Inocentes (2017), de Douglas Soares

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Um filme banal

João Campos

Filmes de homenagem me interessam e, geralmente, me comovem. Este não é o caso de Inocentes (2017), curta-metragem de Douglas Soares. A obra instaura um interessante jogo imagético, a partir do qual o processo criativo do artista Alair Gomes é representado pela câmera de cinema. Além disso, em voz over, cartas do fotógrafo relativas ao seu trabalho e vida são lidas, complementando a experiência. Contudo, o que parecia uma proposta cinematográfica contundente, se transforma numa tentativa inócua de transposição da forma da fotografia do artista para uma mise-en-scène pedante, distanciando o filme de outras obras recentes que esboçam homenagens a artistas, como Ferroada (2017), de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho (Coletivo Cinefusão) ou O cinema segundo Luiz Rô (2013), de Renato Coelho (Coletivo Atos da Mooca).

Inocentes é um emplastro, um fracasso maçante – mas em P&B – que tenta simular de formas ingênuas uma operação estética cara ao cinema: a janela indiscreta. As consequências de um filme-emplastro são severas: fazem parecer, através de processos frágeis, que uma obra e uma vida se convertem – ao menos no ecrãem banalidade. Há belos momentos fotográficos, como quando o personagem de Alair Gomes observa os corpos robustos dos jovens que se exercitam na praia – aqui está a única beleza do filme, lembrar das fotografias do artista. Porém, o diretor e seu fotógrafo fizeram questão de inserir, a todo momento, objetos diversos em primeiro plano, simulando ingenuamente a experiência do voyeur. O germe do fracasso está aí, mas não exclusivamente, pois o que faz o filme desabar é a sua segunda metade, a partir da qual os homens observados iniciam um processo de masturbação pseudo-artística que não reflete a potência das fotografias de Alair Gomes – obviamente não esperamos que o filme possua a mesma qualidade que o trabalho do artista, mas penso que o primeiro não consegue nem se aproximar da beleza do segundo.

A colagem, no filme, da série de fotografias de Alair sobre o carnaval carioca lampeja como a única possibilidade de salvação de Inocentes. Aqui há uma fricção necessária, uma ruptura que poderia ser o início de um descontrole das formas da obra. Porém, insulada num filme banal, as fotografias perdem a sua força.

Retomando a comparação: ao contrário dos mencionados Ferroada e O cinema segundo Luiz Rô, que homenageiam, simultaneamente, Tico e Luiz Rosemberg Filho, Inocentes tenta dar conta de muito – se não tudo. E enquanto os primeiros trabalham o fragmento, o vestígio e o encontro em tensão, o segundo busca dar uma forma conciliatória – e, por isso, redutora e banalizante – ao universo documentado.

 

Construindo Pontes (2017), de Heloisa Passos

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Forjando pontes

João Campos

Construindo Pontes (2017), estreia de Heloisa Passos enquanto diretora de cinema, parte de “um desejo de conversa e escuta”. As palavras da diretora, ditas durante o debate que sucedeu seu longa-metragem em Brasília, são reveladoras, uma vez que o filme se constrói a partir da tensão entre ela e seu pai, oriunda de um processo de confronto que, na montagem, é costurado a um discurso periclitante – e ingênuo – a respeito dos problemas políticos do país – de ontem e hoje. A necessidade de esboçar um “discurso político” a qualquer custo (seja no filme, no debate sobre o filme ou na fala da diretora que antecedeu a sessão) ilustra algo problemático: a culpa de classe de uma cineasta pretensamente de esquerda.

O filme é completamente esvaziado de política, mas tem a ambição exibicionista de encampar questões que conectam, por tensão mecânica, o micro e o macro, a esfera particular e o mundo que a transcende. Essa tentativa se dá através da utilização de imagens de arquivo da época da ditadura militar, da evocação constante dos contrastes entre a posição política do pai e da filha e de procedimentos visuais frustrados, pedantes, que refletem grande descaso em relação à história.

O argumento do filme surgiu quando a diretora foi presenteada com filmagens em 8mm das Sete Quedas, complexo de cachoeiras destruída durante a ditadura militar em função da construção da Usina de Itaipu. Partindo de tais imagens, a obra constrói conexões mirabolantes entre passado e presente, mais precisamente, entre golpes – 1964 e 2016. Contudo, as questões políticas integram-na como ganchos entre as conversas de pai e filha que, mesmo no confronto, nada revelam.

O pai: engenheiro renomado que coordenou diversas obras importantes durante o período da ditadura. A filha: uma cineasta de esquerda que cresceu na ditadura militar, mas como “menina rica”, e agora quer falar de política e afeto. O fascismo silencioso desse homem calculista, que a tudo planeja, é evidenciado por seus discursos, mas também pelos da filha: “Ele fala revolução. Eu falo ditadura. Ele bebe cerveja, eu bebo uísque. Ele diz impeachment, eu golpe. Ele é craque em pingue-pongue, eu também”. Esses trechos em primeira pessoa tentam poetizar um filme que não existe, contribuindo para o equívoco da diretora em falar da história dos outros a partir da sala da casa de seus pais – possivelmente o delírio de uma “menina rica”. Tal pretensão poética estrutura o filme, resultando num desastre. A evocação de Jean Rouch (“Building Bridges”) é devastadora, uma vez que a única ponte que aqui existe é a Curitiba-Brasília. Falar por falar, fazer filme por fazer. Nada se distancia tanto da proposta rouchiana.

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As duas câmeras instaladas cuidadosamente na casa dos pais de Heloísa revelam apenas debates óbvios que escutamos em qualquer grupo de whatsapp ou facebook. Frases como “os militares fizeram o que bem entenderam” ou “eles torturaram as pessoas” poderiam ter saído da boca de uma adolescente de 15 anos, mas, no filme, fazem parte do discurso da protagonista, sequiosa por dividir seus clichês em tempos nos quais todas e todos (principalmente os oportunistas) creem na importância de se posicionar politicamente – mesmo quando não possuem posição alguma!

As deambulações das personagens dão movimento ao filme, que se perde na política, mas se encontra na possibilidade de estabelecimento de uma conexão entre eles. Uma obra em processo, que tenta encarar o real, mas acaba controlando-o. A voz over é empregada sempre que o confronto entre Álvaro e Heloísa não é suficiente para manter a narrativa – ou, o que parece mais coerente, quando o discurso do primeiro não está de acordo com as expectativas da diretora para o filme. Não há escuta – o mote do filme –, mas um constante atropelamento das contingências e ambiguidades do real. Heloísa Passos compõe um simulacro de si mesma e sua culpa de classe perante um país em colapso – apocalipse que não a afeta, mas cuja história, ainda assim, a realizadora revolucionária almeja contar.

Termino com uma questão: ao controlar excessivamente a mise-en-scène, com estratégias narrativas pedantes e chicherizadas, Heloísa Passos não estaria forjando pontes? Nessa obra desastrosa, as conexões entre micro e macro, afeto e política, pai e filha sinalizam apenas a violência de uma cineasta que quer moldar o real ao seu bel prazer – e nada mais.

 

 

Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans

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Cristiano, um narrador

João Campos

“Filme de trecho”, disse João Dumans sobre Arábia (2017). Com efeito, a experiência do caminhar e do narrar envolve o filme de tal maneira que o gesto de rememoração do personagem, inscrito na representação de um trecho curto de sua vida, contagia a mise-en-scène por completo. É nessa incompletude ontológica do rememorar e nas valas da história dos vitoriosos que encontramos as potências desse épico contemporâneo da classe trabalhadora, inelutavelmente fragmentário, incontestavelmente poético.

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Um jovem encontra o diário de um trabalhador que sofreu um acidente em serviço numa antiga fábrica de alumínio de Ouro Preto. Esse trabalhador é Cristiano, interpretado por Aristides de Sousa, e Arábia é a história de sua vida e morte, representada de forma poética e fragmentada. A literatura está presente no filme tanto na narração em voz over quanto no gesto de leitura que conecta André (Murilo Caliari) às passagens literárias produzidas por Cristiano, cujas palavras refletem uma memória dissidente, atenta tanto às desgraças quanto às alegrias.

“Máquina de contra-história”, esse foi o termo usado por Affonso Uchoa para explorar as potencialidades do Cinema. Creio que ele não falava exatamente de seus filmes, mas do que acredita que o cinema pode no mundo atual. Contudo, não há dúvidas de que, se a história oficial ou conservadora é escrita pelos vitoriosos, tanto Arábia quanto A vizinhança do tigre (2014) alimentam uma nova máquina de contra-história. Refiro-me a certo cinema[1] que, mesmo quando é sutil (como no caso dos filmes de Uchoa e Dumans), produz histórias e compõe mise-en-scènes capazes de desafiar os discursos oficiais e os olhares estrangeiros (Cidade de Deus (2002), por exemplo), que ainda silenciam narrativas marginalizadas– elaboradas por trabalhadores e trabalhadoras, pobres, indígenas etc.

Chegamos num ponto crucial. Se a produção da história é composta não só por historiadores profissionais, mas também por “artesãos das mais diferentes estirpes”, como “políticos, estudantes, escritores de ficção, cineastas ou membros participantes do público em geral”[2], considero plenamente viável dizer que Arábiase insere no processo de sedimentação de uma História (e uma Literatura, e um Cinema) dos marginalizados – o Outro da antropologia e do cinema. Ao inscrever Cristiano enquanto narrador de sua vida, de seus pesares, amores, festas e delírios, sem reduzi-lo ao horror e sem celebrá-lo enquanto exótico, Affonso e João compuseram um filme e um conto. Com crueza e sem rodeios, a narração de Cristiano mostra uma pessoa vigorosa que ruma sem destino e sem apego, tentando sobreviver à deriva, entre empregos e sob a influência (sempre sussurrada) de Ana, o amor de sua vida.

***

Segundo Walter Benjamin[3], o narrador tradicional retira da experiência (Erfahrung) a matéria-prima de suas histórias. O saber origina-se, portanto, do ponto-de-vista daqueles que se afundam no tempo e se perdem no espaço – o sábio e o viajante. Cristiano, um andarilho que extrai sua arte de suas errâncias por um pequeno trecho de Minas Gerais (sempre em busca de trabalho), se assemelha, portanto, a esse tipo de narrador benjaminiano. A força-motriz do filme é a reminiscência, que nunca é completa, pois sempre nos apropriamos do nosso passado como se estivéssemos dando braçadas no esquecimento. A forma fragmentária do rememorar reflete a forma do filme, de modo que sua mise-en-scène configura o que apresenta enquanto vestígio. O tempo de 10 anos transcorre em fragmentos do lembrar. A história de opressão de um trabalhador brasileiro nos é sussurrada até alcançar um lampejo surdo, mas brilhante.

No final de Arábia, a surdez acomete Cristiano, que então pára de escutar a sinfonia das máquinas e desloca seu olhar para seus companheiros de trabalho. O som desaparece, e só ouvimos a voz do protagonista, que antevê um caminho inevitável. Durante o filme inteiro acompanhamos a formação de uma consciência de classe que, agora, na surdez, quer gritar. Em sonho, o jovem trabalhador quer chamar seus colegas, quer parar a fábrica, a luta é necessária, ele está vivo. A única chama que nutre é o ódio contra o inimigo: essa possibilidade está em sua voz. As luzes se apagam.

Os fragmentos mnemônicos de Arábia se convertem num sonho de luta, numa prolepse narrativa que mira outra história, outro cinema. A obra se choca violentamente – apesar de toda sensibilidade sutil de suas operações estéticas – contra a história oficial (retilínea e rumo ao progresso), que silencia qualquer produção narrativa da classe trabalhadora:todo lampejo é ignorado. Se for possível reinventar a potência do rememorar em favor de uma História materialista revolucionária, como queria Walter Benjamin, considero que o cinema, enquanto uma força ingovernável, capaz de destruir os alicerces dos silenciamentos vigentes, tem um papel a desempenhar. Nesse sentido, Arábia, um filme de trecho, que enlaça a memória pessoal e a história social numa ficção de errâncias, possibilitando ao espectador uma viagem plástica e não menos destrutiva aos confins do lembrar e contar, representa um grande passo.

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[1]Dentre esses filmes, podemos mencionar a obra de Adirley Queirós, principalmente A Cidade É Uma Só?Branco Sai Preto Fica e Era Uma Vez Brasília; Baronesa, de Juliana Antunes; Estado-itinerante, de Ana Carolina Soares; Tentei, de Laís Melo; Café com Canela, A Falta que Me Faz, de Marília Rocha, entre outros filmes recentes que produzem deslocamentos do lugar olhado das coisas.

[2]TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Curitiba: huya, 2016. Pp. 57.

[3]“O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras escolhidas I: Magia e técnica – arte e política. São Paulo: Brasiliense.

Cobertura do 50° Festival de Brasília

50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: uma montagem tensa

João Campos

Festivais e mostras de cinema são lugares onde imperam a fricção, o deslocamento e o confronto de ideias heterogêneas. Aprendi isso no forumdoc – de onde parti – e agora vejo isso no cinquentenário do Festival de Brasília – por onde passei. O maior êxito da recente edição do evento foi sua composição. Embora os arranjos das sessões justapusessem filmes que “conversavam”, o valor da curadoria deste ano estava em outro lugar: no dissenso!

Ao analisarmos os filmes que compuseram as mostras competitivas, de longa e curta-metragem, enxergamos tensões necessárias: obras como Pendular, Construindo Pontes, Inocentes e Vazante se relacionaram por curto-circuito com filmes como Era Uma Vez Brasília, Arábia, Tentei, Café com Canela e Por Trás da Linha de Escudos. A tensão desloca, estimula o pensamento.

Um festival de cinema pode se propor a reproduzir o consenso, mas esse é o caminho dos inimigos. Mais do mesmo não nos interessa, os tempos são de ódio e o contato destrutivo nos leva a refletir. Pergunto-me: como produzir o dissenso se não através da fricção entre divergentes operações estéticas, ideologias e formas de ser e estar no mundo? A potência está aí.

Novas formas de fazer cinema autoral estão surgindo: outros sujeitos, outras. Não obstante, “o mais do mesmo” persiste em massa. Ignorar o cinema burguês – Vazante, Construindo Pontes… – seria, por um lado, negar o fato desses filmes ainda dominarem os meios de produção, distribuição e recepção do cinema. Inserir tais obras num contexto de tensão é mostrar que, apesar disso, outro cinema vem tomando forma: Café com Canela, Era Uma Vez Brasília, Tentei – e por aí seguimos na esteira ingovernável do contra-discurso.

Acredito que, nesse caminho, vamos longe. Se for necessário apedrejar, vamos aos filmes. A tensão é criativa, o confronto é necessário.

O Profundo Desejo dos Deuses (1968), de Shohei Imamura

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O sangue corre selvagem

Roberto Cotta

Aquilo não me machuca, produz apenas um efeito inquietante de devastação. Mas não tenho mais braço, nem perna, nem corpo. E sinto a água profunda me levar para o fundo, entrando em minha boca com um gosto de sangue, enquanto começo a afundar…

(Alain Robbe-Grillet, “A Retomada”)

Nos grandes cineastas modernos, por mais heterogêneos que sejam, a ideia de permanência representa uma condição indissociável às suas construções de mundo. De Monicelli a Terayama, Sganzerla a Muratova, Mekas a Pialat, não há cinema sem que se considere o peso da presença histórica sobre os personagens e espaços registrados. Portanto, é possível dizer que, em suas obras, a articulação das formas compreende o passado como talho inseparável do presente e pegada inapagável no futuro.

A rigor dessa lógica, Imamura concebe O Profundo Desejo dos Deuses (1968) com solidez semelhante à das colunas do Templo de Hefesto. Filme ambientado numa remota ilha japonesa, ao final dos anos 60, guarda em sua estrutura temporalidades que se enfrentam de igual pra igual, preservando uma tensão que sobrevive até mesmo à ascensão catastrófica do homem moderno. E tudo que recai sobre a tradição milenar e a modernidade galopante nesse primitivo vilarejo permite que tais instâncias se embrenhem, pouco a pouco, causando atritos colossais.

Acima do horizonte, encontramos a densidade das formas de representação divina, bastante influentes no comportamento da população. Logo abaixo, os homens se mostram temerosos aos deuses, mesmo quando tentam abandonar o passado para experimentar a sedutora transformação econômica impregnada no lugar. Não demora muito para que deuses e homens se igualem em seus anseios e virtudes, rompendo com as barreiras espaciais que outrora os separavam. Em vão, a ideia de uma dominação promovida pelo capital tenta soterrar todos os valores tradicionais, ao passo que a tradição, por sua vez, torna-se o ponto de frenagem definitivo contra a consolidação desse suposto mundo novo.

Aliás, é justamente através dessa penetração do passado no futuro que o cineasta articula um tempo presente propício à coexistência de universos, à primeira vista, tão distantes. O passado se sustenta mediante os ritos, superstições, punições e castigos divinos, enquanto o futuro se anuncia na engrenagem das máquinas, na exploração desmedida da terra, na presença de elementos culturais estrangeiros, na chegada dos forasteiros. O presente, enfim, traz a mais pura desorientação espacial. Atabalhoados, os habitantes do local tentam decifrar essa temporalidade desordenada de mudanças. Entretanto, conforme as ações se desdobram, a noção de desnorteamento torna-se ainda mais evidente.

Os espaços parecem comportar a carga das inquietações divinas e a empáfia de uma noção cruel e ancestral de moralidade, fator que interliga os três tempos históricos e serve como rédea para que nada, de fato, possa ser transformado. Quando o casal de irmãos-amantes Uma (Yasuko Matsui) e Nekichi (Rentarô Mikuni) tem sua fuga brutalmente interrompida, já na parte final, sacramenta-se a impossibilidade de segregação entre os prazeres mundanos e os desejos divinos, à medida que os homens resolvem se igualar de vez aos deuses até mesmo em seu destino trágico.

O amor entre os personagens precisa ser dilacerado para a sobrevivência da moral, saciando o suplício das divindades e mantendo firme os costumes do povo. Só que a ruptura logo vem, e o duro corte que estabelece o fim da sequência comprova que nada permanecerá incólume depois desse impedimento. A imagem do barco à deriva é abandonada junto ao passado. Na cena seguinte, toma forma a inauguração de uma linha de trem, cinco anos depois, lastro definitivo para a aparente consolidação moderna.

Mas essa modernidade tardia continuará por muito tempo ensopada de valores tradicionais. Enquanto o trem trafega sobre os trilhos, cidade afora não dá a mínima atenção ao contador de histórias que se mantém na ativa, onisciente (como se fosse uma dádiva não poder envelhecer), ao mesmo tempo construindo uma relação anacrônica de mundo e narrando os destinos e as sinas dos habitantes do vilarejo. Mais uma vez, esse personagem entoa um cântico sobre o nascimento da ilha, cujas trovas louvam as ações de um irmão-deus e uma irmã-deusa em tempos remotos, claramente associados a Nekichi e Uma, dois amantes crucificados sobre as águas do mar. Passado, presente e futuro definitivamente se fundem, e os traumas proporcionados por essa fusão durarão pra sempre.

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Os Futori estão quase sempre no centro das ações do filme. Família composta pela mais variada horda de paspalhões, o tempo todo é zombada pelos demais habitantes. A formação desse clã é a mais perfeita tradução dos confrontos entre o divino e o mundano, o desejo e a moral, a punição e a liberdade no dia a dia dessa comunidade pesqueira. O patriarca Yamamori (Hôsei Komatsu) teve relações sexuais com a filha Ushi, gerando a deficiente mental Toriko (Hideko Okiyama). Seu filho Nekichi nutre um eterno desejo amoroso pela irmã Uma, que é casada. Já Kametarô (Chôichirô Kawarasaki), filho de Nekichi, mostra-se alheio aos estigmas incestuosos da família, mas é tão expressivo quanto a pedra gigantesca estacionada em frente à casa dos Futori, fruto de um castigo dos deuses.

Calado, circunspecto, sempre à margem do circuito de decisões, cabe a ele a derradeira empreitada para honrar as tradições da ilha. O jovem terá que partir em busca da captura do pai para poder matá-lo, impedindo que as divindades sucumbam à vontade dos homens. O fardo ensanguenta suas mãos, tornando-se a única forma possível de manutenção da convivência coletiva. Golpe a golpe sobre a nuca do pai, a tradição vai se transformando em rastro empilhado na memória do povo. E isto faz com que a modernidade vingue e se apresse de maneira selvagem para domar os anseios mundanos.

Nesse gesto de Kametarô reside um tonto lampejo de primitividade. Ou seja, selvageria semelhante à capacidade orgânica que esse filme tem de esquadrinhar cada espaço mostrado como costura cerzida. Quiçá, nunca tenha existido na história obra tão longa (quase três horas de duração) que soubesse conduzir com tamanho primor essa relação agreste entre tempos e espaços. Nem mesmo nos demais filmes de Imamura – alguns quase tão esplêndidos quanto – a justeza das escolhas formais foram atravessadas pelas mesmas dimensões bárbaras. Ainda assim, o controle é suplantado pela voracidade dos atos, e, em O Profundo Desejo dos Deuses, as divindades são massacradas pela vontade profana de alterar seu lugar de permanência na vida do povo.

Tempos depois, ao confrontar essa avidez carnal, Kametarô finalmente poderá questionar suas próprias atitudes, enquanto observa o fantasma de Toriko (personagem incapaz de habitar essa ilha modernizada) desafiar a maquinaria fumegante do trem que ruma em sua direção. O freio da locomotiva dinamita qualquer possibilidade de sutura entre passado e futuro, tornando o presente um mausoléu a céu aberto povoado por todo tipo de assombração. Aos homens, trucidados pelo próprio desejo, resta a sobrevivência à míngua das crenças.

 

Um Outro Ano (2016), de Shengze Zhu

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Uma estória contada por suas elipses

Bruno Greco

Em Um Outro Ano (2016), acompanhamos o cotidiano de uma modesta família chinesa: avó, pais e três filhas. Shengze Zhu opta por mostrar a passagem do tempo através da apresentação de treze refeições dessa família, em meses distintos. Trezes longos e estáticos planos-sequências, cuja mise-en-scène é coordenada, principalmente, pelas duascrianças mais novas. Aparentemente alheias tanto aos conflitos que se instauram ao seu redor, quanto à própria equipe de filmagem,elas correm, gritam e dançam – dentro e fora de quadro – e, principalmente, assistem TV. Esse hábito, comum à famílias de diversos países, funciona como ponto de conexão das cinco personagens. É o programa noturno que cria o companheirismo entre o pai e a primogênita, e os desenhos animados, os únicos capazes de acalmar as caçulas. A televisão, que permanece ligada durante todo o filme, se torna um sexto membro dessa família.

Os impasses vividos pelas personagens permanecem no extracampo. Por meio de alguns sutis comentários – vindos, principalmente, da mãe – nos damos conta de que a família vive sérias dificuldades financeiras, por exemplo. Mais tarde, no quarto mês, se não me engano, entre uma refeição e outra, a avó sofre um derrame. A refeição seguinte é, portanto, completamente análoga às anteriores. A avó, ainda hospitalizada, não está presente. Demora algum tempo antes que toquem no assunto, mas logo percebemos que algo aconteceu. A família está claramente abalada. O incidente da avó foi preenchido pela tela preta com legendas indicando o mês em que estamos, recorrente no intervalo entre todos os planos do filme. É como se Shengze Zhu deixasse toda a trama acontecer nesses espaços vazios. Uma estória contada por suas elipses.

Paris Is Burning (1991), de Jennie Livingston

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Cartografia de desejos

João Campos

Ser queer significa levar um outro tipo de vida. Não é sobre o mainstream, margens de lucro, patriotismo, patriarcado ou sobre ser assimilado. Não é sobre diretores executivos, privilégio e elitismo. É sobre estar nas margens, definindo nós mesmas; é sobre desfazer gênero e segredos, sobre o que está abaixo do cinto e, profundo, dentro do coração. É sobre a noite. Ser queer é ser “local” porque sabemos que cada uma de nós, cada corpo, cada gozo, cada coração e cu e pau é um mundo de prazeres esperando para serem explorados. Cada uma de nós é um mundo de possibilidades infinitas.

Manifesto Queer Nation

 

Dando continuidade ao ciclo de mostras e seminários chamado “Cinemas e alteridades”, iniciado em 2011, o forumdoc nos apresenta a mostra/seminário “Queer e a Câmera”. Paris Is Burning (1991) abre esse importante evento, trazendo para o público um olhar sobre a cena dos ballrooms de Nova York. Uma das questões do filme é, sem dúvidas, a negritude queer. Segundo Paulo Maia, organizador da mostra/seminário, a temática negra é “um dos aspectos latentes dessa filmografia queer da passagem dos anos 1980 para os 1990”[1], virada em que Paris Is Burning é lançado. Ruby Rich chamou a filmografia supracitada de New Queer Cinema. Segundo a autora:

é claro que os novos filmes e vídeos queer não são todos um só e tampouco compartilham um único vocabulário estético, estratégia ou preocupação. Ainda assim, eles são unidos por um estilo comum: chamaremos de “Homo Pomo”. Há traços em todos esses filmes de apropriação, pastiche e de ironia, assim como uma reelaboração da história que leva sempre em consideração um construtivismo social. Definitivamente rompendo com abordagens humanistas antigas e com filmes e fitas que acompanham políticas de identidade, essas obras são irreverentes, enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas. Acima de tudo, elas são cheias de prazer. Elas estão aqui, elas são queer, acostume seus quadris a elas.[2]

Paris Is Burning explora esse universo subterrâneo, apresentando, através de um conjunto de entrevistas e blocos temáticos um tanto didático, uma espécie de cartografia dos desejos da negritude queer de Nova York. Nos balls, as pessoas performam seus desejos, projetando, nos seus corpos, gestos e movimentos, a diferença de sua identidade transgressora.

Podemos dizer que Paris Is Burning é uma incursão etnográfica nos ballrooms nova-iorquinos. Jennie Livingston busca, através da voz de pessoas transexuais, transgênero, gays e drag queens, explicar um sistema simbólico, ou uma cultura. Gêneros de dança e competição, casas e termos utilizados na experiência cotidiana dessas pessoas são esclarecidos ao público nas entrevistas e demais conversas.

Talvez o maior êxito do filme esteja relacionado ao respeito que a cineasta manteve com as pessoas que filmava. Os horrores de uma vida arriscada ficaram quase que completamente fora de campo, surgindo aqui e ali, sempre através do verbo nativo, enquanto relatos residuais. No filme, vamos ao encontro de um universo ainda invisibilizado (imagine em 1991). Tudo que os personagens de Paris Is Burning têm está no universo dos ballrooms: na pista eles projetam seus futuros, assumem responsabilidades e afirmam sua potência. Ali, vemos o ruminar de um desejo de legitimação e respeito pela existência queer.

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Notas:

[1] MAIA, Paulo. “Queer e a câmera”. Disponível no catálogo do festival, p. 36.

[2]RICH, Ruby apud MAIA, Paulo. . “Queer e a câmera”. Disponível no catálogo do festival, p. 36.

Na Missão, Com Kadu (2016), de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito

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A imagem pode transformar?

João Campos

A tarefa da arte não é nos encarcerar num mundo fechado. Nascida das coisas, ela nos reconduz às coisas. Ela se propõe menos a purificar, ou seja, a extrair delas o que se dobra a nossos cânones, do que a nos reabilitar e conduzir incessantemente a reformar esses cânones.

(Éric Rohmer, “Le goût de la beauté”) [1].

I

Na Missão, Com Kadu (2016) nasce de um processo de imersão de seus realizadores no contexto de luta pela moradia da ocupação Izidora, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Considerando que estamos diante de um filme assumidamente militante, duas ou três palavras devem ser ditas sobre os conflitos fundiários que alimentam o atual quadro de colonização do espaço e da moradia e, por conseguinte, o filme.

Segundo Raquel Rolnik (2015), estamos diante de uma verdadeira “guerra dos lugares”, através da qual o espaço urbano e a habitação são tomados não mais como bens comuns, mas como fontes de renda. Essa relação resultou numa ascensão de lutas urbanas por moradia e ocupação de praças, ruas e demais territórios em disputa imobiliária, seguida de atos contra o capitalismo financeiro, contra a privatização do espaço público e a gestão empresarial das cidades. Nesse ínterim, ocorre um boom de ocupações urbanas, temporárias e permanentes. De acordo com a urbanista:

(…) estamos vivendo uma verdadeira era de rebeliões, resistências e ocupações, que acontecem simultaneamente em vários pontos do planeta. O paradoxo da globalização econômica neoliberal é justamente enfraquecer e ativar as forças sociais de resistência simultaneamente.[2]

Em contextos de conflito, o uso do audiovisual como arma sensível é crescente, seja nas ocupações urbanas, no mundo ameríndio ou em sociedades tradicionais. O fenômeno do cinema indígena contemporâneo atesta a veracidade e a potência desse novo cinema da urgência, pautado pela necessidade de tornar visível o ponto de vista dos invisíveis. Desse modo, o documentário tem exercido papel importantíssimo na sobrevivência desses pobres e desapossados do mundo, fazendo surgir diversas mise-en-scènes dos vagalumes[3] brasileiros, o que pode indicar um processo positivo tanto para a democracia quanto para a arte.

Na Missão, Com Kadu surge no âmago desse conflito e dessa ascensão de cinemas das minorias de poder, no olho do furacão. Primeiramente, as imagens gravadas por Kadu foram veiculadas como provas materiais do despreparo e violência da PMMG, o que gerou um mandato de segurança do STJ, impedindo o governo do estado de realizar o despejo da ocupação. A justificativa era simples: a partir das imagens, decidiu-se que a polícia não tinha condições de efetuar o despejo sem matar alguém.

A proposta de fazer um filme a partir dos dois planos-sequência de Kadu veio depois de um agenciamento pragmático destes, sendo possibilitado pelo vínculo criado entre militantes interessados pelo audiovisual e moradores da ocupação, principalmente lideranças locais. Estamos diante de um filme de guerrilha, que constrói sua força na evidência dos corpos que denunciam e lutam. A partir deste, podemos pensar o lugar do cinema militante (seja ele qual for) no campo cinematográfico brasileiro (e, obviamente, para além dele). Isso nos leva à diversidade de espaços sobre os quais o filme exerce influência estética e política, dando a ver imagens de uma história que deve ser contada.

II

Para além do panfletário ou de termos como “filme de palanque”, Na Missão, Com Kadu pode ser interpretado como uma potente possibilidade estética no mundo contemporâneo. No filme, principalmente nos dois planos-sequência filmados por Kadu durante a manifestação em que se encontrava,as imagens gravadas “encarnam” um contexto de luta contra a precarização da moradia e da vida, convertendo uma pessoa – e suas imagens convulsivas – não apenas em porta-voz de uma comunidade ou mártir, mas num personagem vibrante, força motriz de um filme transformador. Neste, somos transportados a um campo de batalha, cuja visibilidade é marcada pela fragilidade do quadro, a velocidade do movimento da fuga e a consciência – de Kadu – do devir estético e político de suas imagens – não é à toa que o filme circulou tanto no âmbito judiciário quanto artístico, no STJ e em festivais de cinema Brasil afora.

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Segundo a filósofa francesa Marie José-Mondzain[4] – que esteve nessa edição do forumdoc.bh, comentando uma sessão especial do filme L’Ordre (1973), de Jean Daniel Pollet –, “a única imagem que possui a força de transformar a violência em liberdade crítica é a imagem que encarna”. Diferentemente de “dar corpo”, encarnar é, segundo a filósofa, um processo que “dá carne”. Nas palavras da autora, encarnar é “operar na ausência das coisas. A imagem dá carne, isto é, carnação e visibilidade, a uma ausência, mediante uma diferença intransponível relativamente àquilo que é designado”. As imagens produzidas por Kadu na manifestação operam, segundo o argumento aqui esboçado, sob essa lógica: ao virar imagem, o conflito que irrompe na passeata filmada pelo personagem do filme ganha carne e visibilidade. A violência do Estado, através da mórbida figura coletiva da Polícia Militar (agressores) e do governo de Minas Gerais (mandante) se converte em reflexão, em resistência.

Através do olhar do espectador, surge a possibilidade de relacionar o visível do confronto direto e o invisível de um vínculo de luta e resistência em processo, constituindo, além de uma pluralidade de temporalidades[5], três instâncias indissociáveis à imagem encarnada: “o visível, o invisível e o olhar que os coloca em relação”.

Desse modo, o confronto filmado por Kadu, ao tornar-se imagem, instaura uma distância reflexiva, transformando a violência dos estabelecidos e a resistência dos desapossados em liberdade crítica e visibilidade de uma luta, de uma comunidade, de uma existência. Vejo esse intervalo como a distância do cidadão que lê e interpreta imagens, produzidas por si e pelos outros que o interpelam. Hoje, esse processo é importantíssimo, pois define novos caminhos para a educação e cidadania. Defendo, como quis Jean-Louis Comolli, “a continuação do mundo com o cinema”, o cinema que mergulha e transforma o nosso mundo sensível, e não a manutenção de um nicho artístico pautado por uma cisão estética elaborada por meia dúzia de críticos e curadores consagrados. Em outras palavras, o cinema não se resume ao espetáculo das formas – a evidência de uma presença urgente também merece espaço e valorização. Dito isto, prefiro colocar este filme num lugar intermediário ou liminar, entre a denúncia, a declaração, o manifesto e a arte: esse é o lugar da reflexão e da transformação do olhar e, portanto, do cinema.

III

Antes do fim, gostaria de mencionar que Na Missão, Com Kadu está, ao lado de obras como Martírio (2016) e A Cidade Onde Envelheço (2016), entre os maiores destaques do forumdoc 20 anos. Esse filme nos faz refletir sobre o poder da imagem cinematográfica em contextos de conflito, além de animar engajamentos num mundo cada vez mais colapsado.

Hoje, assistimos a uma bela ascensão desse novo cinema da urgência –protagonizada pelo cinema indígena, mas não sendo, obviamente, exclusividade deste – realizado pelos que filmam sob e sobre a iminência de perder o chão onde pisam. Considero esse tipo de cinema militante rico, tanto do ponto de vista estético quanto político. Ao dar a ver os movimentos dos corpos invisibilizados pelos holofotes do capitalismo neoliberal, aqueles que filmávamos – e que agora se filmam – produzem uma nova história, cuja força primordial vem da evidência do momento, possibilitada pelo cinema documentário.

Seria proveitoso buscar nessas imagens a beleza e a potência que nos permitam, evocando novamente a epígrafe deste texto, uma recondução aos nossos próprios cânones artísticos. Se aceitarmos a premissa de que a arte deve nos reconduzir às coisas do mundo, devemos dar mais valor a esse cinema que, além de apresentar a novidade de uma diversidade de automise-en-scènes, anima engajamentos e alimenta um imaginário cada vez mais combativo. Ao deslocar o visível e o invisível, filmes como Na Missão, Com Kadu contam a história da “sobrevivência dos vagalumes”.

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Notas:

[1]Trecho retirado do livro “A mise-em-scéne no cinema: do clássico ao cinema de fluxo”, de Luiz Carlos Oliveira Jr.

[2]Trecho de “Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças”, de Raquel Rolnik.

[3]Todas as referências a vagalumes presentes nesse texto dizem respeito ao livro “Sobrevivência dos vagalumes”, de Georges Didi-Huberman. Propondo uma perspectiva alternativa ao pessimismo pós-guerra de Pasolini e Agamben, Didi-Huberman se apropria da metáfora da morte dos vagalumes feita por Pasolini, lançando luz no que, para este, estava extinto. Podemos interpretar os vagalumes de Pasolini como a diversidade cultural, liberdade crítica, e resistência festiva que animavam os corpos apesar da violência do fascismo e que, no contexto da dominação cultural norte-americana, se extingue. Ao invés de alimentar uma visão apocalíptica do devir da humanidade, Didi-Huberman se pergunta: “Os vagalumes desapareceram todos ou eles sobrevivem apesar de tudo?”, pois “declínio não é desaparecimento”. Creio que vivemos um momento de fortalecimento da diversidade e resistência no audiovisual nacional e, portanto, um período importante para a “sobrevivência dos vagalumes”.

[4]Os trechos citados da autora são do texto Uma imagem pode matar?.

[5]Essa questão foi comentada por Paula Kimo, em seu texto sobre o filme, publicado no catálogo do festival: “Na Missão, Com Kadu convoca três distintas temporalidades que tornam visíveis a luta das Ocupações de Izidora e a missão que o filme mesmo tenta cumprir” (p. 259). Seriam elas: o “tempo da comunidade”, o “tempo do conflito” e “o tempo mesmo do fim, o tempo da morte onde as imagens não são visíveis, tampouco a esperança” (p. 259-260). Não tratarei essas questões aqui. Contudo, convido-os à leitura do texto, intitulado “Olha a nossa situação aqui!: nós, espectadores, na missão com Kadu”.

Martírio (2016), de Vincent Carelli

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Martírio ou três séculos de resistência Guarani-Kaiowá

João Campos

Em seu novo longa-metragem, Vincent Carelli, em parceria com Ernesto de Carvalho e Tita, nos surpreende e, acima de tudo, nos provoca. Martírio (2016) incita a meditação, não só sobre aqueles que filmamos, mas também sobre o lugar do cinema no mundo contemporâneo. O objetivo do presente texto é dividir reflexões sobre o lugar que a imagem cinematográfica ocupa em nossas vidas e o que o filme de Vincent Carelli provoca nessa perspectiva sobre o cinema.

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Após a sessão de Martírio (2016), pensei: “estamos diante de uma dos maiores filmes do cinema brasileiro atual”. Seguindo sua missão indigenista, Vincent Carelli realiza uma obra que é, simultaneamente, uma síntese histórica, um momento de invenção e um processo de desvelamento. No filme, somos levados aos trânsitos do autor que, entre estradas, aldeias, fazendas, noticiários, arquivos e relatos, instaura um campo intermediário entre imagens, lugares e perspectivas, contribuindo para uma polifonia de vozes e estilos – sem que isso esconda de que lado o cineasta está. A longa duração do processo de filmagem e elaboração do filme – cerca de três décadas – contribui para uma experiência de reflexividade e cumplicidade. Os momentos road movie, marcados pelas paisagens movediças das viagens de Vicent Carelli e sua equipe, se infiltram entre imagens do congresso nacional, notícias de jornais impressos e televisivos, filmagens de épocas já distantes e o nosso conturbado presente, demonstrando o engajamento do autor e seus companheiros num longo processo de pesquisa e ativismo incessante.

O genocídio indígenas se transforma, em Martírio, numa epopeia rumo à justiça dos invisíveis. Passeando pelas terras do Jaguapirê, espaço em disputa há décadas, o verbo se torna mise-en-scène. Os relatos do suplício dos Guarani e Kaiowá confrontam nossa imaginação, solicitam uma performance de rememoração do que ficou fora de campo na história dos estabelecidos. Sob a égide da ordem e do progresso, “tudo virou cinzas”. Contudo, a resistência persiste!

Ao apontar lugares fantasmáticos, terras tomadas por fazendeiros e pelo poder público, trilhas vazias e outros cantos da mata, os indígenas que dialogam com a equipe de Vincent Carelli – e conosco – fazem surgir memórias de uma urgência, cacos da história que preenchem o vazio aparente de um território mítico, pleno de sentidos. A perspectiva Guarani-Kaiowá entra numa relação dialética com o espectador que, através de um exercício imaginativo, preenche o vazio com o verbo indígena.

A mise-en-scène é tomada pelos indígenas, demonstrando claramente de que lado está Vincent Carelli nesse conflito, seus corpos são filmados entre a potência do grito de guerra e o lamento dos parentes chacinados. Nos interstícios de sentimentos conflitantes, Martírio se estabelece enquanto um gesto de síntese histórica, um momento liminar de reflexão e desvelamento de um campo de batalha entre índios e os caciques do agronegócio.As conflitantes imagens que compõem o filme nos atravessam, marcadas pelos comentários em over de Vincent Carelli, que se coloca abertamente no filme, sempre pronto a incendiar o quadro com a sobriedade de sua voz.

De um mundo invisibilizado pela cultura dominante, Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho, Tita e seus companheiros Guarani-Kaiowá juntam os cacos da história para construir uma narrativa do fora de campo. Este é, com efeito, um filme arqueológico que reúne vestígios da resistência de um povo supliciado, um filme que começa a explorar uma história a ser contada, dando a ver o que ficou obscurecido pelas elipses das narrativas estabelecidas.

Resta-nos repensar o lugar do cinema documentário no contexto atual. Se este nos coloca em relação com a alteridade, construindo momentos de reflexão crítica em parceria com os outros, o contexto em que vivemos impõe ao documentário supere a si mesmo. Martírio é um dos resultados possíveis – e positivos – do cinema num mundo em que a câmera é, cada vez mais, uma ferramenta de crítica coletiva. Ao trazer à tona as dobras da história, somos levados a debater, refletir e produzir as “imagens que nos faltam”. Para tanto, o cinema precisa se dissolver nas realidades em que mergulha. As ruínas do capitalismo solicitam a pluralidade dos olhares, o embate de ideias e práticas distantes que, na experiência documentária, cooperam. O confronto é necessário, e os cineastas compartilham, nesse campo de batalha, uma responsabilidade estética e política. Ao deslocar nossos olhares, filmes como Martírio fazem a história.