Para Helena

helena 1

Maria Trika

Helena,

escrever sobre você é complicado. Já comecei tantas vezes e de tantas formas, mas sempre me perco dentro das palavras que usei, tenho uma cisma com elas – elas me enroscam, sufocam e parecem não exercer presença ali, até mesmo quando tenho muito a dizer. Penso que se recortasse as partes que mais gosto de todos os esboços seria mais fácil. No entanto, possivelmente, minha escrita se transformaria em uma espécie de limbo, onde tudo estaria fadado a perder a essência.

Ainda assim, vou me permitir um recorte aqui. Em um dos esboços, comecei assim:

‘Uma de minhas avós é costureira. De formação, arquiteta; de família, bordadeira. Ela, costureira-inventora, sem dúvidas atrás dos olhos, dona de traços decididos, escolhas firmes e, ainda assim, livres. Todo seu conjunto constrói a postura da mulher que é, mas com um detalhe: suas mãos, mesmo sendo fortes, se destoam um pouco do resto do corpo, ainda mais ao atuarem no gesto de costurar. Quando minha avó costura, suas mãos parecem dançar com a linha e agulha, exalando uma delicadeza de movimentos leves e completamente soltos, e nos deixando antever o quanto a presença dela se enrosca e também se costura ali.

Hoje fiquei lembrando das mãos, da forma com que os gestos se faziam, de toda a delicadeza naquela dança-costura.

Encaixar o pensar nas palavras é meu dilema. Gosto das palavras, acho bonito serem tão voláteis, forças inconstantes que já surgem com determinada significação, mas a cada momento que recolocadas no mundo são ressignificadas, entrando em um constante ciclo de possibilidades infinitas.

Ainda assim, as palavras e a infinidade de suas possibilidades não bastam quando se quer traduzir o indizível. Fazê-lo exige um maneio sutil, um ato de reduzir toda a opacidade e peso das palavras, tornando-as um material quase translúcido, como um tecido leve e transparente, apto a confeccionar uma vestimenta resistente, feita por mãos soltas e com a mesma serenidade das de minha avó, para que, assim, consigam se manter sobre um corpo sem definir nele uma forma, apenas acrescentando à figura aquilo que se viu a partir dela.

Vestir uma pessoa de palavras ao invés de as costurar nela.’

É preciso se fazer ouvir em tudo – estar presente ao se relacionar com a linguagem e criar sobre ela. É isso que mais admiro em você e o que nosso contato reforçou: sua capacidade e coragem de transformar a relação com a própria linguagem (seja ela qual for) em um gesto autoral. Transfigurar aquilo que é particularmente seu em um ato linguístico, naquilo que é necessário que seja dito.

E é sobre isso que me perco ao escrever.

*

“Está aqui uma mulher. Mulher que participou de grandes rupturas do cinema brasileiro, viveu revoluções estéticas – acho que quase todas –  ao lado de seus ex-maridos cineastas! (…) Nascida na elite nordestina, a candidata derrotada ao titulo de Miss Bahia, trocou o berço da estabilidade pelo papel de musa do Cinema Novo. Rompeu com o Cinema Novo, filmou muito e agora, décadas depois, permanece em cartaz no cinema e no teatro. Preparem seus corações, ela é Helena Ignez!” Antônio Abujamra. *1

Meu primeiro contato com você, Helena, coincidiu com um momento muito especial: fazia pouco tempo que havia começado a estudar no CASA VIVA, e fazia a eletiva *2 de Cinema Brasileiro, ministrada por três professores, que me apresentaram os filmes mais peculiarmente fascinantes do nosso cinema. Tratavam-se de criações que refletiam uma paixão extrema pela sétima arte. Dentre esses filmes, havia os “filmecos” de um diretor chamado Rogério Sganzerla, responsáveis por me apresentar a você.

helena 2

Nosso primeiro contato foi algo impalavreável, lá em Sem Essa Aranha (1970), uma obra também impalavreavél, onde a câmera bate no personagem em cena enquanto o filme bate na nossa cara, de forma total e particularmente explosiva. Tratava-se ainda de Helena junto de seu fenômeno próprio, ambos presentes ali, vistos pela primeira vez… Mas não é pra começar, palavras não explodem ainda.

Só mais tarde fui ver algumas de suas atuações anteriores, como em A Grande Feira (1961), de Roberto Pires, Assalto ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias, O Padre e a Moça (1966), de Joaquim Pedro de Andrade, entre outros. Neles é perceptível o emprego de modelos diferentes de atuação: os gestos e ações das personagens são mais contidos, o corpo se encontra mais estável e a presença dele é representada de uma outra forma, mais “naturalista”, intermediado por falas e movimentos mais precisos. Sua presença nos “filmecos” era de outra ordem, encontra-se em outro lugar, um lugar de criação, principalmente naqueles realizados na Belair (a meu ver, co-criações entre Sganzerla, Bressane e você).

Tal diferença se deve tanto a uma distinção entre as propostas dos movimentos do Cinema Novo e do Cinema Marginal, quanto a uma diferença na liberdade de criação relativa ao fazer desses filmes. Talvez você tenha encontrado um maior espaço criativo no âmbito dos filmes denominados “marginais”, onde algo essencial era a valorização de novas formas de  representação. Neles, você recriou o papel cinematográfico do ator, através de uma atuação que reflete não só a imagem de um corpo, mas a sua forma particular de habitá-lo, transformando a representação em um ato completamente autoral. Você trouxe ao filme uma presença que nos faz perder a noção da representação, espelhando o limite entre atriz e personagem, como se sua atuação surgisse da junção de ambas, Helena e Sônia Silk, Sônia Silk e Helena. Além disso, seu corpo se torna inteiramente instável, emitindo movimentos vulcânicos, gestos irruptivos, mais sensuais e confiantes, produzindo falas, berros, cuspes, chutes, tapas… Completas explosões em cena.

Após a explosão do Cinema Marginal, um período de total “Thau Cultura”*3 e de maior recolhimento atravessou sua vida, como você me disse. Período que me parece muito curioso, com sua imersão no Tai Chi Chuan, seu contato com a peça “Canibais Eróticos” de Dzi Croquette, que despertou em você um desejo de se aproximar mais do movimento Hare Krishna, o tempo que passou pela África, Europa e Estados Unidos… Tenho a impressão de que esses momentos marcaram e mudaram sua vida – e, consequentemente, sua obra, não é?

Quando ressurgiu aos olhos do público, o fez intensamente, nas peças “Cabaret Rimbaud – Uma Temporada no Inferno”, “Sete Afluentes do Rio Ota” e, em 2003, através do lançamento de seu primeiro curta, Reinvenção da Rua, sobre uma noticia do final de uma instalação de um artista plástico americano dos anos 60.

“Foi ai que Rogério se foi. Eu sai da peça pra transformar o que podia no ”Canção de Baal”. Pra mim foi como tirar o coração pra fora, transformar dor em amor, fiquei atônita com a perda de Rogério – mas isso também me deu muita força, me pôs muito na terra. (…) Eu disse ‘cabe a mim seguir’, era a volta e o estimulo pra fazer meus próprios filmes.”

Enfim, repito alguns desses acontecimentos da sua vida para chegarmos aqui, em 2016, quando nos conhecemos pessoalmente.

Helena Ignez, cineasta, atriz e professora. Local Morro da Cruz. Florianópolis, 240810 Foto Susi Padilha Edit. Variedades Repórter Felipe

*

Aqui estava eu, em BH. Acabara de integrar a equipe da Rocinante, aguardava ansiosamente pela saída da primeira edição da revista e enquanto isso, pensava nas possibilidades para a próxima – dentre elas, a de te entrevistar. Você viria a BH para lançar seu mais novo filme, Ralé (2015), e para participar do “Encontros 104: Helena Ignez”, evento realizado pelo Cine104*4. Apesar do tempo escasso, não pensei duas vezes: dispus-me a lhe procurar e realizar uma entrevista. O processo de te contatar foi muito rápido. Achei engraçado ouvir sua voz: estava tão habituada a só ouvir sua voz nas telas, ao vivo era uma outra parada (na verdade, eu que sou meio boba com essas coisas e achei o máximo).

A entrevista foi marcada e com essa parte resolvida, vinha outra mais complicada, o que te perguntar?

Foi aí que percebi como a elaboração de uma entrevista é um pouco diferente dos demais processos. Pensei que seria necessário encontrar um ponto central, aquilo que se quer/precisa perguntar, e partir daí. Porém, e se o cerne da entrevista não for uma pergunta a ser feita, mas a resposta a que se quer chegar? O ponto central como algo que imaginamos querer descobrir? Um desvendar gradual rumo ao caminho que leva ao ponto central? Sim! Criar um caminho moldável, agir como um GPS, com ponto de chegada determinado, e que, independente das mudanças e reviravoltas da viagem, sempre consegue retraçar um trajeto que chegue ao destino. Toda entrevista é algo inconstante e imprevisível, uma conversa entre duas pessoas, que, muitas vezes, nunca se viram; na qual, muitas vezes, aquele que se crê guia, acaba sendo guiado rumo a um lugar completamente diferente. Trata-se, antes de tudo, de um processo de busca e descoberta.

Passei um tempo buscando o que gostaria de (re)descobrir, o que lhe perguntar, e acabei concluindo que seria algo relacionado àquilo que mais admiro em alguém: a capacidade de se inserir no que faz, como te disse anteriormente. Comecei a planejar possíveis caminhos à resposta, o que me mostrou como ainda sabia pouquíssimo sobre você. Eu te conhecia mais por um determinado momento de sua vida, ainda não havia visto nenhum dos filmes que dirigiu ou trabalhos mais recentes e isso despertou uma curiosidade enorme em mim, gerando uma grande busca por mais informações, outras entrevistas que você já havia feito, etc. O que me surpreendeu, pois, boa parte delas eram mais voltadas para o seu trabalho junto aos seus ex-maridos cineastas e o contexto em que viveram. Sentia falta de ouvir/ler mais sobre você como Helena, independente de qualquer outra pessoa, e esse incomodo acabou criando um foco maior em minhas (possíveis) perguntas.

Consegui assistir a Luz nas Trevas (2010), Feio Eu (2013) e Ralé (2015) antes de nosso encontro. Ver toda aquela experimentação, som, cor, vida, coletividade e movimento me levou a recriar todas as perguntas (mais uma vez). No dia seguinte, pela manhã, fui ao hotel onde você estava hospedada, para nossa imprevisível conversa-entrevista. Começamos falando sobre sua experiência ao realizar Ralé. Indaguei-lhe sobre o processo de filmagem do longa:

“Pra mim, não há coisa mais louca que essa pergunta… Porque foram tantos impulsos! O Ralé surgiu por si mesmo, após quatro anos de uma curtição muito grande sobre o argumento original do que seria a Ralé do Gorki. Fiz um roteiro em cima daqueles personagens adaptado pra São Paulo e o resultado não me dizia o que eu queria falar no momento. Não eram essas as pessoas sobre as quais eu poderia fazer um filme. Tive de trabalhar com elas, dando uma outra luz à vida desses personagens (…). Foi essa a ralé do Gorki, que muito me impressionou, gente que podia transformar-se de alguma maneira e sair da miséria humana.”

helena 4

Novamente, a ideia de mudança. Quis saber mais sobre esses indivíduos, esses miseráveis em busca de redenção. Por que e como recriá-los? Haveria neles um tanto de você?

“Imagine a trajetória de uma mulher como eu nessa sociedade absolutamente excludente do feminino. (…) Ralé foi sentido, sentido mesmo. Eu tinha muita dúvida do que seria esse filme. Inclusive, porque quando o fiz não tinha saído o mínimo do orçamento, e eu tinha que produzir para não perder os atores. Então, a gente fez apertado. E essa urgência, esse chamado das ruas, era o que o filme tinha, e era o que eu queria falar – falar dessas mulheres.”

Mulheres excluídas, mulheres sem voz – partes da ralé. Quis saber sua opinião sobre o papel das mulheres no cinema brasileiro contemporâneo, já que sempre foi, nele, uma presença feminina tão forte. Sua resposta, não surpreendentemente, foi solar e esperançosa, convidando a mudança de braços abertos:

“Acho que tem um campo enorme se formando. Você vê vários tipos de cineastas e o que elas realizaram, umas até tragicamente, como o caso da Maya Deren, que de tão maravilhosa, não resistiu, morreu cedo e pobre. E outras que estão ai fazendo como a Ana Vilela. Acho que não existe impedimento, pelo contrário: o Cinema Brasileiro está aí para as mulheres e minorias, todas!”

*

A partir daí, começamos a falar sobre seu processo de criação e o desenvolvimento de sua linguagem neles, lembra? Achei sua fala algo muito bonito, porque você mencionou um forte desejo de reunir pessoas e criar a partir disso, algo que é sentindo nos seu filmes. No comentário após a exibição do Ralé, alguém da platéia mencionou como se trata de um filme dentro de vários outros e vice-versa. Creio que a sensação de ser um filme múltiplo surge de uma das forças criadoras dele, a coletividade, que é extremamente perceptível em toda sua filmografia. Ralé é uma mistura absoluta, uma quase orgia de narrativas, ritmos, sexualidade, minorias, tempos, Eduardo Viveiros de Castro, Ney Matogrosso, amor, cor, palavra, vida, corpo e pessoas. E é apenas através dessa mistura que você conseguiu abordar tanta vida, transitando entre o lado mais pulsante da juventude e a parte mais frágil da velhice. Seus corpos vestem, às vezes literalmente, a palavra. E refletem todas as idades que, quando juntas, formam a vida. Um filme como um ato libertário, teatral, literário, musical e extremamente “helênico”. Capaz de transmitir cinematograficamente a beleza da mixórdia característica dos tempos atuais.

“Imagens que eu vi e que moram na minha mente me fizeram sentir esse impulso de criar outras imagens. Sempre concebi Ralé como algo visual e sem grandes ambições, por já ter vivido extraordinariamente algumas obras do cinema como atriz e integrante do processo. Então, seguimos sem angústias, fazendo tudo com muito prazer, sempre. (…) O sentimento que me fez afastar por um longo tempo e conhecer outras coisas naquele período, me fez hoje ter esse desejo oposto, o de reunir. É por esse desejo que crio histórias, talvez impossíveis de realizar, o que as tornam engraçadas. Existe um filme em nossa mente que é insuperável: no meu, jamais chegarei, mas de certa forma dá para se divertir com ele.”

helena 5

Chegamos a falar também, sobre o seu contato, com seus ex-maridos, amigos e da influência deles. Presença agregadora que é, você me falou sobre algumas influências fundamentais em sua formação; pessoas que “fazem parte do meu corpo, psíquico, artístico, criador… Eu não posso me desvincular delas e dessa formação. Sozinho a gente não vale nada. Acho que só um escritor consegue produzir algo sozinho.” (Creio que nem ele.)

Você chegou a comentar sobre a influência de Rogério em seu trabalho, sobre o quanto aprendeu com o cinema dele – mas também destacou as diferenças entre o que faz e o que ele fez, as principais divergências entre suas formas de olhar. Olhar que, como gesto, é algo central em sua obra, fato confirmado por você ao refletir sobre uma cena de Ralé, na qual Djin se deita em sua cama: “Quando eu vejo uma cama, eu vejo um objeto interessante de filmar, se tiver uma ou duas pessoas, uma cama é ótimo. É com esse olho que procuro ver, talvez um olho livre.”

*

Antes do término de nossa conversa, começamos a falar sobre sua relação com o passado-presente e da recriação de ambos em algo novo, o filme. Pois, tanto em Ralé quanto em suas outras obras, percebem-se várias citações e referências aos anos 70/80 e aos trabalhos que você realizou nessa época. Entre tais citações, há uma em Ralé bem interessante, durante uma conversa da sua personagem com o de Ney Matogrosso, em que ele diz: “Tudo agora é um replay dos anos 70 e 80, ninguém está interessado em fazer algo novo”. A partir disso, pedi para que comentasse um pouco essa fala e a possível relação dela com o cinema atual e suas possibilidades futuras:

“Sempre questionam esse diálogo, mas não é meu, é do Bukowski, que amo! Foi ele que falou isso! Na verdade, existe esse lado do replay, ele acontece porque acho que é algo circular, mais em espiral, pode explodir lá em cima, mas a gente não sabe, ainda não se chegou lá. O futuro do cinema a gente não sabe – é um enigma.”

Depois de nossas conversas, você voltou pra São Paulo.

A mostra também estava prestes a acabar, mas antes haveria a exibição do seu primeiro longa “Canção de Baal”, que produziu logo após a morte de Rogério. Era o único de seus filmes que ainda não tinha assistido, e o fato dele ser seu primeiro longa e de ter surgido de um momento tão forte em sua vida, me fez esquecer completamente do cansaço e ir concluir minha ‘imersão’.

O filme, inspirado na peça “Baal, também primeira peça longa de Brecht, é uma mistura entre a vida de Baal – um poeta e cantor que vive intensamente, ocupando-se de casos amorosos, bebidas e figuras marginais como ele -, uma entrevista de Einstein no Brasil, onde teria sido comprovada a Teoria da Relatividade e gravações de falas do próprio Brecht. Para mim, foi um de seus filmes mais tristes e melancólicos: suas cores são mais sóbrias, a fotografia mais fria e escura, com maiores espaços dedicados ao silêncio. Foi um encaixe essencial para concluir toda a experiência que havia vivido ali.

helena 6

Você e a forma como lida com suas linguagens me ensinam muito. Ter podido acompanhar um momento seu recapitulando tudo isso me ensinou ainda mais. Seu entendimento e respeito em relação aos momentos em que se encontra, a compreensão do que é o outro e da importância dele também se inserir no que está sendo feito, o reconhecimento que o ato de criar surge a partir de vários, que precisa do coletivo, de pessoas, diferenças, misturas, de corpos que vão além de si mesmos, tudo isso me fez compreender que seu maior gesto autoral está em sua forma de viver e reinventar a vida. É este aprendizado que mais guardo em mim de nossa experiência.

É um prazer te conhecer.

_____

(Agradeço a todos que

contribuíram para a construção

desse texto e ao Lucas.A,

que teve uma participação

essencial no processo da entrevista.)

_____________________________________

Notas:

1*Antônio Abujamra entrevistando Helena no programa Provocações do dia 30/11/2010

2* Eletiva : nome dado as matérias escolhidas, criadas e inventadas pelos alunos do Casa Viva, nosso espaço dentro do currículo escolar.

3* http://www.contracampo.com.br/61/aquestaodacultura.htm

4* Evento no qual foi exibida a obra cinematográfica completa da diretora. Também houve a ocorrência de uma Master Class com Helena, da qual, inclusive, retirei várias das citações utilizadas ao longo deste texto.

 

Pílulas Sobre Naomi Kawase e a EICTV

FullSizeRender

Joana Oliveira

Resgate

Há muito tempo queria voltar à escola de cinema onde estudei por dois anos em Cuba. Tinha tido algumas oportunidades de visitar ou trabalhar ali, mas elas nunca se concretizaram. Fazia doze anos que não retornava à ilha quando fiquei sabendo da seleção para o workshop que a diretora japonesa Naomi Kawase daria dentro da maestría “Cine-Ensayo”. Algo clicou dentro de mim. Percebi que durante a minha especialização em direção de ficção tive aulas com diretores homens, somente. Algumas poucas mulheres me deram aulas, mas não de direção de ficção. Eu era a única aluna nessa especialidade naquele ano e me sentia muito sozinha. Há momentos em que um resgate do passado surge como uma reconciliação. Eu resolvi que merecia reviver o meu. Com uma passagem de avião divida em 10 prestações, uma bolsa ganha para pagar o curso e uma câmera emprestada de um amigo, passei doze dias na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños.

Expectativa

É importante mencionar que a EICTV é um internato rural afastada das cidades. Em volta há plantações e algumas casas de camponeses. San Antonio de Los Baños, a pequena cidade mais próxima, fica há seis quilômetros e a internet da escola não é boa, como a maioria dos lugares em Cuba. Digo isso porque, afastados de tudo, há muito tempo livre e o tédio ajuda na proliferação de histórias e confabulações. Foi assim quando eu morei lá e em 2016 não foi diferente. Cheguei na escola alguns dias antes do workshop começar, afinal eu tinha pessoas para rever e lugares para revisitar. Fui conhecendo os estudantes de várias nacionalidades e logo comecei a ouvir os boatos da chegada da diretora japonesa. O último grande nome que tinha passado pela escola nesse ano era o de Abbas Kiarostami, que também deu um workshop para a maestría “Cine-Ensayo” e havia falecido fazia poucos dias. As pessoas já imaginavam como seria a passagem de Naomi Kawase e a comparavam com a estadia de Kiarostami. Ouvi de trabalhadores e alunos que ela traria muitas pessoas para acompanhá-la, “un secto” diziam. Falaram também que ela havia pedido três apartamentos, um cozinheiro próprio e dois tradutores. Antes mesmo dela chegar, já havia opiniões pró e contra seus pedidos para a escola. Uns achavam um exagero, afinal Abbas não tinha feito nenhum pedido especial. Outros achavam que era a excentricidade japonesa. E houve até um boato que ela era parente de Akira Kurosawa, talvez até filha. Mas ninguém sabia o que era de fato verdade e o que era mentira. De toda forma, a movimentação para receber alguém importante estava no ar e era divertida.

Basquete

Nas primeiras horas com o grupo, Kawase nos falou de seu passado como jogadora de basquete. A única coisa pela qual ela se interessava até seus 18 anos era jogar. Contou que fazia parte do time da sua cidade natal, Nara, e que já tinha planos para tornar-se uma jogadora profissional. Até que um dia tudo mudou. Ela estava em um jogo importante, uma final, e o seu time estava perdendo. Faltavam três minutos para o jogo acabar e ela olhava para o relógio que contava o tempo. Então, começou a chorar. Seu treinador gritava para que não chorasse por estar perdendo. Mas Naomi não chorava por isso. Ela entendeu, naquele momento, que o tempo passa e desaparece, sem volta atrás. Parece óbvio, mas ali aquilo lhe pareceu totalmente entristecedor. Kawase decidiu então abandonar a possível carreira como jogadora de basquete e procurar alguma profissão em que pudesse guardar o tempo. Ela queria possuir o tempo, por isso entrou para a escola de cinema.

IMG_2774

O mundo

Para Kawase o mundo existe porque ela o vê, ela o sente. A sua perspectiva é sempre pessoal. Ela filma o que é interessante para ela, o que a faz sentir-se projetada na tela.No primeiro dia de aula, Naomi nos mostrou Watashiwatsuyokukyômi o motta mono o ôkikufix de kiritoru (Eu foco aquilo que me interessa, Japão, 1988, 8mm, 5min). Esse é o seu primeiro filme, quefez com uma câmera de 8 mm. Ao mostrara imagem das tulipas que há nesse curta, ela diz não ver flores. Vê a si mesma aos 18 anos usando a câmera pela primeira vez. Naomi nos contou um pouco de sua vida; ela foi criada por um casal mais velho, pois seus pais a abandonaram. Eles tinham idade para ser seus avós. Naomi se sentia diferente de seus amigos e amigas de escola e da cidade. Ela não entendia porque tinha nascido se era para ser abandonada. A vida lhe parecia distante. Mas quando começou a filmar sentiu que as imagens a conectavam ao mundo. Ela faz filmes para sentir que está viva, não há o que filme que não esteja relacionado intimamente com a sua história. Ela falou novamente de sua vontade de reter o tempo: guardar o passado, sentir que existiu e que está viva, que continua existindo. Foi assim em seus primeiros filmes documentais, como os mais famosos Nitsutsumarete (Em seus braços, Japão, 1992, 8mm), onde filma a busca por seu pai, ou em Katatsumori (Caracol, Japão, 1994, 8mm) onde mostra e toca sua “avó”, a mulher que a criou. E é assim até hoje, mesmo em ficções como Mogari no Mori (Floresta dos lamentos, Japão/França, 2007, 35 mm) onde fala do processo de Alzheimer baseada no que estava vivendo com sua “avó” ou em Futatsume no mado (O segredo das águas, Japão/Espanha/França, 2014) que também fala de uma menina que está perdendo sua mãe, no caso baseada na perda de sua “avó” que também tinha uma ligação com o xamanismo. Os filmes existem para que tenhamos consciência de nossa própria existência e também da finitude dela. Minha sensação é que Naomi Kawase filma para poder continuar vivendo.

As aulas

Muitos professores que me deram aulas na EICTV não falavam espanhol, então eu estava já acostumada com uma tradução consecutiva. Entretanto,  Kawase não se sentiu segura com o tradutor de japonês-espanhol que havia sido disponibilizado pela escola porque ele não conhecia os termos técnicos de cinema. Começamos então a viver uma situação inusitada: tudo o que Naomi falava passava por um japonês que traduzia para inglês e logo uma tradutora cubana passava do inglês para espanhol. Como eu entendo inglês, ficava ouvindo duas vezes as traduções e me pegava pensando em formas de decifrar o que a professora realmente queria dizer entre as línguas. Percebia que Naomi acompanhava as palavras em inglês sendo traduzidas para o espanhol e olhava para os rostos dos alunos tentando entender se o que ela estava explicando entrava em nossas cabeças de forma segura. Uma assistente sempre acompanhava Naomi. Era ela quem passava os filmes e fazia as anotações necessárias. Um dia pedi para ver seu caderno – com um pouco de dificuldade, pois ela não falava muito bem inglês. Havia pequenos desenhos dos alunos e alunas ao lado das descrições em letras do alfabeto japonês. Aquilo me pareceu de uma simpatia enorme, as letras como desenhos e nossas carinhas ali, meio mangá. No segundo dia de aula, Kawase nos pediu que fizéssemos um exercício. Teríamos que encontrar um tema, filmar e editar em poucos dias. Tudo sozinhos. Iríamos passear pelos arredores e vilas próximas da escola procurando personagens e temas. Ela iria acompanhar o processo criativo e logo criticar os trabalhos. Aquilo nos soou um pouco inusitado… Não o fato de termos que filmar algo, mas que ela esperava que os trabalhos se relacionassem com os alunos de forma íntima. Havia gente que nunca tinha ido à Cuba, que tinha chegado fazia 3 dias na escola e que teria outros 3 dias para entregar o exercício pronto. Parecia um pouco exagerado o pedido de um filme com um tema que nos refletisse em tão pouco tempo e em um lugar desconhecido para a maioria. Mas, no mundo de Naomi, essa dificuldade não existe. Para ela não é possível filmar à toa. Tudo o que decidirmos filmar estará relacionado conosco pelo simples fato de não haver outra possibilidade. Se gravamos algo é porque temos que estar completamente conectados com aquilo. Parece estranho, mas é o que ela acredita. E nas apresentações dos trabalhos, Kawase soube avaliar exatamente quem havia feito algo que dialogava com sua própria alma e quem não. Um pouco assustador, um pouco xamânico.

IMG_2816

Plantar

Em uma aula eu lhe perguntei qual era sua relação com a natureza. Por causa de uma má tradução e de intervenções de outros alunos, ela começou a explicar o significado das paisagens, da mata e do mar em alguns de seus filmes. Eu retifiquei a pergunta em inglês. Queria saber se ela se relacionava com a natureza e de que forma. Naomi disse que planta desde sempre, ela come o que cultiva. Disse que só quem tem uma relação com a jardinagem ou a agricultura sabe que não adianta tentar acelerar o tempo. Você tem que esperar até que a flor se abra, até que a semente brote, até que a fruta esteja madura. Kawase, em um tom sério, contou que já aprendeu mais com a natureza sobre a vida e seu ciclo do que com o homem. Ela se diz ignorante em relação a muitas coisas, é do interior do Japão e isso faz com que não conheça muito do mundo e de outras culturas. Ela tenta respeitar o que é novo, mas tem medo do mundo moderno, do abandono de tradições e, sobretudo, da distância entre o homem e a natureza. Ela se sente bem em Nara, em sua casa, com suas plantas.

Despedida

Depois das apresentações dos nossos pequenos filmes, nos reunimos no “Ranchón”, um restaurante aberto em frente ao gramado da escola. Naomi estava jantando e tentava conversar com os alunos em um inglês muito tímido. Apesar de ser introspectiva, da dificuldade que tinha com o idioma e de ser bem séria e exigente com os nossos trabalhos, Naomi conseguia também ser bem cuidadosa e atenciosa conosco. Tentava ser simpática e me perguntou algumas vezes, pelos corredores da escola, como estava o andamento do meu trabalho. Nessa última noite, ela conversava com os alunos com uma proximidade que até então não tinha sido possível. De repente, um grito. Naomi se assustou muito e deu uns passos para trás. Todos olhamos. Uma perereca havia saltado no copo de suco de manga do seu filho. Metade do corpo verde do anfíbio estava submersa no líquido amarelo e a outra para fora. Com as patinhas, ela se segurava na borda do copo e olhava para todos desconfiada. Foi então que eu vi Kawase tirar a câmera do celular para fazer sua primeira foto. A perereca no copo. E logo, risonha, a diretora saiu tirando fotos com todos nós.

IMG_2825

 

 

Thom Andersen: Cinema, Memória e Espaço.

Thomas Andersen2

Thomas Lopes Whyte

Escrever um ensaio sobre a obra de Thom Andersen requer um cuidado redobrado. Digo isso porque, ao se lidar com um trabalho de caráter por vezes ensaístico, é preciso atentar-se não somente ao objeto último, mas também compreender e discutir os temas abordados em seus mais variados terrenos. Por mais que Hollywood e a indústria do cinema sejam pano de fundo para a maior parte de seus filmes, escrever sobre os filmes de Andersen é ir muito além, e refletir também sobre Los Angeles, memória, nostalgia e conflito. Se o ensaio não gera movimento mental e recrudescimento de ideias, ele não possui razão de existir e corre o risco de acabar limitado a um exercício inócuo de vaidade.

Seria menos frutífero concentrar os comentários ao redor de aspectos cinematográficos ligados exclusivamente à linguagem. Priorizar aspectos da montagem, o uso do som e demais ferramentas utilizadas para a criação de seus filmes, em detrimento de análises direcionadas aos temas propostos por seus documentários, seria desperdiçar as plataformas tão generosamente levantadas pelo diretor. Dito isso, e contrariado por minha própria vontade, deixo para um segundo texto a análise de Os pensamentos que outrora tivemos (2015), importante filme do diretor que merece uma discussão própria.

Professor da escola de cinema e vídeo do California Institute of the Arts (Cal Arts), na cidade de Los Angeles, desde 1987, Thom Andersen é um documentarista singular que realiza seus filmes desde a década de 1960. Uma parte significativa de seu trabalho se concentra em desvendar os códigos do cinema e explorar com rigor quase científico o vasto material dessa arte já não tão nova. Na definição do francês Serge Daney, Andersen, enquanto crítico, é um autêntico Cine-Fils. Rebento do próprio meio que ajuda a construir, o diretor lança mão de um vasto conhecimento e busca, muitas vezes em filmes comerciais e absolutamente triviais, material para discussão. As escolhas de Andersen não se restringem aos filmes de arte, geralmente aclamados pela crítica, e costumam contemplar com o mesmo interesse as obras e atuações de personalidades como Harry Langdon, Yasujiro Ozu, Masahiro Shinoda e Sylvester Stallone, como, por exemplo, em sua análise do arquétipo e representação do policial norte-americano em Cobra (1986).

Thomas Andersen4

Os ensaios visuais de Thom Andersen, algumas vezes informativos, como no caso de Los Angeles Plays Itself, se distanciam dos filmes educativos por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, possuem a vantagem de pertencer a um cinema que busca material no seio da própria indústria que o produz, o que de imediato amplia o leque de recursos relativos à sua estrutura fílmica, além é claro, de permitir a recusa de várias das convenções do gênero documental/reportagem. É também autorreferente e estabelece uma dialética direta entre ambiente gerador e produto. Ainda mais importante é a precisão com que sua montagem favorece o paralelo entre narração e imagem. A economia de texto e o rigor na escolha das palavras, ao priorizar certas linhas de raciocínio em detrimento de outras, favorece a fluidez com a qual os trechos se desenvolvem, tornando-os absolutamente interdependentes.

Em seu longa, Eadweard Muybridge, Zoopraxógrafo (1975), Thom Andersen investiga a figura obsessiva de Edweard Muybridge, fotógrafo inglês que trabalhou nos Estados Unidos e foi pioneiro na criação de uma espécie de proto-cinema. O filme é um panorama geral do trabalho e da vida de Muybridge e abarca trechos de sua obra que vão das suas experiências fotográficas no parque Yosemite aos seus incontáveis e célebres estudos do movimento.

Além da preocupação oficial em apresentar os estudos de biomecânica possibilitados pelo zoopraxógrafo, Andersen estende o limite de suas sondagens ao extrair, nas entrelinhas, análises secundárias possibilitadas pelas incontáveis séries fotográficas de Muybridege. Discute, somente a partir da análise das fotografias, temas diversos como nudez, memória e ciência.

Em seu trabalho mais conhecido, Los Angeles por Ela Mesma (2003), Thom Andersen aborda as contradições entre as diversas representações da cidade de Los Angeles e traz para a tela o que, usualmente, é colocado apenas como pano de fundo no desenvolvimento das ficções hollywoodianas. Desta vez, o ambiente urbano é protagonista e o diretor, logo no início, revela uma de suas principais estratégias como documentarista, ao afirmar: “Se podemos apreciar documentários por suas qualidades dramáticas, talvez possamos apreciar filmes de ficção por suas revelações documentais.” Essa é a essência de grande parte do seu trabalho. Esmiuçar os mais variados tipos de registro e extrair leituras preciosas a partir das entrelinhas.

É possível detectar, na parte da obra de Andersen dedicada à representação de Los Angeles, a existência de uma divisão entre duas vertentes distintas que têm a cidade como personagem. De um lado, as representações mais difundidas, predominantes e que formaram, ao longo do século passado, o conjunto de cenas que definiram o arcabouço imagético da Califórnia meridional. Do outro, as representações que contemplam a totalidade de uma cidade fragmentada, que emerge dos escombros desse protótipo de hipercapitalismo. No primeiro caso, cabe observar as variações de representação, da cidade estilizada, quase sempre resultante de um olhar impreciso e contaminado. Exemplificado com mais clareza, através das obras realizadas por estrangeiros que ajudaram a criar e difundir o mito da cidade de Los Angeles e que alternaram, ao longo do século XX, posições vacilantes entre uma adoração indulgente e repulsa incondicional. Visão essa difundida principalmente por artistas e intelectuais exilados, como Brecht, Adorno e Schoenberg. Se um dos mais importantes movimentos da primeira categoria é o cinema noir, o melhor representante para definir a segunda ordem de filmes é, como chamado pelo próprio Andersen, o neorrealismo americano.

Apesar de um variado espectro de representações e temas postos na tela, cujos deslocamentos acontecem em diversas direções de acordo com o espírito de cada época, parece haver uma barreira quase intransponível que impede Hollywood de romper com uma lógica bidimensional e voltar seu olhar para baixo. A recusa sistemática em estabelecer diálogos mais generosos com uma parcela ordinária da cidade é percebida claramente ao observar, como apontado por Andersen, a predileção da indústria por priorizar a representação de espaços mais identificáveis do território urbano angelino. Locações icônicas se repetem; o edifício Bradbury, as casas projetadas por Frank Lloyd Wright e Richard Neutra, os motéis de beira de estrada e as torres de vidro que, ao lado de Bruce Willis, foram protagonistas no filme Duro de Matar (1988) são alguns desses exemplos. Fenômeno, obviamente que não se restringe à Los Angeles, já que cada cidade ao redor do mundo, através das obras de seus artistas se projeta muitas vezes baseada em utopias e versões simplificadas de si mesmas. O problema de Hollywood, no entanto, reside em uma questão de proporção e escala, que mantém no anonimato a maior parte dos quase 4 milhões de habitantes de Los Angeles e faz com que pensemos que a cidade é composta majoritariamente por garçonetes em busca de fama, policiais cretinos e membros de gangues.

Essas representações do espaço serviram ao longo do tempo como mecanismos para reiterar ideologias da indústria, que de alguma forma ignorou as pessoas que não vivenciaram de forma direta a Los Angeles cinematográfica. Uma população exilada dentro de seu próprio território, que passou ao largo das grandes conspirações e manobras políticas investigadas por J.J Gittes em Chinatown (1974), e jamais estiveram presentes durante os escândalos da cidade retratada em Los Angeles: Cidade Proibida(1997).

Autosave-File vom d-lab2/3 der AgfaPhoto GmbH

De qualquer forma, a pressão exercida pela indústria da cultura quase sempre vem acompanhada de seus efeitos colaterais e propicia o surgimento de artistas e movimentos contra-hegemônicos, com obras originais como as de Chester Himes, David Alfaro Siqueiros e Kenneth Anger. Em campos diversos, estes estabeleceram uma relação diferente com o ambiente californiano do qual fizeram parte.

É exatamente essa a importância do trabalho de resgate e valorização de filmes construídos sob outros olhares. Rodados, predominantemente, por artistas negros, o cinema social realista americano, impulsionado pelas lutas por direitos civis, é revisitado por Andersen, que discute a importância de filmes como o pioneiro The Exiles (1961), Bush Mama (1979) e O Matador de Ovelhas (1978), dirigidos respectivamente por Kent Mackenzie, Haile Gerima e Charles Burnett. Reconhecer esses trabalhos é estimulante e esclarecedor, pois recoloca em perspectiva questões urgentes ainda em 2016, através da força retórica de um período eloquente, em que uma parte considerável do cinema, literatura e teatro convergiam para um tipo de poesia-manifesto de resistência. Tomando a precaução de não contemporizar tais obras e estabelecer relações frágeis com o momento político atual, é possível discutir e pensar até hoje a importância de se criar mecanismos que induzam o surgimento de uma cinematografia ampliada e não centralizada quanto à sua origem. A autoafirmação de comunidades periféricas, necessariamente, está atrelada à produção de material com novas referências, que possibilitem a criação de um terreno fértil para o aparecimento de novas estéticas e experiências locais.

No média-metragem Get Out of the Car (2010), filmado entre 2001 e 2009, o diretor propõe um mapeamento visual a partir do deslocamento do olhar e substitui a impressão fugaz do que é visto pela janela do carro por um olhar cuidadoso e mais aproximado do pedestre. Só através desse estreitamento na relação entre pessoa e lugar que se torna possível atribuir significados a elementos banais do urbano, como fachadas, letreiros e estruturas esquecidas nos interstícios de Los Angeles. Andersen inicia sua deriva esclarecendo, em voz off, a um transeunte, o objetivo de sua empreitada, e adota um procedimento de exploração similar ao da psicogeografia do situacionista Guy Debord. O diretor se dedica a visitar um arquipélago de pequenos lugares desconhecidos, localizados nos vácuos do tecido urbano, distantes das áreas valorizadas do West Side e do centro com seus obeliscos de vidro. Andersen navega por esses lugares ilhados, resultantes acidentais de um traçado viário obtuso, comum a boa parte das grandes cidades norte-americanas. Como um arqueólogo disposto a reconstruir aspectos de relações mais cotidianas estabelecidas pela maioria das pessoas, o diretor prefere deixar a acrópole com sua arquitetura áulica de lado e lançar seu olhar sobre a astu, ou pelo menos o que restou dela. Get Out of the Car é um filme sobre sinais, ícones e locais desbotados de uma cidade multiétnica complexa que, paradoxalmente, insiste em se projetar com a vulgaridade planificada de cartazes publicitários concebidos em uma escala grande o suficiente para serem observados de dentro de um veículo a 100 km por hora. Do chão, com câmeras estáticas, se observam sinais que vão de imensas estruturas abandonadas na margem das avenidas a murais com releituras populares de ícones cristãos conhecidos, como o Cristo Pantocrator (ethos) e o Cristo Crucificado (pathos).

Parece sintomático, no entanto, e essa é uma leitura que faço a partir de várias das obras de Andersen, que o mais famoso e reconhecido símbolo de Hollywood seja exatamente um antigo letreiro publicitário. Localizado na cadeia de colinas que separam Hollywood do vale de San Fernando, o monumento mais reconhecível do cinema se destaca imponente. Pertence a uma categoria tipológica que, segundo o casal de arquitetos/urbanistas Denise Scott Brown e Robert Venturi, pode ser denominada como arquitetura da persuasão. O valor do artefato, construído originalmente para vender casas, não reside em sua interpretação pessoal e intransferível, e sim na capacidade de comunicar ao consumidor, da forma mais direta e denotativa possível, seu valor comercial. Não é permitido supor, dado o caráter pictórico e objetivo do letreiro, uma segunda interpretação, um desvio do ponto de vista original. Se, por um lado, Hollywood, seu star system e os filmes com Douglas Fairbanks e Mary Pickford foram seminais para o desenvolvimento de uma mitologia própria do cinema e seus gêneros, por outro, a consolidação desse sistema persuasivo e desenvolvido ao redor de um modelo de produção fordista marginalizou ainda mais várias das produções dissonantes do mesmo período.

Um desses exemplos de obra relegada ao segundo plano da indústria do cinema é apresentado no filme Juke – Passagens dos Filmes de Spencer Williams (2015), em que Thom Andersen apresenta uma colagem de alguns dos trechos de filmes realizados pelo diretor, produtor e ator afro-americano Spencer Williams, um dos mais conhecidos autores dos chamados filmes Étnicos (race movies) – ainda que, até hoje, bastante desconhecido. Assim como o pioneiro e também diretor Oscar Micheaux, Williams produzia seus filmes com orçamentos limitados e os exibia, geralmente, em cinemas segregados para negros. Os filmes étnicos foram bastante populares nos Estados Unidos durante o período que vai da década de 1910 até o início dos anos de 1950 e, das mais de 500 produções realizadas durante o período, pouco mais de 100 foram preservadas. Desses registros quase obliterados, Thom Andersen evoca as origens de um cinema original e questiona a concepção histórica que hierarquiza esses filmes como produtos de segunda linha, em função de suas fragilidades decorrentes da falta de recursos.

zoom_1428091271_JUKE_STILL9@2x

Em seu texto intitulado “O mundo silencioso”, André Bazin discorre sobre o filme homônimo de Jacques-Yves Cousteau e Louis Malle e atenta para o fato de uma ampliação quase infinita das possibilidades de exploração geográfica através da câmera. No mar, somos envolvidos por uma espécie de dimensão desconhecida, mais espessa, e sujeitos a regras e forças distintas, que, subitamente e somente a partir das revoluções tecnológicas delirantes que permitiram esse mergulho em direção ao desconhecido, se tornam parte de nossa cultura. De repente, 70% do planeta, antes inacessíveis, se abrem diante da curiosidade humana. Com alguma boa vontade, é possível ver semelhanças entre o cinema de exploração e os filmes feitos por diretores como Haile Garima, Charles Burnett, Spencer Williams, Oscar Micheaux e Zacharias Kunuk, diretor do filme Inuit Atanarjuat, o corredor (2001). Com a diferença fundamental de surgirem a partir de um gesto interior-exterior, ao contrário do filme de Cousteau e Malle, essas obras atuam como escaramuças que se destacam da corrente comercial e ajudam a deslocar o centro de gravidade da temática cinematográfica em direção a um terreno democrático e mais representativo, ao explorar realidades ignoradas com o auxílio do potente registro audiovisual.

Outra das questões centrais na obra de Andersen é a preocupação em recuperar parte da memória militante norte-americana. Uma memória afetiva, envolvida por um manto nostálgico, apresentada em um de seus principais longas, Hollywood Vermelha (1996). Aqui, o diretor expõe trechos de filmes e entrevistas com roteiristas e diretores que fizeram parte da lista negra de Hollywood e foram perseguidos, durante a era McCarthy, pelo comitê de atividades antiamericanas por terem envolvimento com organizações de esquerda. O intento de Andersen não é reconstruir o período e compreender o como, mas sim os porquês. Disseca a filmografia de autores como Paul Jarrico, Dalton Trumbo e John Howard Lawson, amplificando seus discursos e motivações ideológicas para, a partir daí, compreender as motivações políticas repressivas do período.

O filme, possibilitado pelo arrefecimento das relações antagônicas alimentadas durante a guerra fria, se desvencilha da bruma paranoica que envolve Hollywood e opta por uma abordagem histórica mais justa, ou pelo menos mais direta, ao conceder parte do espaço originalmente negado aos escritores perseguidos. Para elucidar as estratégias da abordagem que guiaram parte do pensamento de Andersen em Red Hollywood, destaco outras duas, que dentre outras formas de análise histórica, contribuíram para minar a reputação de vários artistas do período.

Em primeiro lugar, uma rápida análise da conhecida frase de Billy Wilder, que disse referindo-se aos 10 de Hollywood:“dos 10, apenas 2 tinham talento, o restante eram apenas pessoas hostis”. De acordo com Foucault, uma das formas mais recorrentes de reduzir o alcance de um discurso é a partir da interdição de seus emissores. Esse mecanismo, exemplificado pelo autor através da figura alegórica do louco, possui suas variações mais sutis, e recai geralmente sobre grupos socialmente menos coesos. No caso de Hollywood e seus 10 rebeldes, basear-se em um pretenso sistema qualificativo para justificar o silêncio ao redor de uma obra, não só é cruel, como desonesto, pois afinal de contas, não ter talento e fazer filmes ruins nunca foi obstáculo para que diretores medíocres fizessem sucesso e tivessem seus trabalhos divulgados.

O segundo exemplo, em alguns pontos semelhante ao primeiro, consiste em escamotear ideias prementes, personalizando a história ao ponto de destitui-la de sua objetividade. Esse é o caso do filme recente Trumbo: Lista Negra (2015), dirigido por Jay Rouch. A obra é um melodrama protagonizado por Brian Cranston que, apesar de todo o potencial da discussão ao redor de uma temática poderosa, prefere abordar questões secundárias da vida pessoal do roteirista e deixar a política de lado.

Mais simples e objetiva, a forma de abordar o tema proposto por Andersen privilegia sempre o discurso e cria condições para que, a partir daí, seja possível estabelecer algum juízo sobre o pensamento e a obra daqueles que foram proibidos de trabalhar durante o período.

A ideia para o filme mais recente de Thom Andersen, A Train Arrives at the Station (2016), originou-se a partir de uma cena de o Filho único (1936), de Yasujiro Ozu, que originalmente compunha o corpo do longa, Os Pensamentos que Outrora Tivemos (2015), realizado pelo diretor norte americano. O trecho do filme de Ozu, integra uma compilação de cenas com trens e evoca um dos motivos mais caros e significativos do cinema. Apresentando um mosaico que une a célebre estação de Ciotat, filmada pelos irmãos Lumière em 1985, ao trem que transporta Johnny Depp em Dead Man (1995), exatos 100 anos depois, Andersen proporciona uma viagem metafórica pela própria história do cinema.

Assim como Andersen, Harum Faocki, em seu filme A Saída dos Operários da Fábrica (1995), organiza trechos originados de um motivo também filmado pelos irmãos Lumière, e monta seu curta a partir de cenas que mostram operários deixando seus locais de trabalho. O que diferencia fundamentalmente os filmes de Andersen e Farocki, nesse caso, é a distância no tratamento que os espaços da ferrovia e da fábrica, tiveram durante os 100 anos que se seguiram à invenção do cinematógrafo. Andersen opta por explorar um território mais vasto e, definitivamente, mais prolífico que o de Farocki. Exemplifica, através da escolha de seus fragmentos, o fascínio exercido pela locomotiva, seu movimento e o potencial simbólico atribuído à figura do trem, com suas chegadas e partidas.

A locomotiva, desde seu surgimento, reinou absoluta, ao menos até a fabricação do Ford T em 1908, como principal símbolo de velocidade criado pelo engenho humano. Natural que as lentes dos pioneiros do cinema tenham se voltado tão cedo para o registro desse objeto, o mais veloz que o intelecto humano havia criado até então. Representação simbólica não só de uma cinética artificial, como também do próprio homem ocidental, da razão e do otimismo implacável de um século em que ainda não era possível vislumbrar com clareza os efeitos nocivos da ciência. Com o registro da máquina e não só do trem foi possível explorar, em escalas cada vez maiores dimensões que a fotografia não conseguiria registrar e uma espacialidade que o teatro, limitado pela ribalta e o fundo do palco, não poderia reproduzir. Duas categorias de movimento, criadas e desenvolvidas ainda na aurora do cinema, podem ser exemplificadas através dos filmes A Chegada do Trem na Estação de Ciotat (1895) e The Kiss in the Tunnel (1899), de George Albert Smith.

No filme dos irmãos Lumière, a câmera, posicionada na plataforma com seu enquadramento estático, ainda se mantém refém da ideia de moldura herdada da arte pictórica e, posteriormente, da fotografia. No entanto, o enquadramento que valoriza o ponto de fuga e permite ao espectador notara aproximação dramática do trem a partir de uma longa distância, ajuda a romper com a relação umbilical entre cinema e fotografia ao potencializar a ilusão de movimento e tridimensionalidade da projeção. No segundo filme, o referencial se inverte, a câmera é posicionada na parte frontal da locomotiva e o trem passa a ser gerador do deslocamento. Apesar de ter sido precedido pelos próprios irmãos Lumière e por filmes como The Havestraw Tunnel (1897), G.A Smith se notabilizou por ter acrescentado características narrativas à técnica conhecida como Phantom Ride, que consiste em um plano subjetivo criado através do movimento suave de translação da câmera, e que sugere um levitar fantasmagórico.

Thomas Andersen3

A montagem do curta se aproveita dessa indissociável relação entre máquina e cinema para costurar uma linha temporal da imagem em movimento e usa como catalisadores os planos ferroviários mais significativos segundo as percepções únicas de Thom Andersen.

Com uma extensa carreira, Andersen esteve presente durante o ciclo de renovação do cinema norte-americano na década de 1960 e pôde acompanhar de perto várias das transformações sociais que serviram de combustível tanto para seus filmes como para aqueles realizados pelos grandes estúdios. A revolta de Watts, o desmantelamento dos movimentos sindicais durante a era Reagan, o aparecimento da cultura Yuppie, o surgimento dos blockbusters, o boom japonês no centro de Los Angeles, a popularização da cocaína, a consolidação da Califórnia como polo mundial de tecnologia, a escalada da violência policial, a latinização das comunidades ao norte da fronteira e diversos outros componentes de uma sociedade complexa e volátil registrada através de várias lentes, mais ou menos deformadas, que resultaram em filmes completamente distintos como Fuga de Los Angeles (1996), Blade Runner (1982), Um perigoso adeus (1973) e Uma Mulher Sob Influência (1974) – Todos herdeiros mutantes de visões de mundo conflituosas e muitas vezes contraditórias, alinhavados com maestria por Andersen.

Próximo o suficiente para a abordagem desses tópicos, mesmo que tangencialmente, ou temporalmente distante, como quando discorre sobre Muybridge, Thom Andersen não só se dedica ao árduo trabalho de apresentar os temas de forma descritiva, como também acrescenta uma segunda camada sobre a qual se compromete a explorar as fissuras entre os planos do acervo que toma como base. O diretor reavalia o papel do crítico e sustenta a ideia de utilizar o cinema como ferramenta basilar para a provocação de discussões urgentes. O papel do crítico não deveria se limitar ao exercício de avaliar o valor comercial, as virtudes e defeitos de um filme. Em meio a outras funções, ou disfunções, cabe ao cineasta, e também ao crítico (papel duplo assumido por Andersen), suscitar novas formas de ver o mundo, usar sua obra não como um fim em si mesma, mas, antes de tudo, como trampolim para a formação de uma cadeia cada vez mais rica e diversificada de pensamento.

Pornochanchada Brasileira: a Sobrevivência É (Sempre) um Impulso Criativo

Ensaio - adolfo

 

Adolfo Gomes

Como um grupo de técnicos desempregados e outros profissionais das mais variadas áreas fizeram do cinema o seu ganha-pão por quase duas décadas 

Cinema dá dinheiro no Brasil? Pode perguntar qualquer pai diante da inclinação “audiovisual” do filho. Pelo menos, era assim antigamente. Num país resiliente como o nosso, que pula de crise em crise, com breves momentos de euforia, é legítimo se preocupar com a viabilidade econômica de um “chamado vocacional”, ainda mais quando ele se direciona para a “esfera artística”.

Se falamos do passado – e recuando até um dos surtos desenvolvimentistas, entre tantos que já vivemos – lá pelo começo dos anos 1950, até parecia um campo promissor…O cinema. Na esteira do processo de industrialização brasileiro, começavam a surgir os primeiros estúdios cinematográficos por aqui, da Cinédia à Vera Cruz, passando pela Maristela.

Muita gente acreditou nessa utopia e uma década depois estavam todos desempregados. O cinema brasileiro continuava a existir, mas sob outro modelo: o “ideológico-revolucionário”, segundo o qual era quase uma heresia pensar em dinheiro. Tudo era arte e transformação do mundo. Não cabe nessa constatação nenhum juízo de valor. É apenas um dado concreto, evidência da irreversível marginalização de um significativo corpo técnico criado e formado para operar num regime industrial e assalariado.

Por isso, antes de qualquer especulação estética e comportamental, é forçoso reconhecer que o impulso criativo também é uma questão de sobrevivência. No caso do que viria a se configurar como a “Pornochanchada brasileira”, esse gesto darwinista nos parece essencial. Tratava-se, sobretudo, da oportunidade de um ganha-pão, seja na Rua do Triunfo ou em Madureira. A esse grupo de excluídos pela nova (e “edificante”) ordem cinematográfica da época (final da década de 60), somavam-se jovens contestadores (Person, Reichenbach, Jairo Ferreira) das emergentes escolas de cinema que despontavam, sobretudo, em São Paulo  – e cuja resposta à pergunta paterna do início do texto era mais do que eloquente (“no money!”).

Independente dos rótulos, dos gêneros a que se filiariam nas prateleiras da historiografia convencional, o movimento da pornochanchada não tinha nenhuma ideologia prévia ou pretensão de originalidade. Olhavam, como um bom comerciante, para o que estava vendendo, o que o público consumia naqueles tempos, e montavam sua “barraquinha” dramatúrgica, recheando de imagens capturadas do cotidiano possível, mesmo se os cenários recriavam outras eras – a exemplo da “sequência” do clássico de Tinto Brass, A Filha de Calígula (1981), de Ody Fraga.

O interessante é que esse mimetismo deslavado acabou por plasmar uma identidade franca, às vezes incômoda, do que nós somos e do nosso modus operandi. Um diálogo aberto e popular que comportava o machismo, a boçalidade e o preconceito no mesmo plano que a diversidade sexual, a tolerância e até o feminismo. Cio, Uma Verdadeira História de Amor (1976), de Fauzi Mansur, é um amálgama precioso desse paradoxo ambulante. No filme, o balzaquiano Francisco Di Franco se apaixona por um jovem engraxate, desgarrado na cena urbana paulistana. Depois de muito lutar contra o desejo homossexual, a figura viril do galã maduro se rende aos encantos do garoto para, na hora decisiva de consumar o “tabu”, descobrir que o que havia lá, sob a capa protetora do sexo masculino, era uma garota assustada com o mundo ameaçador à sua volta –  a “cultura do estupro” não é uma aquisição recente ao bestiário nacional.

Esse desfecho em forma de palíndromo, que troca o mote satírico da comédia de costumes a la Lubitsch e Wilder (Não Quero Ser Um Homem (1918) e Quanto mais quente melhor (1959)) pelo cariz lírico, realçando, no aparente conservadorismo do “engano”, a liberdade dos sentimentos, é tão ambíguo quanto moralista. Afinal, a despeito do assédio das  mulheres ao personagem de Di Franco, ele se apaixona, de fato, é por outro homem – se é mulher e com isso se concilia com padrão heterossexual hegemônico, é coisa da sociedade e não do indivíduo (o espectador certamente vai até o final do filme em sintonia com os sentimentos do protagonista).

Sempre no fio da navalha, a fase áurea das pornochanchadas, de meados da década de 1970 ao comecinho dos anos 80, tinha tal “liberdade vigiada”. Cínica, transgressora… Até certo ponto – para não desagradar os exibidores, também responsáveis por parte considerável do financiamento das produções. As inflexões mercantis, no entanto, não impediam a manifestação das pulsões mais recônditas, com impressionante lucidez crítica. Um grupo de donas-de-casa endinheiradas revolve alugar um ponto de prostituição por uma semana, para satisfazer seus próprios desejos em O Sexo Nosso de Cada Dia (1981), também do genial Fraga. Mas, após sete dias de intenso prazer com os mais variados tipos e preferências sexuais, encerram esse interstício hedonista na delegacia, após uma batida policial. Era a anti-alegoria, num período em que a frontalidade das abordagens havia praticamente sido descartada sob a desculpa onisciente da censura.

É habitual ao caráter brasileiro transferir para um elemento externo ou coletivo a condução das escolhas pessoais, conferindo sempre ao ambiente, ao outro, as razões (e justificativas) da nossa flexibilidade ética (“se todos burlam, por que não burlar também isso ou aquilo”, é um dos nossos mantras ancestrais). No cinema, não é diferente. Assim, por muitos anos, o que mais desagradava à “intelligentsia” cinematográfica nacional era como a turma da Boca do Lixo e afins se virava sem o mecenato oficial da então Embrafilme. Naturalmente, tal “empreendedorismo” causava desconforto por fragilizar o discurso da “tutela cultural”. O modelo da “nota promissória” contrastava com a política de alcova do financiamento público.

E neste aspecto convém não ser demasiado romântico: era uma questão de exclusão, não de opção… Com acesso às verbas estatais, qualquer “herói” da pornochanchada virava casaca. A diferença é que não havia subterfúgios e, de certa maneira, sequer escrúpulos para criar as condições necessárias para se manter o trabalho… Essa franqueza era a força, “o código de honra” entre a maioria dos produtores, atores e realizadores que militavam nas bordas do sistema da época. Abriu caminho para o que fosse necessário: o sexo explícito e a zoofilia, traduzindo, bem a seu modo transparente, essa passagem do mundo rural para a opressão urbana, o desejo velado, algo hipócrita, diante da exposição libertária do “fuk fuk à brasileira”.

Mesmo no período de decadência das pornochanchadas, a primeira metade da década de 1980, era indisfarçável que aquele mundo sujo, precário, infame e divertido, ora ridículo e cafona, dizia mais respeito à nossa realidade e hábitos do que o mais belo e engajado filme do “Cinema Novo” conseguiria flagrar. Era preciso os dois lados desse processo de apropriação e transfiguração do real, como também é lícito desconfiar que, se todos tivessem acesso igualitário às benesses oficiais, não teríamos as pornochanchadas, nem a invenção macunaímica das suas imagens, ou o mau gosto tão necessário à distensão dos sentidos e dos paradigmas estéticos. Não um pelo outro, mas os dois. O que, evidentemente, não temos agora.

 

Mulher Objeto, Mulher Sujeito

ensaio - mari 3

 

Mariana Souto

As imagens de abertura de A Mulher Que Inventou o Amor (1979) e de Karina, Objeto de Prazer (1980), ambos de Jean Garrett, são de noivas. No primeiro, uma série de manequins de vestido branco em meio à escuridão, ao som da marcha nupcial. A cena seguinte se passa em um açougue – “Casa de carnes Nenê” –, onde a protagonista sofre um estupro. Já o segundo filme é inaugurado com um plano aproximado de uma mulher de vestido branco e grinalda dançando. Logo adiante, a câmera se afasta para revelar que se trata de uma performance numa casa de striptease. A noiva se despe, no palco, sob os olhares de vários homens.

De uma imagem à outra, a desconstrução completa da atmosfera do sonho de casamento e dos ideais românticos; é outra a vida que essas mulheres levam. O tema da noiva retorna em alguns momentos dos filmes, como quando o marido de Karina se deita com uma manequim vestida de noiva, logo substituída pela própria Karina, mas essa temática é recorrente sobretudo em A Mulher que Inventou o Amor , costurando-a do início ao fim. Em dado momento do filme, cria-se uma expectativa quando vemos o interior de uma igreja decorada, os convidados à espera, a marcha nupcial anunciando a cerimônia que está prestes a começar. Doralice/Tallulah (Aldine Müller) adentra a igreja sozinha, vestida de amarelo, caminha pelo corredor e se senta em um dos bancos. A música pára. Os noivos são outros. De lá, será convidada pelo pai do noivo, um senhor, para uma noite de sexo. Dele se tornará amante. Na cerimônia de casamento, seu lugar é o de espectadora.

Depois de uma vida de prostituição, de atravessar toda sorte de situações humilhantes, Tallulah (“o nome parece tarântula”, lhe diz uma das personagens) inverte o jogo: é ela quem paga pelo sexo dos homens, é ela quem lhes cobra gemidos, quem os agride, quem os faz chorar. E é César Augusto quem se veste de noiva, enquanto ela traja um colete. Tarântula, a aranha, uma viúva negra, ataca seu par, mancha os cravos de sangue e faz da marcha nupcial uma música de terror. No final do filme, ronda pelas desertas ruas paulistanas em um vestido de noiva vermelho, transformando o filme, que já vinha demonstrando seus ares rodrigueanos, numa verdadeira tragédia.

O modo como o motivo visual da noiva é composto, pelos filmes, em imagens de grande impacto e apelo sexual, no entanto, levanta um questionamento: até que ponto esse imaginário da noiva (coroada pela pureza do branco, romantizada pela ingenuidade, portadora de uma virgindade e a quem se deflora) é uma pressão social, um desejo da mulher ou um fetiche masculino?

É curiosa a repetição do manequim[1] – a mulher de plástico, vulnerável, sem vida e sem vontades, com quem se pode fazer tudo – em ambos os filmes. De algum modo, esse recurso figura a condição de objeto das protagonistas – algo comparável ao que se passa quando Doralice é atacada no açougue. Um plano ressalta sua semelhança, na visão daquele homem, com os pedaços de carne pendurados: ali, misturada a eles, é como se fosse mais um.

Os dois filmes de Garrett trazem uma reviravolta na trama: depois de um acúmulo de abusos, violência física e verbal, as mulheres se vingam e atacam ou matam seus opressores. Após uma vida como objetos do prazer e do sadismo alheio (e de compra, como acontece com Karina duas vezes, vendida pelo pai, perdida numa aposta de pôquer pelo marido), tornam-se sujeitos. No caso de Karina, Objeto do Prazer, essa liberação é contrabalançada com a ideia de punição, visto que tanto a protagonista quanto sua advogada (e logo amante) Sheila se veem na iminência de um julgamento pela morte de Lucas (o rapaz obcecado e perseguidor de Karina, interpretado por Cláudio Cunha, também diretor de filmes da Boca do Lixo). O filme termina com uma imagem das duas, de mãos dadas, diante de um abismo (o que futuramente nos evocaria o final de Thelma e Louise), fechamento tão forte quanto o já comentado de A Mulher que Inventou o Amor .

Se, na trajetória de Karina, os homens são os algozes, responsáveis por sua exploração e sofrimento, nos braços de Sheila ela encontrará a paz e o tratamento digno que nunca teve. As duas embarcam numa bela relação amorosa – filmada, no entanto, com resquícios de uma fetichização masculina. Era frequente nos filmes da Boca a representação das relações sexuais entre duas mulheres menos como um encontro verdadeiro e mais como um mote para o voyeurismo masculino e a satisfação de seu prazer escópico – algo de que Karina se distancia, em partes, mas que não se aparta por completo.

Por mais que Karina/Maria do Carmo e Tallulah/Doralice (a mudança de nomes, demandada pelos homens, contudo é significativa de uma transformação) desenhem um arco dramático de libertação, tornando os filmes exceção naquele contexto histórico, as obras de Jean Garrett ainda são marcadas por traços presentes em outros filmes da Boca: uma extrema sexualização do corpo das mulheres – e apenas delas, ainda que elas participem de relações heterossexuais –, o ponto de vista masculino e um certo prazer, por parte da instância da direção/mise-en-scène com o sofrimento da mulher. Causa incômodo ver os filmes extraírem esse prazer sádico em expor as personagens femininas a todo tipo de situação de violência, seja sexual, física, psicológica, fazendo do estupro uma forma de excitação imagética ou dramatúrgica.

Enfim, por mais que se considere seu contexto histórico, a experiência é muitas vezes nauseante para uma mulher, em 2016, de assistir aos filmes na Boca do Lixo. A ideia primeira desse texto era fazer a crítica da representação feminina em alguns filmes do período, mas dado o indigesto da tarefa, acabei por optar tratar de obras de algum modo surpreendentes, exceções bem-vindas, portadoras de um faísca feminista; embora problemáticas por certo viés, ao menos um pouco mais abertos às possibilidades de igualdade entre gêneros e à afirmação da mulher.

 

____________________________

[1]Em Profissão Mulher (Cláudio Cunha, 1982), a figura da boneca desempenha função semelhante.

A Boca e a Ditadura

Ensaio - Douglas

 

Douglas König de Oliveira

Podemos dizer que existe algo de hediondo na tolerância mútua entre os cineastas da Boca do Lixo e os censores do regime militar, numa época em que conviveram em invulgar harmonia? Um movimento cinematográfico que surgiu no vácuo da opressão de cineastas com um discurso politizado e que teve seu ocaso juntamente com a decadência do poder dos militares, às vésperas da reabertura política, pode ser chamado de alguma maneira de oportunista?

Um questionamento filosófico recorrente é o de que, se o indivíduo não tem escolhas, ele não pode ser culpado de uma ação. Sem liberdade não existiriam opções e seria impossível estabelecer um juízo moral, decidir entre o certo e o errado, o justo e o injusto, o engajado e o alienado. O regime militar no Brasil, instaurado a partir do golpe de 1964 e marcado pelo ato institucional número cinco (AI-5), que limitou de forma violenta a liberdade de manifestação política, não deixava margem para a participação ativa do cidadão nos desdobramentos do regime, assim como aos cineastas para a crônica ou discurso crítico dos fatos recentes.

Nos anos 60, o Cinema Novo e o Cinema Marginal se destacavam como alternativas estéticas. Enquanto os cinemanovistas exaltavam personagens de ambientes rurais e agrestes, como em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, os cineastas marginais retratavam o ambiente urbano e seus tipos, como em O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, e Matou a família e foi ao cinema (1969), de Júlio Bressane. Ambos os movimentos sofreram com as restrições da censura militar, que via no discurso desses filmes ideais de esquerda e do comunismo, de subversão dos valores dos grupos sociais que deram suporte ao golpeno caso, a classe média burguesa e as ligas religiosas e dos bons costumes, além do capital externo, representado sobretudo pelos Estados Unidos. Devido à importação da paranóia macarthista, via-se em todo material cultural mais crítico ou iconoclasta uma subversão perigosa à estabilidade social e política. A criatividade e visão aguçada dos artistas eram cerceadas pela censura, pois identificavam nas expressões da cultura ideias catalisadoras de questionamentos e resistências, algo que na implantação de um governo ditatorial não é de maneira alguma desejável. A correção deste tipo de expressão era realizada pelo órgão de censura (na maior parte deste período pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas, o SCDP) através da interdição parcial ou mesmo total da obra, assim como a vigilância e por vezes prisão (em muitos casos a tortura e a morte) das pessoas envolvidas, dependendo do seu teor considerado subversivo. Isso de grande maneira freou o desenvolvimento do cinema brasileiro, que obtinha o reconhecimento internacional depois da conquista da Palma de Ouro em Cannes com O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte.  Alguns filmes não tiveram oportunidade de exibição no próprio país, considerados inadequados pela censura, mas obtinham liberação para os festivais internacionais (algo útil e desejado pelos militares, para encobrir as ações repressoras do regime).

Um terceiro modelo surgiu nos fins dos anos 60, numa região central de São Paulo em que estavam instaladas grandes empresas cinematográficas internacionais, e que virou pólo de profissionais de cinema, além de empresas de equipamentos e aspirantes a atuação. Os filmes da Boca do Lixo eram capitaneados por produtores experientes que arregimentavam as equipes de filmagem e elenco em locais como o hoje lendário (e extinto) Bar Soberano, na Rua do Triunfo, epicentro de toda essa movimentação. Diferente dos eflúvios esquerdistas do Cinema Novo ou da exuberância algo dadaísta e anti-burguesa do Cinema Marginal, os profissionais vinculados à Boca do Lixo tinham apenas um partido: o Cinema. Os cineastas obtinham uma liberdade temática e formal admirável, desde que o estamento dos lucros fosse respeitado. Era um tipo de produção desvinculada do Estado (ainda que houvesse vigilância e subordinação legal), que, aos moldes de Hollywood, se baseava no sucesso de público dos filmes para viabilizar o retorno financeiro dos patrocinadores e a manutenção das carreiras do diretor e dos atores. Desta forma, a Boca do Lixo estabeleceu quase que um sistema de estrelas, aos moldes estadunidenses, com suas musas e atores consagrados.

Um item que sempre esteve presente nestes filmes da Boca do Lixo foi o erotismo. Além de uma forma de atrair o público, também era uma maneira de amarrar o enredo, criado em torno das situações que levassem à nudez e à conjunção corporal. Por conta dessa estratégia e talvez lembrando o formato das chanchadas cinematográficas que atingiram seu auge nos anos 50, época de ouro da produtora Atlântida, estes filmes produzidos na Boca do Lixo foram apelidados de pornochanchadas, quaisquer que fossem os variados gêneros produzidos ali. Mesmo com essa imposição de compor algo que tivesse no caráter erótico uma atração, cineastas como Carlos Reichenbach, Jean Garrett e José Mojica Marins conseguiram imprimir grande personalidade aos seus filmes, assim como aspectos formais e exploração de gêneros de imenso interesse no panorama do cinema brasileiro, mesmo com severas restrições orçamentárias.

A comunhão entre profissionais da mesma área, assim como o gênio de alguns dos realizadores, tornou a Boca do Lixo praticamente um movimento, que se impôs tanto como sucesso popular quanto como um espaço de fomento de talentos artísticos originais. Ao mesmo tempo em que alguns cineastas da Boca se distanciavam dos enredos apelativos, privilegiando uma notável sofisticação estilística,principalmente no final da década de 70, alguns poucos diretores arriscavam tocar muito levemente no tema da situação política do país, do clima de opressão e perseguição. Alguns destes filmes vindos da Boca parecem não ter tido a mesma atenção da censura oficial por serem destinados a um público de formação intelectual deficitária, vindos das camadas mais pobres da sociedade. Pode-se afirmar que os censores, agora vinculados à Polícia Federal (antes eram um órgão autônomo, ativo desde o Estado Novo de Vargas) e tendo passado por um treinamento para detectar os itens subversivos camuflados nos filmes, revistas, livros e músicas, não acreditavam que tal público fosse capaz de decifrar alguma informação que ameaçasse o regime ou ter a consciência política despertada por um dos enredos picarescos que formavam a grande maioria dos filmes, com notáveis exceções. Também, com o tempo, verificaram que o erotismo podia ser uma válvula de escape para o povo, assim como o carnaval e o futebol serviram bem ao regime, na vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de 70, por exemplo, em meio aos tenebrosos anos de chumbo da ditadura por aqui. Os agentes da censura deste período agiam com certa tolerância, desprezando o argumento consagrado nos anos iniciais do regime militar de que a abordagem sexual era uma arma dos comunistas para destruir os valores familiares e cristãos que mantém o país em ordem. Ou seja, um pouco de sacanagem, diversão popular, alguns tiros e desaparecidos formavam um bom conjunto para manter os militares no conforto do poder, sem questionamentos relevantes.

Uma notável exceção foi o filme de um dos mentores da Boca, o cineasta e roteirista catarinense Ody Fraga, que em 1979 lança o extemporâneo E Agora, José? Tortura do Sexo, que abordava de forma frontal e chocante a tortura e os desmandos do regime militar, que não obedecia nenhum parâmetro razoável na repressão dos que de alguma forma discordavam de seu governo. Mesmo com os quesitos obrigatórios da nudez feminina e do marido traído, por exemplo, além de uma godardiana sequência de citações libertárias do personagem principal em meio às torturas, o filme apresenta de forma muito clara o modo de operação dos agentes do DOI-CODI, que era um órgão de repressão a pessoas ou organizações que ameaçassem a segurança do regime militar. Retrata as arbitrariedades cometidas em nome dessa vigilância, como a tortura e a execução de pessoas suspeitas que, muitas vezes, não tinham nenhuma ligação com práticas ou grupos contrários ao regime. O filme encerra com a citação do artigo 5º da Declaração Dos Direitos Do Homem, que diz: “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Uma afronta assim às práticas criminosas do governo militar só pôde se concretizar graças a um chamado abrandamento da censura e pela intercessão de algumas pessoas vinculadas ao regime. Mas é marcante também por uma divergência da alienação esperada de um filme vindo da Boca do Lixo,tendo uma abordagem até mais crua e realista que o posterior e melhor produzido Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, financiado pela Embrafilme e censurado quando de seu lançamento e premiação nos festival de Gramado, além de uma pretensa tournée por festivais no mundo. O que se nota no tratamento destes dois filmes é a questão da visibilidade. Um produto precário e de possível pouca repercussão nos meios políticos e intelectuais, como o filme de Ody Fraga, tem uma tolerância maior do que o filme de Roberto Farias, pois poderia comprometer menos a falsa imagem tolerante do regime no exterior.

Os militares brasileiros não foram os primeiros a notarem que o cinema é um importante veículo de propagação de ideais políticos.A criação da Embrafilme, em 1969, marcou a tentativa de estabelecer uma relação com os cineastas brasileiros,através da sustentação material do seu ofício, mas também do controle e seleção do que o regime militar queria que fosse expresso através do cinema como a cara do Brasil no exterior. O ditador Adolph Hitler fez isso com Leni Riefenstahl, e Vladimir Lenin com Dziga Vertov, assim como muito do cinema norte-americano da época Reagan, que carregava o ideário do Partido Republicano nos enredos e personagens. A resistência ao cinema engajado também existiu no principio do Neorrealismo, com Visconti e Antonioni mostrando uma Itália(a dos pobres das margens do rio Pó) que Benito Mussolini não queria deixar o mundo conhecer. Também Orson Welles, quando de sua visita ao Brasil em 1942 (episódio fetiche do cineasta Rogério Sganzerla), ao tentar contar a historia dos sofridos jangadeiros de Fortaleza em seu É tudo Verdade, foi censurado pelo governo de Getúlio Vargas. O cinema da Boca do Lixo passou algo ileso a todos estes tipos de censura ou incentivo. Mesmo com cortes parciais e alguma dificuldade para se estabelecer nas grandes salas no princípio, seu conjunto de obras teve enorme repercussão entre o público e se sustentou alheio às graves dificuldades dos outros filões cinematográficos brasileiros do período.

Também não parece ter havido grande resistência dos censores quando, no inicio dos anos 80, foi adotado o padrão de sexo explícito nos filmes da Boca do Lixo, o que precipitou a sua decadência artística. Além da restrição de idade, parece que a mudança do erotismo implícito para o sexo filmado de forma objetiva não causou a resistência veemente da censura. Talvez os genitais objetificados como instrumentos, além da perene submissão da mulher a situações de abuso, não tenham tanta diferença das ferramentas de tortura e ações perpetradas pela ditadura,através da violação física, mas também psicológica e moral. As figuras dos algozes e das vítimas, sejam os machos viris e as donzelas submetidas dos filmes, ou os carrascos torturadores e os subversivos nos cativeiros da ditadura, são estruturadas da mesma maneira, ou seja, sem que uma das partes tenha qualquer chance de resistência. Utilizando uma percepção de Roland Barthes em seu livro A Câmara Clara (1980), a pornografia se difere do erotismo por não comportar um segundo sentido. É um registro homogêneo, que não pode catalisar nenhuma reflexão ou incentivar algum outro impulso vital, como o de liberdade. Esse repertório pornográfico não parece oferecer nenhum perigo aos fundamentos do poder do regime militar– antes,contribui para a alienação e satisfação emocional através da excitação sexual. A atriz Dina Sfat, como uma guerrilheira com os peitos à mostra no censurado Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, é muito mais preocupante, por seu caráter instigatório, que as garotas de baby-doll ameaçadas por aranhas nos filmes de José Mojica Marins. Também a intercessão de crítica política e escatologia como em Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), de Passolini, ou a mistura de cultura hippie e marxismo como nas orgias filmadas por Antonioni em Zabriskie Point (1970), ambos censurados pela ditadura no Brasil, não foi tentada pelos cineastas da Boca do Lixo, ou foi de forma muito sutil e indireta, como em A Ilha Dos Prazeres Proibidos (1978), de Carlos Reichenbach. Para alívio dos censores, com o sexo explícito nem era preciso se preocupar com os personagens ou com o enredo. O público já entrava na sala de cinema para absorver um único tipo de informação e não iria conjecturar outras relações a partir do que viu.

Partindo disso, podemos avaliar que a relação muitas vezes amistosa dos cineastas da Boca do Lixo com a censura do regime militar foi estabelecida diante da falta de uma alternativa. Os profissionais da Boca precisavam e desejavam trabalhar, além de os produtores não poderem prescindir dos lucros de um filme, pois seria este que viabilizaria o próximo. Num sistema independente bem diverso do financiamento estatal da Embrafilme, os filmes da Boca eram financiados por investidores privados, entre eles comerciantes e profissionais de cinema, e o parâmetro mais importante era de que os lucros cobrissem as despesas e ainda rendessem porcentagem aos envolvidos. Houve, por vezes, uma cooperação entre os produtores da Boca do Lixo e os censores do regime militar. Talvez não tenha sido um namoro daqueles de sentar no sofá de casa, como desejariam as senhoras da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, a sala de estar do golpe em 1964. Nem uma relação de submissão que algum censor possa ter fantasiado, com as musas Zilda Mayo ou Helena Ramos à sua disposição num convento de freiras ninfomaníacas, como retratado na série televisiva Magnífica 70 (2015), que recria o ambiente da produção cinematográfica nos arredores da Rua do Triunfo (documentado também em inventivos registros pelo cineasta Ozualdo Candeias). Podemos dizer que foi um namoro implícito e contingente, sem culpa, para que um lugar que era denominado de Boca do Lixo florescesse e abastecesse o prato e os sonhos de muita gente que só admitia viver de cinema.

Ritual dos Sádicos (1970), de José Mojica Marins

ritual 1

A obra-prima perdida de Zé do Caixão

Beatriz Saldanha

O meu mundo é estranho, mas é digno de todos que o queiram aceitar e nunca corrupto como querem fazê-lo, pois é composto, meu amigo, por pessoas estranhas, mas não mais estranhas do que você! (Zé do Caixão)

Olhem: o tarado me violentou. (Carlos Reichenbach)

 

Reconhecido até hoje como o principal representante do cinema de horror brasileiro, o cineasta paulista José Mojica Marins já gozava de plena popularidade em 1969, ano em que realizou Ritual dos sádicos. Seu personagem mais célebre, o agente funerário Zé do Caixão, aparecera em três longas-metragens em apenas cinco anos (À meia-noite levarei sua alma (1964), Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e O estranho mundo de Zé do Caixão(1968), e Mojica se tornara um artista multimídia, protagonizando histórias em quadrinhos, gravando marchinhas de carnaval e até mesmo tendo seu próprio programa televisivo. Foi em meio a este crescente que Mojica criou Ritual dos sádicos (1970), uma fita excepcional a começar pelo fato de que foi filmada com sobras de negativo dos filmes de seus colegas cineastas, resultando em um mosaico estético que, simbolicamente, representa a força agregadora de Mojica, o qual, não obstante ser extremamente maltratado pela crítica, era admirado e tido como um influenciador por grande parte dos diretores contemporâneos, como Luís Sérgio Person, Glauber Rocha e Rogério Sganzerla.

Em Ritual dos sádicos Mojica abandona o terreno do horror (ou o expande) para refletir sobre a sua própria criação, aparecendo, pela primeira vez, como “José Mojica Marins, o cineasta”, assim como seu alter ego Zé do Caixão. Ambientado na metrópole de São Paulo, na efervescência da contracultura e da psicodelia, a narrativa não-linear é conectada pelas cenas do acalorado debate entre um controverso psicólogo e uma variedade de diletantes anônimos acerca dos efeitos dos tóxicos na sociedade. Exemplos de “depravação” e “anormalidade” discutidos por eles ilustram o debate de forma um tanto casual, até que alguns dos personagens convergem num experimento que o psicólogo realiza para comprovar a sua teoria de que os tóxicos são estimulantes de taras, termo que dá título ao livro que o doutor publicará.

Por sua vez, tarado pela imagem, Mojica demonstra ansiedade em mostrar tudo da forma mais orgânica e explícita possível, como quando faz a atriz Andréa Bryan efetivamente inserir a agulha no pé. Devido à inabilidade da atriz com a seringa, o resultado é uma longa cena aflitiva da pele sendo perfurada. Apesar da temática fetichista – a cena termina com a moça sentando em um penico, para o deleite de um bando de tarados/viciados –,o tratamento dado aos corpos aqui não difere muito dos filmes de horror que consagraram Mojica. Os belos corpos femininos de algumas das atrizes são mostrados em planos muito aproximados e por ângulos inusitados (incluindo sua marca-registrada: a tomada baixa por entre as pernas das garotas), como se, por si só, celebrasse uma pureza anterior à depravação. As cenas de sexo são doentias e quase sempre trazem personagens angustiadas, humilhadas, violentadas e, num caso mais extremo, morta de maneira brutal, o que soma à uma certa tendência mojicana de representar a mulher de maneira domesticada e absolutamente submissa.

ritual 2

Quer tenha sido ou não sua intenção, Mojica constrói em Ritual dos sádicos um ensaio cínico sobre os indivíduos e seus papéis sociais, sobre jogos de poder entre os homens e as mulheres, o cafetão e a prostituta, o empregador e a candidata, o traficante e os usuários e, por fim, a matriarca e seus subordinados (família e serventes). Este último caso se refere ao episódio no qual uma socialite dispensa o marido e os empregados, fingindo que vai dormir. Ela permite que fiquem na sala apenas a filha adolescente e o mordomo negro. Todos embarcam naquela encenação de maneira fria, conscientes da inevitabilidade do que está prestes a acontecer e coniventes com a tara da patroa. Escondida, a mulher observa os dois fazerem sexo enquanto, sob influência de drogas, acaricia a crina de um cavalo que levara para dentro de casa. O animal dá o tom surrealista a esta sátira à burguesia, com ares de Buñuel.

Reforçando a ideia de Mojica como agregador, integram o elenco em papéis pequenos os diretores Maurice Capovilla, João Callegaro, Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira e o ator Walter C. Portella, como participantes do debate em que Sérgio Hingst interpreta o psicólogo. Ao diretor Ozualdo Candeias (um dos nomes mais significativos da Boca do Lixo, autor de A margem, filme que originou o “Cinema Marginal”) foi reservado um papel maior, de um contador misógino cuja tara é colocar mulheres de quatro e chutar-lhes os traseiros, engrandecido ao final da cena com uma contra-plongée. Já o amigo e produtor Mario Lima faz um homem que tem fetiche em lavar lingeries num tanque, completando o grupo de quatro pessoas que se submeterão à vivência de alguns dos acontecimentos artísticos mais fortes daquele período: uma peça do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa (que faz uma breve aparição), uma festa hippie com música psicodélica e, por fim, um filme de Zé do Caixão. Entre todas as experiências que captam com exatidão l’air du temps, o filme de terror é escolhido pelos voluntários como a mais intensa. Assim, sob suposta influência de LSD, os quatro entregam-se a uma viagem alucinante ao mundo infernal do Zé do Caixão, o único momento colorido do filme, um clima lisérgico e pesadelar, em consonância com algumas das grandes obras contemporâneas do horror internacional, como o japonês Jigoku (1960) e as produções de Mario Bava, diretor italiano conhecido – entre outros aspectos – pelo uso de luzes coloridas de maneira semelhante a que Mojica banha seus delírios caóticos.

ritual 3

“Suposta” influência porque, ao invés de LSD, o psicólogo administrara nos voluntários doses de água destilada. Ou seja, todo o passeio histriônico pelo inferno tropicalista de Zé do Caixão é senão uma extensão da mente de cada uma daquelas pessoas, bem como um memorando do próprio Mojica sobre a dimensão do seu personagem dentro do imaginário popular, tema que retomaria em Exorcismo negro (1974) e Delírios de um anormal (1978). Realizado em plena ditadura militar, Ritual dos sádicos, o filme mais poderoso feito por José Mojica Marins, jamais foi lançado em circuito comercial, sendo exibido em alguns festivais a partir da década de 1980 com o título O despertar da besta. Ultrajante e provocador, como conclui Carlos Reichenbach em sua crítica ao filme, “é uma daquelas coisas que aparecem na vida da gente uma só vez!”.

 

Palácio de Vênus (1980), de Ody Fraga

Palácio de vênus

Ody Fraga e seu proto-palácio dos desejos e do comércio

Adolfo Gomes

Sexo e transgressão ou a política como prática de alcova parecem associações quase incontornáveis em sociedades de formação puritana e elasticidade ética como a nossa. Por isso, o fato de transpor para um bordel de luxo os embates seculares da luta de classes – ainda que sob qualquer regime – não é, exatamente, o que mais impressiona, ainda hoje, em Palácio de Vênus (1980), de Ody Fraga. É de outra natureza a sua força inventiva: menos tópica e comportamental do que se poderia supor para um exemplar da comédia de costumes brasileira. A imprecação que esse filme lança para nós e o nosso tempo, a contemporaneidade, diz respeito a mais uma esquizofrenia típica do cinema nacional: a dificuldade de superar o viés naturalista, de aceitar o artifício como um elemento formal.

Se olharmos para a produção atual do País, é sintomática a transferência, na maioria dos casos, para os personagens – e, por consequência, para a dramaturgia em si (o roteiro, não a encenação, evidentemente) – quaisquer possibilidades de estranhamento, de formalismo que problematize essa hegemonia do naturalismo.

Nas imagens que emergem dos filmes brasileiros recentes, via de regra, não temos nenhum embate entre esses regimes de apropriação do real. Para ilustrar melhor tal perspectiva, tomemos como exemplo a sequência de abertura de Palácio de Vênus. Acompanhamos, em desfile, a apresentação das mulheres que habitam o filme (o proto-palácio dos desejos e do comércio) em poses estilizadas, entre a natureza e a mansão, com mãos impressas sobre os seus rostos, não como um índice operístico e barroco (Werner Schroeter em O Rei das Rosas (1986), é uma lembrança), mas referenciando a estética televisiva e da moda dos anos 1980, alguma coisa a meio caminho de Clodovil e Clóvis Bornay, que se traduzia no então consagrado “physique du rôle” das bailarinas do “Fantástico”.

De quem são aquelas mãos? Antes de qualquer coisa, vamos considerá-las como puro artifício, apenas o “gesto de sofisticação” que o produtor M. Augusto de Cervantes gostava de imprimir em seus trabalhos e que o público da época também apreciava. Ele sabia disso, era respeitável, de qualidade…

Ainda mais porque, após esse breve tributo ao “bom-gosto”, aquelas mulheres seriam reinseridas no real com uma transparência, familiaridade e lubricidade implacáveis. Por outro lado, devemos reconhecer que o princípio mercantil da organização do cenário, dos planos, transcende sua intenção epidérmica de emular códigos de sucesso para resultar, em seguida, numa ruptura posterior, mesmo que inconsciente.

Palácio de vênus2

Todos os tipos – dos políticos aos atávicos coronéis, passando pela cafetina e pelas “operárias” – partem da mesma forma, dos estereótipos, dos clichês imanentes dos papéis sociais, para uma quase desdramatização. No fim das contas, esses personagens ganham volume próprio, são “gente como a gente” em situações prosaicas, diante de necessidades comuns, afetos, reivindicações, desigualdades e injustiças, mas também graça, ironia e pureza.

Palácio de Vênus, portanto, instaura já na sua imagem inicial, na introdução àquele mundo, a máscara das coisas e anseios que não são os nossos, que não pertencem ao nosso modo de agir. De certa forma, um imaginário imposto por uma indústria cultural e por seus instrumentos de mediação – afinal, ninguém se posta atrás de uma árvore, no pomar de um sítio, exibindo no rosto as pinturas de uma bailarina do “Fantástico” sem requisitar uma câmera, um olhar – e isso, pensando bem, é um bocado insólito, não?

Mas se o filme de Ody Fraga nada tem de extravagante e estranho, para além da abertura “posada”, é porque ele completa o movimento esboçado ali, aprofundando, a partir da dissonância, do artificial e, através da imagem principalmente, uma espécie de supranaturalismo, a instância da arte, da invenção da realidade que, ao contrário, de boa parte dos filmes contemporâneos, é, aqui, algo endógeno ao modelo de produção – o caráter instintivo, precário de uma empreitada independente e marginal – em contraposição aos paradigmas consagrados, comerciais e artísticos, do cinema autoral com financiamento público.

Então, se cabe uma resposta: aquelas mãos sobrepostas nos rostos das atrizes bem que poderiam ser os vestígios de uma forma de representação da vida, da natureza, do sexo e da liberdade que Fraga soube subverter da maneira mais simples e inexorável: através das imagens, sempre a imagem.

 

Editorial Edição #01

Em suas jornadas pela Espanha, Dom Quixote lidou com o escárnio de seus concidadãos, a piedade de conhecidos e familiares, o apoio oscilante de Sancho – e, obviamente, o abnegado e resiliente suporte de Rocinante. Tísico comprovado, o pangaré serviu de veículo para que o Cavaleiro da Triste Figura completasse suas missões e, consequentemente, conquistasse um lugar de absoluto destaque na história da literatura mundial. Acredito ser possível criar um paralelo entre a figura de Rocinante e a da crítica,  prática milenar, tão reiteradamente desafiada, mas responsável por, até hoje, nos ajudar a abrir novos espaços entre diversos territórios, expandindo nosso olhar, contestando nossas convicções e tornando nossas aventuras estéticas mais abrangentes e ricas.

Ao fundarmos a revista Rocinante, objetivamos, acima de tudo, introduzir novas vozes no âmbito da crítica cinematográfica brasileira, ampliar um diálogo crescente e propor vias de acesso originais a obras variadas. Nossos críticos, oriundos de áreas e possuidores de estilos bem diferentes, têm em comum o amor pela sétima arte e o interesse em dividir com os leitores interpretações desafiadoras e bem fundamentadas.

O site é dividido em três partes distintas. Na sessão Lançamentos, organizamos textos críticos relacionados a filmes recém-saídos de cartaz, prestes a entrar ou ainda em circulação no mercado brasileiro. Não há restrições em relação a tipos, gêneros ou nacionalidades – a corrente edição cobre, por exemplo, da animação americana Anomalisa ao colombiano O Abraço da Serpente, contemplando ainda, dentre outros, a trilogia As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, e a mais recente realização de Hou Hsiao-Hsien, A Assassina.

Na sessão Temáticos, agrupamos críticas que orbitam em torno de um assunto comum, ainda que articulando perspectivas e conclusões diversas. Em nosso número de estreia, o tema é cinema de terror contemporâneo. Gênero fundamental na história do cinema, dono de uma sobrevida impressionante, renovando-se constantemente no interior de variegados ciclos e mantendo um potencial, ao que tudo indica, irrestrito de atração, o terror passa por uma fase riquíssima, inspirando autores de muitos cantos do mundo a produzir grandes obras. Juntando na mesma sessão análises de filmes tão díspares quanto o iraniano Garota sombria caminha pela noite, o brasileiro Mar negro, o blockbuster americano Rua Cloverfield, 10 e o western de terror Bone Tomahawk, estabelecemos um recorte que visa apresentar à audiência o nível de pluralidade e potencialidade que, atualmente, embala o gênero.

Finalmente, na sessão Livres, compilamos textos de procedências distintas, não necessariamente veiculados ao tema da edição ou mesmo ao formato da crítica (podem ser ensaios, entrevistas, resenhas, traduções, crônicas de natureza mais confessional, etc.), mas que tenham em comum o compromisso em exprimir um olhar particular sobre algum assunto cinematográfico. Nessa edição, dois ensaios – sobre a presença do Mal no cinema e sobre a obra do francês Philippe Grandrieux – dividem espaço com entrevistas concedidas pelos autores Rodrigo Aragão e Robert Eggers, responsável pelo impressionante A Bruxa.

Nossas edições serão lançadas bimestralmente e, embora apresentem pautas diferentes, manterão uma estrutura algo semelhante à apresentada aqui. Esperamos que vocês, leitores, nos acompanhem em nossas aventuras cinematográficas e, como Quixote, sejam transportados, de uma forma ou de outra, a novos mundos.

Fábio Feldman.

A Força dos Sentidos (1978), de Jean Garrett

A força dos sentidos

O insólito Garrett

Thomas Lopes Whyte

Nascido no remoto arquipélago de Açores, o português José Antônio Gomes Nunes da Silva (1946), conhecido como Jean Garrett, emigrou para o Brasil ainda adolescente, onde se estabeleceu como um dos mais importantes cineastas do ciclo da Boca do Lixo. Trabalhou como fotógrafo de moda e seu primeiro contato com o cinema foi através de José Mojica Marins, com quem colaborou no episódio “Pesadelo Macabro” do filme Trilogia de Terror (1968) e em O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968). Participou também de produções com Ozualdo Candeias, Ody Fraga e Fausi Mansur.

Para compreender a obra de Jean Garrett é necessário contextualiza-la dentro do cenário cinematográfico paulista das décadas de 1970 e 1980. Baseados em um sistema financiado pelos próprios produtores e seus parceiros investidores, os filmes da Boca, ao contrário daqueles produzidos no Rio, que contavam com o suporte mais generoso da Embrafilme, tiveram, por força das circunstâncias, que estabelecer sua estética e convenções a partir de uma relação dialética direta entre autores/produtores e espectadores. As arrecadações de bilheteria e o público, bem mais que a crítica, regiam o padrão das fitas produzidas nas proximidades da Rua do Triunfo, que, incentivadas pela lei de obrigatoriedade de exibição adotada durante o regime militar, desbravaram um nicho sem concorrência com o aríete formado por mulheres nuas, deboche e títulos apelativos.

Os diretores, no entanto, apesar do caráter comercial de suas obras, conseguiram espaço suficiente para produzir um cinema autoral e passaram a desenvolver, cada qual a seu modo, várias fórmulas que pudessem se encaixar no padrão vacilante de produção da Boca. Se alguns deles, como David Cardoso, dedicavam-se a fazer filmes que descambavam diretamente para a sacanagem, sem muito refinamento e balizados exclusivamente pelo gosto popular, outros como Garrett, que possuía pretensões artísticas mais ambiciosas, se esmeravam em não permitir que suas mise-en-scènes e seus planos fragilizassem a narrativa. Transitando por diversos gêneros, como o cinema catástrofe de Noite em Chamas (1978) e o erótico, Mulher, Mulher (1979), o diretor se firmou como um competente autor de suspenses e buscou no fértil campo do maravilhoso material para suas histórias, geralmente bem acabadas, com enquadramentos inventivos, movimentos de câmera mais complexos e cenários geralmente mais depurados para os padrões da Boca.

Em A Força dos Sentidos, obra de 1978, Jean Garrett apresenta um excelente thriller. Conciso e bem amarrado, o filme se passa no litoral e é filmado sobre uma atmosfera diáfana que explora os limites entre sonho e realidade. O diretor português, ao lado de Carlos Reichenbach, responsável pela fotografia, consegue habilmente criar um ambiente misterioso, próprio do terror psicológico de filmes como os de Dario Argente e Mario Bava.

Flávio, o protagonista, é um escritor que aluga uma casa de praia em um vilarejo isolado para poder se dedicar ao seu próximo trabalho, e se vê, à medida que os acontecimentos se desenrolam, envolvido por encontros estranhos e a perturbadora visão de um homem nu, morto, trazido pela maré. O personagem interpretado por Paulo Ramos é a encarnação do herói típico das narrativas clássicas. Uma versão boqueira de personagens como Odisseu, que, em alternativa aos confrontos com as versões femininas monstruosas representadas pelas mitológicas erínias, harpias e górgonas, se confronta com as três mulheres que o seduzem ao longo do filme, antes que possa travar o contato derradeiro com a personagem misteriosa interpretada por Aldine Muller.

O filme segue uma estrutura ambivalente e é dividido em noite e dia. As regras entre as relações de Flávio e os habitantes do vilarejo se alternam drasticamente a cada mudança de ciclo. O erotismo aqui se apresenta sempre durante a noite, quando as forças atávicas atribuídas ao instinto afloram e fazem com que as mulheres, presas durante o dia em suas relações sufocantes, possam se libertar.

A força dos sentidos 2

É importante ressaltar, porém, os limites dessa liberdade. Diferente do furor dionisíaco que acomete as bacantes de Eurípides, a satisfação das mulheres em seu estado de transe, no filme de Garrett, somente reforça o ponto de vista tradicional de uma masculinidade viril, ao associar necessariamente o prazer feminino à figura de Flávio, projeção, pelo menos em um campo ideal, dos muitos espectadores que assistiam às sessões. Fosse como fosse, A Força dos Sentidos, assim como vários outros filmes do período, conseguiu, apesar do forte machismo, canalizar parte da revolução sexual em curso e possibilitar a abertura de alguns canais progressistas de questionamento.

De uma forma geral, a estrutura da obra assemelha-se à de diversos outros filmes, que, por sua vez, herdeiros de uma tradição narrativa clássica, devem aos contos populares parte de sua sintaxe, ao apresentar personagens arquetípicos e soluções adaptadas ao contexto local. Elemento comum a esse tipo de modalidade, os personagens-função, descritos pelo estruturalista Vladimir Propp, desempenham papel fundamental na obra de Garrett. Dentro de um cenário delimitado, cada um deles, com alguns aspectos psicológicos determinados e mais ou menos traçados, desempenham, apesar de certas variações, funções recorrentes e semelhantes a uma infinidade de outros personagens ao longo da história literária. Além do próprio protagonista, que deixa seu lar e se desloca em uma jornada pessoal de descobrimento, temos a ajudante representada pela caseira, a concha que funciona como objeto mágico e, frequentemente, é utilizada como elo entre o mundo real e o mundo de sonhos, e a tríade de antagonistas que impõem ao protagonista uma série de provações escalares, preparando-o para o desafio final.

Partindo-se desse conceito, sem, no entanto, endossá-lo por completo, dado seu caráter fortemente limitador, é possível compreender a essência do filme de Garrett, que consegue utilizar da melhor forma possível recursos absolutamente ordinários e mesmo assim, obter um filme original, que sintetiza a mais pura expressão antropofágica brasileira.

Em A Força dos Sentidos, Jean Garrett consegue se desvencilhar de alguns dos cacoetes pelos quais seu trabalho se notabilizou. A característica de cinema “casa e jardim”, termo atribuído à obra do diretor pelo cineasta Ody Fraga, que consiste na ideia de se realizar, a partir de uma história vazia, um filme adornado e sem essência, geralmente com diálogos inflados e cenários cafonas, parece não estar tão presente nesse caso. Se por um lado a escolha de Rachmaninoff para a trilha funciona como uma espécie de “verniz”, uma tentativa de seduzir a classe média mais moralista e parte da crítica, por outro, o filme, se comparado a outras obras da autoria de Garrett, não chega a pecar pelo excesso de afetação, mesmo porque, visto com o distanciamento histórico e a lente afetiva que aponta para o passado, alguns desses aspectos exagerados representam exatamente o que de melhor o cinema do diretor pode oferecer. É claro que a ideia de uma cena de sexo na praia, embalada por uma mistura de música clássica e gemidos captados em estúdio, pode soar estranha e, certamente, depõe contra o clima de suspense do filme, mas em que outro contexto, salvo pelas mãos do próprio Garrett, essa situação poderia não só tomar forma, como ser também um sucesso de público?

Além da excelente fotografia de Carlos Reichenbach, que consegue trabalhar tomadas noturnas e diurnas com a mesma consistência, é desse caldo caótico entre Ravel e camisas de gola pontuda que surge a exuberância do cinema de Jean Garrett. Um diretor emblemático, dono de um estilo próprio, nascido e criado na Boca do Lixo.