IMO (2018), de Bruna Schelb Corrêa

imo

Da ruptura à reiteração em três atos

Bia Praça

Diante de tantos transtornos constituintes da realidade social brasileira, é notável (e louvável) a curva crescente de produções cinematográficas que, como o longa-metragem Imo (2018), abordam e denunciam violências sofridas por figuras historicamente oprimidas. Nunca antes na trajetória do cinema em nosso país, pautas como machismo, homofobia e racismo foram tão representadas e discutidas. Porém, é comum que, eventualmente, o discurso engajado, depois de tantas vezes proferido, vá ficando gasto, se esvazie e seja, finalmente, cooptado. Como então falar a respeito de algo que precisa ser dito sem recorrer aos clichês e às cartilhas prontas? Imo aposta no silêncio – ou melhor, na ausência de palavras.

Ao recusar diálogos e investir em simbologias, Bruna Schelb Corrêa foge aos moldes de uma linguagem facilmente decodificável. Se palavras não são suficientes para explicar como é a sensação de ser engolida pela estrutura patriarcal, a diretora opta por abrir mão delas. Resolve, então, explorar o território do sensível, a partir de jogos de associação (e dissociação) entre imagem e som. Separado em três atos, o filme flerta com o embaralhamento de signos e representações do que é o “ser mulher”. Esse movimento se dá, logo de início, de maneira catártica, porém, perde fôlego no meio de sua trajetória, chegando a um desfecho que parece abrir mão da própria potência.

imo3

Na sequência que inaugura o longa, somos transportados para uma espécie de dimensão esvaziada, habitada por três mulheres que performam gestos cotidianos. Após essa breve introdução, cada ato é dedicado a uma das personagens, cujas vidas e memórias são representadas sempre a partir de uma perspectiva alegórica. Os dois primeiros atos – em particular, o primeiro – são revestidos por uma estética onírica que ultrapassa os códigos e associações imagéticas convencionais, remetendo a referências tão insólitas quanto Kbela (2015), de Yasmin Thainá, e os filmes de Maya Deren.

No primeiro ato vemos uma secretária, Mc Xuxu, que tenta organizar sua mesa, porém, só a bagunça mais, em um ciclo eterno. O telefone não para de tocar. Mc Xuxu não parece se incomodar tanto quanto o espectador. De repente, a personagem assume a tarefa de cortar maçãs, repetindo tal gesto ininterruptamente. Mãos saem de seu corpo e começam a importuná-la. Nada é facilmente digerível, a relação entre símbolos e suas significações escapa a resoluções rasas: a secretária não é organizada, a maçã não é aquela da tradição cristã, as mãos não são dela, mas vêm de seu corpo. O efeito de quebra de expectativa nos dá o pressentimento de que o limbo narrativo poderá seguir em qualquer direção.

Tal sensação perpassa a história do segundo ato, porém, em um tom gradativamente mais ordenado. Quando a protagonista arranca os próprios olhos com as mãos e os enterra, o gesto, ainda que desconcertante, perde um tanto de força com relação ao que vimos anteriormente. A atuação de Helena Frade não entra em sintonia com a gravidade daquilo que está sendo vivenciado, chegando a um estado de afetação por pura afetação.

imo2

A terceira história se passa em um banquete onde o prato principal é o corpo de uma mulher nua. Ela está prestes a ser devorada por vários homens, que têm em sua companhia, à mesa, um manequim feminino. Aqui, não há mais quebra de expectativa, tudo está dado. A leitura das imagens é direta: corpos femininos são objetificados. Nesse sentido, a obra, afinal, acaba reiterando aquilo que de início negava: o óbvio.

Diferentemente do que foi posto no debate do longa, a decepção com o terceiro ato não está no fato dele ser mais “compreensível” que os outros. Entendido ou não, a ação mais violenta da diretora me parece ser a tentativa de solucionar uma narrativa que sequer era narrativa, como se o filme praticasse uma auto-sabotagem. Bruna Schelb, por medo de cair no abismo do indecodificável criado por ela mesma, se debruçou pouco sobre tal movimento de ruptura e recuou para a segurança do lugar comum. Nesse sentido, Imo, ao tentar refutar o vazio das palavras, acaba por cair no vazio de um experimentalismo pouco aproveitado: uma produção que poderia fluir para todos os lados acaba mais uma vez fechando-se sobre si mesma.

 

 

Dias Vazios (2018), de Robney Bruno Almeida

dias 1

Dias vazios e duplos trágicos

Odorico Leal

Longa de estreia de Robney Bruno Almeida, Dias Vazios retrata angústias e perplexidades de adolescentes numa pequena e modorrenta cidade do interior de Goiás. Os dias vazios se repetem em ruas e bares vazios, nos monótonos corredores e salas do colégio católico onde os adolescentes estudam, dormem, fumam – um limbo onde prosperam apatia e desencanto.

É nesse cenário de tristezas e rancores silenciosos que encontramos Daniel e Alanis, namorados cursando o terceiro ano do ensino médio. No prólogo brevíssimo, sentado ao fundo de uma sala decorada por quadros cristãos, também eles vazios de sentido, Daniel esboça desenhos algo fantásticos nas margens da história que se esforça para pôr no papel – um romance retomando a tragédia dos estudantes Jean e Fabiana, ocorrida dois anos antes, agora já quase esquecida.

Às voltas com frustrações familiares, desorientação juvenil e conflitos de fé, e tocado pela vocação literária, Daniel, contrariando o curso do cotidiano da cidade e da escola, toma para si a missão de não esquecê-los. Por que Jean se mata? Onde está Fabiana? São essas lacunas que Daniel busca responder, valendo-se da imaginação e da fabulação artística de seus próprios conflitos afetivos.

dias 2

Do prólogo, saltamos para um primeiro capítulo ambíguo, que, a princípio, pode ser percebido pelo espectador como flashback, representando os últimos dias de Jean e Fabiana. O segundo capítulo, contudo, desestabiliza essa primeira impressão: diálogos e acontecimentos-chaves das vidas de Jean e Fabiana se repetem no cotidiano de Daniel e Alanis, sugerindo que aquele primeiro capítulo constitui não um flashback, mas a reconstituição imaginária do relacionamento de Jean e Fabiana, inspirada na experiência pessoal de Daniel e Alanis. Daniel, protorromancista, vale-se do símbolo do trágico casal de namorados para refletir sobre seus próprios medos, ressentimentos e angústias. Alanis reconhece isso, sente-se pessoalmente investida no romance do namorado e assim procura intervir constantemente no enredo da história de Jean e Fabiana.

Partindo dessa premissa, por todo o filme, as tramas dos dois casais se entrelaçam num jogo de simetrias que colocam o espectador em um clássico estado de suspense metanarrativo, hesitando temporariamente em atribuir os eventos à dimensão diegética da história ou à ficção imaginada por Daniel. O eixo dessa tensão – muito bem conduzida – envolve essa ambiguidade fundamental: por um lado, Jean e Fabiana, na dimensão ficcional do jovem romancista, são duplos metafóricos da experiência de Daniel e Alanis; por outro, Daniel e Alanis também são duplos de Jean e Fabiana, posto que são um casal de estudantes da mesma idade, frequentando a mesma escola, andando pelas mesmas ruas, sofrendo, hipoteticamente, de angústias similares, que podem ou não levar a destinos igualmente desoladores.

No terceiro capítulo, essa ambiguidade se dilui e nos achamos de fato dentro do universo imaginário do romance de Daniel, que se coloca agora como parte da história, interagindo com Fabiana, no papel de jovem que recebe por transplante o coração suicida de Jean. Aqui, Daniel imagina para Fabiana um desfecho inquietante e amargo. Todo esse capítulo constitui o ponto alto do filme, tanto pela condução cinematográfica competente como pela atuação emocionante de Nayara Tavares, numa longa sequência de desamparo e violência extrema que choca o espectador.

dias 3

Embora se possa atestar a qualidade cinematográfica de Dias Vazios – na belíssima composição de seus planos – e a engenhosidade invulgar de seu roteiro, é possível também fazer algumas ressalvas nada desprezíveis. O filme se passa na segunda metade dos anos 2000 – o conservador e pouco carismático Bento XVI é o Papa Emérito, ainda não existem os smartphones, nem a compulsão das redes sociais. Esse sentido histórico, contudo, quase não é aproveitado. A vida escolar, na verdade, pouco transparece. Há algo artificial e demasiadamente conveniente nessa escola católica em que adolescentes angustiados se revoltam contra Deus, desafiam freiras e contemplam o suicídio.

O mesmo se pode dizer do relacionamento dos adolescentes com os pais. Com exceção da freira que coordena a escola e de uma empregada doméstica que funciona como substituta parental, os adultos não dão as caras – são figuras ausentes representadas literalmente pela ausência, estratégia que, embora não destituída de valor simbólico, não deixa de reduzir o conflito familiar a um mero pretexto pelo qual se pretende conceder estofo à angústia dos personagens.

Assim, é possível dizer que, tendo em vista a argúcia metanarrativa do roteiro, menos negligência imaginativa na armação dos conflitos e motivações – sem meias palavras: menos clichês de angústia adolescente – tornaria a empreitada, por certo, exponencialmente mais difícil para os realizadores, mas também mais profunda, mais artística – e mais instigante para o espectador. Não obstante, o filme sustenta-se como excelente estreia, consagrando-se como destaque da mais recente edição do Festival de Tiradentes.

 

Baixo Centro (2018), de Ewerton Belico e Samuel Marotta

baixo 2

O que sobrevive das tensões

Roberto Cotta

Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

(Gregório de Matos, “Inconstância das Coisas do Mundo!”)

Um regime de sensações imateriais ritmadas pela deambulação dos personagens, pela música, pela repetição de gestos e ações, pela duração dilatada das sequências ou decupagem esgarçada dos planos. A montagem enquanto uma justaposição de mosaicos removíveis, cujos blocos, em sua maioria, poderiam flutuar por várias partes do filme, sem que os significantes se percam. A estruturação narrativa como um apanhado de situações não-retóricas, por vezes descontínuas, concedendo ao horizonte temático proposições esfumaçadas, movediças, mas sempre interrompidas pelo corte ou pela tensão vislumbrada no extracampo.

Salvo a dramaturgia com ares de tragédia grega e os enquadramentos evidenciados em composições pictóricas (ainda que de modo isolado, nunca em uníssono), poderíamos estar falando a respeito de Anjos Caídos (1995), de Wong Kar-Wai, ou sobre Gerry (2002), de Gus Van Sant, mas o filme em questão é Baixo Centro, de Ewerton Belico e Samuel Marotta, lançado agora, em 2018, agregando quase todas as noções estruturais que o dorso da crítica francesa atribuiu, no começo dos anos 2000, àquilo que viria a ser conhecido como cinema de fluxo. Desde então, tal conceito passou a englobar um conjunto de filmes internacionais sob a mesma égide, vistos, indistintamente, como sintomas de um mundo contemporâneo em intensa transformação de suas representações espaço-temporais.

Nutro pouquíssimo interesse por análises comparativas, tampouco gosto da ideia de entender os filmes como sintomas teóricos/conceituais (algo recorrente na crítica brasileira atual, e não à toa um volume substancial de pesquisadores e críticos locais tem se dedicado cada vez mais ao estudo das estéticas de fluxo e suas variantes). Entretanto, não deixa de ser curioso notar como determinadas tradições críticas e acadêmicas recentes, ainda tão inconsistentes, direta ou indiretamente, têm impulsionado tamanhos graus de influência para uma vastidão de diretores em início de carreira. Também vale salientar a importância concedida nos festivais brasileiros, bem ou mal, às dimensões de um pensamento derivado dos estudos culturais da década de 1990, que tem funcionado como um check-list daquilo que pode ou não pode ser assinalado pelos filmes, aspecto essencial na baliza de escolhas feitas por críticos, cineastas e curadores nesses últimos anos.

baixo 1

A Mostra Aurora, principal competitiva de longas-metragens do festival de cinema suntuoso realizado na pequena Tiradentes, em Minas Gerais, é notória pelo amplo espaço dedicado a cineastas em formação, onde, diversas vezes, são priorizadas obras nas quais a abrangência temática, a noção de emparelhamento com outros filmes selecionados e a irregularidade dramatúrgica, narrativa ou formal de seus riscos são mais evidentes que as qualidades autônomas de execução de suas propostas. Na edição deste ano, não foi muito diferente, e Baixo Centro acabou conquistando o prêmio de melhor filme pelo júri oficial, em meio a uma temporada concentrada em manifestações contemporâneas de realismo no cinema brasileiro.

Baixo Centro, claro, é um filme embrenhado entre elementos de uma realidade objetiva, mas também constituído pela fabulação de um mundo encenado, com suas regras e limitações, ambientando-se totalmente em locações noturnas alternadas entre o centro e a periferia de Belo Horizonte. A capital mineira é tomada aqui como importante pano de fundo de uma narrativa entrecortada por vivências de cinco personagens: Robert (Alexandre de Sena), Teresa (Cris Moreira), Djamba (Marcelo Souza e Silva), Luisa (Bárbara Colen) e Gu (Renan Rovida), que ora se cruzam, ora se afastam, lançando mão de formas distintas de ocupação desses espaços urbanos, quando a escuridão reduz os pontos de vigilância que os oprimem durante o dia.

Na maioria das vezes, a cidade é mostrada como um borrão, suas luzes artificiais incidem duramente sobre os corpos para demarcar o tom soturno, sisudo, escolhido para a composição das cenas, e os planos, em diversas ocasiões, empregam descrições sobre as diferenças socioeconômicas entre o bairro periférico onde residem os personagens e o centro gentrificado, ameaçador, por onde perambulam. Esses personagens, figuras praticamente natimortas, encontram-se envoltos numa espécie de esquizofrenia coletiva, sussurando frases soltas, sem conseguirem olhar nos olhos uns dos outros, sempre à espera de fantasmas que nunca se materializam, com exceção feita ao plano final do filme, quando uma resolução deus ex-machina interrompe abruptamente a trajetória de Robert, indo de encontro aos tiros dados pela polícia no extracampo.

baixo 3

Isoladamente, é possível dizer que cada um dos elementos reunidos em Baixo Centro apresenta algum tipo de potência, mas o próprio filme mergulha numa tentativa auto-defensiva de proteção desses blocos, entendendo-os apenas como decomposições analíticas, fragmentos ou mecanismos de diluição dramática que tentam dispensar articulações. E a obra até possui algumas belezas executadas no seio dessas especificidades, tais como o encontro entre Teresa e Robert, observados pela câmera fotográfica de Djamba (primeira morte simbólica a eles imposta); o balé de corpos que, ao mesmo tempo, brincam e brigam durante o sexo (Robert e Teresa) e depois numa partida de futebol de rua (Robert e Gu); a cena em que uma divindade (Katia Aracelle) entoa um cântigo de Egun pelo centro da cidade, à medida que seu rosto se funde com o das pessoas ao redor, tentativa de imagem-síntese das agruras do povo, do enlace entre bandidos e irmãos.

No entanto, essas potencialidades individuais clamam por um engendramento propositivo em conjunção com o restante do filme, sem que as premissas apresentadas sejam lançadas ao vácuo, as trajetórias abandonadas pelo meio do caminho e as tensões apenas forçadas para sustentar as vestes de tragédia que o filme escolhe como muleta, tornando tudo supostamente poético, embora explique o tempo todo seus próprios procedimentos. Djamba tem medo dos fantasmas do presente, pois está preso à nostalgia de suas memórias; Robert tem receio do futuro, porque vive entorpecido pela experiência do dia a dia; Teresa sabe que é questão de pele e de gênero a inversão cotidiana de privilégios; Gu entende que a morte é a única forma de libertação da tortura; e Luisa percebe que somente o fascínio e as lágrimas alimentam sua sobrevivência.

Só que Baixo Centro freia aquilo que está no campo da imagem, criando ambiências externas, atmosferas cambaleantes, um clima de tensão que nunca invade o plateau, tornando suas tentativas de construção meramente especulativas. No filme, nunca se busca desenvolver o que é de antemão proposto, investir em suas nuances, nas frustrações dos personagens, nas possibilidades de evidência de suas dores. Busca-se apenas resolver. Na medida em que o abandono se torna premente, a cidade passa a tentar ocupar uma lacuna deixada pela fragmentação narrativa, solução atordoada que funciona como ronda noturna, asséptica, aproximando ainda mais o centro da periferia, artistas e cracudos, o sofrimento e a salvação. Contudo, nem Belo Horizonte consegue abarcar tudo que foi rejeitado pela falta de articulação propositiva. E, assim, Baixo Centro termina com a inconstância de seus blocos indivisíveis guardados na manga e a apoteose de suas tensões resolvidas com brusquidão, anulando a força das trajetórias percorridas e a composição de seu próprio mundo, que acaba não sendo nosso, nem mesmo do fractal de personagens apresentados, esquecidos entre suas vivências e mortes.

 

 

Ara Pyau: A Primavera Guarani (2018), de Carlos Eduardo Magalhães

ara1

O olhar publicitário ou a otimização da revolta

João Campos

A princípio, o que chama atenção em Ara Pyau: A Primavera Guarani (2018) é a inesperada aliança entre povos indígenas e publicitários. A parceria resultou num estranho comercial Guarani, cujas imagens radiosas ofuscam mais que iluminam. Forjar o brilho através da técnica: esse é o esforço da obra.

Claramente bem intencionado e engajado na luta indígena, Carlos Eduardo Magalhães fez o filme a pedido do grupo. Em entrevista recente, ele afirmou: “Pode parecer um comercial da Eletrobrás, mas é um comercial dos índios. Eu venho da publicidade, eu tenho conhecimento da técnica publicitária e quis usar essa técnica a serviço desse cliente”[1]. A relação entre negociante e cliente, caracterizada pela otimização do tempo e por um imediatismo absoluto, se infiltra na mise-en-scène que o realizador compôs para os indígenas.

O tempo do filme é o agora imediato. O “comercial dos índios” nega toda história, purificando o presente de sua complexidade e desprezando diálogos com o passado e o futuro. A experiência de habitar (e reabitar) o mundo é, assim, barateada. A trilha pesada parece tentar suprir a lacuna que o registro mal feito não cumpriu, impondo uma carga dramática a um contexto que, por si só, já é dramático. A fotografia sempre busca o ângulo mais brilhoso dos índios, explorando recorrentemente (ou desesperadamente) efeitos lens flare, como um J.J. Abrams ou, mais precisamente, um publicitário otimizando ao máximo a imagem de seu cliente.

ara2

O quadro pode brilhar, mas não ilumina o agora. Todo risco é evitado, o cineasta não investiga e nem dialoga, apenas acompanha. O esforço em construir uma imagem esvaziada e alegre da luta indígena faz de Ara Pyau um filme deplorável, mas um excelente comercial. A obra cumpre sua função propagandística de mostrar a face radiosa dos indígenas, expressando alegria e vitalidade a cada quadro, como no plano-sequência no qual duas crianças brincam com a câmera, numa coreografia que, novamente, encontra um lens flare qualquer para produzir uma iluminação artificial. Limitando-se aos rostos e ao brilho do sol, o cineasta foge da História e da experiência, se desviando, portanto, de elementos cabais para o documentário.

A fim de gerar um contraste, gostaria de mencionar dois filmes de cineastas ligados à luta indígena: Martírio (2016), de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho, e Conversas no Maranhão (1983), de Andrea Tonacci. Ambos negam o imediatismo a fim demostrar experiências complexas, em que distâncias temporais se reúnem em cena para o registro documentário. Carelli e Tonacci compõem histórias polifônicas, fazendo da câmera um instrumento expressivo para a construção de elos sociais e políticos. Ao abrir mão da excelência técnica que caracteriza filmes como Ara Pyau, os cineastas mencionados se jogam numa experiência investigativa em que fragmentos históricos, escavados de fontes diversas se inscrevem numa mise-en-scène imprevisível, claramente composta vis-à-vis à experiência das pessoas filmadas. A estrutura de Martírio e Conversas no Maranhão, salvo as grandes diferenças entre tais obras-primas, é essencialmente dialógica e diacrônica. Essa forma de filmar os outros – dialogando e investigando – não existe no filme de Carlos Eduardo Magalhães, preocupado em compor uma imagem romantizada e compadecida de seus amigos indígenas.

Em “A câmera e os homens”, Jean Rouch esboça belas palavras sobre o mundo de amanhã, chamando atenção para o papel do filme etnográfico no contato entre culturas: “somos bastantes a acreditar que o mundo de amanhã, esse mundo que estamos a construir, só será viável se tiver em consideração as diferenças existentes entre as culturas, se estiver decidido a não negar o outro transformando-o à sua imagem”[2] Infelizmente, Ara Pyau abre mão do filme etnográfico para explorar o caminho de transformar a alteridade em propaganda. Não devemos julgar essa estranha aliança, pois ela pode ter efeitos positivos no que tange à luta em que se engaja o grupo filmado por Carlos Eduardo Magalhães. Porém, creio não ser exagero dizer que o que vemos no ecrã não é um documentário, mas um comercial de pouco mais de uma hora repleto de “imagens reais”.

____________________________________________

[1]““Os índios não precisam de um cineasta branco”, destaca diretor de Ara Pyau”. Entrevista disponível em: https://www.opovo.com.br/vidaearte/2018/01/os-indios-nao-precisam-de-um-cineasta-branco-destaca-diretor-de-ara.html

[2] ROUCH, Jean. “A câmara e os homens”. In: Catálogo Jean Rouch. Lisboa: CinematecaPortuguesa – Museu do Cinema, 2011, p. 79.

Cobertura da 21° Mostra de Cinema de Tiradentes

Equipe de Cobertura: Bia Praça, Fábio Feldman, João Campos, Odorico Leal, Roberto Cotta e Thomas Lopes Whyte.

Giselle: Uma Realidade de Desencontros

giselle-cena

Beatriz Saldanha*

Assim como na antiga civilização romana, como em Sodoma e Gomorra, todas as vezes que uma sociedade está em decadência, a principal característica é a falta de valores morais, a promiscuidade sexual, o desamor, as frustrações e os desencontros. Os dias que hoje estamos vivendo não diferem muito daqueles que antecedem a destruição daquelas sociedades. Em Giselle retratamos através de uma célula da nossa sociedade, a família, uma família qualquer, um momento da nossa realidade atual. Uma realidade de desencontros, desamores, promiscuidades, procuras e frustrações através do sexo, que por modismo e desinformações, passou a ser algo sem nenhum valor, ao mesmo tempo em que inconscientemente, é uma tábua de salvação.

Em 1980, Carlo Mossy já havia se consagrado como o maior galã das pornochanchadas quando teve a ideia de fazer Giselle, pegando carona em Emmanuelle (1974), filme erótico softcore francês de sucesso mundial que teve uma série de sequências e desdobramentos em diversos países – o filme original consagrou a holandesa Sylvia Kristel como uma das primeiras grandes estrelas do gênero, protagonista dos primeiros exemplares da saga e em filmes de apelo similar; na Itália, a javanesa Laura Gemser foi a “Emanuelle Negra”, acrescentando uma dose extra de exotismo e perigos; no Brasil, coube a Monique Lafond estrelar Emanuelle tropical (1977), o maior sucesso da carreira de J. Marreco, e assim por diante.

Mossy fundara anos antes a Vidya Produções Cinematográficas, tendo um objetivo muito claro em mente: fazer filmes populares que tivessem retorno financeiro garantido. Na lista dos filmes que conseguiram mais de meio milhão de espectadores, dados computados somente a partir de 1970, a produtora Vidya emplaca oito títulos – incluindo Quando as Mulheres Paqueram (1972) e Essa Gostosa Brincadeira a Dois (1974), ambos dirigidos por Victor di Mello, Com as Calças na Mão (1975) e Manicures a Domicílio (1980), dirigidos pelo próprio Mossy, e Oh! Que Delícia de Patrão (1984), de Alberto Pieralisi – somando perto de dez milhões de ingressos, todos com apelos eróticos evidentes a partir do título. Dirigido pelo experiente Victor di Mello, responsável também pelo argumento, roteiro e diálogos, Giselle foi um grande êxito de público, levando às salas de cinema mais de dois milhões de espectadores (o mais lucrativo da empresa), além de ser o filme pelo qual Mossy é mais conhecido até hoje.

Pau-pra-toda-obra

Ângelo (Carlo Mossy) é uma espécie de faz-tudo, um capataz que cresceu na fazenda da família em que trabalha, herdando as funções que eram de seu pai. Praticamente um bon vivant, trabalho de fato quase não se vê Ângelo fazendo, mas ele se ocupa,com muito gosto, de cada um dos membros da casa. Ao contrário do personagem que desempenhou em Ódio (1977), agindo como transmissor da raiva oriunda de uma vontade incontornável de vingança, Ângelo atende às necessidades eróticas de suas patroas: Haydée (Maria Lucia Dahl) e Giselle (Alba Valéria), respectivamente esposa e filha de Luccini (Nildo Parente).

A pitoresca cena inicial, embalada por uma versão instrumental de “San Francisco”, a utópica de Scott McKenzie, parece ter sido retirada de um documentário para estudantes de Zootecnia: empregados da fazenda conduzem passo-a-passo o cruzamento de um cavalo com uma égua, desde a limpeza das partes íntimas do animal até a consumação do ato. (Obviamente, estamos aqui a anos de distância do cinema de sexo explícito e da sempre discutível – sob todos os aspectos – ramificação da zoofilia que se tornaria um filão explorado desavergonhadamente por alguns cineastas, tendo como atração preferida os “garanhões” de quatro patas… O efeito aqui é muito mais próximo do que se vê em Êxtase, de 1933, o quase mítico filme erótico que Hedy Lamarr fez na Tchecoslováquia em início de carreira.) A cena serve para pontuar a energia erótica de Ângelo e Giselle, animalesca, contrária ao processo civilizatório, e é intercalada por olhares insinuantes entre os dois, que em seguida fazem sexo em um rio, à vista de Haydée.

Característica comum entre as pornochanchadas, Giselle é um filme bissexual. Apesar da usual confusão entre identidade de gênero e orientação sexual presente em fitas semelhantes, quase sempre representando homossexuais de maneira afetada e caricata, o filme abraça a homossexualidade de forma muito natural e agregadora. Uma das cenas mais marcantes acontece com a chegada de Serginho (Ricardo Faria), filho de Haydée, que vai para a fazenda passar as férias. Sensível, fuma cigarros “fraquinhos” e tem mãos de veludo. Uma vez sozinho com o garoto, Ângelo tasca-lhe um beijo apaixonado, sem a menor cerimônia, e dois fazem sexo, longe dos julgamentos de outrem.

A destruição do corpo ou o desencanto do amor

Giselle é uma romântica. Criada na Europa, onde viveu muitos anos longe da família, nossa heroína cede aos encantos de Ana (Monique Lafond), uma parente distante que se encontrou na Medicina, que exerce voluntariamente em comunidades carentes. A história de Ana impressiona Giselle: aos 17 anos, foi presa e torturada. Ainda assim, acredita no socialismo pacífico. Ela cura, reconstrói, diferente dos homens que a tentaram destruir.

giselle-2

Idílico e puro, o amor entre as duas parece ser a única coisa que poderia salvá-las, mas desagrada profundamente Haydée, a madrasta de Giselle, que à essa altura havia desenvolvido uma paixão não-correspondida pela enteada. Como uma heroína trágica, Giselle perde a companheira de maneira violenta e decide voltar à fazenda, mas o seu relacionamento com Haydée já está desgastado. O casamento da madrasta também vai de mal a pior, com a mulher rejeitando o marido quando este a procura e mostrando que o sexo casual com quem quer que fosse é mais interessante e menos tedioso.

O filme transita entre cenas eróticas e cenas de violência, enfatizando a beleza do sexo consensual, livre de preconceitos, e a feiura do estupro. Apesar de ter sido uma das vítimas de um trio de abusadores, Giselle testemunha seu linchamento e reage com absoluto horror. A situação vivida pela personagem soa como ecos de Ódio.

O jogador

Muito mais do que um filme sobre sexo, Giselle é um filme sobre poder, uma escala de dominação. Desde o início, através do pretexto de que Giselle deve cuidar para que não seja vista fazendo sexo ao ar livre, Haydée se esforça para moldar seu espírito telúrico. Sugere que o faça dentro de casa, esta estrutura tão simbólica que, ao mesmo tempo em que permite que Haydée controle os movimentos de Giselle, serve como um esconderijo onde a família comete seus pecadilhos longe dos olhos uns dos outros a um girar de chaves.

Quando Giselle troca Haydée por Ana, a madrasta sofre profundamente com a desilusão amorosa e todos tentam convencê-la de que, na verdade, padece de algum tipo de neurose. Ofendida, ela inicia uma espécie de disputa em que tenta sair por cima na posição de patroa, chamando-lhe de nomes como “empregadinho de merda” e “lacaio”. Ângelo termina por controlá-la na base da violência, e nesse sentido há um trecho ainda mais significativo: em uma cena de orgia, Jorge (Zózimo Bulbul), um amigo negro de Serginho, é preso na cama e açoitado pelos outros. Serginho berra: “Bate mais, porra! Arrebenta com ele, que ele adora apanhar!” Em entrevista, Mossy admite que idealizou uma cena racista, a fim de mostrar que o racismo ainda existe no Brasil, e garante que Zózimo se divertia bastante ao lembrar dela. Contudo, parece claro que ela foi inserida para reforçar o personagem de Ângelo como um homem machão e dominador.

O abuso de poder na relação entre patrão e empregado é um lugar-comum nas pornochanchadas, principalmente no que diz respeito ao sexo. A iniciação sexual de meninos através de empregadas domésticas faz parte do imaginário erótico brasileiro e foi reforçada em filmes tais qual Como É Boa Nossa Empregada (1973), dirigido por Victor di Mello em parceria com Ismar Porto. Mossy sempre pareceu querer explorar o imaginário dessa relação entre profissão e prazer; chefe e empregado, como sugerem os títulos de outras pornochanchadas da Vidya: As Massagistas Profissionais (1976), Manicures a Domicílio e Oh! Que Delícia de Patrão. Em Giselle, a exploração sexual é assunto de família e, ainda por cima, hereditário, começando com o pai de Ângelo, passando por ele mesmo e refletindo em uma criança, filho de uma empregada. Luccini, o patriarca, que parecia inocente diante de toda aquela perversão, possui o pior dos vícios: é um pedófilo. Ao perceber a fraqueza do patrão, Ângelo vê na situação uma oportunidade de chantageá-lo e, com o dinheiro, realizar o seu sonho de ir embora do Brasil. Nem pensa duas vezes. Quer estudar Agronomia nos Estados Unidos. O pacato capataz que tinha medo de ir até o Rio de Janeiro é, na verdade, um jogador. E acerta a caçapa com um toque de mestre.

Decadência com elegância

“Esse é o dia da dissolução da nossa família. Nunca mais nos veremos. Cada um pro seu lado, sendo e fazendo exatamente aquilo que queria”, são as palavras do patriarca, em um jantar formal de despedida. Como um personagem pasoliniano, Ângelo chega para despir, desestabilizar e desintegrar uma família burguesa, dando aos seus membros a oportunidade de se reconhecerem verdadeiramente.

A epígrafe deste texto faz parte da abertura e do fechamento de Giselle, pois era necessário dar conta de inventar estratégias para driblar a censura. Além deste discurso, posicionado como duas fatias de pão moralistas em um sanduíche recheado de cenas de perdição, Mossy e di Mello filmaram vinte minutos de sobras para garantir que nada de importante seria cortado. Uma espécie de esquizofrenia consciente.

Aliás, diferente do que se costuma supor sobre as pornochanchadas e, mais especificamente, sobre Giselle, não há nada de naif em sua realização.

____________________________________________

*Ensaio originalmente publicado no catálogo da 16ª edição da Mostra Curta Circuito.

 

A Separação no Abismo

miguel-rio-branco-04

Claryssa Almeida

No curta metragem de Miguel Rio Branco Nada Levarei Quando Morrer Aqueles Que Mim Deve Cobrarei no Inferno (1985), o espectador é convocado para transitar pelas ruas e casas do Pelourinho no final da década de 1970. Essa convocação se revela inquietante.

O autor estrutura um discurso imagético eloquente sobre a sua experiência naquele contexto social. Para tanto, dispõe de imagens em movimento e estáticas para captar o cotidiano das pessoas que ali residem.

O discurso do filme foi construído, essencialmente, pela banda sonora. A narração, assim como o filme, exime-se de palavras. As músicas cuidadosamente selecionadas são responsáveis por conduzir o espectador nesse passeio cheio de paradoxos e complexidades. Em alguns momentos, a trilha se mostra tão direta e discursiva que chama os moradores do Pelourinho de Black Survivors. Num outro momento, a chegada da polícia é acompanhada de uma trilha imbuída de tensão, capaz de tornar palpável a sensação de que a presença do Estado se manifesta como um corpo estranho e devastador naquele sistema.

A paleta de cores, sempre flertando com o vermelho, e a criatividade dos enquadramentos gera um prazer imagético inebriado por uma sensação de culpa. Essa estetização da pobreza é um caminho complexo e capaz de envolver o espectador na dinâmica de exploração daqueles corpos negros e miseráveis. Esse é um risco assumido quando se tenta dar visibilidade para um contexto social muita vulnerável do qual não se faz parte. Por outro lado, não se pode desprezar a tentativa de se pintar um quadro no qual as margens se tornam o foco. E, talvez, a visibilidade só pudesse ser alcançada, nesse projeto, com a escolha de belas cores e composições contrastantes com o objeto.

O filme inicia circundando o local e ensaiando uma entrada. A aproximação é lenta. Primeiro, somos conduzidos via janelas e portas. Depois de um adentramento por um corredor mais estreito, descortina-se o cotidiano mais trivial: os bares, batuques, jogos, trabalhos variados. Nesse momento, é possível ter contato com a vibração de vida que preenche o lugar. Finalmente, começa a ocupação dos espaços interiores, onde faíscas de vibração dão lugar a uma resistência através da ausência. Os rostos vazios, produzindo movimentos maquinais, contemplam a câmara numa avidez por serem observados. A exibição à câmera gera um lampejo de esperança nesses olhos abismais. E o autor vai participando cada vez mais daquele contexto, mas sem nunca se despir de uma estranha condição de antropólogo. O olhar da câmera, embora capte momentos de suposta intimidade, se coloca num lugar paradoxal de mais um consumidor daqueles corpos. A câmera parece pagar pelo serviço das prostitutas com o seu olhar privilegiado. Assim, levanta-se o questionamento: quando as vozes dessas pessoas são ocultadas e a sua dimensão corporal é exaltada, a câmera acaba por ser mais um dispositivo que marca e dilacera esses corpos.

No ápice do entranhamento desse estrangeiro são captadas as marcas e cicatrizes dos corpos que precisam, de alguma forma, ser mutilados para caber no real social.

Em dados momentos, há uma contraposição entre imagens de galos e pessoas brigando. Já em outros, notam-se cachorros deitados nas ruas contrapostos a pessoas na mesma posição. Por mais que nos compadeçamos com as dores do corpo, a animalização dilacerante que o filme provoca nos faz referir a eles sempre como “eles” ou “essas pessoas”. Tal separação, em toda a sua complexidade, nos conduz também ao afastamento e ao incômodo de quem, assim como o autor, não tem a experiência de viver em um lugar como o Pelourinho dos anos 70. E, talvez, uma aproximação se ensaie por essa via: a consciência da alteridade na contemplação mais brutal deste abismo.

No entanto, mais ao fim do filme, vemos vários corpos nus que já nem têm mais rosto. A separação entre voz e corpo perpetrada nos moradores do Pelourinho, ou de bios (vida politicamente qualificada) e zoé (existência biológica), é uma segmentação decisiva. Temos, nesse momento, a exibição da vida nua, ou seja, a visibilidade do aspecto biológico apartado de todo o seu potencial político. Aqui se inscreve o paradoxo mais atroz do filme: contemplamos a fratura que exibe apenas a vida biológica. Tal separação da matéria biológica dos viventes é o que coloca em trânsito a máquina biopolítica. E é exatamente a vida nua ali exibida que é capturável pelos sistemas políticos vigentes[1].

O filme contribui, assim, para reflexões profundas sobre a captura paradoxal que a arte pode perpetrar nos contextos sociais. As questões levantadas, os incômodos, os encontros repousam, antes de mais nada, na pele.

____________________________________________

[1]AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

 

 

Entrevista com José Luis Guerín

El cineasta José Luis Guerin presentó hoy en conferencia de prensa en Santander su última pelicula, "En construcción", galardonada con un premio Goya, y restó importancia a su ausencia durante la entrega de estos premios, añadiendo que quiso dar "la oportunidad de hablar a los que no tienen voz en este tipo de actos", en referencia al palestino que recogió el premio en su lugar

Leandro Afonso*

Em algum momento da década passada, em Salvador, o cartaz de um filme pouco conhecido provocou um fascínio que se transformou numa imagem teimosa. Uma imagem-memória que insistia em não ir embora, que não conseguia ser apagada, mesmo antes do contato com o longa, que só veio anos depois. Curiosamente, essa imagem-memória indelével, a base de alguns cânones do cinema, é também a base daquele filme, que motivou a defesa de uma dissertação de mestrado. O foco principal dessa dissertação, e, consequentemente, da conversa a seguir, é a mise-en-scène do filme Na Cidade de Sylvia (2007), de José Luis Guerín.

Há muito a ser discutido e analisado entre a sua estreia no longa-metragem, com Os Motivos de Berta (1984), e seu longa mais recente, A Academia das Musas (2015). Situado entre eles, Na Cidade de Sylvia (2007) talvez seja o filme mais maduro de Guerín. O filme tem, na sua narrativa, a mesma simplicidade daquele cartaz da imagem teimosa: a busca por uma memória. Essa busca vem com uma mise-en-scène que parece almejar uma certa idealização, uma espécie de mescla perfeita do controle e do acaso, do feérico e do documental, de Hitchcock e Bresson.

Nesta entrevista, algumas perguntas aparecem. O cineasta fala também, entre outras coisas, sobre seu período como professor, influências inusitadas, cineastas contemporâneos e a tirania da mise-en-scène.

*

Você já disse que a primeira versão de Os Motivos de Berta tinha três horas. Trem de Sombras, Na Cidade de Sylvia e A Academia das Musas são três filmes bem diferentes entre si, mas também bem mais curtos, todos com no máximo uma hora e meia. Até que ponto ter a experiência de cortar um terço de um filme, influenciou em sua escrita, no pôr-em-cena ou no pôr-em-situação dos seus filmes seguintes?

Não penso, sinceramente, que o filme tivesse que ter essa duração. Em todas as montagens há uma mais longa, que você deve seguir esculpindo, um pouco como espectador, até ficar com o essencial. Sou preocupado com a concisão. Provavelmente o filme mais longo que fiz foi Em Construção, que dura duas horas e dez minutos. Cada filme dura o que deve. No entanto, por mais que eu seja um defensor da pluralidade de durações, pois já fiz filmes de quarenta minutos, duas horas e dez, uns poucos minutos, sempre tenho claro que é uma responsabilidade moral cada minuto que tiro do espectador. Talvez o único problema sério, filosófico, que tem o cinema, é que o tempo que tira do espectador é um tempo insubstituível. O espectador jamais vai recuperá-lo. Dez minutos, uma hora, duas horas, é um tempo que o espectador nunca mais voltará a ter. Sinto uma obrigação moral nesse sentido. O tempo deve ser essencial.

Na Cidade de Sylvia tem muitos planos abertos, nos quais vemos muitas pessoas, até dezenas. Às vezes vemos que são pessoas conhecidas e recorrentes do filme, mas às vezes não, parece que são transeuntes de Estrasburgo. Ter ou não ter a autorização de imagem de um lugar ou de uma pessoa é algo que influencia sua mise-en-scène final?

Não. Essa é uma preocupação que deve ter o produtor, não o cineasta. Às vezes as problemáticas legais do produtor são muito distintas das problemáticas morais do diretor. Há muitas coisas que são legais e eu sinto que são injustas, e muitas vezes acontece o contrário. Gosto da experiência de chegar numa cidade desconhecida e começar a caminhar por ela, a caminhar muito, até chegar num momento em que, normalmente, começo a reconhecer rostos. Certas presenças da rua se tornam familiares, no bairro, na cidade. Eu queria que certas presenças fossem reincidentes. Que você pudesse reconhecê-las, você já as viu antes. Um dia você volta a passar pela mesma rua e reconhece alguém que cruza, um vendedor de flores, um vendedor africano de bijuterias. De um lado está a circunstância, ir familiarizando-se, dia a dia, com uns rostos. Na Cidade de Sylvia é um filme dividido em três dias, onde muitos dos elementos e presenças que vemos, reaparecem nessas três jornadas. Aí trabalho com as variações sobre o mesmo tema e, também, sobre os mesmos lugares e as mesmas presenças. Por outro lado, outra questão distinta, nesse filme, é a necessidade de trabalhar nos espaços interiores. E nesse respeito é certo que não tenho o orçamento para fechar uma rua e dirigi-la inteiramente eu, então o que faço é servir-me de um certo fluxo de movimento cotidiano que está aí, e complementá-lo com umas certas presenças. São ciclistas, figurantes, que vão compensar o desenho geral, a coreografia geral desses planos. Digamos que seria uma técnica mista. De garantir movimento em uma série de planos, e orquestrar isso com o que vai me dar, acidentalmente, o movimento dessa rua com seus tranvias, seus transeuntes, suas bicicletas…

Guerin 4 - A cidade de Sylvia

Em Quatro Noites de um Sonhador (1971), de Bresson, temos uma adaptação de Dostoiévski, mas temos também um homem que é um pintor, que está em busca de uma mulher, num filme que se passa em quatro noites. Na Cidade de Sylvia nos mostra um homem que desenha, que está em busca de uma mulher, num filme que se passa em três noites. Por outro lado, em Umas Fotos na Cidade de Sylvia, você fotografa um homem que desenha mulheres. Até que ponto as duas coisas influenciaram no ofício, se assim podemos chamar, do protagonista de Na Cidade de Sylvia?

Eu só lembrava desse filme de Bresson muito vagamente. É o filme de Bresson que tenho mais distante e que não pude voltar a ver. Agora tenho uma cópia, que ainda não revi. Achava gracioso Na Cidade de Sylvia ter essa divisão por noites junto à lembrança de Quatro Noites de um Sonhador, mas além da coincidência com o título não tinha a presença desse filme de Bresson. Não é, dos filmes de Bresson, o que mais me impressionou quando vi em seu momento. A ideia surgiu da própria necessidade narrativa do filme. Ou seja, como se assimila essa parte documental, da observação da cidade, de passar pelo lugar da subjetividade a partir de seus traços, de seus desenhos. Está aí o sentimento de que se está gestando algo. Não sabemos o que é. Um quadro, um filme, um poema, uma busca. Não sabemos o que se está gestando exatamente através de seus desenhos.

Você já falou muito de cineastas “tiranos” e como muitas vezes são os que você mais gosta. Também costuma dizer que, para você, a grande questão do cineasta moderno é a gradação entre controle e acaso. No entanto, vendo Na Cidade de Sylvia várias vezes, me parece que você foi um “tirano” que dá a impressão de liberdade – talvez exatamente como muitos de seus heróis. Seria seu filme em que mais tem controle enquanto filma? Seria, em sua carreira, o momento em que foi mais “tirano”?

Eu penso que não tanto (risos). Não tinha tanto poder como você pode supor. Talvez seja um pouco mais tirânico em Trem de Sombras, nesse aspecto. Se eu tivesse mais meios, gostaria de exercer mais a tirania. Também gostaria de ter mais tempo para explorar o acaso, o desconhecido. O problema é que, para pactuar melhor com o desconhecido, necessita mais semanas de filmagem, e este filme tinha poucas, não sei se eram cinco ou seis, agora não me lembro. Gostaria de pensar mais a relação entre a percepção sonhadora desse homem com sua busca e a realidade objetiva mais documental desta cidade, com seus pequenos personagens populares. Um mesmo espaço é vivido com a perspectiva da cotidianidade, e com a perspectiva de sonhador do personagem. Para trabalhar mais esse lado documental, se está trabalhando com elementos vivos que não controla, é preciso mais tempo. Então estive um pouco limitado aí. Mas a ideia de orquestrar os planos, me servindo de uns tranvias que podem passar, de uns ciclistas, do acaso, creio que dá bastante a ideia de até onde chega meu controle e onde segue o puro acaso. Dou como exemplo o transcurso do diálogo no tranvia. Estavam previstas umas frases muito simples do diálogo. Mas essas frases tão simples do diálogo, de troca entre um moço e uma moça, foram se transformando no trajeto, onde eu ignorava, em cada momento, o que veremos ao fundo, como vai atuar a luz sobre os rostos dos personagens, quando vai parar o tranvia. Por outro lado, nas sequencias no café, que tomam um bom tempo do filme, eu controlava muito o espaço e as composições, mas não exatamente o que ia acontecer com os rostos que povoavam esses enquadramentos. Quer dizer, no lugar de dizer-lhes o que tinham que fazer, eu criava uma pequena situação, podia interferir um pouco no que ia acontecer, mas logo ia à câmera um pouco com a moral de um pescador que vai pescar. A ver o que vai acontecer, ver o que vai acontecer… Queria então buscar esse lado, essa tentativa de sempre me deixar surpreender pelas reações que ia capturar com esses rostos dispostos no café. Ou seja, havia uma parte relativa ao enquadramento, ao espaço, que efetivamente está muito elaborada por mim, mas logo o que há dentro desse enquadramento está muito na lógica da captura aleatória. Ia agregando em cada momento o aleatório.

Falando do café, me lembro da garçonete. Ela pode ganhar o prêmio de garçonete mais desastrada e mais azarada de Estrasburgo. São erros de pedido, xícaras derrubadas, mais de uma vez, mais de um dia. Desde o começo, pensou numa garçonete assim? Como pensava ou não pensava todos esses erros?

Sim, pensei. De um lado havia um pequeno acidente, cai uma xícara. Cada momento depois faz parte de uma rima. Esses pequenos acidentes que se produzem dão uma espécie de sinal de pontuação, um eco entre um dia e outro. Ela é a única garçonete em todo o café, é muito para ela. É algo que acontece também cotidianamente, com uma insensibilidade social manifesta. Mas gostaria que houvesse mal entendidos, que é um pouco o azar do amor também. O que vai fazer essa pessoa conhecer a outra? Que essa pessoa olhe para a outra? Às vezes são mal entendidos, são coisas acidentais, acasos. Pode ser um destino também, que se disfarça de azar, para que se estabeleça um olhar com o outro. Se não houvesse acontecido essas confusões, essas mudanças de uma mesa para outra, esse personagem não teria tido essa revelação, a mulher no final que ele confunde com Sylvie. A garçonete é também como uma assistente do palco, que limpa as mesas e as deixa limpas para que cheguem novos personagens. É uma pessoa que está relacionada a todas as mesas. Por um momento pensei que ela deveria confundir-se e trazer, a meu personagem, um suco do fruto do paixão,que estava nas antigas lendas medievais. A revelação se produz por causa de uma porção prévia, o fruto da paixão. Salvo engano, no Brasil é maracujá…

Sim. Maracujá.

Na França o chamam de fruit de la passion (fruto da paixão).

Em outros desses acasos, aí mais um “erro” da natureza que um “erro” dela, me parece que está o motor do filme. E esse ligado ao amor. Podemos dizer que o filme existe por causa de um cocô de pombo. É esse cocô de pombo que faz o sonhador mudar de lugar para ver uma outra mulher e, ao fundo dessa mulher, perceber Sylvia. Ou quem ele pensa ser Sylvia…

Exato.

Guerin 3 - A academia das musas

Eu me lembro de você já ter falado muito de Visconti por ter sido, junto com Zurlini, quem melhor filmou Claudia Cardinale. Mas Visconti me parece um exemplo interessante por estar ligado ao neorrealismo, Com Obsessão (1943), Terra Treme (1948) e Belíssima (1951), ao mesmo tempo em que fez filmes calculados ao milímetro, como O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971), que são quase anti-neorrealistas. Em algum momento se vê fazendo filmes que sejam uma espécie de negação de um estilo anterior? Seria A Academia das Musas uma espécie consciente de antítese para Os Motivos de Berta? Ou, ainda que ligados pelas musas (Lotte, Annabel Lee, Beatrice, entre outras), seria a miseen-scène de A Academia das Musas uma possível antítese pessoal à de Na Cidade de Sylvia?

Não faço isso tão conscientemente. Se há tanta consciência, me parece um pouco infantil, pois vou fazer um filme apenas para ir de encontro a outro. Mas, de fato, gosto de explorar o novo, gosto de não encaixar-me em fórmulas. É algo muito instintivo para mim, fazer algo diferente. É algo que me preocupa porque os cineastas que miram sempre um encaixe, uma fórmula, com uma equipe, como John Ford, como Ozu… Sinto que isso não seria natural para mim, que não corresponderia a uma realidade. Talvez porque essa é a realidade dos cineastas dos estúdios, com uma equipe estável. Contudo, também há cineastas contemporâneos como Philippe Garrel ou Pedro Costa, que têm seu mundo muito localizado e o aprofundam. Neste sentido me sinto como um adolescente que está tateando terrenos para encontrar definitivamente o meu, onde me encaixar. Particularmente, nunca faria um filme como Visconti. Ele me interessa, mas sua mise-en-scène me cansa, me pesa muito, as lâmpadas, os figurinos, os cenários… Ao mesmo tempo, há elementos comuns, esse jogo de acidentes, que levam a um mal entendido, que levam a descobrir uma moça, a uma revelação. Isso está em A Academia das Musas, contado de uma forma muito distinta. Em A Academia das Musas, uma das mulheres conta a história de Apolo, enamorado dramaticamente da ninfa que se transforma em árvore, Dafne. Aí o arqueiro do amor se confunde nas flechas, criando este círculo de mal entendidos e infortúnios de amores infelizes. Agora espero fazer um filme controlando a luz, com cenários. Hoje estou contente porque me confirmaram que recebi uma ajuda para desenvolvimento de roteiro na França. Terei que trabalhar mais…

Voltará a ser um tirano.

Um pouco mais tirano (risos). Recordo, há mais de vinte anos, quando dava aulas e tinha uma maleta grande com filmes em VHS. Muitas fitas, porque às vezes necessitava só mostrar uma imagem, mas já me obrigava a levar isto. Havia uma seleção de 300 fragmentos de filmes, onde para mim estão todas as lições possíveis do cinema, contidas nessa seleção. Hoje tenho uma memória um pouco maior e tenho 700 filmes. É fantástico poder viajar e estar revisitando os filmes da história do cinema que são muito importantes para alguém. Para mim tem sido bonito eleger qual desses 700 filmes ver. Antes, era um momento muito dramático, mas no momento a questão é outra. Agora, tenho que acrescentar um e apagar outro. Isso te obriga a tomar partido pelas coisas. É interessante que as memórias tenham um limite assim.

Falando em memória, você sempre falou da influência de Chaplin, da paixão por Chaplin, por Dreyer, por Ford…

Não me atrevo a dizer a influência de Chaplin. Creio que é uma loucura. Ninguém que veja um filme meu vai pensar que está influenciado por Chaplin. A influência dele transcende o cineasta, é da pessoa. Talvez alguém que conheça muito, muito, muito bem Chaplin possa detectar alguma coisa. Sem dúvida ninguém vai avisar o espectador que um filme meu seja chapliniano. Mesmo sendo o cineasta que conheço melhor.

A questão para mim é que, além de Chaplin, Dreyer e Ford, já mencionou Bresson, Garrel e Rossellini. Há também Jonas Mekas, com quem fez um longa de cartas audiovisuais. Mas quando vejo Guest ou A Academia das Musas, vejo também um pouco de Cassavetes. Com menos intensidade emocional e mais intensidade contemplativa, se é que me entende. De que forma cineastas como ele, mais ligados a um cinema independente que às  vezes também é um cinema diário, reverberam na sua puesta en escena ou na sua puesta en situación?

Não tenho consciência direta. Eu me interesso muito pela forma de encenação de Cassavetes, mas o que mais me ocorre é a circunstância. Porque também há uma precariedade, um trabalho com os atores, as situações, há um paralelismo, não? Ainda que eu tenha vindo mais tarde que Cassavetes, pode se chegar a conclusões parecidas, a alguns métodos de trabalho que têm paralelismos, mas não creio que pensei especificamente em Cassavetes. Não sei. Do homem, sem dúvida, pode ser que haja uma influência. Na história do cinema, não sou o primeiro que faz improvisações com os atores, Cassavetes está aí, mas não tenho uma cena em particular dele em mente quando estou filmando meus personagens. Neste caso, mais que em Cassavetes, pensava de uma maneira muito abstrata no cinema direto dos anos 60. Sempre me perguntei porque os grandes documentários que me importam de verdade, da tradição do cinema direto, estão feitos em película e não em vídeo, se a ferramenta mais adequada para filmá-los é o vídeo. No entanto, os grandes títulos do cinema direto, os irmãos Maysles, (D.A.) Pennebaker, (Robert) Drew, os primeiros filmes de Van der Keuken, (Frederick) Wiseman, entre tantos outros, foram feitos em película. Eles tinham que filmar mudando de bobina, medindo a luz, a distância, fazendo claquetes para o som. Que há de qualidades de grandes narradores nesses cineastas que enfrentaram uma tecnologia difícil, adversa, hostil? E por que essa tensão narrativa, essa capacidade de captar o acontecer aí em frente, de captar o irrepetível, se perdeu agora que temos as ferramentas mais adequadas para fazê-lo? Tentei fazer Guest, entre outras coisas, me respondendo isto, me colocando à prova, nessa tradição. Como narrar com alguém direto, num momento irrepetível, como definir o espaço, como criar o diálogo que guarde as relações com os materiais que foram feitos antes? É o pensamento de estar montando no momento da filmagem e da interação com o presente. É essa tensão tão grande, essa concentração que te leva com o presente, de estar fazendo este filme que é irrepetível, é o relacionar-se com o outro que não conhece, no instante, no presente. Digamos que quis pensar essa tradição do cinema direto.

Guerin 2

Luc Mourlet criticava Hitchcock, Orson Welles e Eisenstein, entre outros, e saía em defesa de Preminger, de Mizoguchi, de Losey, de cineastas que, para ele, eram o documental e o feérico. A possessão perfeita de si mesmo e do mundo, da carne e do mundo. Mas Aumont diz que a história do cinema confirma que esta ideia de Mourlet só funciona como um discurso. Em geral, se costuma ir ou para a raiz Hitchcock, que vai do classicismo ao maneirismo, ou para a raiz Rossellini, ligado ao neorrealismo e à estética do fluxo. Que acha da ideia de mescla de Mourlet dentro do cinema contemporâneo? A mescla entre controle e azar que você defende seria exatamente o que Mourlet defendia?

Creio que me sinto um pouco impudico me situando com estes grandes nomes. Sim, é difícil, também porque todos eles são grandes nomes cuja prática estava bastante determinada por uma lógica industrial e de estúdios que desapareceu. Como pensar num cineasta como Preminger? Não me atreveria a pensar em algum equivalente hoje em dia, e creio que menos ainda num equivalente a Mizoguchi. Mas não sei, teria que pensar. Ademais, acho que estas coisas se veem melhor com certa perspectiva, com certa distância. E não pensei muito em me localizar em relação a todos eles. Creio que um excesso de consciência destas coisas tem um efeito imobilizador. Assim, se penso em fazer um filme, faço uma abstração de tudo isso. Às vezes os críticos me situam num mapa, e às vezes é estimulante ver a si próprio num contexto, descobrir-se nesse contexto. Sou consciente de que há cineastas recentes que me estimularam muito. O último creio que foi Abbas Kiarostami. Tenho uma lembrança muito viva do que me causou Onde Fica a Casa de Meu Amigo (1987), e da vida que continua em Close-Up (1990), um filme extraordinário, que é uma revelação, que me abriu portas. É possível chegar neste extremo de uma captura que, digamos, respira a autenticidade do aleatório, e que no entanto se estrutura com muito rigor dentro de uma composição de filme. Isso é fascinante. Não sei se há um equivalente, no cinema recente, de alguém que levou tão longe essas qualidades.

Agora me lembro de Berta, de Juani, de Sylvie, da ruiva de Innisfree, da mulher em Trem de Sombras, da mulher na sacada de Em Construção, de Lotte, de Beatrice… Seria a principal razão de seus filmes a vontade de transformar a memória em matéria? Uma tentativa de imortalizar uma certa beleza corpórea?

É muito belo o que diz. São palavras demasiadamente grandes… Não sei se é a razão. Não pensei, pensarei. Antes de tudo, há o desejo. Para mim o cinema está muito ligado ao próprio desejo. À intensidade enorme que sinto quando estou montando um filme. Eu me sinto mais vivo. É um desejo e, sem dúvida, o que você enuncia também vai para o lado do desejo, é importante.

____________________________________________

* Entrevista publicada como anexo da dissertação Amor ao Plano e Amor ao Mundo: um estudo da mise-en-scène em Na Cidade de Sylvia, defendida em março de 2017, para o programa de Comunicação e Cultura Contemporâneas, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Entre Rostos, Entre Imagens: O CAVALLEIRO, Elyseu

elyseu1

Pedro Veras[1]

O que pode um rosto no cinema? E um corpo? Essas não são questões imediatamente legíveis em O CAVALLEIRO, Elyseu (2015), mas que surgem à medida que entramos em contato com a imagem do personagem-tema do filme e também com as tantas imagens e sons que produziu e captou ao longo de sua vida. Trata-se de Elyseu Visconti Cavalleiro[2] (1939-2014), cineasta, artista plástico e gravurista que deixou um rico legado para a iconografia brasileira, composto por obras que vagueiam através de estéticas bastante distintas entre si. Possivelmente, seu trabalho mais conhecido tenha sido o experimental Os Monstros de Babaloo (1970), censurado durante dez anos pela ditadura militar, mas o grosso de sua obra cinematográfica foram os documentários etnográficos que realizou entre as décadas de 1960 e 2000. Por meio da articulação entre imagens de Cavalleiro já idoso — enquanto reflete sobre sua vida e seus trabalhos, em entrevistas ocorridas entre 2010 e 2014 — com aquelas criadas ou filmadas por ele, e ainda fotografias e filmes de arquivo pessoal, O CAVALLEIRO, Elyseu constrói o retrato do artista.

Filme sobre autor, filme sobre obra. As primeiras imagens de O CAVALLEIRO, Elyseu não são do artista, mas feitas por ele. A câmera passeia sobre alguns desenhos, traços, cores espalhadas sobre o papel branco, que formam figuras a princípio indiscerníveis. Pétalas? Borboletas? Plantas? Larvas? É então que aos poucos notamos o surgimento de alguns rostos, incompletos e mesclados às formas que remetem a um jardim psicodélico. Rostos de várias proporções, tons, formas, encaixados em corpos humanos ou em animais antropomorfos. A montagem nos leva de seus desenhos para uma vista panorâmica da mata densa de Teresópolis, até que, pela janela, entramos na casa/ateliê/escritório de Cavalleiro, para contemplarmos, bem de perto, o rosto do próprio artista. Esse procedimento que alia “vida e obra” em uma única sequência de planos, sugere uma conexão entre a aparição do artista e a aparição dos corpos em sua obra, pintados ou filmados, criados ou registrados.

Passando do Elyseu-desenhista para o Elyseu-cineasta, entra em cena a primeira imagem de arquivo de um de seus filmes etnográficos, Ticumbi (1978), na qual vemos membros de um quilombo capixaba em procissão sobre uma barca, tradição que faz parte da festa folclórica que dá nome ao curta-metragem. As pessoas filmadas por Elyseu parecem voltar do passado longínquo para encontrar o realizador, agora também tornado imagem, no tempo do filme. Mas é quando surge a figura de um passante anônimo —  que carrega sobre a cabeça um amontoado de galhos secos — em Feira de Campina Grande (1978), é que esse diálogo entre imagens começa a se intensificar. Quem foi aquele homem que encarou diretamente a câmera de Cavalleiro nos anos 1970? O que pode nos dizer a aparição de seu rosto? Qual foi sua história de vida? Por que ele carregava os galhos? Informações não reveladas no curta-metragem de Cavalleiro, onde a narração onisciente descreve os dados objetivos a respeito da imensa feira na cidade paraibana. Ainda assim, a imagem desse homem permanece, está eternizada em nossa iconografia, podemos vê-la hoje e arriscarmos alguns palpites sobre sua vida, inclusive de sua relação com a câmera no momento da filmagem. Naquele dia, durante seu gesto cotidiano de trabalhar na feira, ele deparou com o cinema. Esse contato da câmera com o povo é fundamental para a obra do cineasta, agora retomada — ou remontada — pelo filme de Iulik Lomba de Farias. Isso porque o próprio Cavalleiro revela que procurou “descobrir” o popular, demonstrando um empenho em elaborar uma “imagem do povo brasileiro”, missão espinhosa compartilhada com outras e outros cineastas de seu tempo. Mas afinal, que povo era esse? Parece ser uma pergunta que o próprio feirante faz àquele que capturou a sua imagem, que agora aparece também impresso em uma tela. Imagens em diálogo. Isso graças a essa plasticidade contida nas imagens — as posições dos rostos, os contornos dos corpos, os gestos de cada pessoa — que as liberta de um atrelamento ao discurso que poderia “domá-las”, orientá-las e, por fim, usá-las como meras ilustrações. O CAVALLEIRO, Elyseu começa a se configurar como um filme que elabora um encontro — possível confronto — entre autor e obra, que nos leva para além de um convencional “filme-homenagem”.

elyseu2

Enquanto isso, de volta à casa de Teresópolis, a câmera na mão se contorce para explorar o corpo e o rosto de Elyseu Visconti Cavalleiro. Em planos bem fechados, caminhamos sobre a pele enrugada do realizador, que revela ter nascido no Rio de Janeiro, porém ter se mudado logo para Teresópolis por motivos de saúde. Ele relembra o estágio com o pintor Oswaldo Goeldi, viagens, a relação com a umbanda e a influência do artista Heitor dos Prazeres. A espontaneidade das conversas, regadas a copos de cerveja, revela não apenas as ideias, preferências estéticas e estórias do personagem, mas também o seu universo particular de imagens. Recortes, fotografias, cartazes e desenhos emolduram o corpo do artista na intimidade de sua casa. Enquanto ouvimos sua voz, o filme de Farias retoma os arquivos e volta no tempo para perscrutar planos de Folia do Divino (1968), Caboclinhos de Tapirapé (1978) e Maracatu – Estrela da Tarde (1978), todos com o mesmo tom de “registro do folclore brasileiro”. Mas Cavalleiro expressa a intenção de superar tal etiqueta, ir além dessa abordagem superficial: “O nitrato de prata capta a energia! Não é DVD não. É filme, negativo. O negativo capta a energia. [Se] Uma câmera [fica] em cima de você durante uma hora, meia hora, sua energia vai pro beleléu. (…) [É] Uma alquimia!”.

Fluxo que é novamente animado pela montagem de O CAVALLEIRO, Elyseu, ao interpor as imagens de arquivo tão distantes temporalmente. Na camada sonora, Cavalleiro narra suas experiências artísticas, “sentindo a energia” das pessoas que filmou e fotografou, enquanto a imagem apresenta materialmente esses rostos anônimos, dos quais ele fala. Esse diálogo — ou “fluxo energético” —, iniciado pelo negativo no ato da filmagem e agora acessível pelo digital, é renovado. É como se a postura frontal de um caboclo de lança do Maracatu em Pernambuco, que encara a câmera, ou os sorrisos nos rostos de algumas crianças que acompanham a festa do Boi Calembano Rio Grande do Norte, irrompessem nas imagens para reivindicar alguma singularidade. São rostos que parecem exigir de nosso olhar algo que os torne únicos, em meio ao universo das imagens estereotípicas que circulam no “mercado das aparências”. São imagens e sons que apontam para uma possibilidade de resistência, de sobrevida, das culturas folclóricas e aos modos de vida tradicionais.

Elyseu Visconti Cavalleiro — esse “vulcão de inquietações criativas, figura firme & forte nas rodas às vezes esotéricas da experimentação cíclica”, como o descreveu Jairo Ferreira (2016, p. 200) — faleceu em 2014, contudo é preciso reconhecer que seus filmes continuam quentes. Todas essas possíveis histórias impressas em cada pessoa por ele registrada, no conjunto de seus documentários, permitem a continuação do trânsito de energias e de significados. Rostos e corpos, gestos e modos, transformados em imagens que se põem à espera de novos encontros, para atestarem alguma forma de reconhecimento e de resistência contra as forças que se empenham em apagá-los.

____________________________________________

Referência

FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2016.

[1] Ensaio publicado originalmente no catálogo do Forumdoc.Bh.2017 – 21º Festival do filme documentário e etnográfico.

[2] Seu sobrenome em caixa alta, no título do filme, sugere uma singularização do artista, que era homônimo do avô, Eliseu Visconti —  pintor brasileiro, conhecido por sua fase impressionista, que viveu entre 1866 e 1944.

A Repressão e Seus Túmulos  

Children

Roberto Cotta

A grande felicidade é que as crianças quando crescem esqueçam a instrução, sem o quê os próprios adultos não se poderiam mais entender. Aí tens: é ela, a instrução, que provoca o maior mal no homem…

(Maksim Gorki, O Pastor)

A propósito da mostra “Escola: Cidade Aberta” (2017), curada por Leonardo Amaral e por mim, com o financiamento da Caixa Cultural de São Paulo, apresentei umas breves notas aproximando estruturalmente os filmes Children (Terence Davies, 1976) e Nº27 (Marcelo Lordello, 2008). Mesmo percebendo os riscos trazidos por essa conjunção, muito me instiga a maneira como ambas as obras constroem noções acerca da instrução escolar como uma forma iminente de morte. Já que o acesso ao catálogo do evento ainda é restrito, resolvi reformular essa articulação de ideias e publicá-la nesta edição da Rocinante.

Contudo, antes de seguir adiante, é preciso ressaltar que tais filmes concentram suas premissas narrativas em dois jovens protagonistas imputados por uma morte cotidiana, algo capaz de suscitar uma sensação irreversível de abatimento e traduzir todos os males de uma juventude que precisa se enclausurar em si mesma para sobreviver. No média-metragem de Davies, ainda hoje sua obra mais irretocável, avistamos uma morte anunciada em dois tempos: o da infância, com sua tormenta entranhada na carne, e o da idade adulta, quando o tornado sai pela testa para se transformar em assombração permanente. No curta de Lordello, filme pernambucano que mais tem provocado nesses últimos anos, observamos uma morte implacável, aquela que apresenta sua cara e carrega sua foice diante de um grandioso evento: o momento derradeiro de uma decapitação pública.

Dois mundos, uma só sentença

Na calada da noite, quando o menino Robert Tucker amedronta-se diante do caixão que abriga o corpo do pai, a repressão atinge o grau máximo de evidência em Children. A noção estabelecida pela cena não poderia ser mais precisa: será impossível livrar-se da opressora figura paterna mesmo após sua morte. A reação ao cadáver também deixa claro o regime repressivo vivido na infância e a maneira como isso se traduzirá em herança inevitável. Os traumas durarão e, agindo com apatia às adversidades que encara, o adulto Robert sobreviverá aprisionado em caixotes, tal como acontecia quando criança. Comprovando esse fato, os flashforwards que atravessam o filme nos permitem acompanhá-lo anos depois, fragilizado por todas as imposições que lhes são legadas a vida inteira. O menino Tucker consegue se libertar de uma instância de poder que o apavora (seu pai), mas é aterrorizado pela responsabilidade precoce que tão logo carregará, assumindo o lugar do patriarca e tornando-se arrimo de família. É nesse momento que temos a certeza de que o protagonista sempre habitará um túmulo.

A sepultura inicial mostrada por Children está materializada na escola. O primeiro plano do filme apresenta a estrutura solene do colégio onde Tucker estuda. A instituição é vista de fora, grandiosa, secular, repleta de cômodos, cercada por muros. Depois disso, o personagem passará tempo substancial nesse lugar, acuado pelos alunos mais velhos, que zombam de seu porte franzino e especulam sobre sua sexualidade. A violência muitas vezes estoura, atuando como mecanismo de correção. Robert é agredido pelos colegas, castigado pelos professores e violentado pelo discurso de ordem que transborda em cada espaço físico do colégio. Dentro dele, as práticas corretivas são entendidas como forma de instrução. Lá fora, o mundo oferecido parece ainda mais aprisionador. O protagonista quase sempre está prostrado em ambientes internos: casa, quarto, clube, sauna, ônibus, sala de espera, consultório médico. Sem fôlego, Tucker se entrega indiferente às regras e hierarquias que esses limites espaciais impõem. Por isso, sua expressividade parece ter sido enterrada no mesmo caixão onde fora despejado o corpo do pai e deve permanecer encarcerada nele pra sempre. Como um morto-vivo, o lamento de Tucker se define num solitário grito abafado.

nº 27

Já em Nº 27, a narrativa se concentra numa situação supostamente insólita, na qual o protagonista se vê obrigado a trancar-se no banheiro do próprio colégio. Nesse sentido, ao menos num primeiro momento, a tranca é vista como forma de refúgio. É preciso dela para se cercar de tudo que possa reprimi-lo, invertendo a percepção em torno de uma ideia naturalizada de cerceamento. O jovem Luís, adolescente que suja acidentalmente a camisa após uma dor de barriga, transforma o banheiro num jazigo para si mesmo, de modo que possa funcionar como campo de proteção e isolamento em relação a qualquer tipo de zombaria. O cômodo, então, torna-se um mundo à parte dentro da própria escola, onde a idolatria à ordem poderia, supostamente, encontrar alguma mínima condição de resistência.

Mas a instrução logo derruba seu muro. Pressionado pelos colegas, que querem entrar a todo custo, o personagem conversa com o coordenador do colégio, explicando-lhe o ocorrido. O diálogo é mostrado por entre obstáculos/abismos. Vemos apenas Luís e a parede, enquanto ouvimos o coordenador tentar convencê-lo a sair do banheiro. A porta trancada os separa, mas a persuasão da didática escolar logo consegue proporcionar sua abertura/ruptura. O rapaz sai desamparado e acaba trucidado por olhares e chistes durante o trajeto pelo corredor. Por sua vez, o coordenador o acompanha como se fosse um verdugo, conduzindo o adolescente para a sentença de morte. Definitivamente, não há mais qualquer chance de proteção e, agora, percebemos que o frágil túmulo outrora forjado deu lugar à reputação sepultada. Aos leões, o personagem é arremessado sem dó nem piedade, e a escola o devora antes mesmo que alguma nova jaula possa ser construída. A sala de aula se transforma em covil, a cacofonia dos colegas dilacera o horizonte e somente a imagem de seu rosto espinhento guardará os resquícios da inocência perdida. A morte está, de fato, consumada.