.

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Ao contar a história através de elipses, a narrativa tenta representar o turbilhão na vida de Pierre, mas acaba impossibilitando uma empatia maior com os personagens e suas histórias. Como entender a saudade de Pierre pela mãe Aracy (Daniela Nefussi, que também interpreta a mãe biológica, brincando assim com o título do filme), se ela nunca aparece de forma completa na história? Não entendemos muito bem as motivações da personagem para roubar as crianças. E logo Aracy desaparece, como se não tivesse importância, sua falta não é sentida.

Como compreender a frustração dos pais biológicos se apenas vemos adultos que se recusam a conhecer o filho pródigo? Uma das cenas mais emocionantes do filme é quando Matheus Nachtergaele faz um discurso exaltado sobre o medo de perder o filho, mas em todas as outras cenas fomos apresentados a um personagem que insistia em chamar o filho pelo nome de Felipe – mesmo ele não gostando – e que se recusa em entender seus desejos e anseios.

Até a relação entre os irmãos, que é colocada como uma esperança para aquela família disfuncional, não convence.  Joca e Pierre trocam poucas palavras durante todo o filme e lidam um com o outro com indiferença até que, na última cena, compartilham um momento de ternura que não faz sentido. Perdemos a construção desse afeto entre as cenas que são escondidas pela diretora, os momentos não contados fazem falta para dar a carga emocional que a cena precisava.

No meio disso tudo, Pierre acaba transparecendo como um personagem apático, as pessoas e situações em sua volta não importam o suficiente para lhe tirar de sua zona de conforto. É apenas quando o protagonista sai desse papel, confrontando a família, os valores e a situação em que foi inserido, que o filme parece funcionar. Pena que isso só ocorra no final do filme, quando o jovem decide experimentar um vestido ao sair com os pais – que tentam controlar sua forma de se vestir, agir e se comportar. Essa é uma afronta que funciona na tela, tendo uma dose certa de humor e dramaticidade durante toda a cena.

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Mãe Só Há Uma tinha potencial para contar uma grande história, mas não conseguiu. Ao mesmo tempo que tem um discurso político forte – aborda sexualidade, identidade de gênero, juventude, classes sociais – o filme falha em nos manter conectados com seus personagens.  Tentando agradar a gregos e troianos, Muylaert se perde em uma história fragmentada, porém narrativa.  Cheia de cenas simbólicas, mas sem nunca chegar ao cerne da questão. Assim, o longa-metragem enfrenta o mesmo problema que seu personagem principal: entre referências e signos confusos, ainda não descobriu sua identidade.

Julieta (2016), de Pedro Almodóvar

Julieta

Outra(s) Julieta(s)

Odorico Leal

Na abertura de Julieta (2016), mais recente produção de Pedro Almodóvar, a protagonista homônima prepara as malas: está de partida para Portugal, seguindo a promessa de uma vida nova ao lado de Lorenzo, o amante maduro e diligente interpretado aqui por Darío Grandinetti, presente em Fale com Ela (2002). Julieta, que, no passado, atuara como professora de Literatura Grega, quer levar todos os livros na mudança: diz que a ideia de comprá-los de novo faz com que se sinta velha, talvez porque é sobretudo na juventude que os livros parecem objetos tão preciosos, tão duramente adquiridos – descartá-los é um sacrilégio. Esse pequeno detalhe na abertura do filme é uma observação sensível sobre o tipo de estratégia a que recorremos para preservar algo das nossas vidas que nos parece vital e que, ao mesmo tempo, parece fugir de nós o tempo todo.

O comentário sobre os livros é um detalhe, mas é também um traço importante que compõe a caracterização da protagonista: Julieta tem um passado irresolvido e, enquanto não der conta dele, não pode se entregar ao presente. Numa aula sobre a Odisseia, a protagonista explica o dilema de Odisseu diante das ofertas de Calipso: a deusa lhe oferece tudo, até mesmo a eternidade, cobiçada por todos os heróis gregos; basta que ele permaneça em sua ilha e esqueça o regresso à Ítaca. Na abertura do filme, Julieta enfrenta dilema parecido e, como Odisseu, nenhuma promessa pode satisfazê-la. O evento catalisador aqui é um encontro com Beatriz, uma amiga de infância da filha Antía. A amiga conta que avistara Antía em Madrid – estava acompanhada de três filhos. Diante da notícia, Julieta cancela a viagem. Logo ficamos sabendo que Julieta não vê a filha há mais de uma década. Com isso, não só abdica da mudança para Portugal, como regressa ainda mais para dentro do passado: às vésperas da viagem, rompe com Lorenzo, abandona o apartamento onde mora e aluga outro no mesmo prédio em que vivera com a Antía. Uma vez devidamente instalada no passado, decide narrá-lo, como uma forma de expurgá-lo, redigindo uma longa carta endereçada à filha perdida. A partir de então, o filme salta entre dois tempos e duas Julietas, interpretadas por Adriana Ugarte, na juventude, e Emma Suárez, no tempo presente.

Toda a narrativa do passado que se segue é contada da perspectiva da protagonista, que escreve a carta, de modo que o que vemos na tela é o que a protagonista recorda. Numa viagem de trem, a jovem Julieta conhece o pescador Xoan. O encontro é marcado por um mau agouro: um solitário se suicida, saltando do trem. Por tê-lo evitado pouco antes, Julieta sente-se culpada pela morte. Na mesma noite, numa cabine do trem, Julieta e Xoan fazem amor. O enlace tem ainda outro interdito de mau agouro: Xoan é casado; sua esposa vive em estado de coma, há seis anos. Mais adiante, a esposa de Xoan morre, e o pescador se casa com a jovem professora de Literatura Grega.

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O mar – “Πόντος”, mar aberto, caminho do mar – é uma constante em suas vidas. Concebem uma filha, Antía. Esse parece ser o único período de plenitude na vida de Julieta: os primeiros anos com Xoan e a filha, no pequeno e idílico vilarejo de pescadores. A filha nutre uma adoração profunda pelo pai; sob sua influência, ama o mar e a pesca. Rondam esse núcleo familiar duas figuras ambíguas, que funcionam ora como elementos de cooperação, ora como antagonistas: Ava, uma artesã isolada, velha amiga e ocasional amante de Xoan, e Marian, que cuida da casa, interpretada por Rossy de Palma, presença recorrente nos filmes de Almodóvar, que, aqui, serve tanto como alívio cômico da história, bem como instigadora do desastre: é ela quem conta à Julieta sobre antigos encontros amorosos de Xoan e Ava. Depois de uma discussão acalorada, Xoan sai para pescar no mar aberto e é engolido por uma tempestade. O encontro, que se iniciara sob o auguro da morte do suicida no trem e da esposa em coma, encerra-se na morte prematura de Xoan.

Chegamos, assim, ao foco temático do novo filme de Almodóvar, que se apresenta como um estudo sobre a força aprisionadora da culpa, mas que também, seguindo o sopro grego que o atravessa, é um comentário sobre a impotência humana diante dos acasos trágicos. Psicologicamente, os modernos dispensam o acaso, internalizando o trágico como culpa – é o que faz, aqui, a professora de Literatura Grega.

Depois da morte de Xoan, Julieta muda-se para Madrid com Antía. Diante da longa e profunda depressão da mãe, e inspirada pela amizade com Beatriz, Antía é quem se encarrega de pôr a vida em movimento. Nessa dinâmica, Julieta desenvolve uma dependência doentia. Os anos se passam e, aos dezoito anos, a filha viaja para um retiro espiritual e nunca regressa. Julieta não tem notícia alguma, anos a fio, até o encontro mencionado com Beatriz, no começo da película.

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O filme desenvolve duas narrativas de investigação: Julieta em busca da verdade de sua história com a filha e, bem mais incidentalmente, Lorenzo em busca da verdade de Julieta. As celebradas cores de Almodóvar retornam, agora inseridas numa atmosfera de mistério, numa espécie de síntese possível entre a sensualidade colorida da estética do cineasta espanhol e a aura sombria do filme noir. O mistério sobre o paradeiro de Antía prende – ou elude – o espectador, e as cenas de Julieta devastada vagando por Madrid – especialmente a sequência na quadra de basquete onde a filha brincava na adolescência – são comoventes pela interpretação de Emma Suarez. Contudo, algo no filme não convence. O único personagem de relevo é a própria Julieta – os demais são meros tipos, rascunhos de gente, que, no caso de Xoan, o pescador idílico, beiram a simples conveniência. Há, de fato, uma contradição nas propostas de representação do filme: o presente absolutamente realista contrasta demais com o passado esquemático e caricato, que funciona como mero pretexto. O próprio motivo da morte de Xoan numa tempestade após uma discussão conjugal é tão clichê e banal que não fornece material espiritual suficiente para a composição do drama interior da protagonista.

A princípio, essa centralidade de Julieta poderia ser o ponto de partida para um mergulho doloroso na psicologia da culpa; isso demandaria, contudo, uma investigação muito mais densa, coisa de que Almodóvar se exime. Paradoxalmente, o filme é uma experiência leve, que insinua e promete mais do que, de fato, entrega. Não por acaso, encerra-se antes do encontro entre Julieta e Antía, sequência inexistente que demandaria uma força dramática que o filme não comporta. Nada disso é estranho à obra de Almodóvar e, de certa forma, segue na mesma linha de A Pele que Habito (2011), outro filme sem grandes consequências. Naquele caso, contudo, a trama original e intrigante lhe justificava o interesse. Julieta (2015), contudo, parece desde já destinado a ser referido como obra menor do cineasta espanhol.

Francofonia (2016), de Aleksandr Sokurov

 

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A arte contra os canhões

Douglas König de Oliveira

O renomado cineasta russo Aleksandr Sokurov toma como epicentro da meditação de seu mais recente filme, Francofonia (2016), o espaço do museu do Louvre, localizado em Paris. O ambiente documentado (mas também dramatizado em alguns trechos) é o da ocupação alemã da capital francesa durante a Segunda Grande Guerra, um de seus mais emblemáticos episódios. Dentre os incontáveis personagens (entre eles o próprio diretor, a Europa, e mesmo o mundo em guerra), destacam-se as trajetórias do francês Jacques Jaujard, diretor do Museu do Louvre, e do alemão Franz Wolff-Metternich, nomeado por Hitler co-diretor quando da invasão. A arriscada colaboração destes dois para preservação do acervo, burlando a vigilância dos nazistas e a busca pelas obras importantes enviadas a castelos espalhados por toda a França já em 1938, às vésperas da eclosão do conflito, é o fio condutor do filme.

Sokurov opta por uma grande diversidade de registros visuais, desde amplas tomadas panorâmicas do edifício do museu, filmagens e fotografias da época (inclusive o passeio de Hitler pela Paris declarada cidade aberta, ainda hoje impactante), além da dramatização dos episódios que envolvem o relacionamento de Jaujard e Wolff-Metternich, que reproduz o aspecto deteriorado e o tom sépia dos filmes documentais, e ainda, curiosamente, a banda óptica que registra e reproduz o som na película. Imagens de um navio enfrentando uma tempestade em alto-mar, carregado de obras de arte encaixotadas, parecem atualizar a aventura da exportação dos itens do museu, mas também sugerem os perigosa que a cultura está submetida se ficar vinculada às dinâmicas políticas, intensificadas em situações de guerra, ou de crise, como na Europa contemporânea.

Essa sucessão harmoniosa de materiais visuais tem um encadeamento bastante aberto, incluindo questionamentos do diretor/narrador sobre a vocação da arte e seus artífices, e aparições alegóricas dos personagens de Napoleão Bonaparte e de Marianne, figura que representa a República Francesa e seus valores de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Em meio a isso, várias obras do museu são mostradas, e nas pinturas com a câmera num movimento lânguido, tornando as figuras planas quase que tridimensionais. O registro também não evita a situação de quando a luz da filmagem reflete nos vernizes dos quadros, causando um interessante efeito de distanciamento e relevo. Mas no terço final o ritmo de criação diminui, como que para arrematar a ideia central do filme, até aquele momento pulverizada nas sequencias, mas de forma perfeitamente complementar, numa intenção mais ensaística que didática. O destino dos protagonistas é enfatizado de forma bastante clara ao final, assim como o valor de suas ações, movidos pela paixão à arte e acima das divergências políticas.

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A estrutura visual remete inicialmente a O Espelho (1975), de Andrei Tarkovski, principal referência de Sokurov e responsável por auxiliá-lo no início de carreira cinematográfica, num regime de financiamento estatal da antiga União Soviética afeito à censura de autores com uma expressão mais poética que popular em seu cinema. O que Tarkovski realiza, trazendo para seu filme todos os materiais que considerava integrarem seu corte existencial mais íntimo, desde filmagens documentais da época de sua juventude, até mesmo pessoas próximas de seu círculo pessoal (sua mãe, no caso) e também dramatizando episódios de sua infância, Sokurov realiza tendo como personagem principal o museu do Louvre, e não a sua persona. Sokurov age mais reportando os fatos e valores de seus temas, como foi também a característica de sua incursão pelo museu russo Hermitage em Arca Russa (2002), mesmo que em Francofonia esteja pessoalmente em muitos trechos e locuções. O diretor é guiado pela erudição mais do que pelas impressões pessoais, diferentemente do lirismo confessional de Tarkovski, assim como difere da produção mais atual de Godard (em que se assemelha esteticamente na crueza da imagem do navio à deriva na tela do computador de sua casa) por não explicitar uma visão política clara. Desta forma, seu discurso, ao final,parece perder a contundência e a complexidade ao propor uma síntese em que a arte (o bem) resiste e vence o poder (o mal). Recursos como os créditos completos logo no inicio do filme, o limbo de espectros e ruídos que o encerra, ou o tratamento envelhecido das dramatizações, figuram mais como dispositivos cosméticos do que itens que compõe uma concepção e a potencializam.

Apesar da grande beleza e encantamento cinemático das tomadas e composições, além da ótima interpretação do elenco, o filme, por se tratar de algo entre o documental e o ensaístico, carece da força de um autor que tenha algo a dizer além da crônica sutil dos fatos. O pomposo título de Francofonia, que é a manifestação da língua francesa por todo o mundo (veículo, portanto, de toda uma cultura), não faz jus ao recorte que Sokurov propõe, que ora é muito especifico dos fatos ocorridos na Segunda Guerra, ora uma meditação muito ampla em relação à arte, que caberia em qualquer tempo e lugar. Assim como em Arca Russa, podemos considerar Sokurov um ótimo guia turístico, remontando de forma hábil os acontecimentos históricos e os feitos artísticos hoje preservados nos museus. Porém, o discurso cinematográfico tem uma lógica em que os materiais visuais e sonoros trabalham para corroborar uma ideia, e apesar de isso parecer ter sido atingido em Francofonia com correção, a força do encadeamento de cenas iniciais prometia algo muito mais ousado e persuasivo. Não superou,apesar de momentos de intensa inspiração, o didatismo dos filmes institucionais.

Certo Agora, Errado Antes (2015), de Hong Sang-Soo

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Elogio ao espontâneo

João Campos

I

Em seu 18º filme, Hong Sang-soo explora novamente a dimensão dos encontros fortuitos. Recorrente em suas obras, essa dimensão é explorada de maneira brilhante em Certo Agora, Errado Antes (2015). Com efeito, o diretor sul-coreano nos apresenta aqui um belíssimo exercício de mise-en-scène, em que dois blocos narrativos se justapõem de maneira tensionada. Nesse texto, busco explorar essas tensões estéticas, analisando alguns aspectos formais presentes no filme com o objetivo de demonstrar como a moralidade se infiltra em sua própria forma, proporcionando um interessante deslocamento narrativo. Considero este deslocamento o principal processo do filme, fonte – ao menos parcial – de sua beleza e sedução.

Apesar de explorar encontros fortuitos, Hong Sang-soo não deixa nada ao acaso. Uma espécie de obsessão pelas escolhas da vida e suas consequências atravessa a filmografia do cineasta. Em sua vasta obra, somos levados a buscar – e encontrar! – a beleza dos pequenos gestos, das conversas gratuitas, dos mal-entendidos e, não poderia deixar de citar, dos tragos bem-vindos – sem dúvida, um elemento importante no cinema de Hong Sang-soo é a bebedeira, o Soju surge nas obras dele como um elixir dos deuses, bebido constante e excessivamente por suas personagens. “O álcool está uma delícia!”, “Saúde!”, “Um brinde!”.

Outra característica estética interessante e recorrente nos filmes de Hong Sang-soo é a construção de uma mise-en-scène bastante marcada em ambientes fixos. O encontro entre duas ou mais pessoas em lugares como restaurantes, cafés, bares, casas e palácios marca sua obra, desvelando os prazeres de estar e fazer junto. Novamente, a dimensão do encontro é evocada. Em Certo Agora, Errado Antes, as escolhas das personagens têm importantes conseqüências de mise-en-scène, o que produz sutis – porém significativas – transformações, tanto no desenrolar dos acontecimentos como nas imagens que nos envolvem e afetam. Com efeito, uma característica central do cinema de Hong Sang-soo é a sutiliza com que trata as imagens. Percebemos a importância disso quando analisamos o uso ostensivo de zooms, principalmente aqueles pequenos e tímidos, espécie de marca autoral do cineasta. Tais procedimentos fazem com que o espectador pareça um estranho curioso buscando escutar e enxergar melhor o que está acontecendo logo ao lado. Com efeito, seus tímidos zooms parecem elevar a situação, enlaçar o quadro, formando a expectativa de que algo importante acontecerá. Nem sempre isso acontece, mas uma coisa é certa: o uso do zoom imputa importância a todo e qualquer acontecimento. Frustrando expectativas, Hong Sang-soo nos mostra a beleza do banal.

Como comentei acima, a obra é dividida em duas partes, intituladas, curiosa e respectivamente, “Right Then, Wrong Now” e “Right Now, Wrong Then”. Esse detalhe, como veremos, é de suma importância para a análise que proponho.

II

Ao chegar com um dia de antecedência para a projeção de seu novo filme, o famoso diretor Ham Chumsu observa uma bela mulher entrando num palácio. Entediado, o diretor entra no local e se senta no chão, próximo às colunas da construção. Nesse momento se dá o encontro entre Ham Chumsu e a artista plástica Yoon Hee-jung, exatamente a mulher que outrora encantou seus olhos. A tímida conversa entre os dois se desdobra em diversas situações, nas quais as personagens vão se conhecendo e se apaixonando. Nesse ponto podemos destacar dois elementos recorrentes na obra de Hong Sang-soo: os trânsitos (chegada, partida etc.) e os afetos flutuantes. Bastante explorados pelo autor, esses temas contribuem para a ambientação do filme, caracterizada pelo passageiro e, não obstante, definitivo. Ham Chumsu e Yoon Hee-jung desenvolvem afetos que, possivelmente, marcarão suas vidas para sempre.

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As duas partes que estruturam o filme são quase idênticas, de modo que ocorrem pequenas mudanças na passagem de uma à outra, como o posicionamento da câmera em algumas cenas, pequenas variações de fotografia, roteiro, cores (a cor da tinta que Yoon Heejung utiliza em sua pintura, por exemplo, se modifica), inclusão de cenas que não encontramos na primeira parte e outras sutis modificações. A mais importante, de acordo com o meu argumento, seria a transição – da primeira para a segunda parte do filme – de um personagem que se volta para si, cujas interações são marcadas por uma espécie de planejamento, culminando na mentira, para um homem cuja sensibilidade se volta para as relações em seu entorno, um personagem espontâneo e sincero, que encara seus sentimentos e impulsos com honestidade. Essa variação produz, de acordo com a perspectiva adotada nesse texto, importantes deslocamentos de mise-en-scène e narrativa.

Na primeira parte, Ham Chumsu possui um ar maquiavélico, sempre pensando com seus botões sobre as situações em que se enreda com a nova amiga. Desse modo, ele assume uma personalidade reflexiva, calculista e mentirosa – no sentido de que ele mentia consideravelmente –, a partir da qual sua voz se volta para sua intimidade. Nessa parte, podemos destacar a presença de um importante dispositivo narrativo: o fluxo de consciência. Com efeito, o primeiro bloco do filme é marcado pela voz de Ham Chumsu em off, através da qual ele reflete sobre o que deve e não deve fazer, assim como sobre suas impressões. Isso nos leva a crer que ele esconde algo e, principalmente, acabamos por suspeitar que ele não possa se envolver com a jovem Yoon Hee-jung. Suas mentiras vão por água abaixo quando uma das amigas de Yoon Hee-jung, fã do diretor, releva que este é casado e que seu elogio às pinturas de Yoon Hee-jung são mera cópia de um discurso opaco e constantemente repetido pelo diretor em diversas ocasiões. O título da primeira parte é “Right Then, Wrong Now” e, de fato, a relação de afeto que estava se estabelecendo entre as personagens enfrenta um final de ruptura e conflito, devido às mentiras de Ham Chumsu. Não obstante, o “Right Then” do título dá a sensação de que as coisas podem dar certo em outro momento. Assim, tudo começa de novo[1].

A segunda metade da obra, “Right Now, Wrong Then”, indica uma mudança nos acontecimentos, abrindo possibilidades para novos caminhos. Tudo se repete, exceto a disposição do personagem Ham Chumsu. Nesse bloco narrativo, sua voz em off desaparece, o que indica uma mudança de personalidade. Agora, a voz do personagem enlaça as experiências, se dirige para o exterior, para o mundo que o afeta.

No cinema, tudo é possível, inclusive inventar tudo de novo, e é isso que a segunda parte nos demonstra. Ham Chumsu encara as situações com honestidade e sinceridade, se deixando levar pelos acontecimentos de maneira espontânea. Se na primeira parte o personagem esconde seu matrimônio e, no bar, não assume estar bêbado, aqui ele afirma de cara ser casado e declara honestamente sua embriaguez. Nessa versão da história, as coisas vão bem. Apesar da partida iminente de Ham Chumsu, este e Yoon Hee-jung compartilharam momentos inesquecíveis. Os afetos flutuantes acompanharão os dois em suas memórias.

III

O que podemos dizer sobre a tensão – ou seria melhor transição? – que emerge entre as duas partes do filme?

Considero que a moralidade, sob a égide da sinceridade, espontaneidade e honestidade, se infiltra como elemento estético cabal na estruturação de uma transição do “Right Then, Wrong Now” para o “Right Now, Wrong Then”. Esse detalhe provoca o mais importante deslocamento narrativo da obra, produzindo uma nova – ainda que semelhante – mise-en-scène, na qual o amor entre as personagens é possível, ainda que em memória. Quando Ham Chumsu passa a se entregar “de corpo e alma” às experiências sensíveis que vivencia, adotando uma postura espontânea frente à vida, surgem novas possibilidade estéticas, conduzindo o filme a um desfecho – ainda que aberto – apaixonante – para as personagens e também para nós, que observamos esse laboratório de sentimentos contraditórios.

Dito isto, podemos dizer que Hong Sang-soo faz uma espécie de elogio ao espontâneo. Um elogio que parte da mise-en-scène, de modo que é nela que devemos buscá-lo. Num mundo em que dificilmente podemos nos jogar entre os acontecimentos, sentir as coisas na pele, enfim, viver a vida, esse filme surge como um momento de reflexão e sedução. A segunda parte da obra nos mostra um caminho que nos toca, nos envolve e, sobretudo, nos ensina.

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O filme termina com uma cena conhecida de todo cinéfilo, o que pode ser interpretado como uma homenagem ao cinema e seu nobre papel na educação sentimental das pessoas. Yoon Hee-jung, após a sessão do filme de Ham Chumsu, sai da sala de projeção com uma expressão de renovação e alegria, o que nos lembra dos grandes momentos que o cinema nos proporcionou, nos proporciona e que – amém! – ainda nos proporcionará.

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[1] A repetição é um processo exaustivamente utilizado por Hong Sang-soo em seus filmes, dando a sensação de que tudo está acontecendo – novamente – pela primeira vez. Isso poderia ser interpretado também como uma segunda chance para as personagens e espectadores. Hong Sang-soo utiliza esse processo de maneira belíssima em “The day he arrives”, embaralhando e repetindo situações com pequenas variações, sequenciando diversas “primeiras vezes”.

Café Society (2016), de Woody Allen

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Woody Allen e os Limites Cartunescos: Café Society

Odorico Leal

Nos últimos anos, Woody Allen oscila entre escrever comédias de estilo mirabolante, próximas das screwball comedies, sem grandes pretensões além do divertimento ligeiro, e dramas sobre personagens desajustados que às vezes buscam mais o realismo, às vezes a farsa. Em ambos os casos, ora acerta mais, ora menos; às vezes falha. Ao primeiro grupo pertencem Dirigindo no Escuro (2002), Scoop (2006), Para Roma, Com Amor (2012) – nesses casos, o que interessa é a trama amalucada, o personagem excêntrico, os diálogos humorísticos afiados, e quase sempre algum conflito amoroso improvável. Ao segundo grupo, pertencem Match Point (2005), Blue Jasmine (2013) – ambos dramas num registro mais realista – e O Homem Irracional (2015), num registro mais farsesco, reforçado pelo caráter de filme de tese filosófica. Nesses casos, explora-se o desajuste entre o desejo e a sociedade, e o caráter, criminoso ou histérico, que se revela a partir desse embate. Algumas obras são inteiramente esquecíveis, e já foram, de fato, esquecidas, como Melinda, Melinda (2004), Você Vai Conhecer O Homem Dos Seus Sonhos (2010) e Magia ao Luar (2014). O celebrado Meia-Noite em Paris (2011) escapa desses agrupamentos (que, aliás, são apenas aproximativos) – é uma comédia de fantasia e aprendizado sentimental, parenta de A Rosa Púrpura do Cairo (1985): se, no filme oitentista, um romântico sai da ficção para uma realidade combalida, no filme estrelado por Owen Wilson, um romântico sai de uma realidade insatisfatória para adentrar uma espécie de ficção afetiva, a Paris das vanguardas e dos cafés. Os dois ganchos são, por assim dizer, clássicos, do tipo que faz pensar: como é possível que ninguém tenha filmado essa história antes?

Esse, aliás, é o invariável destino dos últimos filmes de Woody Allen, mesmo quando são bons – serem comparados às obras-primas do próprio diretor, que são sempre muito superiores à safra da velhice. Meia-Noite é um bom filme, mas A Rosa Púrpura é magistral – captura uma candura melancólica que é elusiva, difícil de ser expressa, e que demanda uma visão e uma sensibilidade artísticas únicas. Em termos de comédia amalucada, nada recente lambe as botas de Zelig (1983) ou A Última Noite de Bóris Grushenko (1975). Quanto a dramas realistas, com exceção de Match Point, nem Blue Jasmine nem O Homem Irracional nem Vicky Cristina Barcelona (2008) alcançam a humanidade dos personagens nada esquemáticos de Hannah e suas Irmãs (1986) ou Crimes e Pecados (1989).

Ainda assim, é impossível não admitir que Blue Jasmine, Vicky e Meia-Noite em Paris são filmes muito bons, produtos de uma inteligência muito acima da média do cinema americano atual. E o que se diz de Woody Allen pode-se dizer de outros grandes nomes do cinema americano: algum filme recente de Martin Scorsese se sustenta perto de Bons Companheiros (1990)? Infiltrados (2006) e O Lobo de Wall Street (2013) são bons exatamente na medida em que tentam emular a contundência visceral de Cassino(1995). Mesmo um diretor muito mais novo do que Woody pode ser diagnosticado com o mesmo esgotamento criativo: Os Oito Odiados (2015) ou Django Livre (2014), de Quentin Tarantino, são páreo, ao menos, para Kill Bill (2004)?

Extenuação criativa implica repetição de fórmulas e revisitação de material, que, por mais interessante que possa ser, já não alcança nem pode alcançar o mesmo impacto. Acontece com os melhores. Na verdade, talvez só possa acontecer com eles. No caso dos três diretores mencionados, pode-se dizer que o decrescimento é diretamente proporcional à capacidade ou incapacidade de subverterem as marcas de seu próprio estilo. Um grande autor começa subvertendo a tradição que o precede; se sobreviver por tempo o suficiente, em algum momento, terá de subverter-se a si mesmo. Em cada uma das obras-primas de Woody Allen, há sempre algo distintivo do diretor, há sempre as cicatrizes do estilo – as preferências formais – e do temperamento – a visão de mundo, as obsessões temáticas, as falsas esperanças. Há sempre um período formativo, de mais intensa experimentação. Depois, o risco da cristalização. Para os fãs, há um prazer em assistir aos seus filmes que reside justamente no reencontro e na confirmação dessas expectativas – queremos alguma notícia, por mais disfarçada que seja, daquele neurótico intelectualóide, obcecado com a morte e a falta de sentido da vida, que é ao mesmo tempo um romântico fajuto e compulsivo, uma carta falsa que se exaspera e se contraria sempre que a realidade ameaça conformar-se aos seus sonhos.

Esse é o aspecto da obra de Woody que, não de agora, é cartunesco. É o tipo de recorrência que se espera de tirinhas dos Peanuts ou de episódios de Seinfeld, onde se está sempre no mesmo mundo e não se espera que Schroeder abdique dos estudos de piano ou que Kramer não assalte mais a geladeira de Jerry. E é o que o cineasta nova-iorquino entrega na maior parte dos últimos filmes, notadamente nas comédias mirabolantes, que, por natureza, tendem às fórmulas, mas também nos dramas.

Um sintoma curiosamente típico disso: os personagens masculinos são homens mais ou menos jovens, sempre em plena idade sexual; quando o próprio diretor tornou-se velho demais para assumir esse papel, assistimos a um desfile de atores ávidos por vestir a fantasia da persona do diretor. Provavelmente, nunca veremos um filme de Woody Allen sobre um velho exaurido pelas neuroses, atormentado pela falta de vigor sexual e amedrontado pela proximidade real e palpável da morte, em vez da mera ideia da mortalidade. Algo que Woody poderia aprender com outro judeu neurótico, Philip Roth, que, em seus últimos e magistrais romances, ensina que não se vence as neuroses, simplesmente cansa-se do estardalhaço delas. Não veremos esse filme, nem tanto porque seria um troço deprimente que ninguém gostaria de assistir (essa seria a alegação cômica típica de Allen), mas, sim, porque isso romperia com os limites cartunescos nos quais seu cinema está aprisionado – demandaria um nível de envolvimento artístico e de seriedade existencial (seriedade que de modo algum exclui o cômico; pode, na verdade, potencializá-lo) que, aos oitenta anos, o diretor não parece disposto a bancar. Em outras palavras, Woody Allen poderia estar escrevendo um Memórias (1980) mais autêntico, com toques de Morangos Silvestres (1957), do seu adorado Bergman, que poderia ser mais nostálgico, mais triste e mais hilário do que tudo o que tem feito. Para isso, teria de ser mais ironicamente destrutivo, em vez de resignado, em relação ao seu estilo e à sua persona. Nos filmes dos últimos vinte anos, o único no qual Woody Allen de fato rompe com o formulaico é Match Point (2005) e, não por acaso, é o filme mais sólido e instigante, talvez o único indispensável da safra da velhice, que de fato acrescenta algo ao seu currículo – há aqui, sobretudo, uma representação da violência do desejo, em mais de uma faceta, inédita na sua obra.

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O novo lançamento, Café Society (2016), não sai dos limites cartunescos; na verdade, no caso de Woody, filmes históricos tendem antes a reforçá-los, como em Poucas e Boas (1999), e é o que acontece aqui, em que regressamos para os anos 30, para a Hollywood de Howard Hawks e Ginger Roger, e para a Nova York de gângsteres glamourosos, dois universos tão icônicos quanto a Paris vanguardista de Hemingway e Dalí de Meia-Noite em Paris. Dentro desses limites, contudo, Café Society é um filme bem realizado, acima da média dos últimos filmes do diretor, contando com uma cinematografia soberba, cortesia de Vittorio Storaro, e uma trama que, ainda que demande boa vontade e seguidas doses de suspensão da descrença, guarda, ao final de tudo, uma nota melancólica que ecoa, persistente e persuasiva, enquanto rolam os créditos finais.

Café Society nos oferece a história de aprendizado de Bobby Dorfman, interpretado por Jesse Eisenberg, um jovem judeu do Bronx que, desanimado com as perspectivas, muda-se para Hollywood, para trabalhar com um tio, Phil Stern, um bem-sucedido agente de cinema, representante de grandes estrelas. Em breve é apresentado a Vonnie, interpretada por Kristen Stewart, secretária do tio. Enquanto Vonnie, por sugestão do tio, lhe leva para admirar as grandes mansões das estrelas de cinema, Bobby rapidamente cai nos encantos sinuosos da moça que, contudo, é comprometida. Sem grande suspense, ficamos sabendo que o namorado é o próprio Phil, tio de Bobby, que hesita em abandonar o casamento de 25 anos para se entregar à paixão fulminante pela secretária. Vonnie, aos poucos, apaixona-se também por Bobby. Está formado o triângulo amoroso. Pela metade do filme, Vonnie deve decidir-se entre tio e sobrinho, ao som da bem-humorada The Lady is a Tramp, de Rodgers and Hart, na versão instrumental de Vince Giordano & The Night Hawks. Quando opta pelo tio poderoso, um desgostoso Bobby regressa à Nova York, agora para trabalhar ao lado de um irmão mais velho, um gângster judeu que, à custa de assassinatos e extorsões – sempre representados de modo leve e inofensivo -, consegue inaugurar um clube de grã-finos, o Les Tropiques, ponto de encontro das altas rodas de Nova York. Bobby, sem complicação alguma, aprende a mover-se nessa fauna de abastados e capitalistas, tornando-se algo entre administrador e mestre de cerimônias. Completada a ascensão social, casa-se, tem uma filha, e tudo vai mais ou menos bem, até reencontrar-se com Vonnie, que desperta sentimentos irresolvidos.

Como se vê, o filme guarda uma narrativa de formação em que acompanhamos o jovem Bobby, desde a penúria até o sucesso social. O glamour de Hollywood e a melancolia do jazz, aliado ainda ao arco narrativo da ascensão social, evoca algo da obra de Scott Fitzgerald, mas o tratamento é quase sempre ligeiro e inconsequente, como nas screwball comedies de Howard Hawks. De fato, pode-se dizer que o tom do filme reside em algum lugar indeciso entre Scott Fitzgerald e Howard Hawks. O que, para o meu gosto, o enfraquece: a completa falta de complicações, que não as amorosas, na trajetória de Bobby, insere Café Society firmemente naqueles limites cartunescos que amenizam demais qualquer força emocional que o filme procure evocar: em Hollywood, Bobby rapidamente se torna roteirista; quando volta para Nova York, num piscar de olhos, torna-se a alma do Les Tropiques. Tudo transcorre como num conto de fadas.

É claro que tudo isso envolve decisões deliberadas (e preguiçosas) do diretor. O filme, contudo, acerta na cinematografia e, em parte, no tratamentodo tema central, que não é a narrativa de formação, mas, sim, o tema do amor não vivido, o amor suspenso, que permanece com um poder de sedução irresistível. Todo o resto é acessório.

O amor não vivido é o tema romântico por excelência, desde os trovadores. Há algo, contudo, peculiar e eficaz no modo como o filme aborda esse tema: em vez do sofrimento da coita amorosa, e malgrado a tendência da trama ao cartunesco, Woody opta, em relação ao tema do amor, por um certo fatalismo que beira a resignação, guardando, contudo, um protesto melancólico – Bobby aceita a decisão de Vonnie; sem estardalhaço, regressa à Nova York; quando a reencontra, em outras circunstâncias, agora casado e bem-sucedido, resvala de novo no encantamento amoroso, mas ambos sabem que se trata apenas de uma visita temporária, clandestina, a um lugar impossível. O cartunesco, nesse caso, tem pelo menos o curioso efeito de reforçar essa inexorabilidade prática. Tudo isso vem à tona, com grande força evocativa, no fecho de Café Society, que se encerra providencialmente com uma festa de Ano Novo: às promessas de uma vida nova, Bobby e Vonnie, em festas em lugares diferentes, mas juntos no mesmo espaço do amor suspenso, respondem com um olhar sonhador, hesitante e melancólico, como os barcos contra a corrente de Fitzgerald, que se movem incessantemente em direção ao passado. Essa cena final é concebida e filmada com maestria e quase redime o filme de não ser tudo o que poderia ser.

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Não redime, contudo, porque é, de fato, um filme desigual. Há muitas boas ideias. Por exemplo: a decisão de não retratar o tio como um personagem vilanesco, mas como uma figura que sofre verdadeiramente um dilema bastante real, pelo qual se pode até sentir muita empatia, favorece a articulação daquela resignação fatalista, porém melancólica, que é o cerne emocional do fecho. Não há ninguém a culpar, exceto os desencontros da vida. E que, aliás, faz coro à resignação mal humorada do pai judeu. Na cena mais hilária do filme, o pai de Bobby lamenta a mortalidade e diz: “Eu irei, mas sob protesto!”, ao que a esposa, judia pragmática, responde: “E vai protestar a quem, ao New York Times?”.

As boas ideias, contudo, tem o impacto diluído pela trama inconsequente demais, que desperta interesse, mas não explora nada, nem o universo do cinema de Hollywood dos anos 30, nem a Nova York do jazz e dos gangsteres. Toda a ambientação social é acessória demais, o que é sempre um grande desperdício de possibilidades.

 

 

As Montanhas se Separam (2015), de Jia Zhang Ke

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As Colinas Podem Abalar-se

Joana Oliveira

É muito difícil escrever sobre um filme que me toca profundamente em lugares diferentes e pessoais. As Montanhas se Separam (2015), de Jia Zhang Ke, foi o filme que eu mais gostei de assistir na primeira vez em que estive presente no Festival de Cinema de Cannes, em 2015. Dito isso, espero que meu olhar apaixonado não atrapalhe a leitura. Mas, porque só agora, passado mais de um ano, eu escrevo sobre o filme? Bom, primeiro porque até aquele momento não havia sido convidada para escrever na revista Rocinante (ela nem existia). Segundo porque eu não seria capaz. Não sei nem mesmo se sou capaz agora.

Depois de ver o filme em sua estreia mundial, procurei entrevistas com o diretor para entender porque eu havia gostado tanto. É talvez meio bobo tentar entender isso, tem muita subjetividade envolvida nessa explicação. Entretanto, precisava de uma razão, até porque eu tinha visto dois outros filmes muito impactantes: A Assassina (2015) de Hou Hsiao-Hsien e Cemitério do Esplendor (2015) de Apichatpong Weerasethakul, no mesmo festival. Porque me derreti em lágrimas no final de As Montanhas se Separam, mais além de o filme ser um melodrama? Ou de ter sequências lindamente filmadas?

O filme é um longa-metragem de ficção e gira em torno da jovem Tao que trabalha como vendedora de eletrônicos na loja de seu pai. A história começa com a disputa de dois colegas pelo seu amor; Liangzi é funcionário da mina de carvão da cidade, e Jinsheng é um rapaz que está enriquecendo com seu posto de gasolina e seus novos negócios. Os dois frequentam a mesma boate que Tao e dançam animadamente ao som da canção “Go West” na cena inicial do filme. A partir de um triângulo amoroso estabelecido entre tais personagens, o filme se estabelece e se move pelo tempo. Há três episódios delineados, o primeiro data de 1999 – com um pequeno parêntese de tempo para o nascimento de Dollar, filho de Tao e Jinsheng,que não tem um lettering com a data, mas logo entendemos que deve ter acontecido por volta de 2006. Essa primeira parte é toda filmada no aspecto 1:1,33 – uma janela de exibição um pouco mais quadrada – e com uma textura digital própria dos anos 90. As duas outras partes do longa-metragem têm outras janelas, o ano de 2014 é filmado com o aspecto 1:1,85, retangular que estamos mais acostumados a ver no cinema, e o ano de 2025 com 1:2,35, panorâmica. A escolha desses aspectos nasceu da vontade de Zhang Ke de usar seu material pessoal de arquivo dos anos 90 feito em sua cidade natal, Fenyang.

Quando o diretor começou a escrever o filme, queria contar uma história sobre o tempo e sobre as emoções humanas porque, ao ficar mais velho e relembrar sua vida, ele passou a ter um novo entendimento dos relacionamentos que viveu e que vive. Para Jia Zhang Ke, 1999 foi um ano crucial por muitas coisas que aconteceram na China. É quando a internet e os telefones celulares foram introduzidos para a população chinesa e quando as rodovias grandes começaram a ser construídas. E também, esse foi o ano em que ele teve sua primeira câmera DV. Ele sabia que quando tivesse a oportunidade de ter esse “brinquedo”, sairia pelas ruas a filmar material documental para si e foi isso que fez. Ao ver a entrevista online filmada na conferência de imprensa do 53rd New York Film Festival de 2015, onde Jia Zhang Ke conta essas histórias, eu fui automaticamente projetada para Belo Horizonte nos anos de 1999 e 2000, quando os vídeo-artistas da cidade começaram a importar suas primeiras câmeras DVs. Eu era estudante e fazia estágio circulando entre o laboratório de vídeo da PUC-Minas e as produtoras de vídeo. O sonho das alunas e dos alunos das escolas de comunicação da cidade era juntar dinheiro e comprar um mini DV e um computador para ter sua própria produção. Bom, eu entendi a vontade de Zhang Ke de usar aquelas imagens, aquela textura, aquele aspecto em uma volta a um passado que se relaciona com sua história pessoal. Ele queria usar o que registrou; como as pessoas se vestiam, se relacionavam, até mesmo como elas andavam. Para ele, o material mais marcante que está no filme são planos documentais feitos por ele introduzidos na sequência da boate (em que o triângulo amoroso é finalizado) onde as pessoas dançam e se expressam. Para ele, dançar era um momento de catarse. A canção Go West, na versão do Pet Shop Boys, que é usada no início e no final do filme em duas cenas memoráveis, é também parte da memória afetiva do diretor. Nos anos 90, no disco club que frequentava quando dava meia noite, a canção era tocada para anunciar um novo dia e as pessoas se juntavam para fazer uma dança sincronizada.

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Zhang Ke também usou material documental feito por ele em minas de carvão na parte do filme que data de 2014. Essas imagens foram filmadas em 1,85 e por isso o filme muda de aspecto, obedecendo seu material documental também nesse capítulo. A decisão de mudar o aspecto para as imagens do futuro – 2025 – lhe pareceu natural para diferenciar e pontuar os outros episódios do filme. O diretor considera que sua equipe, principalmente a direção de fotografia e arte, teve um grande desafio em conseguir equiparar essas imagens de arquivo com o resto ficcional do filme e criar assim uma unidade.

O porquê de tanta preocupação com essas imagens documentais e com essa tecnologia estar retratada na tela é a essência do filme. As Montanhas se Separam fala primordialmente sobre as relações humanas e sobre como a tecnologia afeta o modo comque as pessoas se relacionam (também o consumismo e a mudança dos valores na sociedade). Em 1999, Tao escolhe namorar seu pretendente rico, Jinsheng. A narrativa não faz um juízo sobre essa escolha, mas fica claro que Liangzi é menos interessante para a moça. Talvez porque ele oculte seus sentimentos e tão pouco lhe conte que sofreu uma chantagem por parte de Jinsheng, preferindo ser demitido a desistir de Tao. Enquanto isso, o candidato da “elite” faz investidas claras e abertas. Ele quer Tao e lhe mostra isso objetivamente. A escolha de Tao não é julgada no primeiro momento, mas a consequência em ter elegido um namorado que é “capitalista” é clara: ele dá valor ao dinheiro e não ao humano. O filho dos dois recebe o nome de Dollar,escolha do pai que a mãe aceita. O menino tem nome da moeda mais valorizada no momento em que nasce. O nome do garoto também aparece em traduções como Daole, mas na cena doe-mail que o pai recebe do filho, dá para confirmar que seu nome é Dollar. Jinsheng é claro: o filho tem que ter nome de dinheiro.

Tao tem um relacionamento estreito com seu pai. Ele respeita suas decisões, são muito próximos. Mas ela não consegue ficar junto de seu filho. No episódio de 2014, Tao vive longe de Dollar, pois no divórcio perdeu a guarda para Jinsheng que mora em Pequim. Liangzi reaparece na cidade, casado e com um filho, mas tem um câncer e parece que não irá sobreviver. E logo o pai de Tao morre. O filme dá seu recado: “Ninguém pode ficar junto de você a vida inteira”. O que devemos fazer é aproveitar os momentos com as pessoas queridas. Dollar é enviado ao funeral do avô. A mãe e o filho de 7 anos se reencontram, mas não se conhecem direito. Tao sente a distância e tenta se aproximar do menino, passando o máximo de tempo possível com ele. Por esse motivo, ela escolhe levar o filho de volta a Pequim usando trens lentos. Jia Zhang Ke, em entrevista no 53rd New York Film Festival fala que no passado não haviam tantas formas de se comunicar, então quando você sentia falta de alguém, você realmente conseguia entender a saudade como um sentimento íntimo. Com a internet, as comunicações, as estradas rápidas, os aviões, você já não consegue entender o sentimento da separação (o que não quer dizer que não o sinta). Antes o tempo e o espaço faziam mais sentido. Agora, com toda a pressa e a pressão de viver tudo imediatamente, o elemento tempo está sendo anulado. A cena do trem lento onde mãe e filho estão sentados ouvindo música é essencialmente sobre passar tempo um com o outro.

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No episódio do futuro de 2025, Tao quase não aparece, mas sua presença (ou a sua falta) move a história. Jinsheng escolheu mudar-se para a Austrália para ascender socialmente (e para fugir de um processo de corrupção), mas não aprendeu o inglês. Ele é rico, entretanto, não consegue comprar esse conhecimento e não consegue se relacionar com o filho. Dollar esqueceu seu idioma materno, agora só fala inglês.  Comunicam-se através do Google Translator. A tecnologia media os dois mundos que não se entendem e o relacionamento fica perdido no meio dessa tradução mal feita. Em um momento, Dollar fala para o pai: “Google translator is your real son” (Google translator é o seu verdadeiro filho). Essa sequência não é uma conjectura de futuro imaginada pelo diretor. Em suas pesquisas para o filme, Zhang Ke conheceu muitos imigrantes chineses em vários países: Estados Unidos, Canadá e Austrália. Ele conheceu um pai que só se relacionava com o filho através do mesmo programa de tradução. É uma inspiração real que ele usou para alertar sobre a distância entre as pessoas.

Uma das coisas que mais me agradam no filme é como Jia Zhang Ke planta desde o roteiro elementos que retornam várias vezes durante os episódios para nos lembrar do passado, de como a tradição em volta das relações é importante. Esses elementos se tornam narrativos. É o bolinho de vapor que Tao prepara. Ela o divide com o amigo Liangzi no primeiro episódio. Junto com o pai conversam sobre a herança do cozinhar, aprendida com sua mãe. Logo em 2014, quando Tao está finalmente se reaproximando de Dollar, ela lhe prepara os bolinhos. A cena de Tao na cozinha fazendo a comida volta no fim do filme, em 2025. Ela está sozinha, mas tem como companhia sua tradição. É também a canção em cantonês que Tao não entende e que conhece em 99 ao lado dos colegas. Jinsheng lhe presenteia com o CD em um ato passional tentando chamar a atenção para si em competição com Liangzi. Em 2014, Tao apresenta a canção para seu filho pequeno. E quando Dollar a ouve novamente em 2025, não consegue reconhecer de onde, mas sente a presença da sua ancestralidade ali. São também as chaves de casa que significam o lar. Liangzi joga seu chaveiro fora quando resolve abandonar a cidade com o coração partido no primeiro episódio. O chaveiro lhe é devolvido por Tao que o guardou por anos até que ele voltasse à cidade em 2014. Um outro chaveiro aparece no filme como um presente de Tao a seu filho que vai se mudar para a Austrália e se torna a única lembrança que Dollar carrega da mãe até 2025. Nesse último episódio, Dollar se apaixona por uma mulher mais velha que lhe recorda a mãe. A presença de Tao fica clara quando ele sente um déjà vu. Ele e a mãe no carro em 2014 é uma cena que se repete, dessa vez em 2025, entre Dollar e a professora chinesa.

É assolador o futuro que Jia Zhang Ke constrói no filme. A cada episódio, sente-se menos a presença do humano em comunidade. No início do filme, em 1999, as ruas estão cheias, as pessoas se relacionam em locais abertos. À medida que o tempo passa, os locais públicos e abertos ficam cada vez mais vazios. As ruas da Austrália em 2025 são vazias, as pessoas estão isoladas. Há carros passando de um lado para o outro, mas não há gente. As pessoas, cada vez mais sozinhas, não conseguem fugir dos sentimentos de abandono, de separação, de falta de conexão com o universo. Um aviso, um grito desesperado e existencialista: Tao. Porque no fim, tudo o que queremos é estar ao lado de quem amamos.

E, para minha surpresa, no antigo testamento encontro a explicação para o título do filme. Isaías,  capítulo 54, versículo 10:

“As montanhas podem mudar de lugar e as colinas podem abalar-se, mais o meu sentimento de benevolência e misericórdia, isto é, meu amor, nunca mudará; a minha Aliança de Paz não será jamais abalada!” Afirma o Senhor aquele que se compadece de ti.

Agnus Dei (2016), de Anne Fontaine

Agnus Dei 1

Nada Inocentes

Gabriel Leal

Agnus Dei (2016), como o próprio título no Brasil sugere (do latim, cordeiro de Deus), é um filme que adentra o universo da religião católica para mostrar um fato real — aparentemente absurdo, do período imediato ao fim da Segunda Grande Guerra — no qual freiras polonesas grávidas recebem ajuda, em segredo, de Mathilde Beaulieu (Lou de Laâge), uma médica francesa.

Mathilde é ateia, comunista e seu único interesse ao se envolver com as irmãs do convento é salvar vidas. Com o tempo, porém, passa a entender a visão de mundo delas e a respeitar suas dificuldades, medos e culpa em relação ao corpo e ao pecado. No primeiro plano há uma apresentação de uma comunidade de mulheres entoando um canto gregoriano. Mathilde de certo modo, apesar das diferenças ideológicas, faz parte dessa irmandade, pois também é mulher. O filme tem êxito ao construir esse sentimento de comunidade, principalmente por apresentar uma diversidade grande de personagens femininas, caracterizadas de modo complexo, independente de uma visão reduzida e tipicamente masculina da mulher.

A inadequação de uma mulher em uma sociedade retrógrada e machista e sua luta para expandir seus direitos e papéis, já tinham sido abordadas no filme anterior da diretora Anne Fontaine, Coco Antes de Chanel (2009). Em Agnus Dei, Mathilde (cuja origem do nome é “guerreira forte”) é essa figura histórica e central para a narrativa. Entretanto, o aprofundamento nas personalidades de algumas das freiras, em especial Maria (Agata Buzek), Mère Abesse (Agata Kulesza) e Irene (Joanna Kulig), faz do filme quase um tratado sobre a diversidade feminina e a desconstrução de estereótipos desse gênero. Irene, por exemplo, mesmo sendo uma personagem coadjuvante, se diferencia das outras freiras por não se opor ao toque em seu corpo. Além disso, no final do filme, ela deixa seu filho e segue no carro com Mathilde para ter uma vida independente. Em contrapartida, a irmã Anna (Katarzyna Dabrowska) segue sua vocação de outra maneira ao acolher seu próprio filho.

Apesar de se enquadrar dentro de uma temática recorrentemente contemplada pela diretora, Agnus Dei parece estar mais voltado para uma classificação a partir dos gêneros cinematográficos em contraste a um sistema de autor. Essa categorização, apesar de nunca ser precisa, é um ponto chave no filme, pois são utilizadas majoritariamente convenções do gênero dramático para narrar a história. Antes mesmo de o filme iniciar, aparecem os habituais dizeres “Esta história é baseada em fatos reais”, já preparando o espectador para aquilo que define o gênero “drama”: filme de temática séria, focado na trama, com retratos realísticos de personagens, cenários e situações da vida e de histórias envolvendo desenvolvimento profundo de personagens e de suas relações.

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Aspectos formais reforçam a construção do ambiente dramático. Movimentos de câmera lentos ao longo do filme passam um ar sereno, condizente com a narrativa. Por sua vez, a mise-en-scène é austera e calculada, criando uma aparência pitoresca, o que marca também a fotografia e remete à pintura renascentista, com sua iluminação e perspectiva rigorosa que permite um tratamento realista do espaço e da luz. Outro elemento pertinente é o cenário inóspito de inverno e o uso predominante das cores azul escuro e cinza. Todos esses aspectos estão sintonizados com a trama e acompanham o arco da história até seu clímax.

Na resolução do filme, diante da superação dos obstáculos, esses elementos formais se transformam e se adequam. Assim, o inverno dá espaço à primavera, com luzes mais claras e uma paleta de cor mais viva, aparecendo o azul claro e o verde — cores que estão ligadas à serenidade e à esperança, em oposição aos tons escuros anteriores, ligados mais à tristeza e à morte. Além disso, o convento é alegremente ocupado por crianças e visitantes, ramos estão espalhados por todos os cantos e as freiras usam guirlandas na cabeça. Esse tipo de transformação da forma, para reforçar essa mudança no arco narrativo, é convencional e cheia de clichês, mas é eficiente em alcançar uma resposta emotiva do espectador comum.

O som, por sua vez, se restringe, quase que exclusivamente, ao universo narrativo, o que facilita o mergulho na história e traz ao filme um tom realístico e sério. O uso do silêncio combina com o ambiente do convento e, intercalado com os cantos gregorianos, produz uma dimensão contemplativa. Entretanto, há situações em que o uso do silêncio e de detalhes de sons do ambiente (como o de passos) geram um pequeno clima de suspense e, seguidos de gritos e gemidos, geram um contraste chocante. O único momento em que o som não-diegético é usado é na parte final, sem mais a preocupação de atrair o espectador para dentro da história, na qual uma música começa a tocar quando Mathilde e Irene vão embora de carro e o som permanece ao longo das próximas cenas até o letreiro subir. Além dessa trilha, que enfatiza a superação e felicidade das cenas finais, há o uso de voice over de Maria, como se Mathilde estivesse lendo uma carta dela. Esse recurso geralmente é um “tapa buraco” usado para explicar algo que não ficou claro ou não foi mostrado. Entretanto, nesse caso, o sentimento da cena é reforçado a partir das palavras poéticas e emocionais e o filme é finalizado de modo mais impactante, apesar do uso frequente desse recurso.

O que chama atenção, porém, é como, diante desse clima dramático, elementos de romance e comédia são utilizados ao longo da trama, causando uma quebra e alívio da tensão gerada. Samuel (Vincent Macaigne), o médico francês que acompanha a personagem principal, é um personagem que converge esses elementos, distanciando o espectador da trama central e gerando um alívio da tensão dramática. Os elementos do gênero romance, em especial o do cortejo, são usados na relação das personagens Mathilde e Samuel, mas são secundários na trama e pouco ajudam no seu desenvolvimento (apesar de ajudarem na construção da personalidade de Mathilde, mostrando sua atitude e pensamento independentes da figura masculina). Em relação aos elementos ligados ao gênero da comédia o mesmo ocorre; entretanto, nesse caso, gera ainda um estranhamento, pois não há construções que preparem o espectador para esse tipo de situação. Por exemplo, quando Samuel está no convento para ajudar nos partos ele faz uma piada dizendo que nunca imaginaria que estaria ajudando no parto de freiras polonesas. Porém, por ser, a comédia, reiterada exclusivamente na figura de Samuel, isso acaba sendo aceito, pois caso contrário, se estivesse espalhado em várias personagens ou situações ao longo da narrativa, causaria ainda maior estranhamento e diminuiria o interesse do espectador por não se encaixar com o clima dramático criado.

Agnus Dei 3

Para além das temáticas da mulher e da religião, há uma outra mais sutil, ainda que bastante presente e relevante: o do nacionalismo francês. Já no início, quando a irmã Teresa (Eliza Rycembel) vai em busca de ajuda e pede informações para as crianças, ela deixa claro que não pode ser uma ajuda polonesa ou russa. Assim, quando encontra a cruz vermelha francesa, isso coloca a França, que passa a ser representada por Mathilde, em uma posição especial, pois é a única que pode ajudar. A benevolência de Mathilde é indissociável de uma postura supostamente francesa. Não é à toa que os homens franceses parecem elencar virtudes como liderança, compaixão, humor e bondade, enquanto os demais homens (que são militares russos) são cruéis, violentos, autoritários e aparentemente menos instruídos. Além disso, Mathilde tem uma postura moralista e intrometida na relação com as irmãs, influenciando diretamente a direção e as escolhas do convento. Em certo ponto, a irmã Maria diz cumprir um dever de obediência ao reportar o nascimento de um dos bebês; Mathilde, por sua vez, responde: “você tem um dever maior, que é de proteger a vida desta criança”. Claro que essa posição de Mathilde, mais impositiva e moralista, é discreta e passa desapercebida pela maioria, sendo mais evidente sua posição de aceitação, compaixão, abertura e diálogo com essa outra cultura.

Extrapolando os aspectos do filme, parece evidente que há uma preocupação da França em passar esse tipo de imagem do seu país. Não por acaso, esse filme foi escolhido para representar o cinema francês no festival Varilux (no catálogo do festival, a curadoria aponta uma preocupação explícita sobre a construção da imagem da França no Brasil). Nesse sentido, parece que o cinema francês, apesar de se diferenciar em vários sentidos do cinema popular norte-americano, acaba encontrando um ponto em comum: o de exercer uma propaganda nacionalista discreta e sutil, porém muito poderosa, através de seus filmes. Não se pode afirmar que esse tipo de propaganda interfira na construção e produção do filme como acontece muitas vezes nos Estados Unidos desde sua era clássica, mas fica evidente que o governo e os responsáveis franceses acabam exercendo a mesma função nacionalista ao selecionar esse tipo de filme para representá-los diante do mundo.

A Bomba no Supermercado

Assuntina-Still-web

João Campos

ASSUNTINA/FILME/POLÍTICO é um dado histórico, é a história em ação, em movimento contínuo, dialético, num fluir sempre, ou seja, a história sendo vivida à medida que é feita. Isso é Assuntina, um filme que é feito e vivido a cada novo momento.

(Luiz Rosemberg Filho)

I

Assuntina das Amérikas (1976) é um grito que ressoa até os dias de hoje. Um filme assumidamente político, feito por um cineasta assumidamente político. O filme foi lançado em 1976, em pleno governo Geisel (1974-1979), num momento de transição lenta e gradual rumo ao fim da ditadura militar brasileira. Apesar dessa pequena abertura – ou germinal ruptura – iniciada no governo de Ernesto Geisel, o regime ditatorial ainda persistia, assim como os truculentos atos soberanos que marcaram esse regime. Dois exemplos podem ser citados, a criação da Lei Falcão em 1976, que limitava as propagandas eleitorais, constituindo uma forma de censura; e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.

Após os sombrios anos do “milagre econômico” chefiados por Médici, a sociedade brasileira chafurdou-se no mundo espetacular do consumo, principalmente de imagens. Assuntina das Amérikas surge nos interstícios de um bombardeio de imagens publicitárias, imagens-consumo, imagens de Hollywood ou, nos termos do filme, imagens do “sistema de supermercado”. Assuntina das Amérikas é um balaço contra um universo imagético que Rosemberg Filho considerava empobrecido, envelhecido e falido. É uma “bandeira rota” no contexto da “falência transatlântica da cultura ocidental”. Nas palavras do cineasta:

O cinema é uma bandeira rota, que continuará sempre rota, mas que é preciso empunhar, mesmo à custa do sacrifício de não fazê-lo. E se a bosta colorida não presta, então façamos o vômito preto e branco que ao menos incomoda (palavra-chave) a apreciação da bosta colorida[1].

Um cinema do asco, uma tomada de posição estética e política, um foco de rebelião, fortemente carnavalizada, em relação à ditadura militar e à alienação causada pelo consumo de massa, sob a égide dos EUA. Assuntina das Amérikas pode ser tudo isso e mais. Em contraposição à “bosta colorida” que é produzida no “sistema de supermercado”, Rosemberg Filho “vomita” uma obra engajada, uma colagem de imagens potentes, cujo simbolismo apresenta-se, tal qual um rizoma, como um mundo simbólico aberto, em que o espectador é levado a tomar uma posição diante da tela, buscando, entre essas imagens, performances e provocações, sentidos que são, simultaneamente, estéticos e políticos.

Crítico voraz do cinema de entretenimento, Rosemberg Filho produz uma obra fortemente ensaística e reflexiva, cujas performances se atropelam numa mise-en-scène rizomática, construída através de colagens de planos aparentemente desconexos. De fato, a obra não mantém uma linearidade narrativa, mas Rosemberg Filho utilizou ostensivamente o recurso da colagem para montar um filme que pressupõe certo talento interpretativo de um leitor atento e, de certo modo, independente. Somos levados, portanto, a performar diante da tela, buscando sentidos fugazes, porém potentes.

II

Fazer cinema é um ato político. Essa disposição se infiltra por toda obra de Rosemberg Filho. Em Assuntina das Amérikas, somos bombardeados logo no início do filme não por um manifesto, mas por uma declaração. Logo de cara, Rosemberg Filho nos apresenta o argumento do filme – mas ainda não sabemos como ele transformará essa declaração em mise-en-scène, força primordial da obra. Transcrevo a declaração abaixo:

Esse filme nada mais é do que um momento de reflexão, uma reflexão crítica dos anos 70, uma imagem perdida, uma definição da imagem, uma imagem cósmica frente ao sistema de imagens fabricadas. Uma imagem fabricada é igual a centenas de pessoas que vivem enganadas pela realidade. A realidade da imagem. O som é uma imagem auditiva. Já o supermercado é uma imagem falsa do progresso. Vocês vivem 24h as imagens falsas e contraditórias do sistema de supermercado.

No trecho acima, o autor salienta a alienação que envolve o cotidiano do brasileiro, sob o signo das “imagens falsas e contraditórias do sistema de supermercado”. Contudo, o filme seria um momento de reflexão. Podemos considerar que esse ensejo, marcadamente liminar, é capaz de contribuir para a reinvenção da realidade crua. A reflexividade é amplificada pelo caráter carnavalizado e performático do filme, que eleva esteticamente realidades sociais através do delírio e da experimentação. As “imagens cósmicas” de Assuntina das Amérikas são dados históricos performados, re-apresentados através de imagens gozadas e críticas. Com efeito, a crítica de Rosemberg Filho é, simultaneamente, burlesca e provocadora.

Nesse sentido, Assuntina das Amérikas é uma obra ambígua, entre o sarcasmo e a acusação. Emprego o termo “carnavalização” no sentido em que Bakhtin conceituou: uma espécie de crítica pelo deboche, gozação ou riso. As relações de mise-en-scène presentes na obra, marcadamente teatralizadas, através das quais os gestos, falas e expressões adquirem um peso propositalmente exagerado e burlesco, contribuem para a carnavalização, formando um grande conjunto de deboches em meio ao horror da repressão ditatorial e da alienação do consumo de massas, ambos fortemente influenciados pela presença do capital estrangeiro na emergente – e “miraculosa” – economia brasileira (tema que o diretor explora também em “Crônica de um industrial”).

Como comentei acima, considero o filme um universo simbólico aberto, um conjunto rizomático de imagens-manifesto. O rizoma não se começa nem se conclui, ele é um sistema conceitual aberto, cujo movimento serpenteado nos conduz, ao menos no filme, a um percurso tortuoso, povoado por desvios delirantes. Por isso, Assuntina das Amérikas pressupõe uma imersão analítica, de modo que somos convidados a mergulhar nele, não de cabeça, mas de barriga. Temos que entrar no jogo, permitir que essas imagens caóticas nos machuquem – a ferida, no fim das contas, é proveitosa.

Em Assuntina das Amérikas, a colagem exerce um papel fundamental. Com efeito, podemos considerar a obra um filme-colagem, mas não qualquer colagem. Essas insinuações nos levam à figura do bricoleur. Como nos ensinou Lévi-Strauss, o bricoleur dispõe de uma matéria-prima escassa, de certa maneira limitada e, munido de uma criatividade fervilhante, recombina, justapõe e sobrepõe elementos para, finalmente, inventar algo novo. Curiosamente, o cinema que cineastas como Rosemberg Filho, Candeias e Sganrzela propunham era comumente chamado de cinema de invenção.

Colando imagens e sons tensionados ou conflitantes, Rosemberg Filho deixa claro o caráter crítico de seu filme. Na mise-en-scène, uma euforia cômica do carnaval tropical se mistura ao horror da violência de um país assolado por um regime ditatorial obtuso. Sensualidade, diversão, tiros de metralhadoras, sangue, sirenes de ambulâncias e viaturas de polícia se misturam numa dialética audiovisual em curto-circuito. A vida embotada do burguês carioca, da malandragem boêmia, se justapõe a imagens e sons de pessoas agonizantes, índices da violenta repressão ditatorial, cuja realidade é ofuscada pelo lazer burguês e sua ampla variedade de entretenimentos de massa – o brilho das imagens de Hollywood, do “sistema de supermercado”, embota a visão, cumprindo uma função alienadora. Considero esse proposital descolamento entre imagens e sons uma riquíssima fonte de potência estético-política da obra.

III

Assuntina das Amérikas é uma obra construída através de formas inacabadas e performances em processo, é “um filme que é feito e vivido a cada novo momento”. Com efeito, a ressonância é uma boa metáfora para pensarmos o filme. A mise-en-scène ressoa, como ruídos que nos incomodam, num estranho movimento de atração e repulsão.

Estamos diante de um filme crítico e anômalo, em que todos estão fantasiados no carnaval sem fim do cinema, festa que eclipsa os horrores dos porões da ditadura. De fato, todos estão fantasiados no “mundo animado do cinema”, do entretenimento e do lazer burguês. Isso nos leva ao meu último comentário.

A bomba de Rosemberg Filho consegue trazer, brilhantemente, conflitos e desigualdades sociais da sociedade brasileira para a mise-en-scène, numa estética de choque, incômodo e asco. Assim, forma e conteúdo se embaralham –e será que alguma vez já estiveram claramente separadas? –, de modo que o contexto social em que a obra foi produzida, marcadamente conflituoso, é performado numa mise-en-scène também conflituosa.

Para finalizar, cito uma frase presente no filme que nunca me escapará à memória: “todo mundo faz cinema, mas poucos fazem filmes”. Essa sentença, um tanto axiomática, condiz com a forma como Rosemberg Filho enxerga o cinema. Este deve ser reflexivo, crítico, dialético. Assuntina das Amérikas nos tira de uma zona de conforto, do “lago azul da tranquilidade latina”. É um “vômito preto e branco” que nos fere, desloca nossos olhares, convida a nossa atenção para imagens e sons desconcertantes. Compartilho dessa perspectiva, pois o cinema, acima de tudo, possui a honra de ser fonte de sucessivas experiências de estranhamento, deslocamento e transformação subjetiva e, não obstante, compartilhada. Nesse terreno, o papel da crítica é nobre, assim como o do cineclubismo. Honremos obras como Assuntina das Amérikas com reflexões sempre inovadoras, pois o contexto atual nos solicita, antes de mais nada, um olhar apurado para as imagens e ruídos desconcertantes de um mundo em colapso.

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[1] As citações presentes nesse texto foram retiradas do texto “Assuntina das Amérikas ou tudo vai bem no mundo animado do cinema”, de Luiz Rosemberg Filho.