Lilian M: Relatório Confidencial (1975), de Carlos Reichenbach

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Lilian M: A esquizofrenia da alma feminina no Cinema da Boca

 Veriana Ribeiro

Os primeiros minutos de Lilian M: Relatório Confidencial (1975), de Carlos Reichenbach, começam com o plano de um gravador sendo ligado. Uma voz masculina pergunta: “Qual o seu nome?”. No contraplano do mesmo gravador, uma voz feminina responde: “Célia Olga”. O entrevistador então explica: “Seu nome no filme”. A atriz (ou seria agora a personagem?) diz: “Lilian”. Novamente a identidade é questionada pelo homem. “Seu nome verdadeiro no filme”. “Maria”, responde a mulher. Durante toda a cena, o gravador é filmado em duas posições diferente, uma para a voz masculina e outra para a voz feminina.

A cena é de um primor simbólico e cinematográfico incontestável (difícil não identificar uma referência a Godard, um dos nomes mais importantes da Nouvelle Vague). Através dessa brincadeira entre plano e contraplano, o objeto inanimado (gravador) ganha vida, sentimento, personalidade. O mesmo acontece com Maria. A personagem abandona uma vida passiva e sem desejos próprios, nem ao menos sexuais, deixando para trás o marido lavrador e os dois filhos pequenos, para seguir um vendedor charlatão até a cidade grande. No trajeto, acaba sofrendo um acidente. Morre o amante, morre Maria. Ali nasce Lilian – mesmo que ainda demore algumas cenas para ela encontrar o novo nome.

Na cidade grande, o filme muda de estilo e de gênero a cada personagem masculino que entra na vida da personagem. Lilian é comédia, melodrama, suspense policial, romance, crítica política. Assim, vai adquirindo não apenas um novo nome, mas uma nova personalidade. Precisando sempre de um homem para defini-la, a personagem – que tinha tudo para ser uma representação do movimento feminista – se vê presa à época em que o filme está inserido. Em 1975, Lilian é subversiva, é ousada, é empoderada. Em 2016, ela continua sendo tudo isso, mas fica mais fácil perceber o machismo na forma como a personagem é abordada. Por que sua narrativa precisa estar vinculada a homens? É como se ela não pudesse ter uma história forte sem um amante. Um exemplo dessa misoginia é o masoquismo que a personagem enfrenta durante a narrativa, sem nenhum motivo aparente além de mostrar a mente perturbadora de um dos seus amantes.

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Mesmo assim, é difícil não querer desvendar Lilian, essa mulher de conflitos. Mãe, mas puta. Delicada, porém bruta. Decidida e perdida ao mesmo tempo. Querendo ou não, Lilian é a representação de todas as mulheres. Olga consegue apresentar uma interpretação primorosa, com uma personagem angustiada, forte e, ao mesmo tempo, delicada.

No entanto, o filme peca em não apresentar personagens coadjuvantes que cheguem à altura da protagonista. Tratam-se de tipos: o caixeiro viajante, o vendedor charlatão, o investigador incompetente, o comunista romântico, o alemão sádico. Além disso, a passagem do tempo tornou evidente pequenos defeitos do filme. Como a dublagem, que dá um ar cômico – e amador – a todas as cenas. Alguns personagens também parecem fora de época. Se antes a verborragia do vendedor de terras ou do caixeiro viajante faziam sucesso nas comédias, agora os personagens parecem ter saído de uma esquete antiga de Zorra Total.

Mesmo assim, é impossível não se impressionar – e se encantar – com Lilian. Reichenbach parece não ter certeza se voltará a filmar, então experimenta tudo, brinca, faz vários filmes em um só. Talvez seja esse um dos principais trunfos do longa. Quando o filme está prestes a nos perder (ou nos cansar), subverte, muda o tom, se transforma em outra coisa, e temos que redescobri-lo. Amá-lo ou odiá-lo cabe ao gosto pessoal de cada um. É um filme esquizofrênico, que, apesar da personagem principal, parece mudar a cada meia hora. Em um momento, estamos sofrendo com o drama de Lilian e Fausto, um personagem angustiado e depressivo; no outro, acompanhamos uma investigação feita por um detetive incompetente que mistura comédia com a influência dos filmes de gângster. Em determinado momento, ocorre uma história de amor da personagem principal com um fugitivo político, sendo que minutos antes somos levados às risadas diante da relação de Lilian com um vendedor estelionatário.

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Após suas aventuras, Lilian volta em busca de seu marido e a vida no campo. Um retorno ao início, para tentar encontrar sua essência, ao mesmo tempo em que mostra a mudança da personagem. Lá está ela, moderna, naquele ambiente rústico e antiquado. Ela não pertence mais àquele lugar, mas é ali que procura a si mesma. Ela pode, então, reescrever sua história. Fazer um sexo apaixonado com o marido, abraçar os filhos, reformular suas próprias lembranças daquele casebre, ter voz no espaço em que sempre foi submissa.

Ao retornar ao antigo lar, o jogo entre comédia e tragédia, que ocorre durante todo o filme, fica ainda mais evidente. É cômico vê-la neste ambiente, com o marido e os dois filhos. Ela não encaixa ali. Mas também é trágico. Não é à toa que, após uma única noite de amor, Lilian precise partir ao raiar do sol, fugindo novamente em uma cena delicada e cheia de significados. A verdade é que ela não pertence a lugar nenhum.

A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur

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O gozo que não vem 

Roberto Cotta

Proibido exagero de afeto
e carinho neste estabelecimento

AMBIENTE FAMILIAR

(Aviso pregado na parede do Bar Mineirinho II)

Há um procedimento repetido à exaustão em A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur. Sempre que atitudes mais contundentes são desferidas pelos protagonistas, a montagem as opera de forma castradora, interrompendo o êxito dessas ações. É como se uma fagulha de brasa fervente fosse lançada sobre suas faces, só pra lembrar-lhes que o fracasso segue via de mão única. A reiteração desse recurso é o mecanismo arterial que bombeia o filme. É através dele, inclusive, que podemos acessar as insuficiências desses personagens ao tentarem desfrutar os prazeres desse mundo interditado que habitam. A cada nova solução imaginada, o júbilo é logo freado. O deleite dos prazeres noturnos no centro paulistano, planejado com esmero virginal, transforma-se aos poucos numa interminável tormenta.

Tal premissa, entretanto, não é servida de bandeja para sustentar qualquer fabulação moral que o valha. Pela contramão, o modo como se articula, na verdade, nos revela a coerência de uma condição angustiante, recheada de sonhos suprimidos, expectativas cessadas e retornos mutilados. Desse modo, as espacialidades da mais imponente metrópole brasileira convocam seus dilemas. Os motéis, bordéis, boates e cabarés evidenciam uma estrutura desordenada entre a diversão e o trabalho, o prazer e a resiliência. Em contrapartida, as vidas que brotam dali não são suficientemente capazes de equilibrar essas diferenças, até mesmo porque aquilo que de fato consolida a crueza das ruas surge justamente de dois fatores de instabilidade: o tom desalinhado que emana de suas vivências e o modo inesperado como elas mesmas constroem seus sentidos e estabelecem suas próprias regras.

De um lado, temos prostitutas, cafetões, atendentes, comerciantes e empresários ansiosos por receber pelo trabalho que fazem. Do outro, voyeurs alucinados, clientes desesperados e transeuntes insones que experimentam um momento de lazer para fugir do azedume de suas rotinas. Cada um deles apresenta a sinceridade de seus apetites e, obviamente, todas essas aspirações se constituem através das mais divergentes perspectivas. Feito em pleno coração sepulcral do golpe militar, o filme compreende que não existem anseios populares que não possam ser reprimidos pela ordem.

A montagem, portanto, oferece um painel de estratégias que dialogam com essa condição política cerceadora, que corrói tanto aqueles que desfrutam do prazer quanto os que o utilizam como forma de sobrevivência. Além do mais, sobreviver ileso nesse universo dos prazeres remunerados é realmente para poucos. E mesmo quem parece caminhar por ali sem tropeços, ora ou outra têm suas espertezas esmagadas pela franqueza das ruas e pela crueldade – esta, sim, irrefreável – da vida adulta.

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Com a versão original censurada pelo regime, Mansur e o montador Inácio Araújo tiveram que fazer modificações para o lançamento do filme. Dentre as alterações, surgiram duas novas tramas que foram intercaladas à narrativa principal. Numa delas, a polícia persegue um assaltante de joias que invadira uma mansão. Na outra, um moço vindo do interior procura a ex-noiva grávida no centro de São Paulo. A forma desproporcional como esses enredos são entrecortados propõe os travamentos que orientam a construção estrutural do filme, ao mesmo tempo em que nos coloca em estado de suspensão e nos concede a angústia necessária para mergulharmos de cabeça nas vivências desses personagens. Entretanto, as resoluções de cada uma dessas histórias são postergadas e empurradas para o final, quando um clímax monumental explode, cruzando as três tramas e provocando o mais jactante gozo coletivo no espectador.

Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant), os protagonistas do filme, são dois jovens proletários desvairados por sexo que partem para a esbórnia noturna na capital paulista. Saindo do seu habitat de origem (fábrica, ônibus lotado, periferia), o descompasso fica óbvio. Num bordel cafona, eles se interessam por uma prostituta grávida, interpretada por Selma Egrei. Em devaneio, fantasiam seu corpo esguio a bailar, com o olhar fetichista vizinho a qualquer filme feito na Boca. Não demora muito para que um corte específico apunhale seus sonhos. Eles finalmente percebem a gravidez da moça e a rejeitam, fugindo do cabaré como dois adolescentes amedrontados pela crueza cálida da noite. O desejo então se reprime, ou melhor, a imagem verdadeira do mundo se mostra e coíbe as vontades sonhadas.

A mesma toada pavimentará o restante da sina aventureira dos rapazes, mostrando que não adianta sonharem acordados, pois a grana é escassa e a distância entre a orgia imaginada e a realidade vivida não pode ser percorrida a pé. Dessa forma, o filme segue seu curso cruel, trazendo personagens incapazes de lidar com suas próprias impotências. E todos eles (marginalizados, abobalhados, deslocados) não conseguem entender que o desfrute do prazer não pode ser obtido de maneira plena nesse lugar acabrunhado.

O que vemos a partir daí é um desvelar de situações que não se concretizam, capitaneadas por um vai-e-vem de infortúnios que assolam essa experiência atroz dos protagonistas, assim como gangrenam quaisquer possibilidades de triunfo para quem os acompanha. Não adianta espernear nem chutar o balde. “Noite é assim mesmo”, diz um deles ao amigo cansado, que pretende esquentar suas nádegas no sofá da primeira boate de quinta categoria que encontra. Mas a vida noturna na Boca não é propensa a afagar bundas-moles. Aos parcimoniosos, a única saída talvez seja reconhecer a vulnerabilidade de seus atos, o que Toninho e Giba nunca fazem.

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Desde o começo, a ideia de impedimento toma conta do filme. Um homem interrompe as encoxadas de Giba numa moça no ônibus, a mãe de Iracema evita os amassos entre sua filha e Toninho na varada de casa, o breu da noite embaça a mira do caseiro que tenta atirar em um assaltante. No entanto, é a partir do momento em que os protagonistas avistam Marcela (Marlene França) que a impossibilidade de sucesso torna-se definitiva. Com seu olhar lânguido, ela desestabiliza o ambiente, expurga a presença de todas as outras prostitutas ao redor e atrai as atenções dos dois mancebos para o resto da noitada. Aos trabalhadores e trabalhadoras da noite, a expectativa do lucro farto é sempre bem-vinda.

À espera de Ivete (Betina Vianny), sua colega de trabalho, Marcela consegue ao mesmo tempo capturar os interesses de Giba e fazer com que Toninho aguarde ansioso pela formação dos pares. Enquanto isso, Fonseca (Francisco Curcio), um figurão dono de boate, tenta convencer Giba a levar os amigos para uma festinha particular em seu luxuoso apartamento. O rapaz se ofende com o convite e agride violentamente o empresário no banheiro, que acaba com o rosto prostrado dentro de um mictório. Contudo, ele não desiste de tentar saciar seus desejos e continua perseguindo o rapaz por onde quer que ele vá.

Dentre todos os freios pisados pelo filme, a sugestão de uma homossexualidade enrustida de Giba é um dos mais fundamentais. Em todas as situações em que o envolvimento homoerótico é quase levado a cabo, as resoluções são destroçadas e o personagem é puxado pelo colarinho da blusa de volta ao armário. A amizade entre ele e Toninho diversas vezes suscita essa possibilidade, quase chegando à evidência no momento em que Giba finalmente convida Fonseca para o quarto, provocando a ira do amigo e mais uma súbita irrupção de violência contra o empresário. Resta a Giba a clausura de uma vestimenta fantasiosa de macho suburbano que precisa deflorar prostitutas para comprovar ao amigo sua masculinidade.

Outra lápide de realidade que o filme rabisca é a ideia de que, em tempos nefastos, os mais talentosos dribles na moralidade deveriam ser feitos com a mais categórica ironia. Por exemplo, quando precisa convencer a mãe a emprestar-lhe um dinheiro para cair na farra, Toninho diz a ela que pretende comprar um presente para sua namorada Iracema. Por motivos óbvios, é claro que o presente nunca existirá. No mesmo dia, o pega-pega com a moça na varanda é acompanhado pelos gritos irritantes da mãe dela, bem como são reprimidos pelas palavras da própria jovem, reforçando que eles não podem transar antes do casamento. Ironicamente, isso acaba sendo mais um combustível moral para Toninho tentar aproveitar ao máximo a visita orgiástica às bocadas do centro. E, na volta derrotada para casa, ele e Giba percebem que não têm nenhum tostão para pagarem a condução. De modo zombeteiro, é justamente Iracema quem aparece e salva a pátria dos dois, doando ao namorado uma quantia para resolver a parada. Como se nada tivesse acontecido, a despedida do casal dá a entender que se encontrarão de novo à noite, provavelmente na mesma varanda de sempre.

Chapiscado por tons de fascínio pela ironização da libido masculina, A Noite do Desejo traduz o sentimento mais essencial presente nos filmes da Boca, ou seja, a busca pela liberdade sem freios, pela representação do prazer sem qualquer tipo de culpa ou limite. Contudo, para que essa essência fosse trazida à tona, os caminhos traçados seguiram uma linha tênue entre o gozo e sua possibilidade de repressão. Ao final, entendemos que a estrutura do filme é quase semelhante ao ato sexual tão vislumbrado pelos protagonistas, com direito à busca pelo encaixe perfeito entre os parceiros, à fricção de seus corpos, às juras falsas de eu te amo, aos gemidos catárticos no apogeu da transa e, até mesmo, à monotonia e ao cansaço na ressaca do pós-sexo. Mais do que tudo, no cinema brasileiro dos anos 70, o gozo sempre foi o melhor antídoto para estraçalhar a repressão.

 

 

 

 

 

 

 

Edição 1

Editorial – por Fábio Feldman

Temáticos

#1. Cinema de Terror Contemporâneo

Lançamentos

Livres

Boa Noite, Mamãe (2014), de Veronika Franz e Severin Fiala

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A inocência do medo e a perversão dos instintos

Veriana Ribeiro

O medo é uma das sensações mais instintivas do ser humano. Nos momentos de perigo, pode estimular uma série de reações físicas e mentais, responsáveis pela nossa sobrevivência.  Cabe  escolher a melhor arma para lidar com esse sentimento: fugir ou enfrentá-lo. O filme austríaco Boa Noite, Mamãe (2014), dirigido por Veronika Franz e Severin Fiala, destrincha esse sentimento desde a ansiedade até o auge do pavor. Viramos testemunhas de um terror psicológico que nos prende como um acidente no meio da estrada – não queremos ver aquelas imagens, mas ao mesmo tempo, é impossível desviar o olhar.

A obra começa com as brincadeiras infantis dos gêmeos Elias e Lukas. Logo nos primeiros minutos já entendemos a ligação simbiótica entre os dois personagens. Um precisa do outro, seja para conseguir brincar de esconde-esconde em um milharal, desvendar uma caverna escura ou se comunicar com os adultos. Por isso, a mãe (interpretada por Susanne Wuest) se torna rapidamente o estranho, que não consegue se inserir naquele mundo minuciosamente construído e partilhado. Sua presença incomoda ainda na primeira cena, em que aparece com a cabeça enfaixada no quarto escuro. Até tal momento, estávamos banhados pelo sol e pela claridade da vida pueril; logo a figura da mãe aparece, surgem as sombras, as persianas fechadas durante o dia e o silêncio.

Os meninos começam a suspeitar que a mulher embaixo das ataduras talvez não seja sua mãe e a hipótese, por mais absurda que pareça, faz todo sentido no mundo construído pelos diretores. O fato de não vermos o seu rosto até a metade do filme aumenta ainda mais nossa desconfiança. A cena em que ela caminha nua pela floresta – um sonho dos gêmeos – é a consagração dos nossos receios.  Tal como os gêmeos, somos tomados pelo primeiro estágio do medo: a ansiedade.

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Os sinais existem: ela não consegue adivinhar sua própria identidade em uma brincadeira com os filhos, apresenta comportamentos estranhos e é violenta com as crianças. Como não acreditar nas teorias dos garotos? Ainda mais quando a história desta mulher permanece um mistério. Não sabemos por que ela precisou fazer a cirurgia, o motivo de estar com raiva de Lukas, como seu casamento acabou e quem é a mulher tão parecida com ela que aparece nos álbuns de fotografia. Tudo o que temos acesso sobre a pessoa que ela era antes da cirurgia são fragmentos, como a música de ninar cantada pela mãe e registrada em uma fita, que os meninos escutam à noite, mostrando uma mulher diferente da que frequenta a casa. Ainda assim, a dúvida paira durante o filme e este é o maior trunfo da narrativa. Nenhuma prova é forte o suficiente para acreditarmos nos meninos, porém, nenhuma explicação dissipa a desconfiança que sentimos.

A ansiedade aumenta até se transformar em um medo latente e, no último terço do filme, no pavor. A mãe vira uma ameaça e para sobreviver os meninos usam a semelhança como arma. Se antes era difícil conseguir diferenciá-los, eles vão ficando cada vez mais parecidos – vestindo as mesmas roupas, usando o mesmo penteado – até ficar quase impossível saber quem é Lukas e quem é Elias.

Outras formas de sobrevivência são exploradas pelas crianças: a fuga para a cidade; a religião usada como refúgio (seja nas orações no quarto ou na ida a igreja em busca de ajuda) e as vigílias noturnas. No entanto, não existe a quem recorrer, os dois estão tão isolados do mundo quanto a casa em que vivem.

Percebendo que não há como fugir da suposta mãe, resta aos meninos enfrentá-la. É então que ocorre a virada mais importante: as vítimas viram algozes. A inocência se transforma em uma perversão infantil, da mesma forma que a brincadeira de queimar insetos com uma lupa torna-se um método de tortura nas mãos das crianças. Neste momento, o longa-metragem acaba usando imagens fortes e explícitas de violência, se afastando do terror psicológico de O Bebê de Rosemary (1968), em que nada é inteiramente revelado, para se aproximar do clima grotesco de Jogos Mortais (2004).

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Quanto maior as provas de que a mulher aprisionada pelas crianças é uma impostora, maior é o grau de violência. Os atos dos gêmeos provocam a reflexão: até que ponto o medo, o instinto de sobrevivência e a crueldade caminham juntos e são sentimentos primários do ser humano, se apresentando de forma tão contundente em crianças de nove anos de idade. Aceitamos aqueles atos porque fomos levados, durante todo o filme, a acreditar que as crianças estavam em perigo e que a mulher sem rosto é o inimigo. Talvez por isso o final seja tão simbólico: quando a resolução se concretiza, percebemos que a linha entre sobrevivência e barbárie é mais tênue do que gostaríamos de admitir.

 

A dialética do terror em A Vida Nova (2002), de Philippe Grandrieux

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Marco Túlio Ulhôa

A análise da obra do cineasta francês Philippe Grandrieux, frente à teoria interpretativa do cinema de terror como um gênero que, desde o século XVIII, passou a ser conceitualmente definido em meio aos paradigmas do romance moderno, representa um exercício investigativo capaz de conectar os desdobramentos do estilo no cinema contemporâneo a um delicado exame das figurações que garantiram à sua tradição as especificidades de um regime estético baseado no poder pictórico e simbólico das imagens que, da literatura ao cinema, produziram o seu imaginário artístico. Portanto, seria impossível traçar quaisquer perspectivas analíticas sobre o cinema de Grandrieux sem remeter às origens do terror gótico como gênero literário tardio que, em meio à arte e aos princípios racionais de um mundo iluminista, produziu um inveterado retorno à função do pathos existente na arte medieval. Esquivando-se, por sua vez, da unicidade das leituras exegéticas e das pedagogias próprias à cultura cristã, o terror moderno produziu novas imagens e formas de escrita capazes de se desdobrarem em perspectivas muitas vezes ambíguas, cujas deduções metafísicas e fenomenológicas de seus processos de significação garantiram ao gênero tanto uma guinada ao mundo romântico da crença e da fantasia, quanto ao realismo e às interpretações promovidas pela teoria cognitiva e pelo campo da psicologia evolutiva. Por sua vez, a obra de Philippe Grandrieux representa um extenso tecido conectivo entre as diferentes inscrições do terror como um gênero artístico sujeito aos domínios de uma vasta tradição crítica, de modo que seus filmes realizam as possibilidades elementares do cinema de terror através de um processo em que os efeitos do estilo na sua linguagem cinematográfica nos restam apenas como leituras residuais, porém não menos potentes, diante de produções que estão além de um gênero específico.

Entre o medo e a violência, a patologia e a barbárie, Philippe Grandrieux projetou em sua obra um espaço de síntese dos termos que, historicamente, garantiram ao cinema de terror as vocações da tradição crítica e das predefinições estilísticas. Em A Vida Nova (2002), Grandrieux propõe novas possibilidades ao cinema de terror, ao mesmo tempo em que realiza uma obra livre das estruturas narrativas que, normalmente, constituem a identidade do gênero. Para isso, o diretor desenvolve estratégias que atravessam o modelo discursivo de seus filmes, como portas que garantem a entrada do espectador em um ambiente paralelo, nos domínios de uma realidade construída, onde o espaço-tempo e as ações adquirem regras próprias, fazendo com que a sua obra se subordine ao gesto visceral que caracteriza o seu próprio método cinematográfico. Contornando a produção de um enredo descritivo, de uma história retratada em sua totalidade, ou de uma ordenação dos fatos narrativos, Grandrieux parece realizar, na mesma medida em que subverte, a tarefa ontológica que as cinematografias que constituem as bases da sua formação revelaram como a busca de uma essência imagética da linguagem cinematográfica. Tomando a manipulação das imagens como o eixo de um modelo de discurso fílmico esvaziado da função da palavra, Grandrieux realiza uma escrita puramente visual que transforma A Nova Vida em um espaço de diálogo entre os efeitos estéticos que marcaram as diferentes tendências do cinema de vanguarda da década de 1920 e os elementos que mais tarde resultariam na videoarte e no cinema experimental. Em A Vida Nova também estão inscritas as ambivalências que a influência do expressionismo alemão, do realismo que na primeira metade do século XX orientou a ficção e o documentário francês, além da constante reverência ao cinema japonês, inscreveram na obra do diretor. No entanto, para além dos realces oníricos e metafísicos que marcam a estrutura mítica e simbólica de boa parte destas filmografias – em especial o cinema clássico japonês – o livre exercício de Grandrieux, em resposta ao cinema de gênero, projeta o filme A Vida Nova em um espaço de debate em torno das bases da estrutura psiconarrativa do gênero do terror, em que o gesto terrificante que garante à etimologia do termo a sua dedução metafórica e material, representa o verdadeiro intuito por trás da obra do cineasta. Pois, em A Vida Nova, Grandrieux transforma o horror e os seus efeitos estéticos em uma ampla discussão acerca da própria materialidade do cinema, acompanhada pela forma como a dimensão política de sua obra declina nos termos de uma perspectiva biopolítica.

A sequência inicial de A Vida Nova nos revela a imagem de um corpo coletivo de pessoas que, entre a penumbra e os movimentos acelerados da câmera, figuram como espectros perante a mirada arrebatadora de algo indescritível, da natureza insólita daquilo que não tem tradução e memória. Com uma imagem paradigmática, Grandrieux nos insere no obscuro universo de A Vida Nova, onde os limites entre o delírio, o erotismo, a violência e as tramas de suas respectivas estruturas psicológicas, se confundem com a convulsão social e com os signos da barbárie. As cenas que sucedem a introdução do filme revelam corpos nus sendo manuseados como objetos, sugerindo os ultrajes da escravidão humana e a projeção do horror inscrito em nossa própria miséria histórica. Certamente, Grandrieux toma a história moderna da Europa como reflexo da ruína sob a qual se assenta a civilização ocidental. Nesse sentido, a narrativa de A Vida Nova não projeta mais do que indícios onde a escravidão sexual, a corrupção e o crime organizado compõem o solo sob o qual o enredo se desenvolve, em meio a sequências dotadas de autonomia poética frente à totalidade da obra. A dialética interna do filme de Philippe Grandrieux produz movimentos em que os sentimentos de temor e assombro se traduzem em códigos que vão da transparência das imagens, em suas violentas manifestações como registros das formas brancas do terror psicossocial, até a produção de imagens fantasmáticas, expressivamente marcadas pelos excessos das manipulações realizadas por Grandrieux. A síntese encontrada pelo cineasta se traduz em uma visão patológica e negativa da realidade, onde a fronteira entre o humano e o inumano dinamiza a experiência encarnada tanto nos gestos do seu processo de filmagem quanto na representação dos personagens como sujeitos animalizados pelo sexo e pelo desejo. A inconstância e a imprecisão sobre aquilo que se olha é parte da não-objetividade da narrativa de Grandrieux, na qual os desfoques e os recortes são a inscrição de um filme que progride através de espasmos, de fluxos que são interrompidos por cortes violentos, nos mantendo na exasperada iminência de retomar o fio narrativo de outra sequência em aberto. Eis a fragilidade apontada pelo próprio Grandrieux a respeito do sistema narrativo construído em A Vida Nova. Postura que se realiza como corpo proeminente de um método tão convulsivo quanto aquilo que o próprio filme se dispõe a mostrar.

Produzindo uma obscura e complexa interpretação cinematográfica dos caracteres do biopoder que reduzem a vida humana à sobrevivência biológica, Philippe Grandrieux introduz os silogismos das pulsões, das patologias, da animalidade e do erotismo no cerne de seu debate conceitual sobre os limites sádicos e imorais da razão humana. Declinando no lugar comum de uma perspectiva autodestrutiva, as especulações de Grandrieux não mostram mais do que apontamentos, muitas vezes perdidos e confusos, quando se tratam de interpretar a vida nua a que o homem foi reduzido, ao ser privado de todas as formas de linguagem na experiência dos campos de concentração. Entretanto, o valor do testemunho como algo que está contido naquilo que lhe falta é o eixo sob o qual o cinema de Philippe Grandrieux exerce uma potente apreciação dos efeitos materiais e imateriais do cinema, sem reduzi-lo, no entanto, aos contornos da tradição metafísica que permitiu tanto às diferentes matrizes do gênero do terror quanto à própria teoria cinematográfica, projetarem-se como reduções da demasiada humanidade do mundo poético sobre o mundo sensível. Por fim, mesmo que a obra de Philippe Grandrieux não se restrinja àquilo que podemos chamar de cinema de terror, a forma como a sua linguagem se organiza entre a transparência das formas ontologizadas da barbárie humana e a profundidade sombria do pathos imagético, nos mostra que a verdadeira sensação capaz de nos aterrorizar é aquela que redunda do nosso único e exclusivo papel de autores das forças que se mantêm em jogo na dialética do bem contra o mal.

O Mal na tela

Mal no cinema

Douglas König de Oliveira

Há pouco tempo tivemos contato com um registro paradoxal, em vídeos de produção profissional, editados com ritmo e tomadas variadas, emprestadas diretamente dos mais atraentes veículos audiovisuais do ocidente. Neles vemos homens encapuzados que submetem os cativos à exposição da câmera para depois matá-los de forma brutal, mas com um sentido de forma adequado à publicidade de sua causa. Entre decapitações, explosões em grupo e afogamentos em câmera lenta, ornados com trilha sonora épica e mensagens do grupo Estado Islâmico diagramadas de forma limpa e moderna na tela, observamos um repertório de ações já conhecidos, mas que só tolerávamos antes nas ficções dos nossos filmes comerciais. Aqui, a encenação dessas cenas rende dinheiro aos estúdios e satisfação ao público. Lá, rende dinheiro para financiar o grupo terrorista e motivação para indivíduos deslocados (principalmente jovens, o público alvo de quase tudo), numa materialmente estável sociedade capitalista, se engajarem numa luta metafísica contra os infiéis. As duas expressões utilizam o mesmo material, em que a imagem da morte é a representação base. Uma vez que a imagem cinematográfica tem a vocação de se confundir com nossa percepção de tempo e espaço não mediado pela tela, parece bastante desconfortável admitir que as mortes midiáticas promovidas pelo Estado Islâmico têm uma proximidade muito grande com as representações da morte em uma parte do cinema de horror contemporâneo. Isso pode despertar um sentimento ambivalente sobre como lidamos com essa iconografia.

O Cinema surgiu em um mundo desencantado, onde a dimensão do sobrenatural e do divino foi deixada para trás. O que importava provinha do homem e da técnica. E fruto da técnica, surgiu o olho frio e impessoal do cinematógrafo, que registrava para os irmãos Lumière, na exibição dos seus pioneiros filmes em 1895, apenas a pura realidade e tímidas ficções sobre um cotidiano caseiro. Logo depois, Georges Méliès notará que o vínculo entre o público e o que acontecia na tela era bastante forte para povoá-la de demônios e fantasmas, e ainda assim não promover uma cisão completa com a realidade. Nascia a premissa do cinema de horror, e uma convidada temida em outras situações passou a ser freqüente nos seus registros encantados: a morte,  encarnação mais pertinente do mal.

Algo do prazer do filme de horror vem da segurança de o mal estar aprisionado na tela, de podermos vivenciar e reagir a ele como algo próximo de ocorrer verdadeiramente e ainda  assim sairmos vivos. Das tramas de pactos e assassinatos extraímos um estímulo mediado por este contrato, de que nada do que acontece na tela tem relação com o que viveremos ao sair da sessão, e que tudo se move dentro dos limites da racionalidade que sustenta a civilização. Sacrifícios e maldições só adquirem forma e coerência dentro da ficção, porque o que nos traz a danação na verdade são o acaso, as más opções e o azar, independente de entidades ou destino. Então, mesmo com toda essa contrariedade com o pensamento contemporâneo, por que o cinema de horror parece tão atraente? Que forças atávicas emanam das telas iluminadas por estes registros mecânicos que, individualmente ou em grupos, os homens se reúnem para assistir? Por que muitos destes materiais são intoleráveis na realidade, mas objeto de admiração e possuidores de beleza sensível no registro cinematográfico?

O fator mais importante deste fenômeno é a ilusão de realidade que, estudada desde Munsterberg até mais recentemente por Christian Metz, é a chave do envolvimento emocional com o material fílmico. Sustentado também pela atenção e a memória, o registro cinematográfico é capaz de construir significados diversos para cada espectador, utilizando elementos de sua própria personalidade e vivência para completar o sentido e garantir a impressão de verossimilhança.  Ninguém provavelmente chora por ver um ator representar um personagem morrendo em um filme, mas pela morte do personagem, desprezando que tudo não passa de ficção. Quando o cinema trata da morte, entra em jogo tanto a noção mais ampla de finitude, quanto o potencial destruidor da ação do indivíduo, que é plenamente capaz de ser um agente tão nocivo quanto o pior vilão ou monstro dos filmes, tendo apenas os freios morais e sociais que o impedem de agir assim (ainda que isso não valha para todos, como podemos verificar nos programas policiais de fim de tarde na TV).  Não que o espectador do filme equacione desta forma cada ação dos personagens, mas este potencial latente é um desafio ao seu arbítrio, pois poderia cometer os mesmos assassínios do sonâmbulo de Caligari ou do hoteleiro de Psicose, mas opta por se satisfazer apenas em testemunhá-los na comodidade de expectador, sem conseqüências mais drásticas para atingi-lo. Sem a aura da ficção, a morte tem mais proximidade com o tédio e a estagnação. O cadáver é como um recipiente vazio, e nos perguntamos quem habitava ali antes. Nos filmes, são o resultado final de engenhosas tramas, sem que o acúmulo ou a sucessão de mortes possam nos chocar. Talvez esta barreira seja interessante, onde podemos passear pelo que de pior pode acontecer a alguém e sair leves, ilesos e abastecidos pela forma atraente que o cinema mostra os corpos falidos, as mentes voltadas para a destruição, as entidades que definem mais facilmente a torrente do mal que está difusa quando olhamos o mundo cotidiano.

Também a ordenação operada pela edição do filme é muitas vezes mais coerente do que o conjunto de impressões diuturnamente observados dos fatos e torna tolerável muitos elementos com os quais não conseguiríamos lidar tão facilmente se integrassem a realidade. Tanto um enredo relativo a uma entidade demoníaca que possui uma jovem, quanto a coleção de modalidades de tortura que compõe uma estratégia de vingança de outro personagem, se apóiam na coerência do material filmado e montado. Num processo geralmente involuntário, esta disposição de elementos isenta o expectador do remorso por testemunhar a representação das mortes, neutralizando o choque de sua veracidade e a impotência diante de um fato registrado, que mesmo com a ilusão no cinema de que a imagem é sempre o agora, não lhe dá alternativa de participação ativa. Filmes como Violência Gratuita (1997), de Michael Haneke, questionam essa passividade e apontam o expectador como cúmplice da celebração das barbaridades de um filme. Ao problematizar este julgamento da inocência de assistir o registro ficcional de um ato que condenaria se fosse concreto, Haneke agride o contrato tácito com o espectador dos filmes que mostram um horror encenado. Numa concepção que privilegie a fantasia, a morte e a dor podem ser apenas componentes para mover um drama cinematográfico, e que se encerram com o fim da projeção. Mas, pensando numa cultura cinematográfica baseada na purgação através de cenas de violência, natural ou sobrenatural, características de um gênero como o horror, é coerente a reflexão sobre sua influência na formação de nosso imaginário. No terror fisiológico de Cronenberg, por exemplo, deformações e degenerações têm uma carga poética que sustenta uma espécie de beleza, assim como nas cenas do exorcismo filmadas por Friedkin, com grande apuro visual e plástico. Uma ocasião de violação física por algum instrumento parece ser muito mais caótica e repulsiva que as mostradas em filmes, assim como a agonia da morte geralmente se estende mais do que um diretor se permite mostrar em sua obra, e a fisionomia das vítimas nas mortes reais é de tal forma grotesca e desequilibrada que não seria agradável se registrada com os mesmos recursos de quando é representada. A morte no cinema não corresponde à morte real e nem deve. Os mortos, demônios, zumbis ou psicopatas são atrações. E como a palavra denota, não devem causar repulsa verdadeira, mas uma relação de tolerância e fruição baseados nesta dimensão apaziguadora que é vocação do cinema, em seu registro do tempo e do espaço praticamente indistinto do qual vivenciamos.

O cinema de horror, em geral, se baseia na ênfase em um aspecto que possa trazer um desconforto controlado e, através dele, paradoxalmente, proporcionar prazer ao entrar em contato com o material audiovisual. Mesmo as pessoas que passam mal ou tapam o rosto nas cenas mais fortes encontram estímulo suficiente para se submeterem a estas cenas, e buscam uma fuga parcial da experiência. E este é outro fator que os filmes do gênero horror têm como diferencial: provocam excitação a partir de cenas com as quais muitas vezes não concordamos, que na verdade nos causam tensão em ver. Essa digressão na nossa bússola moral parece muito atraente, principalmente entre os jovens. Não há nenhum indício de que este expectador vá reproduzir o que vê na tela realmente, ou que consiga lidar de maneira mais fácil com o que já tenha presenciado nas imagens de um filme. A ligação mental com tal tipo de informação tem algo de diabólico, de um trato que nos tira mais do que doa, pois nada do que vemos nos prepara para a verdadeira dor, a doença e a morte. O filme de horror não é um simulador de dificuldades, como seria um equipamento que treina o aviador. É uma instância mágica, que reencanta um trecho de nossa existência, no escuro da sala de cinema, para nos distrair dos males que a cada segundo e sem misericórdia podem nos acometer.

 

Entrevista com Rodrigo Aragão

Rodrigo Aragão

por Ana Cláudia Ulhôa (com colaboração de Daniel Rodriguez)

Uma disputa de terras marcada pelo aparecimento de animais e pessoas mortas por uma criatura misteriosa; uma mancha negra que invade o litoral de um vilarejo e transforma os moradores do local em zumbis; uma mistura exuberante de lendas brasileiras, transpostas para cenários típicos do Espírito Santo: eis alguns dos temas trabalhados por Rodrigo Aragão, autor de filmes exibidos em mais de 30 festivais internacionais, em países como EUA, Holanda, Bélgica, Alemanha e Japão. Cineasta peculiar no cenário brasileiro, realizou três longas-metragens, Mangue Negro (2008), A Noite do Chupacabras (2011) e Mar Negro (2013), além de ter idealizado e dirigido um dos capítulos da antologia As Fábulas Negras (2014). Em conversa com a equipe da Rocinante, o artista capixaba revela como tem sido sua trajetória na sétima arte, por que escolheu retratar a cultura brasileira e como vê o futuro do gênero de terror no país, entre outras coisas.

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Como surgiu seu interesse pelos filmes de terror?

Meu pai era mágico e dono de cinema, então minha casa sempre foi sinônimo de filme e coisas de truque. E eu fui muito influenciado na minha infância pelos filmes dos anos 80. Sempre me encantou muito filmes como A Volta dos Mortos-Vivos, O Lobisomem Americano em Londres… Esses filmes foram muito marcantes para mim. E eu comecei muito cedo a fazer maquiagem com elementos caseiros mesmo, com coisas da cozinha da minha mãe, com massa de trigo, guardanapo, tinta guache. E eu descobri que conseguia assustar as pessoas com isso. Então eu acho que o interesse pelo terror surgiu a partir do momento em que eu descobri que era divertido assustar as pessoas. Eu me tornei profissional de efeitos especiais e comecei a fazer meus próprios filmes, muito porque, no Brasil, principalmente na década de 90, quando eu me profissionalizei se usava muito pouco efeitos especiais e eu comecei a produzir meus próprios roteiros. Foi por isso.

Como foi a sua formação?

Eu sou autodidata mesmo! Passei a vida tentando. Para fazer efeitos especiais, eu fiz curso de desenho, pintura, escultura, história em quadrinho, teatro de boneco. Eu estudei todas essas coisas, mas não me formei em cinema. Não fiz faculdade nem nada desse tipo.

Quais características dos filmes de terror lhe atraem mais, falando do ponto de vista técnico?

O terror é um gênero muito difícil. O que me atrai é que ele ultrapassa a barreira da fantasia. A coisa linda do terror é você conseguir uma reação tão verdadeira de uma platéia, como o medo, o susto, que não é real – o filme é fantasia. Isso me encanta. A pessoa entrar na sala de cinema ou colocar um filme e realmente sentir medo, mesmo sabendo que ela está totalmente segura, que o filme é mentira, que lobisomens, vampiros e aquelas criaturas não existem, faz do terror uma arte incrível.

Como você começou a fazer seus primeiros filmes? Conte-nos um pouco sobre sua trajetória.

O produtor dos meus filmes se chama Hermann Pidner. Ele conheceu meu trabalho com máscaras e bonecos e a gente resolveu, primeiramente, produzir um espetáculo de terror itinerante, chamado Mausoleum. Era um espetáculo que a gente chegou a apresentar para 30 mil pessoas, de 2001 a 2004. Isso foi a minha grande escola de terror. Porque você imagina: 30 mil pessoas! Isso quer dizer que eu vi todos os tipos de reação de medo que você pode imaginar. O grupo se desfez em 2004 e, de 2005 a 2008, eu produzi um filme no quintal da minha casa chamado Mangue Negro. Metade desse filme foi produzido sozinho e metade com o Hermann. O Mangue Negro é um filme feito para amigos, com pouquíssimo dinheiro. Enfrentamos todas as dificuldades imagináveis e inimagináveis, com o mínimo de equipamento. E ele abriu muitas portas para mim, virou cult, recebi muitos prêmios, muitas críticas positivas – e graças ao Mangue Negro esse grupo que está reunido desde o Mausoleum continuou fazendo outras coisas. Fizemos um filme chamado A Noite do Chupacabras em seguida, que teve um orçamento um pouco maior, mas foi também totalmente independente. O Chupacabras me pareceu um personagem perfeito, porque ele é algo que todo mundo já ouviu falar, mas ninguém sabe exatamente como é a cara dele. Nós levamos seis meses só pra fabricar a fantasia. Foi um filme muito bem recebido, me abriu outras portas. O meu terceiro projeto é uma obra coletiva, e digo até profética, porque conta a história de uma mancha negra que contamina os peixes do mangue e do mar e isso transforma as pessoas em zumbis em uma comunidade. Algo parecido com o que está acontecendo em Minas e no Espírito Santo por causa da Samarco. O Mar Negro foi um filme pro qual a gente conseguiu distribuição no Japão, na Inglaterra – e nos abriu ainda mais portas. Todos esses filmes são independentes. Nenhum deles teve edital nem nada do tipo. O quarto é um projeto muito antigo que se chama Fábulas Negras. Pra ele, eu pude chamar outros diretores, que ajudaram e dar uma linguagem, uma roupagem diferente às lendas brasileiras. Então é um filme feito de episódios, onde a gente conta a história da Loira do Banheiro, da Iara, do Lobisomem e do Saci. Entre esses outros diretores que participaram está o grande mestre do terror brasileiro, José Mojica. A maior honra que eu já tive na vida foi poder sentar com o Mojica na cadeira de diretor e acompanhar ele dirigir um filme sobre o Saci. Agora eu tô me preparando para a pré-produção de um filme que se chamará Mata Negra, e que vai ser o meu primeiro filme com algum tipo de incentivo. Ele passou no fundo setorial. Eu acho que vai ser um novo patamar na minha vida, porque vai ser a primeira vez que eu vou ter uma estrutura, principalmente uma estrutura técnica, profissional. Sempre trabalhei com profissionais maravilhosos, mas o equipamento sempre foi de péssima qualidade. E também estou trabalhando em transportar as Fábulas Negras para a televisão com mais episódios, porque o folclore brasileiro tem muitas lendas interessantes que podem render ótimos roteiros. Então eu tenho trabalhado nisso ultimamente. Não sei se falei demais (risos).

Como é o cenário dos filmes de terror brasileiros no país?

Eu acho que produzir filme de terror no Brasil ainda é muito difícil. Estou nessa desde 2005, então são onze anos trabalhando com cinema de terror. Mas eu acredito que o terror brasileiro está começando a entrar na moda. Acho que a gente tem um número de diretores interessados pelo gênero que nunca tivemos, um número de produções cada vez melhor e uma qualidade técnica que nunca se alcançou também. Acho que o terror teve ciclos na história do cinema, como os ingleses na década de 70, 60, os italianos da década de 70, os americanos no ápice dos efeitos especiais nos anos 80, os japoneses com aqueles filmes mais assustadores de fantasmas no final dos anos 90, os franceses ultra violentos de 2000 para cá, e eu acho que a América Latina tem tudo para ter um ciclo de terror, porque a América Latina é um território mágico, com um realismo fantástico na literatura e com possibilidades mil. Então eu vejo o futuro do terror brasileiro com ótimos olhos.

Por que você decidiu continuar no Espírito Santo?

Porque o Brasil é muito grande. O Brasil é belíssimo e eu acho que as histórias que me interessam contar são essas fábulas. Os cenários que eu tenho aqui em volta são maravilhosos. Há um potencial imenso no Espírito Santo de cenários naturais, e uma equipe com que eu amo trabalhar. Eu discordo muito que o cinema brasileiro tem que ser resumido a Rio-São Paulo. Sou totalmente contra isso. As paisagens do Rio e São Paulo já foram mostradas em várias produções e novelas. Todo mundo já conhece aquilo. O Brasil precisa mostrar outras paisagens. Diante disso, valorizo muito, o movimento cultural que vem acontecendo em Pernambuco, por exemplo.

De onde surgiu a ideia de tratar da mitologia e lendas brasileiras no seu trabalho?

Eu cresci em uma aldeia de pescadores, então, tive o privilégio de ouvir muitos “causos” e histórias na minha infância e adolescência . Sempre achei a tradição oral um uma matéria-prima fantástica para o cinema. E como fã de terror, sempre me chateou tudo ser tão americano. A gente só vê produções bacanas se passando em cenários americanos. Então eu acho que você utilizar a lenda, a cultura e cenários brasileiros é uma maneira de fazer um cinema universal. Isso pode encantar o mundo e isso pode ser uma das explicações dos meus filmes terem um êxito muito maior no exterior . Então, é meio batida essa frase, sempre falo isso, mas “encante sua aldeia e encantará o mundo”. É um lema que eu sigo.

Como foi trabalhar com o Mojica? Ele disse, em entrevista, que lhe considerava um sucessor dele. O que você acha disso?

Trabalhar com o Mojica foi a experiência mais gratificante na minha vida. Você ver o mestre lidar com os atores, conduzir uma equipe extremamente feliz, porque a energia que ele conseguia no set era impressionante, e se alimentar disso é fantástico. Ele saiu daqui rejuvenescido com o set. Isso era notório para todo mundo. Ele saiu muito feliz também por ter trabalhado num filme tão pequeno. Acho muito significativo o último filme de um ícone desses ser uma obra sem nenhum patrocínio, sem nenhum apoio, sem nada. Ele me falou que foi super bacana porque lembrou o que ele fazia nos anos 60. Sem uma equipe muito grande, mas com pessoas muito dedicadas . Foi uma experiência totalmente do bem. Quanto a esse título de sucessor, é a maior honra que eu tenho na minha vida, mas eu sei que é impossível ser o sucessor do Mojica, porque ele é um personagem único, inimitável e insubstituível. Ninguém vai fazer nada parecido com o que o Mojica fez. Não dá pra imitá-lo. Eu fico muito honrado, mas sei que é uma missão impossível.

Sobre o projeto de levar o Fábulas Negras para a televisão, você tem alguma coisa definida?

Não. Nós estamos buscando. Posso adiantar que eu já escrevi 13 episódios e todos eles se passam em regiões diferentes do Brasil. Têm histórias com ícones da cultura brasileira como o Curupira, o Velho do Saco, o Lobisomem – vários personagens interessantes. E as histórias serão ligadas muito à tradição oral, que é uma parte interessante do Brasil. Poucas obras, na verdade, foram escritas sobre esses personagens. A maioria vem da tradição oral. A gente teve o Monteiro Lobato que fez um trabalho incrível por um lado, porque tornou essas lendas conhecidas, mas, por outro lado, ele as infantilizou. Eu tento buscar a raiz assustadora dessas lendas.

 

Entrevista com Robert Eggers

Robert Eggers

por Fábio Feldman (com colaboração de Odorico Leal, Daniel Rodriguez e Vinícius Correia)

  

O mundo do terror foi recentemente tomado de assalto pelo surgimento de uma pequena joia cinematográfica do gênero. Louvado em Sundance e recomendado por entusiastas do porte de Stephen King, A Bruxa (2015) é o primeiro longa-metragem do cineasta americano Robert Eggers.

O filme conta a história de uma família de puritanos sob o ataque de entidades demoníacas, numa região desolada da Nova Inglaterra, por volta de 1630. Trata-se do resultado de muitos anos de pesquisa acerca do modo de vida e das crenças e valores das primeiras comunidades puritanas dos Estados Unidos. Eggers é um perfeccionista infernal e procurou reconstruir com o máximo de fidelidade tanto o cenário e os figurinos quanto a mentalidade e o próprio inglês austero do período. De certa forma, o diretor é um misto de cineasta e folclorista. Boa parte do material de A Bruxa foi coletado em fontes originais, como relatos sobre possessões e outras bruxarias.

Nesta entrevista exclusiva, Eggers fala sobre sua formação, influências e detalhes do seu filme de estreia.

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Comecemos com uma pergunta geral. Que aspectos particulares do do terror tendem a lhe atrair mais (tanto filosófica quanto esteticamente)? Além disso, qual é sua opinião sobre o estado corrente do gênero?

Eu não sei o que me atrai no gênero. Eu sempre fui atraído por assuntos sombrios. Sempre fui interessado por bruxas, vampiros e fantasmas. Eu sempre preferi Darth Vader ao Luke Skywalker. Escuridão é metade do que está acontecendo no mundo. E merece ser explorada. Acho que as pessoas gostam de dizer que o gênero de terror está, atualmente, em mau estado. Porém, não tenho certeza se isso é totalmente verdade. Nós apenas nos lembramos dos bons filmes – não nos lembramos dos ruins. Nós nos lembramos de O Bebê de Rosemary e d’O Exorcista, mas não nos lembramos de toda a porcaria da mesma época. Obviamente, obras como The Babadook, Deixe ela entrar e até O Labirinto do Fauno provam que há muitos bons filmes do gênero por aí, compensando a porcaria de que todo mundo reclama.

A Bruxa tem sido consistentemente elogiado pelos críticos e, em nossa opinião, é um feito cinematográfico verdadeiramente fantástico. Você poderia dividir conosco algumas de suas principais influências? Quais diretores, escritores e artistas mais costumam lhe inspirar?

Bergman. Dreyer. Murnau. Dürer. Goya. Harry Clarke. Arthur Rackham. Gustave Doré. Contos de fada, religião, mitologia…

Você tem experiência com teatro (entendemos que esteve envolvido em montagens de Shakespeare, certo?) e também alguma experiência com TV. Você pode nos contar mais sobre sua carreira antes de A Bruxa? Quais foram alguns dos seus projetos anteriores e o que acabou lhe conduzindo em direção ao cinema?

Eu comecei no teatro, no centro de Nova York. Coisas experimentais, teatro de rua, etc. Era penoso, não havia dinheiro. Eu sempre projetei as coisas que dirigia. Concebia os cenários e figurinos. Um dia, uma diretora mais experiente viu uma peça de teatro de rua que eu estava fazendo. Ela me pediu para desenvolver uns cenários e figurinos pra ela, e eu percebi que podia parar de trabalhar como garçom e, em vez disso, ganhar a vida como diretor de arte em projetos de outras pessoas. Então, comecei com teatro e dança, depois fui pra cinema e TV, comerciais não-sindicalizados, trabalhos impressos, moda e assim por diante. Por todo esse tempo, eu estava escrevendo e dirigindo sempre que podia pegar emprestado ou roubar algum dinheiro.

Tudo em A Bruxa parece fortemente fundado na realidade, até a matéria das lendas. Quão difícil foi dar uma forma tangível – e convincente – ao que mentes seculares poderiam rejeitar como simples mitos e, ao mesmo tempo, sustentar a verossimilhança ao longo de toda a estória? Além disso, como você foi capaz de gerar a atmosfera altamente imersiva do filme?

Acho que a coisa mais importante ao se fazer um filme que realmente lhe transporta é, para mim, articular as imagens como se fossem minhas próprias memórias. Precisa ser minha própria memória de minha própria infância puritana. Como era o cheiro de meu pai naquele dia nos milharais? Qual era o aspecto da névoa pairando sobre o milho? Eu preciso chegar com esse tipo de detalhe. E já que não cresci no século XVII, isso requer uma enorme quantidade de pesquisa para articular detalhes que uma pessoa teria caso aquilo fosse sua própria recordação. É isso que é necessário para se recriar um mundo onde podemos acreditar na bruxa do mesmo modo como aqueles puritanos acreditavam. Foi difícil, no começo, engolir algumas das extremas doutrinas calvinistas, mas quando você está lendo os diários de pessoas e você lê sobre seus amores e perdas, eles rapidamente se transformam em seres humanos com os quais você consegue se identificar, ao invés de extremistas loucos.

Não há dúvida de que a trilha sonora de A Bruxa desempenha um papel muito importante no filme. Você poderia falar sobre a trilha e sobre o efeito que pretendeu alcançar com ela? Além disso, como foi sua relação com Mark Korven – você também esteve envolvido no processo de composição? Trata-se de uma trilha completamente original ou ela mantém um diálogo com outras fontes?

Originalmente, enquanto escrevia o roteiro, eu não queria música. Eu queria que tudo fosse tão “real” que apenas sons diegéticos do mundo do filme estariam lá. Entretanto, percebi que estava tentando articular alguns estados oníricos e estados emocionais extremos que não são parte da paleta comum de emoções e experiências, e eu precisava de música para levar a audiência lá. Eu não podia fazer isso só com imagens. A música é original, toda do Mark, exceto por três salmos. Katherine e as crianças cantam um salmo na carroça e os dois outros estão nos créditos finais. Trabalhar com o Mark foi ótimo. Ele tem um conhecimento incrível de música antiga e coisas dissonantes do século XX, e ele não tem medo de tentar nada.

Até uma pessoa que não sabe muito sobre a mitologia cristã pode ver que há diversas referências a ela no filme. Você pode nos falar um pouco sobre os materiais que usou como fonte? Quais são algumas das estórias e lendas que o inspiraram durante a escrita de A Bruxa?

A lista é muito longa. Eu li sobre uma bruxa elisabetana que foi julgada por dar uma maçã envenenada a uma criança. Esse relato sobre uma bruxa “real” com uma maçã envenenada é anterior a qualquer relato escrito sobre a Branca de Neve que eu conheça.

De certa forma, esse filme pode ser lido como uma versão cinematográfica de um “Bildungsroman”, uma narrativa de formação. Entretanto, aqui, a personagem, ao invés de se tornar cínica e se adaptar à realidade humana, se entrega ao que escapa a tal realidade. Ela se torna uma mulher quando abraça seu destino perverso. Você pode nos falar um pouco mais sobre a personagem, o arco dela e o que você desejou alcançar representando-a do modo como fez?

Eu gostaria que as pessoas interpretassem isso por conta própria. Entretanto, eu concordo que se trata de uma narrativa de formação. Originalmente, o filme era ainda mais uma “ensemble piece[1] e não havia personagem central – mas ainda acabava do mesmo modo. Thomasin era, originalmente, uma personagem ainda mais obscura, às margens da estória, e emergia apenas no fim. Trabalhando no roteiro com meus produtores criativos, fui levado a trazer Thomasin mais pra frente. Estou tão feliz por isso ter acontecido. É difícil para mim imaginar o filme funcionando de qualquer outro modo.

Outro tema com que o filme lida é família. Há um vínculo tribal que une esses personagens – um vínculo que é gradualmente destruído pelas forças dionisíacas da floresta. Você pode nos falar um pouco sobre esse aspecto do filme, a importância por trás da representação de dinâmicas familiares e sua relevância dentro de um filme tão sombrio?

O drama familiar é o drama mais interessante; ele interpreta um papel em todos os nossos relacionamentos através de nossas vidas. Ele é potente. Algo que eu amo em contos de fada é que eles parecem ser explorações inconscientes de dinâmicas familiares difíceis. Isso é algo sobre o que pensei muito durante a escrita do filme.

Você poderia nos contar um pouco sobre seus próximos projetos, The Knight e sua reimaginação de Nosferatu? Ambos serão filmes de terror? Alguma semelhança entre The Knight e O sétimo selo? Seu Nosferatu estará mais próximo do de Murnau ou do de Herzog?

Eu gosto da pergunta sobre O sétimo selo. Surpreendentemente, acho que ninguém me perguntou isso antes.

Não posso dizer muito sobre nenhum deles, exceto que “eu amo pesquisa”.

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[1] Nota do tradutor: “ensemble piece” – trama em que todos os personagens têm uma relevância equivalente

O Abraço da Serpente (2015), de Ciro Guerra

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As memórias perdidas da Amazônia

Veriana Ribeiro

O escritor George Orwell disse certa vez que “A história é escrita pelos vencedores”. A icônica frase poderia resumir a forma como a cultura indígena é vista, principalmente na América Latina, onde esses povos ainda tentam manter suas tradições. Talvez seja esse o maior trunfo do filme colombiano O Abraço da Serpente (2015), de Ciro Guerra, que concorreu ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro em 2016: tentar contar a história daqueles que perderam.

Apesar do roteiro ser baseado nos diários de viagem do etnobotânico Richard Evans Schultes e do etnólogo Theodor Koch-Grünberg, não são eles os protagonistas do longa-metragem. A história mostrado na tela é de Karamakate, um poderoso xamã que, em momentos diferentes de sua vida, segue viagem com os pesquisadores em busca da planta sagrada Yakruna. A obra também retrata as diversas comunidades tradicionais que vivem na Amazônia Ocidental.

O passado e o presente de Karamakate são mostrados paralelamente no filme. O espectador vai aos poucos desvendando as memórias perdidas do xamã, uma clara alusão à perda da identidade indígena. A cada parada que o barco faz, uma história de violência é contada e nos faz ter a noção da dívida histórica que temos com esses povos. Somos apresentando às várias formas que eles foram massacrados na Amazônia, seja através do ciclo da borracha, do uso das religiões cristãs ou do alcoolismo – uma cena mais chocante que a outra.

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No filme, o rio acaba sendo um condutor de narrativa, ao mesmo tempo em que a floresta se transforma em personagem. Somos apresentados a uma Amazônia diferente da que é vista em  grande parte das produções cinematográficas – e muito mais próxima da realidade. O que é uma ironia, tendo em vista a fotografia em preto e branco da película, fazendo com que haja pouca diferença entre os personagens e a floresta. A sensação é que tudo se mistura. Por exemplo, em uma cena alguém observa o barco dos protagonistas por entre as plantas, quase é impossível identificar onde termina o homem e começa a vegetação. No filme, não temos uma floresta vazia, é um lugar habitado, cheio de vida, por plantas, animais e inúmeros povos. A língua é mais um fator que comprova a pluralidade na Amazônia. Português, espanhol, alemão e idiomas indígenas se misturam na produção, evidenciando os diferentes mundos que habitam o  mesmo espaço.

É o embate entre mundos o conflito principal do filme. Logo na primeira cena somos apresentados a situação, quando Karamakate percebe a presença do barco de Theodor e Manduca. No entanto, não se trata apenas do mundo tradicional vivido pelo xamã versus o mundo civilizado representado pelo pesquisador. O fiel companheiro Manduca representa toda a área cinza que existe entre essas duas extremidades. Acusado por Karamakate de ser um escravo do pesquisador, o coadjuvante mostra que lidar com esse novo e inóspito mundo que lhe coloniza não é um trabalho   simples, mas necessário. “Eu preciso dele. Ele pode ensinar os brancos. Ele é um herói para seu povo e todos o admiram e lhe escutam. Se os brancos não aprenderem será o nosso fim”, fala o personagem para o xamã, como que prevendo o futuro. Manduca é um poço de contradições: ao mesmo tempo em que é fiel ao pesquisador, carrega em suas costas as marcas deixadas pelos colonizadores devido à exploração da borracha.

Apesar de colombiano, o filme conta uma história presente na formação do povo brasileiro. Também tivemos a exploração da borracha massacrando povos na Amazônia e nordestinos seringueiros, fizemos a catequização indígena, tiramos a cultura desses povos e os deixamos assolados com o alcoolismo. Somos nós os algozes desses personagens. Não é à toa que, em um dos momentos mais viscerais do filme, quando Karamakate e Evans encontram uma comunidade religiosa em que fiéis indígenas cometem suicídios e assassinatos em nome de um messias, somos surpreendidos com fato desse ‘salvador’ falar Português.

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Mas se a religião pode ser usada como arma para o massacre, também pode ser a salvação dos personagens. Em vez do cristianismo, somos apresentados à religiosidade da floresta. Das plantas medicinais, das dietas espirituais, dos sonhos, dos animais. A sabedoria da serpente que fecha o filme com uma sequência que muitos poderiam chamar de kubrickiana, mas que, na verdade, antecede o cinema. Vem das mirações da ayahuasca, dos conhecimentos antigos, das visões espirituais.

E assim como os personagens nessa expedição são obrigados a olhar para si mesmos,  nós, como espectadores, precisamos nos reconectarmos com nossos antepassados. Seja através da música clássica ecoando pelo fonógrafo do pesquisador ou através das memória de Karamakate, que também são nossas – lembranças que nós esquecemos – assim como ele. Conhecer o passado é a única forma de não nos transformarmos em chullachaquis de nós mesmos, ou seja, meras imagens de pessoas, sem memórias, sem sabedoria, sem os conhecimentos da floresta e de nossos ancestrais. As tragédias contadas no filme fazem parte da nossa formação como povo brasileiro. Somos, ao mesmo tempo, os vitoriosos que escreveram a história e os derrotados que tiveram suas lembranças apagadas pelo tempo.

 

As Mil e Uma Noites (2015), de Miguel Gomes

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Fábulas de além-mar

Thomas Lopes Whyte

Observações gerais:

“As histórias, personagens e lugares que serão narrados por Xerazade são uma versão ficcional de fatos ocorridos em Portugal, entre agosto de 2013 e julho de 2014. Durante esse período o país foi mantido como refém de um programa de austeridade econômica executado por um governo aparentemente desprovido de senso de justiça social. Como resultado, quase todos os portugueses se tornaram mais pobres.”

Os planos de austeridade em Portugal foram colocados em prática no ano de 2011, durante um processo deflagrado na administração do primeiro ministro Passos Coelho. A Troika, nome atribuído à política econômica sustentada pela tríade formada por representantes da Comissão Europeia, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu, consistiu em uma série de medidas de austeridade, que afetou principalmente a população das classes média e baixa.

Os três filmes que compõem As Mil e Uma Noites (2015), de Miguel Gomes, buscam representar, através de uma estrutura semelhante à do livro “As mil e uma noites”, a situação dos portugueses diante da crise, partindo-se quase sempre da observação aproximada, focada nos indivíduos. No entanto, é impossível não perceber a reverberação das ações e sentimentos dos personagens em um contexto social mais amplo e universal. É verdade que existem nuances que distinguem os três filmes, mas, apesar dos subtítulos que caracterizam minimamente cada uma das três partes, nota-se o mesmo tom melancólico, que serve como amarração para a representação de um país temporariamente apático e atordoado.

Em parte, o trabalho de pesquisa realizado por Miguel Gomes e sua equipe serve, dentre outras coisas, como um esforço jornalístico de trazer à tona histórias que não poderiam ser contadas através de veículos de mídia tradicionais. A escolha dos “causos” que ganham destaque no filme demandou um trabalho extenso de pesquisa na pré-produção e acabou gerando um enorme projeto com mais de seis horas de duração. Além do tempo dedicado ao desenvolvimento do argumento, o diretor contou com o apoio de três jornalistas, que ao longo de doze meses foram responsáveis por mapear e registrar situações absurdas que serviram de combustível aos filmes.

Apesar de os filmes não se fiarem tanto nos escritos árabes, é possível, com um pouco de imaginação e (por quê não?) algum critério, estabelecermos diversos diálogos estéticos entre eles. Talvez até menos por conta da óbvia semelhança estrutural e mais pelo caráter universal de ambas. A começar pelo formato da narrativa, que organiza os vários contos de maneira não linear, e sobrepõem as histórias, de forma a criar um efeito de camadas, que acaba acrescentando profundidade à narrativa. Basta, para isso, recorrer aos exemplos da Trilogia da Vida, realizada por Pasolini na década de 1970. A sua versão de As Mil e Uma Noites (1974), se comparada com seus outros dois filmes, Contos da Cantuária (1972) e Decamerão (1971), possui uma estrutura mais complexa e exuberante.

Essa escolha de montagem condiciona uma construção dinâmica de sentidos. Não na escala do plano, como acontece na montagem de Eisenstein, ou na escala radical do fotograma do cinema experimental. Aqui o convite à formulação desses outros olhares acontece com o entrelaçamento entre os contos diversos e a presença nem sempre constante de Cristina Alfaiate, que interpreta Xerazade. A aparente desordem parece acertada e até mesmo uma escolha segura, se compreendermos o filme como uma tentativa de capturar com mais precisão as impressões e subjetividades de um país inteiro. Tão variadas quanto as histórias são também os recursos cinematográficos utilizados em auxílio de cada uma delas, pois, tendo como núcleo central de linguagem as células formadas pelos próprios contos, as mini-narrativas acabam gozando de uma maior autonomia, contribuindo assim para um filme potencialmente mais rico.

Mas apesar dos esforços, é justamente nesse ponto que a direção escorrega. Vistas em sequência, a sensação que se tem é de que algumas partes menos inspiradas poderiam ter sido suprimidas durante a montagem. Alguns segmentos são demasiado longos e em alguns momentos duram mais que o necessário. A impressão que fica é de que existe um esforço não justificado para que as três partes do filme orbitem em torno dos 130 minutos.  Mas, mesmo com essas questões, o filme consegue se segurar com suas 6 horas, mantendo o fôlego do início ao fim.

As Mil e uma Noites 4

Assim como em A cara que mereces (2014) e Tabu (2012), Miguel Gomes apresenta um material repleto de gags e situações estranhas. Tenta, através de um humor bastante peculiar, diluir as barreiras entre ficção e documentário com um padrão que se repete ao longo dos três filmes. Em momentos nos quais é preciso recorrer a certo didatismo e expressar de forma mais clara as situações pelo ponto de vista do autor, Miguel Gomes procura provocar reflexões através de uma mise-en-scène mais trabalhada, ancorada em temas folclóricos locais, repletos de alegorias e metáforas. Esse é o caso, por exemplo, das histórias que se iniciam nas noites 437 e 484, respectivamente chamadas de “Os homens de pau feito” e “As lágrimas da Juíza”, em que o diretor acrescenta várias camadas farsescas a alguns dos segmentos, exagera na construção de seus personagens, diálogos e situações, de forma a potencializar o caos de sua sociedade em crise, no melhor estilo da tradição teatral portuguesa Gil-Vicentina.

Em oposição, outra estratégia recorrente é a utilizada para os segmentos documentais. Nesses casos o absurdo, ao contrário, surge do fato em si. O galo madrugador que cantava cedo demais, tornando-se personagem importante de um vilarejo, e o curioso campeonato onde se disputa qual tentilhão possui o canto mais singular são algumas dessas histórias, por si só espantosas e mostradas com um olhar objetivo e uma filmagem mais seca.

Uma das virtudes do filme como obra semidocumental é a captura de uma transformação social que parece levar o país rumo à informalidade, privilegiando-se acontecimentos que passam ao largo das grandes narrativas e desenlaces econômicos. Em contraste ao próprio projeto e sua megalomania, que resulta em mais de seis horas de película, a narrativa consegue ser sensível ao manter-se próxima o suficiente das pessoas comuns.

A ideia, entretanto não é, através das esquetes, estabelecer paralelismos utilizando-se de metáforas fáceis como em um simples jogo de espelhos. Existe um esforço conciliatório entre o real e o fantástico que possibilita a criação de uma urdidura onírica, sobre a qual se torna viável o desenvolvimento das várias tramas. Em alguns momentos, no entanto, somos arrancados desse terreno lúdico e chamados a vislumbrar, através das frestas geradas entre um plano e outro, situações reais de angústia sem o verniz da caricatura.

Observações Específicas:

As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto

O primeiro filme, como seria de se supor, serve como introdução, apresentando ao espectador a estrutura e temática da trilogia. É também o mais desordenado dos três e funciona como uma síntese de linguagem adotada no conjunto.

Logo no início, duas histórias transcorrem paralelamente, com a função de apresentar ao espectador um panorama geral da situação portuguesa. Durante esse prólogo, somos convidados a conhecer os trabalhadores de um estaleiro e a história de um homem que se dedica a erradicar uma espécie de vespa invasora. Os primeiros relembram com orgulho o tempo em que enviavam navios aos quatro cantos do mundo, um tempo visto através de uma lente nostálgica, quando se comemorava a partida de cada navio como uma celebração do ato de viver. E o segundo, apresentado como a personificação da informalidade gerada pela falta de empregos, é um engenhoso caçador de vespas, que se esforça para manter-se em atividade. O interessante aqui, através desses exemplos, é perceber o poder de ressignificação e transformação ocasionado pela precariedade, em que empregos, salários e até mesmo as celebrações rituais mais tradicionais têm suas dinâmicas alteradas.

Em seguida, num exercício metalinguístico, Miguel Gomes, consciente do seu papel de autor, se insere no filme e trava consigo mesmo uma batalha, ao encenar a angústia de tentar estabelecer o escopo de seu próprio trabalho. Tratar-se-á de um material com histórias bonitas, ou com verve militante, pergunta o diretor. Na impossibilidade de encontrar respostas, ele opta por deixar essas questões em aberto e, literalmente, foge do campo de filmagem. A partir daí, fica claro que, sendo parte da mesma sociedade aturdida que pretende filmar, Miguel Gomes se afasta da posição de comentarista e se isenta da responsabilidade de apresentar soluções e determinar caminhos. Estabelecendo, mesmo que de forma imprecisa, a moldura na qual seu material estará contido.

As Mil e uma Noites 1

De forma análoga, é interessante observar que na narrativa que se passa durante a noite de número 602, em uma das passagens mais notáveis do livro, Xerazade conta ao rei sua própria história e passa, a partir daí, a assumir um duplo papel, tornando-se narradora e ao mesmo tempo personagem. Como observado por Jorge Luís Borges, abrem-se, nesse momento, possibilidades tão sofisticadas quanto angustiantes, que atribuem à narrativa uma leitura que vai muito além das páginas que a contêm. Uma essência infinita e circular, conveniente à própria estrutura do filme, que a partir dessa abordagem consegue concatenar uma miríade de histórias portuguesas, ao mesmo tempo específicas e abrangentes.

Logo em seguida, o filme assume um tom mais burlesco com as histórias bem humoradas “Os homens de pau feito” e “O galo madrugador”. Repletos de metáforas, os dois contos mostram, cada qual ao seu modo, as farsas que se apresentam com mais força em situações de crise. Em “O banho dos magníficos” que arremata essa primeira parte, o arco desenvolve-se do absurdo em direção à mais massacrante das realidades impostas pela crise. A história se inicia no estômago de uma baleia e, mais ao final, de forma direta, através do depoimento de cidadãos comuns, o espectador é colocado frente a frente e sem nenhum artifício, com as consequências mais cruéis das políticas de austeridade.

O Volume 1 funciona como um laboratório onde Miguel Gomes opta por levar suas experiências e neuroses ao limite. Talvez por isso, como parte de um processo mais pessoal, o primeiro volume seja confuso e um pouco perdido em sua proposta, problema que o diretor resolve parcialmente com os depoimentos no final do longa.

 

As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado

O Volume 2 é estruturalmente o mais simples e divide-se em três histórias independentes, caracterizadas pelo caráter mais ficcional, se comparado ao restante dos filmes. Talvez por ser menos fragmentado, é possível observar uma direção mais precisa, um controle maior dos elementos da mise-en-scène e enquadramentos mais apurados – em especial, durante o primeiro terço do filme, na crônica da fuga de Simão sem tripas. O Anti-herói Simão, uma versão mais crua do ermitão homônimo de Luís Buñuel, é acossado pela polícia e, em seu isolamento, passa o tempo se deslocando por paisagens idílicas no interior de Portugal, filmadas em belíssimos planos gerais.

Na segunda história, “As lágrimas da Juíza”, uma das mais interessantes do filme, o teor temático passa a ser preponderante e os recursos cinematográficos mais simples. Com uma proposta rica de figurino e criação de personagens extravagantes, o diretor propõe um mapeamento da contravenção e os limites da legalidade. É possível haver julgamento moral em circunstâncias cingidas por misérias? Qual é a parcela de reponsabilidade que cabe a cada um? Mantendo-se fiel à estrutura do livro, as histórias se sobrepõem e formam, nas palavras da juíza que conduz o caso, um rosário de desgraças.

Não menos peculiar é a história dos donos de Dixie, cachorrinho que atua como um álibi, para justificar a presença de uma câmera voyeur, que nesse terceiro segmento se esforça em captar as reações imediatas daqueles mais afetados pelas políticas de austeridade. Enquanto as desventuras do cão vão sendo contadas, o diretor aproveita para explorar o ambiente ao redor de Dixie, revelando a rotina dos habitantes de um conjunto habitacional de baixa renda. Ao definir esse microcosmo sobre o qual se debruça para desenvolver seu estudo etnográfico, Miguel Gomes cria uma rede secundária de histórias autossuficientes, que poderiam até mesmo ser exibidas como um média metragem independente.

As Mil e uma Noites 2

Em “O desolado” o ponto de vista sofre alterações constantes e se assenta gradualmente no decorrer das três passagens.  O filme começa com uma câmera afastada, registrando as ações de forma mais irrestrita e contemplativa; aproxima-se, no segundo ato, de uma escala humana e passa a assumir um posicionamento quase subjetivo, ora como espectador no anfiteatro, ora na posição da Juíza, interpretada de forma muito competente por Luísa Cruz, e na parte final se posiciona próxima ao cãozinho Dixie, que serve como fio condutor desse último ato.

No segundo volume, mais importante do que esmiuçar o passado ou os traços psicológicos dos heróis é registrar a impotência de mulheres e homens frente aos seus próprios destinos, experimentar a tragédia da crise e da inevitabilidade do sofrimento, com uma trama que começa mais devagar em seu conjunto e se desenvolve em direção ao efeito catártico causado pelo suicídio do casal dono de Dixie. Se menos original que as outras duas partes, o Volume 2, tem por mérito a precisão e segurança com que foi concebido, o que o torna senão melhor, pelo menos mais fluido que os outros dois volumes.

 

As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado

Com direito a Novos Baianos, o terceiro volume começa com uma digressão: mostra, logo no início, uma Xerazade livre, mas resignada e ciente do tamanho de sua sina. Em seguida, voltamos aos trilhos com o conto da noite 515. “O inebriante coral dos tentilhões”, uma das mais melancólicas histórias, representa homens que, à margem da lei, capturam e treinam pássaros para participar de concursos de canto. Assim como os treinadores Chico Chapas e Seu Quitério, cada vez mais cansados, os próprios animais parecem impelidos ao canto obscuro do esquecimento. São o retrato desbotado de um país que já teve tempos melhores e agora precisa fazer-se ouvir, mesmo que à custa de um registro precário dos cantos antigos dos tentilhões, preservados apenas em cds e fitas cassete.

A última cena do filme é bastante emblemática: Chico Chapas, como um verdadeiro herói de um western de John Ford, caminha em direção ao horizonte, rumo ao crepúsculo – um sujeito combalido, perdido em sua solidão e retrato de um presente anacrônico. Os últimos enquadramentos e o ritmo em ramerrão desse último trecho enfatizam a conclusão reticente da obra, situando-a como uma trilogia acabada somente enquanto película, mas com um conteúdo em construção constante. Exatamente como a última noite de histórias entre Xerazade e o rei Xariar, onde o número primeiro, que sucede o milésimo, encontra sentido em uma cosmovisão de contemplação do infinito.

 

Conclusão:

As Mil e Uma Noites é uma história de vida e morte. É a valorização máxima do ato de contar, o lugar em que o fluxo narrativo das fábulas confunde-se com a própria existência e passa a ser uma função tão vital quanto comer e respirar. Na falta de perspectivas e sem uma saída clara, o povo português parece coexistir com uma espécie de miséria que vai muito além da questão material. Possuem uma aparente aptidão para a sobrevivência, que aqui é explorada principalmente através da capacidade de fazer rir, e de forma tão engenhosa quanto os vizires, comerciantes e califas do livro, os portugueses, à sua maneira, vão se estabelecendo em meio às incertezas e desamparo.

Como um bom fado, As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes é um tributo à tristeza, uma elegia que coloca em perspectiva o futuro confrontando-o com o passado. Um conto em suspensão em que se espera, quem sabe, a redenção do rei Xariar.