Relações fraturadas, fraturas na imagem

Relações fraturadas, fraturas na imagem

Leonardo Amaral[i]

Os filmes realizados por Kira Muratova são permeados por ambientes muitas vezes esfumaçados e oníricos, por tentativas de partir em busca de algo e não se alcançar, por perdas e ganhos, por um eterno retorno, por tentativas de não se dizer adeus. As imagens criadas pela cineasta soviética[ii] são vertiginosas, dotadas de mise-en-abîmes côncavas e convexas prestes a espatifar os espelhos que as refletem. O cinema de Muratova é uma mônada hieroglífica, transmutando imagens em glifos, numa tentativa cinematográfica de expressar a unidade mística do íntimo humano e as relações travadas entre eles. O interior das obras da cineasta é também o movimento entre a nonada e o oito deitado roseanos, que, assim como na trama e nas ideias presentes em “Grande Sertão: Veredas”[iii], caminham do quase nada ao infinito.

Tive o prazer de assistir pela primeira vez aos filmes de Kira Muratova em uma retrospectiva organizada pelo programador de cinema Aaron Cutler durante o Festival Indie, em Belo Horizonte, no ano de 2015. Fui tomado pelo encantamento e pela surpresa a cada película vista no Cine Humberto Mauro e no Cine Belas Artes. A poética e a subversão presentes na obra de Muratova oferecem uma possibilidade ímpar de serem trazidas para o corpo a corpo, por meio de um modo de escrita ensaístico e livre. Escolhi tratar de seus primeiros três longas-metragens – Breves Encontros (1967), O Longo Adeus (1971) e Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (1978) – em uma lida direta com as articulações da montagem e com os modos de composição dos enquadramentos pouco convencionais. Anteriormente, os curtas Chuva de Primavera (1958) e Pela Barranco Íngreme (1962) e o longa Nosso Pão Honesto (1964), realizados em conjunto com seu companheiro à época, Oleksandr Muratov, já traziam os traços de uma construção minuciosa que se aguçou especialmente nos trabalhos individuais da diretora.

Quem ama mira o coração e se esquece dos olhos enquanto o lince espreita

“Mas, quando lhe digo

que ele é um homem de sorte, que viu as auroras

sobre as ilhas mais belas que há na Terra,

ele ri na lembrança e responde que quando

o sol vinha a manhã já era velha para eles.”[iv]

O objetivo traçado anteriormente é o de analisar os três filmes listados da cineasta sob o aspecto das desconexões das relações humanas, do sonho desarticulado da realidade e a configuração desses dois a partir de uma não convenção naturalista e estrutural dos enquadramentos e da montagem.

Valya, interpretada pela própria Kira Muratova, é responsável pela supervisão de moradias governamentais durante um período da União Soviética. Seu esposo, o geólogo Maxim, parte para uma viagem e a deixa solitária em casa. Eis que surge uma nova criada, Nadya, vinda do campo. Todavia, o que ambas não sabem, em um primeiro momento, é que Nadya também teve um caso com Maxim, e se encontra apaixonada pelo homem até aquele momento. A partir do instante em que partilham conversas e o mesmo ambiente da casa, passam também a dividir memórias, sonhos e devaneios a respeito de suas vidas juntas do mesmo cônjuge. O que poderia se tornar uma situação conflituosa, em um primeiro instante, acaba por despertar uma cumplicidade e uma relação mútua de sacrifícios que as une. A sinopse descritiva de Breves Encontros é apenas o indicativo de como Muratova articula imagens e sons de um modo inovador e plástico. Seleciono três passagens a serem analisadas para que se possa entender o procedimento adotado pela diretora.

Em um salão de beleza, Valya tem seu cabelo arrumado pela cabeleireira, que conversa com outras clientes a respeito de suas vidas conjugais. Nesse momento do filme, a personagem já vive uma crise de relacionamento com o marido. Enquanto as mulheres conversam no salão, no off da banda sonora, um plano apresenta o rosto de Valya, que parece se distanciar da falação para se deixar levar por alguma memória remota. Seus olhos alcançam o espectador e a montagem concatena esse plano de olhar penetrante com outro nada convencional – o que parece ser a subjetiva de uma panela com água borbulhante que, em contra-plongée, mostra Valya e Maxim a lançar lagostas vivas para dentro do recipiente. A conversa prosaica a respeito de como se deve preparar o crustáceo adquire um tom suprarreal e transforma a memória em devaneio, especialmente pelo modo de composição da imagem, mas também pelo agitar da água a cada vez que uma lagosta é jogada para o interior da panela.

Um procedimento que retorna é a quebra da quarta parede. Ele reaparece na sequência em que Valya encontra-se solitária após nova partida do esposo e fala ao telefone, à espera de uma entrega para o seu consórcio de moradias. Após desligar o aparelho telefônico, ela caminha de costas pela penumbra da casa até ser iluminada pela claridade que a apanha junto aos primeiros acordes de uma canção que outrora fora tocada no violão por Maxim. Ela mira a câmera mais uma vez. Como contraplano, a porta da sala, com uma inscrição da data 15 de março. A porta se abre e no cômodo contíguo estão Valya e Maxim, que conversam e interagem. Esta é uma das cenas mais sofisticadas e potentes do filme, uma vez que consegue, a partir da linguagem do cinema, redimensionar memória e falta, presença e ausência, em uma espécie de devaneio cotidiano em um momento de solidão. Eterno retorno, temática cara ao cinema de Muratova.

A obra da cineasta tem como marca uma idiossincrasia dos gestos que se repetem, quase como pequenos abalos em estruturas rígidas do cotidiano. O tempo circular é rompido por micro alterações, e aquilo que retorna, não é mais aquilo que era. Vê-se para além daquilo que se pode ver. Ao final de Breves Encontros, Nadya decide não permanecer na casa de Valya, por não conseguir compartilhar com ela o mesmo espaço e amor. Antes de partir, arruma a mesa da sala de jantar de modo impecável e sistemático. No centro do quadro, a mesa a ser preparada. Na parte central da mesa, um prato com maçãs. Pouco antes de ir, Nadya toma para si uma das maçãs. Sai pela porta e seu movimento é acompanhado por uma tomada panorâmica que percorre todo o espaço da casa em um plano-sequência. Passa por estantes, livros, móveis, cozinha. Pelas janelas, é possível ver também a passagem de Nadya, até que ela desapareça do quadro e a câmera finalize sua trajetória de 360 graus. Um retorno ao prato de maçãs, desfalcado de uma delas. O tempo é cíclico, mas nunca resulta na mesma imagem. O lince observa a caça. Todavia, se ele se distrai, os olhos perdem aquilo que ausenta.

Decifra-me ou devoro-te

“Em sonhos, pus fim à vida com uma espingarda.

Quando soou o tiro, não acordei,

mas vi-me durante algum tempo já cadáver.

Só depois acordei.”[v]

Yevgeniya é uma mulher de meia idade divorciada que vive junto ao filho, Sasha. Após visitar o pai na Sibéria, o rapaz retorna à casa materna para lhe dizer que pretende morar com o progenitor. Nesse ínterim, a matrona inicia um relacionamento com um homem um pouco mais jovem, e as relações começam a se estremecer. Em O Longo Adeus, a relação fraturada entre mãe e filho já pode ser observada na primeira sequência de diálogo entre ambos. Yevgeniya diz ao filho que ele precisa conviver mais com o pai, algo que é reforçado por Sasha (na verdade, o interesse do rapaz parece ser duas moças as quais conheceu durante o período em que esteve com o pai). No quadro, não há troca de olhares entre os dois personagens. Num primeiro instante, vemos Yevgeniya, que parece mirar o nada que se encontra na borda direita do enquadramento. Um movimento de zoom out revela a presença de Sasha, que está ao lado, mas olha para baixo e se encontra no centro do plano em posição frontal. Em novo corte, vê-se apenas uma parte do rosto do rapaz, em um tipo de imagem quebrada. Uma alternância do foco mostra a presença da matrona, ao fundo.

A montagem articula, em seguida, imagens de duas garotas, que parecem ser assunto da conversa entre mãe e filho. O rosto do moço é novamente enquadrado em dois jump cuts que podem ser lidos como um rompimento temporal tanto da imagem quanto da montagem, como se ali se alinhavassem passado e presente, como se um funcionasse como contracampo do outro. O modo como Muratova enquadra os personagens e constrói a mise-en-scène a partir da montagem desconfigura as relações entre os atores em cena e cria uma sensação de estranhamento que tem correspondência ao estado de espírito dos personagens.

Algo que reiterado nos pequenos gestos de repetição que marcam o filme. Qualquer ação compulsiva e repetitiva pode ser classificada como um tique nervoso, seja ela derivado de uma contração muscular, seja por meio de uma vocalização constante. A cineasta cria imagens que se transfiguram em tiques nervosos que denotam uma presença instável de um corpo no espaço. Há, em O Longo Adeus, duas cenas que deflagram e esquadrinham muito bem essa construção cinematográfica da diretora. Em uma delas, Yevgeniya tenta, por várias vezes, colocar uma caneta sobre um móvel na entrada de um restaurante. A cada tentativa, uma nova queda do objeto no chão. São várias idas e vindas da personagem, num gestual típico de um tique nervoso. O eterno retorno descortina um estado mental perturbado que instabiliza a imagem e nela ocasiona uma espécie de fratura dentro do quadro. A construção dos planos de Muratova parece sempre levar em conta essa força centrípeta que traz para dentro do enquadramento uma pujança de instabilidade.

A sequência final é exemplar nesse sentido. Sasha tenta tirar a mãe de uma peça de teatro, mas ela sempre retorna ao mesmo local onde estavam, em meio à plateia. A repetição é angustiante, cifrando na imagem uma espécie de código desconhecido dessa relação, em vias de separação, entre mãe e filho. Não se sabe ao certo o que faz com que ela não se deixe levar pelo rebento. Somente no último diálogo, quando ele revela querer estar com ela, temos algum tipo de decifração. A relação, ainda que fraturada, se mostra em alguma medida possível.

Sonho com espelho quebrado, destino traçado

“E como eu passasse por diante do espelho

não vi meu quarto com as suas estantes

nem este meu rosto

onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:

janelas onde olham avós hirsutos

e as vovózinhas de saia-balão

como paraquedistas às avessas que subissem do

fundo do tempo.

O relógio marcava a hora

Mas não dizia o dia. O tempo,

Desconcertado,

estava parado.

Sim, estava parado

em cima do telhado…

como um catavento que perdeu as asas.”[vi]

Uma zona rural em processo de mecanização. O espaço cênico é um canteiro de obras de uma fábrica de tratores comandada por Lyuba, que se vê às voltas entre dois romances, com o falastrão Nikolay e o calado Misha, que ofereceu carona em seu caminhão para o casal e, a partir de sua ação, deu início a um triângulo amoroso. A moça terá que fazer uma escolha que será determinante para os rumos da comunidade. Entre idas e vindas, Conhecendo o Grande e Vasto Mundo[vii] transita sempre entre o real e o onírico, entre o carnaval e o sonho. O tempo se dissemina por espelhamentos e é implodido a cada sequência.

Há também modos de enquadramento que exploram a profundidade de campo de maneira a reconfigurar novos modos de visionamento. Muitas vezes, Misha é filmado dentro de seu caminhão, sentado, enquanto, ao fundo, encontra-se Liuba. Forma-se um quadro dentro do quadro, e os objetos se transformam em anteparos que podem ser entendidos como pequenas distâncias entre os personagens. Nesse filme, nem sempre aquilo que se vê é aquilo que de fato existe. Isto pode ser percebido tanto nas cenas carnavalizadas que, por vezes, parecem sonhos e devaneios, como também nos vários espelhamentos presentes no longa. A análise se concentra na cena final, que traz uma imagem fragmentada de um relacionamento que também guarda essa caracterização.

Antes da chegada do outono, Liuba e Misha se despedem em uma noite na estrada. Liuba parte e deixa o motorista de caminhão solitário no plano. Na banda sonora, uma canção que fala da partida e da necessidade de se seguir. A montagem concatena uma elipse temporal que traz Liuba, com um penteado louro e encaracolado (diferente do que usava anteriormente), junto a outras moças que caminham no meio das peças produzidas por uma fábrica. A trupe está prestes a se lançar em uma nova empreitada, para conhecer ainda mais esse vasto mundo. Liuba, agora, está ao lado de outras mulheres e também de Nikolai, ao que parece ter sido sua escolha para companheiro. O comboio se ajeita em meio a camas, móveis e espelhos postos na beira da estrada. Crianças brincam sobre as camas e escutamos seus jogos de palavras no extracampo. Há todo um investimento sonoro e imagético no fora de campo que adentra a cena por meio dos reflexos dos espelhos.

Em dado instante, sentada sobre a cama, Liuba manuseia um espelho até que percebe, em uma imagem refletida, a chegada de Misha. O reencontro é tímido. Misha propõe que Liuba siga com ele e é ironizado por Nikolai. Liuba segue dividida entre os dois homens, ou um afã de seguir livre em seu destino, sem amarras com o passado e com os lugares por onde passou. Nikolai não fica satisfeito com a resposta de Liuba e sai a andar em direção à estrada. A montagem alterna a caminhada do homem e a imagem espelhada de Liuba e Misha. Nikolai atira uma pedra e espatifa o espelho. A imagem do casal é destruída e o simbolismo dessa fragmentação pode ser compreendida como algo bastante caro ao cinema de Muratova, composto por relações fraturadas, por uma montagem que alterna tempos e espaços e por uma construção de cena que trabalha com profundidade de campo e corpos cindidos pelas bordas do plano. Os cacoetes verbais e os jogos de palavra são reinvenções da própria linguagem do cinema[viii], transformando-se em fragmentos de um quebra-cabeça imagético. Os signos dessa unidade fragmentada podem também ser vistos como um esquadrinhar de uma política de expansão industrial na União Soviética, que ocasiona um êxodo rural e o natural deslocamento dos corpos, que não encontram mais um lugar dentro dessa nova sociedade que começa a se desenhar. O espelho quebrado é apenas uma das representações do funcionamento desse mecanismo.

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[i] Curador das mostras “Tempos de Kuchar” (Sesc Palladium, 2016), “Mostra Escola: Cidade Aberta” (Caixa Cultural São Paulo, 2017) e Retrospectiva Helena Solberg (CCBB RJ-SP-DF, 2018). Membro de comissões de seleção do Festcurtas BH (2010-2013), do Forumdoc.BH (2015 e 2017), da Semana de Cinema do Rio (2016) e do Lumiar (2018). Roteirista e diretor de 3 longas e 12 curtas. Sócio fundador da produtora Mar de Morros. Doutorando, mestre e graduado em Comunicação Social pela UFMG. Crítico e ensaísta, tendo colaborado para as revistas Filmes Polvo, Cinética, Zingu e Rocinante.

[ii] A Cineasta nasceu em Soroca, antiga URSS, atualmente pertencente à Moldávia.

[iii] ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1984.

[iv] PAVESE, Cesare. Os mares do sul. In: Trabalhar cansa. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac&Naify, 2009.

[v] BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

[vi] QUINTANA, Mário. Apontamentos de história sobrenatural. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2005.

[vii] Primeiro longa em cores realizado por Kira Muratova.

[viii] Algo que lembra, em alguma medida, procedimentos de linguagem na literatura utilizados por James Joyce para descrever a sociedade irlandesa do início do século XX, mas que, por se tratar de outra discussão, não será abordado neste texto.

Dois em Um (2007)

A teatralidade fragmentada e absurda de Dois em Um

Cícero Pedro Leão

Em Dois em Um (2007), a teatralidade característica de Kira Muratova é desenvolvida, literalmente, em um palco teatral, já que o filme narra a produção e realização de um espetáculo, ainda que os bastidores do fazer teatral não configurem o principal fator dramático. Apresentando novamente duas histórias distintas em uma mesma obra, a cineasta oferece, inicialmente, um lúdico e fascinante exercício metalinguístico, para, depois, “esquecer” o fascínio formalista e entrar em um mundo de erotização absurda. A ligação entre as duas partes é frágil, não tão nuançada como em Síndrome Astênica (1989), mas a radicalização da teatralidade (tanto espacial quanto performática) é presente em toda a obra e acentua dois absurdos: a banalização da morte (na primeira parte, com a indiferença de várias pessoas diante do suicídio de um ator) e a fetichização da mulher (na segunda parte, com a apresentação de uma espécie de triângulo amoroso entre um homem velho, sua filha e outra moça jovem). O aspecto erótico não ocorre devido à exibição explícita da nudez, mas pela presença simbólica do nu feminino em fotografias e réplicas de quadros e esculturas espalhados pelo espaço.

As recorrências dessas obras mostram como tais representações existem durante toda a humanidade (há réplicas de esculturas da pré-história) e partem da perspectiva masculina. Consequentemente, a objetificação do feminino é carnavalizada em uma perspectiva crítica, porém não pela posição incisiva de algum personagem específico contra essas representações, mas principalmente pela naturalização delas em um ambiente absurdo e nada humanizado, como se o interesse secular do homem pela mulher estivesse ligado, conscientemente ou não, a um chauvinismo sádico que, se velado ou camuflado anteriormente, aqui é exposto e extremado.

A primeira parte de Dois em Um, intitulada Stagehand (assistente de palco), inicia com o humilde funcionário de um teatro, Vitia Utkin (Aleksandr Bashirov), realizando o famoso monólogo de Hamlet para uma plateia vazia. Em seguida, logo atrás, ele percebe que um ator havia se enforcado em cima do palco. A polícia é chamada, mas demora para chegar. Posteriormente, com a entrada de outros assistentes, é decidido que se deve preparar o palco para a próxima apresentação, mesmo com o corpo morto em cima do proscênio. A segunda parte, intitulada A Woman of Life, é justamente a peça que será realizada nesse lugar. O espetáculo é sobre um homem velho e poderoso, Andrei Andreevich (Bogdan Stupka), que, diante da recusa de sua filha em ter relações com ele, pede a ela que busque uma moça loira que passeia com o cachorro em frente à sua casa.

Em Stagehand, o que move os personagens não é o impacto da morte do ator, mas a preparação para a peça prestes a acontecer, ainda que a preocupação de Vitia com a polícia sempre venha à tona devido às provocações de outro personagem. Mas, no geral, eles se preocupam mais com aspectos pessoais, burocráticos ou relacionados ao trabalho, como um roubo de uma galinha do teatro, férias, figurinos etc. Ainda que espantados com a morte do companheiro, as pessoas não estão traumatizadas, tanto que, andando por cima ou em volta de seu corpo, eles conseguem trabalhar plenamente. Em alguns momentos, há o uso de planos distanciados semelhantes aos do cinema teatral do início da era muda. Esses planos carregam um tom lúdico devido à lembrança de uma certa teatralidade espacial (cinematográfica) e também porque reúnem vários personagens desnaturalizados, aglomerando, de forma organizada, as suas excentricidades.

Contudo, mais presentes são os movimentos de câmera que dinamizam a imagem e fascinam pela fluidez. Sem se distanciar completamente da ação principal, a câmera ainda consegue flutuar sobre o espaço teatral, registrando e narrando, pois o movimento harmonioso acentua o aspecto fantasioso e absurdo já presente na dramaturgia e na encenação. Um plano comum nessa parte é o plongée, mostrando, em câmera alta, quem está sobre o palco. A escolha não parece gratuita ou somente formal, porque ela cria uma espécie de rima com a posição de vários personagens que se inclinam para olhar, por cima, o corpo do ator morto no chão. A câmera alta do filme não segue a perspectiva desses personagens, mas após assistirmos tantas vezes os atores olhando para o chão, a recorrência da câmera alta parece colocar o espectador na mesma posição dessas pessoas que, constantemente, olham algo morto. É como se a posição dos atores fornecesse um tom fúnebre ao ato de olhar por cima, seja por eles mesmos ou pela câmera (que até chega a avistar o corpo  nessa posição elevada). Dessa forma, a plangência da imagem indica a lembrança ou até o prenúncio da morte, pois a segunda morte do filme acontece justamente com a arremessada de um martelo a partir de um andaime que está na parte superior do palco (quando ocorre esse assassinato, a câmera alta aqui sim toma a perspectiva de um personagem).

A transição entre a primeira e a segunda parte tem uma dimensão metalinguística interessante. Os policiais chegam, os espectadores vão para os seus acentos e a peça começa. No entanto, quem dá início ao espetáculo é um mestre de cerimônias que surge a partir de uma entrada do lado plateia. Em um tom grandiloquente, durante sua apresentação, ele indica que nevava no tempo da peça. Nesse momento, flocos artificias de neve começam a cair sobre o seu corpo, que ainda está no espaço inferior da plateia. Ao cair um pouco de neve nos espectadores, é possível ver alguns sorrindo espontaneamente quando eles são atingidos. Ainda que instantânea, a reação dessas pessoas, por ser marcante, fornece à neve um aspecto defasado, denunciando o tom construído da própria peça (e do filme) – condição que é inerente ao fazer teatral. Metaforicamente, devido ao impacto dessas reações, a neve que surge posteriormente, principalmente a partir de aberturas de portas e janelas, relembram ao público (do filme) que o que está na tela é uma representação. Essa lembrança é “necessária”, pois o ambiente teatral aos poucos some, já que a interferência do mundo dos palcos não permanece.

A interação entre o mundo dos palcos e o do drama representado ocorre principalmente no meio do filme. Nela, o mestre de cerimônia aponta para a casa de Andrei Andreevich (onde se passa toda peça), mostrando uma pequena edificação, que ainda está sobre o palco, com duas aberturas para janelas, pelas quais é possível ver os atores. No entanto, quando a câmera filma o que acontece com os personagens atrás das janelas, ela já se desliga do palco da primeira parte e do mestre de cerimônias, filmando literalmente o interior de um quarto. A intercalação entre os planos do mundo teatral e do mundo dos personagens é realizada de forma tão transparente que demoramos alguns instantes para perceber essa divisão. A dinâmica pirandelliana, ao estilo das interações de “Seis personagens à procura de um autor”, é fascinante, mas se no clássico do dramaturgo italiano ela é a mola propulsora de toda obra, aqui ela é descartada para que o mundo do drama de Andrei ganhe vida por si só. Mas, ao ganhar uma vida independente, o drama aciona uma releitura (posterior) da primeira parte, que se torna mais artificial ainda, pois claramente os interiores de Andrei não foram construídos anteriormente e em cima de um palco. É como se o labor intenso daqueles assistentes, em Stagehand, fosse irreal ou sem sentido, inserindo um tom de alienação àquela movimentação.

Mas vale notar que a produção da peça não é algo que totaliza as nuances dos personagens da primeira parte. Mesmo que eles se entreguem às suas funções e banalizem a morte, suas lembranças e comentários estão distantes da narrativa principal. Ou seja, não há psicologia: não iremos saber porque o ator se suicidou e nem porque os seus companheiros decidiram continuar a montagem do cenário. As personalidades dos personagens não são construídas dramaticamente, mas são apresentadas de forma fragmentada, nos mostrando relances de um mundo que está mais no registro da fantasia do que da naturalidade, considerando que essa fantasia não é ingênua e nem isenta de crueldade.

Faço essa ressalva porque mesmo na segunda parte, A Woman of Life, que é mais concentrada na relação entre três personagens, o drama de Andrei também não é totalizante. Se a reação do público for de indiferença, choque, confusão ou vislumbre, ela não será devido à busca de Andrei pela mulher de sua vida. Pelo contrário, o filme é impactante justamente por inserir nessa busca uma série de recursos que distanciam o espectador do drama e o colocam sempre em choque com elementos absurdos. Primeiramente, os próprios espaços internos da casa de Andrei já chamam a atenção pela presença intensa do nu feminino. Contudo, não se trata de um nu “comum”, mas com “requintes de sofisticação”, já que ele espalha por sua casa quadros e estátuas de mulheres nuas com o suposto selo da arte. Mas o espanto com essa decoração é rápido, devido ao grande número de obras, e o seu tom solene perde espaço com o escancaramento da sordidez do personagem masculino. Outra forma de distanciamento é desenvolvida no trabalho com certas dualidades, como se alguns elementos do filme tivessem duas formas, sendo que uma delas geralmente é fruto da mente de algum personagem. Andrei, por exemplo, fica fascinando pela moça que caminha na frente da sua casa. Ela é Alisa, que será buscada por Masha (Natal’ia Buz’ko), a filha de Andreevich. No entanto, ainda no momento de transição da primeira para a segunda parte do filme, a Alisa que Andrei enxerga e que está no palco teatral é uma menina loira, mas, posteriormente, já dentro de sua casa, ela é uma mulher interpretada por Renata Litvinova. A personalidade histriônica da personagem de Renata só reforça o estranhamento; nunca sabemos se Alisa era uma menina ou uma mulher, mas só o fato de Andrei se interessar por uma criança, já demonstra o seu lado grotesco.

Outras dualidades: Andrei fala que sua cama é preta-preta, mas Alisa afirma a todo momento que ela é somente branca (algo confirmado na imagem) – esse contraste das cores é retomado várias vezes durante o filme; quando Vitia monta em um cavalo cenográfico, ouvimos o relincho (extradiegético) de um cavalo. Ou seja, diferentes registros de fantasias são sempre colocados em conflito na mesma imagem. Existe o tom lúdico geral, mas também existem as fantasias de cada personagem, que às vezes são conflitantes com a percepção de outros personagens (Alisa vê que a cama de Andrei é branca e não preta, como ele afirma) ou com os espectadores (nós sabemos que quem estava andando na frente da casa de Andrei era uma menina; nós sabemos que o relincho ouvido na cavalgada de Vitia não vem do cavalo cenográfico que ele monta). Tal atrito de fantasias fornece ao filme um aspecto lúdico, mas que não segue necessariamente a grande visão de um determinado autor, porém dá mais vazão às subjetividades de personagens de personalidades distintas, porém sem nunca deixá-los cair na empatia interiorizada. Os seus delírios são tão exacerbados que a própria comunicação entre eles não é linear ou racional. Aqui, a impossibilidade da comunicação (uma das marcas da contemporaneidade) não resulta em um vazio sepulcral, mas em um caos delirante. Sobre essa dificuldade presente no filme, Helena Tomasson afirma:

“Diálogos e monólogos, assim como os refrões no filme, são estruturados de forma a mostrar a comunicação frágil ou a falta de comunicação entre as pessoas. Provavelmente este é um dos significados de todo o filme. Quase todos os atores, enquanto atuam nos papéis, não se comunicam; eles não ouvem um ao outro; eles não respondem às perguntas e cada um deles existe em seu próprio mundo” (2012, p. 31, tradução nossa[1])

Muitos personagens que vivem nesses mundos internos de Dois em Um apresentam uma performance distanciada, principalmente a partir da satirização corporal, como ocorre em vários filmes de Kira. Ainda que Andrei inicie com um tom solene, gradativamente ele é satirizado, gritando muito em alguns momentos e se jogando no chão em outros. Alisa, por sua vez, quando entra na casa de Andrei, é a personagem mais artificial de A Woman of Life, com uma risada aguda e alta que se repete até o final do filme. A artificialidade da encenação de ambos cria uma espécie de estranha harmonia entre os dois, apesar da distância que Alisa toma no final. Os dois protagonizam uma cena marcante, quando Andrei liga uma canção de ópera em sua vitrola e começa a “interpretar” a faixa, enquanto Alisa vai ao seu lado para entrar na “apresentação”. Desajeitados, desafinados e exagerados, eles entregam um mini-espetáculo que sugere como têm autoconsciência de suas condições teatrais: ambos sabem que “vivem” em uma representação (social, teatral e/ou cinematográfica). Já para nós, o momento também demonstra que o teatro da vida desses personagens é cômico e ridículo. O momento é um ponto alto de várias pequenas performances que ocorrem durante filme (como o monólogo de Vitia ou a dança estilo robô de Masha) mas que não estão ligadas diretamente aos dramas principais do filme, de modo a distanciarem o espectador, ainda que fascinem pelo estilo inventivo.

Mais nuançada é a performance de Masha. Ela também tem seus momentos de distanciamento cômico, mas, no geral, o seu estilo é mais ameno. Ao lado de Alisa e Andrei, o tom neutro da personagem demonstra um deslocamento. Mas, para além do incômodo com o pai abusador, o seu deslocamento é mais amplo. Masha vive na casa de Andrei, que é repleta de representações de mulheres nuas. Mesmo que ela se incomode com os abusos do pai, ainda assim permanece em sua casa, e até realiza alguns de seus pedidos (como buscar Alisa). Pensando essa residência como uma alegoria para a materialização do interesse problemático e antigo do homem sobre o corpo feminino, Masha aparenta ser uma mulher que não consegue escapar completamente desse mundo, no qual a objetificação do corpo está em toda parte. Em relação ao deslocamento de Masha, o seu corpo mais retraído ganha destaque diante do contraste com os exageros de Alisa e Andrei, principalmente nos planos “teatrais”, que aqui também são presentes.

A questão a se pensar é como combater esse mundo fetichista e misógino. Dois em Um não apresenta respostas para o desafio. Masha e Alisa até conseguem fugir de Andrei, e fora de sua casa vários corpos livres comemoram o ano novo, indicando um possível momento de liberdade. No entanto, Andrei consegue alcançá-las no final. Assim, não há um grande sopro de esperança para Masha, mas Kira não submete o seu filme à uma narrativa linear, com conflitos claramente resolvidos: durante toda obra, várias questões não são finalizadas e não seria o desfecho que colocaria fim a essa abertura. Além disso, o próprio poder de Andrei, apesar do personagem ser bem ridicularizado, nunca corre um sério risco de ameça; sabemos que ele é sórdido, mas mesmo assim o filme não apresenta algum personagem que consiga suplantar a sua sordidez ou aniquilá-la. Talvez apostar em uma personagem assim colocaria o filme em uma linha dramática linear que Kira está bem distante. Mais do que apresentar soluções especificas para o absurdo da contemporaneidade, principalmente em relação à representação feminina e à dificuldade de comunicação, o importante aqui parece ser chocar – um choque com significado e poesia -, como se uma forma de combate fosse justamente a exposição das paranoias e hipocrisias das figuras opressoras. Ora, Kira não sai do mundo de onde Andrei tem e exerce o máximo de poder: a sua casa. Lá, ele aprisiona a filha e abriga todas as obras e acessórios que almeja. Contudo, a representação que o filme faz desse mundo não respeita as determinações ideológicas da figura que o comanda, ocasionando em uma narrativa incerta que, ao se fragmentar, já fragiliza o poder dominante.

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[1]  “Dialogues and monologues, as well as refrains in the film are structured in a way to show the broken communication, or lack of communication between people. Probably this is one of the meanings of the whole film. Almost all actors  while playing the roles do not speak to each other; they do not listen to each other; they do not answer the questions and each of them exists in their own world.”

Motivos Tchekhovianos (2002)

Mergulho na vida

Maria Ines Dieuzeide

Num pátio lamacento, um homem corre atrás de um cabritinho, espantando patos e galinhas cacarejantes. Corta para um segundo homem sentado à mesa, ao ar livre, comendo pedaços de carne com as mãos. Uma voz fora de campo murmura frases soltas. Corta para um menino, de pé, com o cabrito no colo. O homem que come sorri levemente, a voz continua seus murmúrios. O garoto começa a caminhar, a câmera o acompanha e nos revela toda a mesa, que reúne três trabalhadores. Corta para um segundo garoto, em primeiríssimo plano, que tem a cabeça coberta com um plástico e a expressão muito séria. A voz segue murmurando palavras e o menino abre um sorriso engraçado. Um plano aberto nos mostra que o primeiro homem interage com o garoto, e o que acompanhamos é uma disputa infantilizada entre os dois sobre a construção de um celeiro ou uma loja. Já não vemos a mesa de refeição, mas os dois outros trabalhadores aplainando grandes tábuas de madeira entre os animais. A discussão continua, com as mesmas frases repetidas: “é um celeiro!”; “faremos uma loja!”. O primeiro menino reaparece, também envolto num grande plástico, saltando ao redor do homem e gritando palavras desconexas. As vozes se embaralham e se confundem com o cacarejar das aves. Uma tempestade começa, e o homem canta e dança até cair no chão. Corta para um super close num rosto masculino – vemos boca e barba. A câmera sobe lentamente, revelando-nos olhos por detrás de uns óculos. Este homem pisca lentamente, e o corte nos mostra agora o close de um porco que movimenta o focinho, emitindo roucos grunhidos. O homem resmunga sobre o tempo e o gasto de dinheiro com os trabalhadores, o porco responde com seu som grave e o homem se afasta.

Este é o curto prólogo de Motivos Tchekhovianos, filme de 2002 de Kira Muratova. Não terminaremos de saber se o que se constrói é um celeiro ou uma loja, nem teremos mais notícias desses trabalhadores. Só veremos o homem barbado, enredado numa relação familiar conflitiva, atravessada pelo dinheiro. Mas observaremos também uma longa cerimônia de casamento entre personagens absolutamente desconhecidos. Diante desse filme, não me parece possível escrever se não for por meio de fragmentos.

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Motivos Tchekhovianos é a reunião de duas obras de Anton Chekhov: o conto “Difficult People” (1886) e a peça de um único ato “Tatiana Repina” (1889). Muratova incrusta a segunda na primeira, dividindo o filme em duas partes, cujo elo é a presença quase infiltrada – e logo esquecida pelo filme – do filho mais velho da família retratada na primeira parte. O jovem, ao abandonar a casa paterna, consegue carona para a cidade com um dos convidados do casamento, e é esta cerimônia que acompanharemos durante longos 50 minutos.

Não nos contentemos, entretanto, com a desconexão entre as histórias. Vejamos melhor: depois do prólogo nonsense, participaremos do jantar da família do homem barbado, composta pelo casal, um jovem estudante, uma filha adolescente e três garotos mais novos (os dois que vimos no pátio e um bebê). Os sete personagens estão dispostos na metade de uma mesa ovalada, arranjados para que a câmera possa enquadrar o conjunto todo de frente, ainda que eles se apertem e se acotovelem durante a refeição. O jovem filho precisa partir para a cidade, pra retomar os estudos, e pede dinheiro ao pai, o que desencadeia uma violenta discussão entre o casal e o estudante. A tensão da relação familiar é reforçada pelo amontoamento físico dos personagens à mesa. Depois de muitos gritos pontuados por breves interrupções de calmaria, o rapaz resolve ir embora, prevendo morrer de fome no caminho.

É aí, na estrada, que ele pega carona com um homem bem vestido que se perdeu no caminho da igreja, onde será celebrado um rico e tradicional casamento. O homem promete levar o rapaz à estação, se ele esperar o fim da cerimônia. Com os convidados, acompanharemos os longos ritos religiosos, enclausurados na nave da igreja apinhada de gente. Esquecemos da presença do jovem e só o reencontraremos no fim, quando ele acorda de um cochilo na igreja quase vazia e retorna à casa paterna, apenas para discutir e se despedir mais uma vez.

Os personagens do casamento são todos desconhecidos para nós. Entre sussurros, fofocas e risadas dos convidados e bocejos inconvenientes dos noivos, a cerimônia monocórdica é perturbada pela presença misteriosa de uma mulher envolta num véu preto, que circula sorrateira entre os presentes. Vez ou outra, escutamos largos e altos soluços no fora de campo, que assombram o noivo – para ele, tomado de culpa, essa presença é o fantasma de uma mulher abandonada que se suicidou na véspera do casamento que acompanhamos. Aqui, nesse longo ato incrustado na história do conflito familiar, acentuam-se as tensões do convívio social e a sensação de asfixia e absurdidade que acomete o espectador – estas, sim, talvez o mais profundo elo entre as duas narrativas.

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Asfixia, eu repito: essa é a palavra que me ocorre para tentar descrever o filme. Motivos Tchekhovianos parece jogar com um mergulho muito aproximado na vida – ou nos espaços – dos personagens. Essa aproximação, entretanto, nos distancia imediatamente, ao fazer ressaltar o absurdo das relações sociais. Sua particular comicidade está calcada na mecanização dos corpos em cena, que repetem até a exaustação falas desconexas ou lamurientas, vistos por meio de planos muito próximos que destacam, na fotografia contrastada em preto e branco, rostos sufocados por camadas exageradas de maquiagem.

Os gestos entediantes do sacerdote, que repete cada rito sempre três vezes, parecem condensar o grande aprisionamento que é a vida em família: o enfrentamento de pai e filho se dá também em três momentos (dois na primeira parte e um no final). Essas cenas serão assistidas pela mãe e pelos irmãos, que pouco interferem, mas que pontuam as discussões com uma presença (sonora ou visual) também mecanizada, às vezes com movimentos e falas repetitivos, às vezes com uma postura congelada e observativa, como que imersos em transe – um alheamento reforçado pela figura do bebê que dorme na mesa, em meio à gritaria, e que, no final, interpõe seu corpinho brincante entre os sérios personagens de pai e filho, que não resolvem suas diferenças.

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Há, como sugeri, a asfixia dos corpos mecanizados e a asfixia dos espaços apertados, dos enquadramentos sempre cheios de gente ou de animais (não ignoremos a montagem que coloca lado a lado pessoas e bichos, enclausurando as vidas no celeiro lamacento e apertado). E há também uma certa asfixia sonora: o filme elabora um desenho de som que sobrepõe continuamente vozes em diferentes tons, mescladas com ruídos da tempestade, cacarejos, roncos e mugidos de animais, imergindo-nos num ambiente quase ensurdecedor, de cuja confusão só queremos escapar.

É interessante destacar o modo como os sons em off vão pontuando as cenas, marcando-as com uma presença não identificada e perturbadora: já vimos isso no prólogo, quando uma voz fora de campo desfia frases desconexas – é possível associá-la ao primeiro trabalhador, mas o filme nunca confirma (ou não se interessa em confirmar) essa associação. As vozes estridentes das crianças acompanham e marcam a refeição com a tensão prestes a explodir no convívio familiar. Da mesma forma, a “assombração” durante o casamento ganha corpo pelo som, que está descolado da mulher que circula com seu lenço preto – sua presença chama atenção dos convidados e do noivo, mas este só se assusta com os fortes soluços fora de campo.

Mas é também pelo som que o filme elabora passagens e interrupções: em meio à grande discussão durante o jantar, a filha adolescente liga a televisão e tudo fica em suspenso enquanto vemos e ouvimos um balé na tela, que permite um respiro na vida da mãe atormentada. Mais adiante, quando o filho enraivecido se prepara para ir embora, o som ambiente é encoberto por outra música, de entonação solene, que embala o movimento coreografado dos trabalhadores aplainando a madeira (o único momento em que eles reaparecem), logo substituídos por planos dos porcos, patos e galinhas ocupados em comer e ciscar. Assim que a música termina, o que toma a banda sonora é o cacarejar cotidiano das aves, como se a excepcionalidade desse momento, trazida pelos instrumentos, fosse rapidamente imbricada na continuidade modorrenta dos dias comuns. Essa mesma música, agora entoada pelo próprio noivo, embala a saída do casal da igreja – um breve momento em que a cerimônia se veste de encantamento, para logo ser desacreditada (mais uma vez) por um diálogo algo absurdo entre dois sacerdotes que não acreditam na igreja.

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É, enfim, o silêncio o que marca o fim do filme. Retornando à casa e discutindo mais uma vez com o pai, o jovem se encerra só em seu quarto. Agora ouvimos apenas o miado suave do gato, que se deita junto com o rapaz. Em seguida, o som monótono de um relógio marca a hora da nova partida. Depois de se despedir da mãe e dos irmãos, pai e filho trocam poucas palavras e permanecem parados, em silêncio, para que possamos sair do filme sem redenção, mas em suspensão.

Três Histórias (1997)

O animal interior

Letícia Badan

Após sofrer certa censura ao longo dos anos de 1980, a cineasta ucraniana Kira Muratova inicia um projeto cinematográfico que representa assassinatos e os autores dos crimes. Solicita a três amigos, Igor Bozhko, Renata Litvinova (protagonista, inclusive, da segunda trama), e Vera Storozhevaya que redijam histórias sobre crimes, e concebe três contos, numa trilogia do assassinato incólume. O filme é dedicado à memória de Sergei Gerasimov, diretor e roteirista soviético falecido em 1985, com o qual Muratova havia estudado no VGIK (Instituto Gesiramov de Cinematografia), em Moscou. Três Histórias (1997) narra o cotidiano de três cidadãos pacatos, que em princípio não parecem capazes de cometer assassinatos.

A primeira história é Sala de Caldeira n.06. O nome, como apontado pela autora Jane Taubman[i], inspira-se no título do conto “Enfermaria n.06” de Tchekhov. Inicia-se em um zoológico. Ali, somos postos diante de Tikhomirov (Sergei Makovetsky), um homem que, de início, parece se incomodar com os movimentos de um pavão. Animal imitando animal, eis o mote que perpassa as três narrativas.

Os excêntricos personagens do vilarejo observam o protagonista com olhar de riso, enquanto acompanhamos o homem e sua bagagem (um guarda-roupas atado a um carrinho), atravessando as ruas da cidade. Ele adentra o galpão de calefação de um velho amigo dos tempos de escola, Gena (Leonid Kushnir). Trata-se de uma figura ainda mais bizarra que as anteriores – poeta em seu tempo livre, que não desperdiça o horário de descanso e que mergulha em datilografias rápidas e furtivas. São páginas incompletas, postas sobre a mesa desorganizada do espaço ofegante e opressivo, aquecido somente pela chama do fogo que arde constante ao fundo.

Ali, uma atmosfera nova se cria e o cotidiano pacífico de Tikhomirov abre-se para um espaço de fantasia, em que o mundo ébrio de Baco, caracterizado na imagem do Sileno pelo cantor lírico nu que aluga um dos quartos do lugar para sexo, se irradia na embriaguez pouco lúcida. Junto dele, outras duas figuras adentram a cena: dois homossexuais, dentre os quais um insiste em pagar nosso protagonista por uma noite de amor.

Desde o início, no entanto, Tikhomirov tenta revelar para o velho amigo seu segredo mais sombrio. Inquieto, naquele espaço conturbado, ele tenta, de inúmeras formas, confessar que havia assassinado a vizinha – uma jovem exuberante, que insistia em não dar descanso para ele e sua família. A mulher atormentara a submissa esposa, os filhos, invadira até seu local de trabalho e teimava em exibir as curvas sinuosas do corpo despido no apartamento conjunto. Num surto, Tikhomirov não encontrara outra forma de acabar com a perturbação de seu sossego, a não ser assassinando-a. Leva o cadáver, ainda nu, no interior de um guarda-roupas, para ser queimado na caldeira. A fala, embora sintomática, encontra aqui um impedimento. Sua confissão, tortuosa e confusa, é vista por Gena como uma mera pulsão de matar a vizinha. A lembrança dos autores lidos em sala de aula, e de seus heróis (Pechorin de Mikhail Lermontov, Onegin de Alexandre Pushkin), bem como os poemas declamados por Gena, reforçam a importância textual e cultural para o cinema de Muratova. É somente, portanto, pela via da palavra escrita, métier do amigo, que Tikhomirov encontra sua esfera de testemunho, podendo, enfim, confessar o crime que havia cometido.

Ofélia é a segunda narrativa. É a mais longa das histórias, totalizando 54 minutos de duração. Ofa (Renata Litvinova) é uma enfermeira que trabalha em uma maternidade local. Seu exemplar de A Besta Humana, de Zola, é visto repousando sobre a mesa da recepção. Jovial, com uma aparência que destaca a fragilidade vivaz, carrega uma aura introspectiva, silente e enigmática. Envolve-se com o médico do hospital e manipula o homem, que sustenta por ela uma obsessão incontrolável. Ofa detesta pessoas, sobretudo crianças, e revela se afeiçoar apenas pelos animais. Seu nome advém da filha de Polônio, Ofélia, em Hamlet, cuja morte considera a mais sublime jamais escrita.

Ofa é obcecada por uma paciente do hospital, Thania. Como órfã, projeta nela seus medos e traumas, já que a mulher havia abandonado o bebê recém-nascido. Após receber alta, a enferma é seguida por nossa protagonista. Em meio aos terrenos baldios, os parques e jardins locais, Ofa a segue e analisa todos os seus atos instintivos e humanos, como um animal estudando sua presa. Observa-a urinar em meio a um edifício abandonado e mimetiza o ato fisiológico. A sagacidade de Ofa aparenta se adequar àquela de sua vítima. Age debilmente como ela, frívola, inocente, mas carregando sempre, ao fundo, uma maldade impassível. Estrangula-a com a meia-calça, símbolo também de feminilidade, que imediatamente torna a vestir após finalizar o ato. Abandona o corpo e, em seguida, se entrega com o médico aos prazeres de uma noite de amores.

Sua motivação parece, enfim, encontrar algum propósito quando, no hospital, recebe a chave dos arquivos locais e, com ela, a possibilidade de olhar as antigas fichas de pacientes. Encontra o registro daquela que, possivelmente, é sua mãe biológica. E eis que o tom se metamorfoseia por completo. A incongruência de Ofa dá cada vez mais espaço para uma certeza fria. Os espaços límpidos, alvos e assépticos se transmutam em vias obscuras, cuja ornamentação fractal, presente na fachada do edifício da mãe, com seus ritmos e padrões angulosos, confirma sua aspereza de mulher fatal. Como uma dama do cinema noir, com a vestimenta sempre impecável, o vermelho vivo manchando cuidadosamente o filtro do cigarro sobre os lábios carnudos, ela observa, pelo reflexo de um espelho de bolso, a semelhança distante no semblante da mãe.

Persegue-a, no dia seguinte, pela cidade. Caminham, uma atrás da outra, até o píer. Ofa se senta ao lado dela. Exibem ambas os mesmos traços visuais – o batom vermelho, o louro platinado sobre a cabeça e o vestido carmesim. Entre os dedos, segura uma edição de Hamlet, que tem na capa a Ofélia de John Everett Millais. Mãe e filha dividem seus pensamentos sobre a morte de Ofélia, cujas roupas, encharcadas pelo peso das águas, a levaram a ceder, em meio aos botões-de-ouro, urtigas e margaridas, à morte lamacenta[ii]. O fim de sua mãe não poderia ser diferente. Ofa, atira-a às águas e se regozija com a imagem do gigantesco vestido avermelhado inflando na superfície aquática.

A terceira e última história, A menina e a morte, ecoa aspectos da duplicidade entre vida e morte. Muratova encerra sua trama com um relato também corriqueiro. Um idoso, cadeirante (Oleg Tabakov), ocupa-se de cuidar de uma garotinha, Lilia Murlykina, enquanto a mãe está fora ganhando seu sustento. O tema se desenvolve em torno do diálogo do velho e da garota. Ele, inocente, é devorado gradativamente pela malicia dela. Tenta, em vão, ensiná-la os aspectos mais sociais de interação humana – do cabelo penteado ao jogo de xadrez –, enquanto ela os desconstrói um a um com seus atos pantagruelescos – o despir das roupas, a proximidade com os animais, a normalidade dos ruídos corpóreos –, todos vistos por ele como falta de educação e civilidade. Numa discussão, a jovem resolve envenenar o chá do idoso com os restos de veneno de rato, minuciosamente coletado das ratoeiras dispostas pela casa. Até o torrão de açúcar envenenado entra como aditivo da bebida, cujo gosto amargo é tido por ele como um indício de sua inconteste senilidade, culpa da já insalubre vesícula biliar.

O terceiro conto mescla sutileza e violência. É talvez a mais voraz de todas as Três Histórias. A maneira pelo qual se inicia – um filhote de gato preto devorando a carcaça de uma galinha de ventre aberto – condensa a dualidade que incorpora a narrativa. A oposição entre idade e jovialidade, refletida na figura da garota e do velho e vista em modo metafórico no gato e na galinha – flácida, depenada e morta – sinaliza o rigor febril que perpassa a relação agressiva entre a velhice e a juventude.

A menina, com pouco menos de uma década de vida, é capaz de assassinar o idoso com requintes de crueldade. A coleta do veneno é interpelada em cena com um jogo de peões, que observa rodopiarem enquanto espera, pacientemente, o efeito do medicamento fatal. O senhor, que deveria ser o símbolo da maturidade, a voz de autoridade do lugar, é posto em situação oposta. Lesado pela idade avançada, impossibilitado de cuidar de fato da menina, é obrigado a se ver sob seus cuidados. Os gatos traduzem o caráter ambíguo da juventude. O espírito voraz, pueril e instintivo da menina condensa essa duplicidade, ao mesmo tempo fria e inocente, inerente à qualidade humana.

A narrativa imaginativa, permeada no submundo civil de cada personagem, conflui o texto, sempre muito expressivo, rítmico e ininterrupto, ao tratamento visual denso e sistemático da câmera, que se projeta sobre cada cena como um voyeur embriagado com o caminho fugidio dos eventos ficcionais. A música concede um protagonismo aos espaços, que surgem com seus próprios sons, naqueles locais humanos e urbanos, gerando uma atmosfera que aproxima os espectadores e as desconhecidas trajetórias postas em tela.

Degolação, estrangulamento, afogamento e envenenamento são os modelos mortais que condizem com as criações macabras dos contos de Muratova. Seus personagens simples, humanos e, ao mesmo tempo, desprovidos de empatia, povoam suas histórias, trilhadas na tecedura fina das diferentes fachadas decorativas, assimétricas e irregulares da crueldade humana.

A narrativa é fantástica, mas o tratamento visual da câmera é realista. A fotografia e a abordagem dos espaços arrematam a construção psicológica dos personagens, atados a seus universos solitários. Tikhomirov, com o sobretudo, o chapéu e cachecol, encontra-se enclausurado no ambiente ríspido, obscuro e sufocante da sala de caldeira. Ofa, com sua vestimenta sedutora, a pele muito alva, os cabelos igualmente louros, reflete-se na paisagem e em seu entorno, tão claro e ofuscante quanto ela. Não apenas as histórias versam sobre caminhos e intenções diversas de crimes passionais, como caracterizam um tratamento completamente díspar dos atos, convergindo aspectos narrativos, visuais e temáticos num ciclo de início e fim abruptos, sempre certeiros e enfáticos.

Três Histórias é uma análise rigorosa do caráter instintivo da crueldade humana, um filme que revela crimes sem penalidades. A câmera distante, que pouco perturba a ação, parece querer nos dizer, como num documentário sobre natureza, enquanto observamos o predador devorar a caça, que só nos resta esperar. E por isso mesmo o filme não insere o aspecto moral das punições. São estudos de caso, visões de mundos anônimos, onde o crime ocorre como um dia normal de caça, já que animal interior precisa se alimentar.

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[i] TAUBMAN, Jane B. “Crimes Without Punishment: Three Stories [1997]” IN Kira Muratova. Nova York: St Martin’s Press 2005. p. 78

[ii] SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. São Paulo: L&PM, 2004. p. 116

Síndrome Astênica (1989)

Cerrar os olhos, como quem range os dentes

Hannah Serrat

A violência da monotonia alcança-nos sob estilhaços em Síndrome Astênica (1989), de Kira Muratova. Lançados entre a fúria de quem esbraveja e a indiferença de quem adormece em meio ao caos, apanhamos disjunções. As controvérsias e os excessos de um mundo dilacerado (não em dois, mas em múltiplos pedaços) tornam-se matéria sensível desse filme desconcertante – um dos mais importantes da cineasta ucraniana e também, reconhecidamente, do cinema soviético.

Organizado em duas partes, Síndrome Astênica não constrói oposições binárias, mas interseções, contaminações, entremeios. Na primeira parte, em preto e branco (ou em tons de sépia), acompanhamos o luto de uma mulher que sofre a perda do marido. Após quase 40 minutos, percebemos tratar-se de um filme dentro do filme. Quer dizer, vemos, em cores, espectadores assistirem ao filme e a atriz ser convidada ao palco para comentar a realização. Quase todos os espectadores deixam o teatro, reclamando da sessão e sem dar qualquer atenção à atriz, enquanto um homem dorme profundamente. Na segunda parte do filme, acompanhamos então Nicolai (Sergei Popov), este homem narcoléptico que aparecerá, na cena seguinte, caído, em sono profundo, no meio da estação de metrô. Ainda que o argumento e a forma do filme aparentemente dividam-se em dois, como em trabalhos posteriores de Muratova, trata-se antes de fazer com que as relações se multipliquem, que uma parte permeie a outra sem cessar.

No primeiro plano da primeira parte do filme, uma boneca, sem olhos e sem roupa aparece deitada em meio a flores e bolhas de sabão. Ouvimos risadas, senhoras, crianças. Em um canteiro de obras, um homem comenta com um operário sobre seus hábitos: gostava de comer pequenos lanches durante as pausas de seu trabalho nos correios. O operário, com quem ele insiste em falar, não o escuta e ri, apenas ri. O homem continua a falar sem ser ouvido. Outros trabalhadores amarram um chocalho no rabo de um gato – o que parecia ter ocasionado as risadas. O gato foge, se desfaz do chocalho, livre. Do canteiro de obras, passamos ao cemitério. A terra remexida, no entanto, parece a mesma. Ali, construíam-se residências; aqui, enterram-se pessoas. O filme, de antemão, desnorteia-nos. A boneca do primeiro plano adiantava a aparição dos corpos no interior dos caixões. Diante de um homem sendo velado, uma mulher, Natasha (Olga Antonova), chora alto, em desespero. Depois, exausta, abandona o velório. Incapaz de fazer o luto de seu marido, Natasha irrita-se com o mundo, bate nas pessoas, leva um homem em situação de rua para seu apartamento, deita-se com ele, desespera-se.

O que parecem ser as principais questões do filme anunciam-se desde o início: a incomunicabilidade entre os sujeitos (entre aquele que tenta falar, aquele que ri, aquela que grita, aqueles que se silenciam) e a incompreensão entre os mundos (entre quem amarra um gato, o gato que foge – lembrando da belíssima e triste cena dos cachorros no canil na segunda parte do filme, as crianças, as bonecas, as idosas, os adultos). Nas duas partes do filme, sob diferentes formas, as fraturas entre as vidas, a desrazão, a instabilidade e o desequilíbrio entre elas são retratadas por Muratova de maneira singular. Mais do que acompanharmos dois personagens, em suas crises individuais e existenciais, somos levados a compreender (ou nos perder em meio a) variações de uma coletividade instável, rarefeita, desordenada, enquanto a URSS colapsava. A letargia e a apatia de seus personagens intensifica, assim, a dificuldade de pensar a vida coletiva, enquanto a utopia comunitária parecia já não produzir mais lastro.

Filmar com liberdade (sobretudo, com liberdade) o caos e a solidão: árdua tarefa empreendida por Muratova. Sem qualquer compromisso com algum tipo de realismo naturalista, ainda que se interesse pela vida das pessoas, nas ruas e nos espaços públicos, mas também no interior das casas, dos apartamentos e das salas de aula, Síndrome Astênica perturba nossa percepção, nossa escuta, nosso olhar. Entre o sono e a raiva, somos levados a apreender absurdos, a apanhar fios soltos, a escutar palavras demais. Operando excessos, as imagens e os sons de Síndrome Astênica nos serpenteiam, recolocam-nos em movimento. Frente à letargia do mundo, como voltar a fechar os olhos? Como gritar? Ou ainda: como fechar os olhos como quem grita em silêncio?

Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (1978)

Um filme só

                                                                                     Roberto Cotta

Nunca ouvi falar de um triângulo amoroso que tenha começado de modo tão rude. Os créditos iniciais mal haviam acabado quando Nicolai (Aleksei Zarkhov) pulou de súbito na caçamba de Misha (Sergei Popov), fedendo a suor e pedindo pra desatolar o carro da lama. Em Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (1978), de Kira Muratova, essa agressividade é o símbolo da mudança no relacionamento de Nicolai e Liuba (Nina Ruslanova). Trata-se de um namoro enguiçado, cujo desgaste necessita de um terceiro elemento pra pegar no tranco ou morrer de vez.

Mas a rudeza não se restringe ao trato entre machões. Muratova lança mão de uma decupagem socada, enquadrando partes fragmentadas de seus personagens e escondendo as dimensões reais da estrada, dos vilarejos e das habitações coletivas dessa União Soviética dos anos 70. Quase sempre, obstáculos se interpõem entre a câmera e o trio de protagonistas, impedindo que os gestos extravasem, as paixões se aflorem e os rumos sejam definidos sem sofrimento. A montagem segue princípio parecido. Entre um plano e outro, cortes que não articulam uma relação de continuidade, como se a demolição do tempo construísse um espaço singular, em constante reformulação.

Misha, Liuba e Nicolai seguem viagem espremidos na boleia do caminhão. Um aperto de mãos entre a moça e seu futuro affair deixa Nicolai roxo de raiva. E o troca-troca de posições no banco de passageiros só aumenta a dor de cotovelo do rapaz. A cineasta apresenta toda essa tensão tragicômica de maneira frontal, apontando a câmera para o rosto dos personagens e captando cada lastro de sentimento exalado. O aperto de mãos do começo é retomado na parte final, na medida em que os amantes já se encontram espelhados um no outro, intuindo a possibilidade de matrimônio tão desejada por Liuba.

Que me estapeiem os que torcem o nariz pro casório, mas da Moldávia ao Togo pouca coisa gera tanta expectativa num coração desolado. Não por acaso, a sequência mais memorável do filme escancara o sonho de Liuba e a impossibilidade de concretizá-lo com Nicolai. Um a um, os casais saem da igreja depois de uma cerimônia de casamento coletivo. Nesse momento, somos os olhos da personagem, que pega o microfone e fabula a felicidade dos cônjuges, mirando neles a perenidade afável da relação a dois. Mas “o amor é uma paixão temporária”, Nicolai diz a ela, decretando a rejeição ao enlace. Enquanto isso, Misha está à espreita, esperando que Liuba abra brechas pra que ele possa consolá-la.

Dos tipos masculinos que já tive notícia, nenhum é tão bem-dotado de astúcia quanto o esquerdomacho. Os demais são todos tolos, seja por imprudência ou convicção. Guardados os devidos lapsos, Misha é o protótipo soviético desse perfil espalhado aos montes pelo Brasil atual. Ele tá sempre ali no rebote, complacente, taciturno, pronto pra cobrança de pênalti. Quem pouco se expõe, não tem outro destino: ou vira agente da KGB ou ganha na loteria, observando o vai-e-vem pelo buraco da fechadura até que chegue sua vez. Já Nicolai é seu avesso: troglodita, chucro, arredio, um verdadeiro poço sem mistério. Não há como imaginar um futuro que supere a vida protocolar, desprovida de sonhos e repleta de trabalho.

O filme de Muratova oferece o último resquício de sensibilidade no horizonte do cidadão comum. Em meio a uma rotina operária, Liuba representa a única forma possível de enxergar a flor que brota do asfalto, furando o tédio, o nojo e o ódio, como diria Drummond. Por isso, ela está só. Ela até pode ser rodeada por homens, mulheres e crianças, mas está sempre só. Não é à toa a recorrência ao seu olhar lançado em direção ao nada. A vida de Liuba é sonho, e ela consegue apenas devanear sozinha, num mundo sem fábricas, sem construções e sem a rudeza da convivência a dois, a três, coletiva. Qualquer tentativa de vislumbrá-la na companhia de alguém resulta nos cacos de um espelho partido.

Assim como a personagem, Conhecendo o Grande e Vasto Mundo é um filme solitário. Estamos diante de uma gangorra de emoções que se bastam em sua parca duração, contramão de toda uma história oficial que preza pelas narrativas umbrosas, reviravoltas frenéticas e sentimentos guardados numa prateleira. Além disso, sua concisão é tão singular quanto a luz primaveril que invade o quadro. Até porque chega um momento no qual não sabemos mais se é noite ou dia, quando se vive ou se morre. Ao fim, somos pobres desgraçados exercendo nosso fascínio pela solidão.

O Longo Adeus (1971)

No tribunal dos afetos

Pedro Veras

 

Mão esquerda contra a direita.

Tua alma e minha alma – rentes.

Fusão, beatitude que abrasa.

Direita e esquerda – duas asas.

Roda o tufão, o abismo fez-se

Da asa esquerda à asa direita.

(Marina Tsvetaeva, 1918)¹

 

O que pode um crítico diante de um filme que conte a sua própria história de vida? Como não fazer de seu texto um divã expletivo, abandonando a obra a um segundo plano, quando é ela quem deve ocupar o posto central? Como medir a carga subjetiva injetada na análise? Deve-se medi-la, afinal de contas? Enfim, escrever sobre O Longo Adeus (1971) é desafiador, não apenas pela magnitude do quarto filme de Kira Muratova, pela riqueza de sua escrita com imagens e sons e pela atualidade impressionante de seus temas; é desafiador, sobretudo, porque a crônica da mãe solteira Yevgeniya (Zinaida Sharko) e do filho único Sasha (Oleg Vladimirsky) diz muito – ou quase tudo – da minha própria experiência afetiva com minha mãe. O Longo Adeus surgiu para mim como um forte exemplo daqueles filmes que têm aquela potência máxima de transformar um olhar. Mãe solteira e filho único são os dois polos de uma relação enclausurante, íntima, cúmplice, por vezes asfixiante, mas também amiga e amorosa, que chega com a doçura de um jardim e outras com a rigidez de uma parede de concreto. É também uma conexão que não se resume a uma frase como essa, nem a um texto como esse. Uma constelação muito mais complexa de sensações que talvez apenas os corpos entendam.

Essas sensações – difíceis de explicar em palavras – ficam melhor evidentes nas imagens de O Longo Adeus, que se aliam ora à experiência maternal, superprotetora e excessivamente apegada de Yevgeniya, ora ao espírito revoltado e passivo-agressivo de Sasha, no intuito de retratar com imensa humanidade essa relação, abdicando de tomar partidos. Somos apresentados à dupla num passeio em uma floricultura, que culmina em uma visita ao túmulo do pai de Yevgeniya no cemitério local. Os desencontros que promovem esses olhares isolados e errantes, parecem condensados no primeiro plano, onde mãe e filho surgem juntos, dialogando: o rosto dela aparece de lado, escondido pela folhagem das plantas – olhando para o fora-de-campo como que preocupada com o futuro da relação. Com um zoom-out, a imagem se abre para incluir, em seu centro, o rosto apequenado de Sasha. A voz da mãe ao mesmo como indício de autoridade, mas de profundo afeto. Muratova parece metaforizar essa paradoxal “distância-aproximada” ou “proximidade-distante” entre mãe e filho, separados por uma floresta densa que, no entanto, não impede um de ouvir a outra, e vice-versa. Uma relação ao mesmo tempo selvagem e domada, como as plantas confinadas em vasos na floricultura.

Yevgeniya pergunta ao menino como fora a visita ao pai (ausente) em Novosibirsk, Sibéria Ocidental, e ouve os relatos com um aparente (m)ar de indiferença e descrença, contudo não consegue mascarar a angústia. Uma angústia que atravessa toda a encenação, os gestos, a fala, os olhares que Zinaida Sharko carrega para o corpo de sua personagem. É evidente que a mãe se incomode com as afinidades que Sasha parece começar a rascunhar com o pai, esse ser “místico”, que viveu em seu recanto siberiano sem participar da criação, e que agora volta para reivindicar algum tipo de “direito paternal”. Quanto a Sasha, difícil saber se sua afeição pelo pai é de fato espontânea ou se surge de uma implicância inconsciente e constante com a mãe. É justamente nesses jogos psicológicos, meio que sádicos, onde habita muito da essência de uma relação mãe-solteira/filho-único, que por se conhecerem tão intimamente, parecem possuir um mapa do subconsciente uma do outro.

Os corpos vistos entre as grades do cemitério, constrangidos, incompletos, fragmentados, porém em movimento, mantêm com exuberância cinematográfica a metáfora do aprisionamento causado pela relação asfixiante, cinza e complexa. Essa intensidade sentimental, que ora aproxima ora afasta, surge com veemência na emblemática sequência do trem, onde a mise-en-scène orienta os corpos a não se afinarem, não se harmonizarem: sentam de costas um para o outro; Sasha se levanta, muda de lugar, vai à janela e observa meninas correndo livremente nos campos; volta para encarar a mãe de longe, desafiando-a carinhosamente.

Assombrada pelos fantasmas masculinos de sua vida – o pai militar (cujo rosto surge em um plano detalhe de uma foto velha que parece confrontá-la do além), o ex-marido ausente e agora o filho revoltoso – a tradutora e intérprete de inglês tenta manter uma vida social saudável, vai à casa de amigas e tenta se relacionar com um antigo paquera, Nicolay (Yuriy Kayurov). Mas os traumas dessas relações opressoras, manifestas agora na presença física e sentimental do filho, parecem enclausurá-la também, por isso o filme instala essa espécie de tribunal dos afetos, do qual ninguém sai inocente nem culpado, muito menos ileso. Ambos se prendem, enquanto se amam, no que há de mais labiríntico nessa elaboração. Talvez desse lugar venham as imposições e palavras de ordem para o filho, “Devia lavar as mãos! Pare de roer as unhas! Pegue esta lixa!” etc. Por outro lado, Sasha também expõe suas fragilidades emocionais ao tentar se relacionar com meninas, como a filha da amiga da mãe, Masha (Tatyana Mychko), que é apresentada em um plano sublime, enquanto seca os cabelos. Na camada sonora, ouvimos ruídos do mar e do quebrar das ondas; na imagem, vemos os cabelos de Masha em um plano fechado, que se fixa tanto sobre eles que lhes garante uma importância maior do que o próprio rosto dela. O cinema – e só ele – alcança essa desmaterialização dos fios, para reinventar formas e texturas, para criar novos sentidos: o cabelo não é cabelo, é a brutalidade delicada do mar que quebra nas rochas, e que inunda a mente e os olhos de Sasha. Como se a articulação entre imagem e som fizesse nascer novamente os cabelos, inaugurando um novo signo.

Muratova é cuidadosa na construção dos enquadramentos de seu filme. À mesa das amigas e amigos, Yevgeniya não se contém e inicia uma tórrida discussão a respeito das notas de Sasha em matemática e o preço de um professor particular. Essa insistência em criar conflitos por questões pessoais, em público, é algo comum também na relação bipolar mãe solteira/filho único. O filme traduz essa pressão sentida por Sasha no ambiente público ao opor, de um lado, o menino sozinho e, do outro, a mãe e os demais adultos, acentuando assim a figura da repressão. Como reação, é Sasha quem rompe a delicatessen do encontro e confronta a mãe, impondo aos gritos que terminem de conversar em casa. “Sou sua mãe! Tenho o direito de saber o que passa na sua cabeça!”, ela revida. O final dessa sequência evidencia a neurose de Yevgeniya pelo filho, quando ele vira uma pequena taça de vodka, para o espanto da mãe, mas em seguida diz “É água mãe”. Esse jogo de implicâncias íntimas, que só uma vida sufocantemente a duas/dois pode gerar. Pela montagem, novamente O Longo Adeus elabora um simples, porém substancial contraste: o último plano do jantar é silencioso e mostra um copo em detalhe, sendo preenchido com água; um corte abrupto traz a imagem de Sasha batendo agressivamente à porta de um amigo, enquanto ouvimos “Black is black” da banda de rock espanhola Los Bravos. O copo estático e mudo é radicalmente confrontado pelo bater de portas e o embalo da música.

Após Karsteva, a sobrinha de Yevgeniya, contar, para o espanto da tia, sobre o plano de Sasha de se mudar para morar com o pai na Sibéria, O Longo Adeus toma um rumo bastante diferente, por fazer sangrar o espírito da protagonista. Sua relação rotineira com o filho será abalada, uma estranha sensação de desespero tomará conta de seu rosto até o final da fita. Como numa terapia consigo mesma, ela parece reavaliar seu papel de mãe e passa a analisar com mais distanciamento as respostas do filho, buscando interpretar a origem de seu descontentamento com a vida que ela proporciona a ele, com tanta dificuldade. A maternidade surge como fantasma quando as duas funcionárias da floricultura retornam, agora sentadas em um banco de praça papeando a respeito de seus bebês com uma doçura romantizada sobre “ser mãe” – aliás, essa ideia é combatida pelas bordas da imagem, onde o carrinho do bebê ocupa um canto sutil e quase imperceptível do enquadramento, cuja centralidade é preenchida pelas mulheres. Sim, não se pode perder de vista que há uma leitura feminista subjacente em O Longo Adeus, a qual sublinha a questão do feminino, da maternidade, das opressões machistas e das incertezas de uma mulher emancipada que trabalha incessantemente e ainda cria o filho sozinha. Muratova questiona, indubitavelmente, os papéis reservados para as mulheres de seu tempo – provável motivo pelo qual o filme tenha sido proibido pela censura soviética e liberado apenas em 1987. Seguindo tal espírito contestador, há na fita algumas sequências compostas unicamente por inúmeros corpos masculinos, agitados, que parecem asfixiar as imagens – em uma delas, mais ao final, uma banda de música folclórica acompanha essas imagens, sugerindo uma tenebrosa “volta ao passado”, ou apontando para um “machismo regressor” que impede a modernização da sociedade.

A angústia de Yevgeniya cresce ao ponto de ela subornar uma colega na agência postal para interceptar a correspondência entre o pai de Sasha e o rapaz. De volta ao apartamento, acompanhamos a mais poderosa sequência do filme. Numa elaboração onde o espaço cenográfico é permeado por um jogo de imagens, que envolve espelhos, quadros e projeções de fotogramas de cavalos selvagens sobre as paredes e portas do apartamento, o filme nos introduz à intimidade de Yevgeniya e Sasha. “Nunca entendi o que há de tão fascinante nessas imagens, nem em sentar sozinho no escuro”, diz ela, implicando com o filho e, metaforicamente, com o próprio cinema. É interessante, pois quando Yevgeniya entra em cena, é precisamente sob uma das projeções, fazendo com que seu corpo se torne também suporte para as “imagens dentro da imagem”, enquanto localizamos a silhueta misteriosa de Sasha no espelho. Enquanto Yevgeniya se arruma para ir ao teatro com Nicolay, uma conversa sincera se instaura entre mãe e filho, na qual ela questiona a insatisfação dele com a vida e afirma, novamente com implicância, que ele não a ama de verdade. Contudo, essa antipatia dá lugar a um companheirismo quando ela caminha até ele e pede que a ajude a fechar o zíper de seu vestido, em um dos gestos mais acolhedores, cúmplices e poéticos de O Longo Adeus. É uma pequena ação prosaica como essa, perdida no real, que o cinema vai buscar para compor mais um fragmento dessa complexa e paradoxal relação de codependência entre mãe/filho.

O esquema de violar a correspondência do filho é bem sucedido e Yevgeniya lê a carta afetuosa enviada pelo pai ao garoto, perguntando se ele já havia comunicado a ela sua decisão de se mudar para a Sibéria. No pacote, alguns fotogramas com a imagem do pai com o filho, tiradas durante sua visita de verão. Ela vagueia errante pela estação de trem, que também é uma agência telefônica. Ela vê Sasha sentado na estação e não sabemos se ele de fato está lá ou se entramos na imaginação de Yevgeniya. Ele é chamado pela telefonista para receber uma ligação do pai. A imagem se fixa sobre o rosto do menino ao telefone, durante a conversa entrecortada e agitada com o pai, enquanto a mãe emerge melancólica no reflexo do vidro da cabine, contrastando com a euforia do filho. Por que ele voltaria agora? Justo agora que os percalços da criação difícil e solitária estavam acabando? Onde esteve ele esse tempo todo? O pai distante e ausente, que se aproxima do filho crescido e jovem adulto, volta para assombrar a relação de Yevgeniya com Sasha. Ele, o pai “compreensivo, amigo que libertará o filho daquela vida restrita e vigiada”.

A quem ou ao quê Yevgeniya vai recorrer diante desse abismo sentimental? Ao projetor e às imagens que ela antes havia ironizado. Sozinha em casa, ela projeta as fotos que o pai mandara a Sasha nas paredes da casa, em uma metafórica reconciliação com o cinema. A fumaça de seu cigarro se mistura com as linhas de luz da projeção. Os pequenos fotogramas, que antes cabiam em suas mãos, agora, projetados nas portas, são maiores do que seu próprio corpo. Cresce junto com as imagens, analogamente, a agonia de Yevgeniya. Sasha entra em cena e novamente o tribunal é instaurado no apartamento. “Ele o abandonou quando você era deste tamanho. E agora, claro, amor à primeira vista!”. Contornando uma narrativa causal, onde o menino figuraria um sentimento de raiva ou revolta com atitude da mãe, Sasha a confronta com serenidade e com uma estranha, porém sincera, compreensão. E em mais um gesto cúmplice e doce – como o do zíper do vestido – acende um cigarro para a mãe, enquanto conversam sobre sua decisão de se mudar para a casa do pai.

Na sequência final, que se dá na festa da companhia onde Yevgeniya trabalha, os desencontros entre mãe e filho começam a minguar. Ela, que vestira branco durante quase todo o filme, contrastando fortemente com as roupas pretas do menino, agora usa um vestido também preto. No entanto, Sasha insiste em fugir da mãe quando ela o procura para apresentá-lo a um grupo de amigas. Quando finalmente se reúnem para assistir às apresentações artísticas da cerimônia, um jovem casal está sentado nos lugares reservados à Yevgeniya, e se recusa a cedê-los à verdadeira dona. Frustrada, não apenas com esse impasse – pequeno diante de seu real sofrimento –, ela se recusa a sair e permanece em pé, atrás do casal com um olhar desolador, porém resiliente. Mãe e filho destoam do restante do auditório, estão em pé, reivindicando seus direitos, enquanto todas as pessoas estão sentadas e caladas. Yevgeniya e Sasha são diferentes, sua relação é diferente, por isso não pertecem àquele teatro de normalidades. Convencida pelo filho, o único homem a quem ela realmente dá ouvidos, pois é o único que ama verdadeiramente, Yevgeniya deixa a apresentação, enquanto um dueto cantarola melancolicamente os versos: “O que procura tão distante? O que deixou na pátria mãe?”

Do lado de fora, afinal, Sasha se declara para a mãe: “Eu não vou a lugar nenhum. Não irei, vou ficar com você! Mãe, eu a amo”. Yevgeniya, mulher-fortaleza, não cede e diz que não quer caridade de um filho que sente pena pela sua solidão. Num gesto que sugere quase um pedido de casamento, Sasha então se ajoelha e encara a mãe de baixo para cima. Na interação mãe solteira/filho único, é o corpo que faz mais sentido do que as palavras. A melancólica canção ocupa toda a faixa sonora, “Rebelde, quer a tempestade, se como lá houvesse paz!”.

Mas, nesse tribunal, recusa-se o final feliz. O último plano de O Longo Adeus não é de uma Yevgeniya emocionada de alegria abraçando Sasha, mas chorando num misto, bem humano, cinzento e enigmático de sensações. Talvez ela saiba que continuará sofrendo, porém terá o filho perto, e isso significa muito. Não é tão fácil assim cortar o cordão umbilical.

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Nota:

[1] Tradução: Augusto de Campos.

Breves Encontros (1967)

Crônicas de amor sob o gelo

Douglas König de Oliveira

Ao assistir ao longa-metragem de estreia da ucraniana Kira Muratova, não é difícil perceber o motivo das críticas lançadas pelas autoridades estatais soviéticas na época de seu lançamento. Desde a revolução bolchevique, em 1917, o cinema feito no país foi uma plataforma de divulgação ideológica importante para o regime. Cineastas como Sergei Eisenstein e Dziga Vertov ilustravam o ideário do socialismo, calcado na figura de Vladimir Lenin, com obras de grande rigor formal e intenção popular.

Vertov reportava o cotidiano do regime, como nos registros breves da série Kino Pravda (1922-1925), ou em obras mais ambiciosas, como Câmera Olho (1924), ainda dentro desse escopo pragmático do uso do cinema para propagar uma ideologia. Eisenstein tem suas obras mais representativas, como O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1927), baseadas em fatos históricos que contribuem para a aura da revolução, mostrando a bravura do heroísmo coletivo e utilizando uma estratégia de montagem derivada de Griffith e Gance, na qual a concatenação paralela de cenas e o ritmo acelerado auxiliam no convencimento da audiência. Não há espaço para lacunas ou ambiguidades. Essa arte oficial é feita para o povo, e qualquer sofisticação que represente um entrave entre a informação e o público é rejeitada.

Essa restrição também ocorreu em outras áreas, tendo o regime eleito seus artistas preferenciais, em detrimento de outros, quando levavam sua expressão artística muito à frente da expectativa de uma suposta audiência popular. O compositor Igor Stravinsky, por exemplo, era considerado muito cosmopolita, abarcando em seu estilo influências do folclore russo ao jazz norte-americano. Era preterido por compositores que, alegadamente, eram melhores porta-vozes dos valores que o mecenato estatal queria propagar, como Dmítri Shostakóvitch (e mesmo este sofreu com a censura e o embargo em momentos de sua carreira).

O cinema de Kira Muratova se afasta desse modelo estatal. Primeiro, cronologicamente, pois seus filmes foram feitos no pós-stalinismo, que representou certa flexibilidade (ou, ao menos, uma esperança), sob o comando de Nikita Khrushchev. Em segundo lugar, esteticamente, uma vez que ela se evadia da estética consagrada do realismo socialista para priorizar um formalismo que destacava o individual e o íntimo.

O característico herói coletivo ou figura de destaque do regime, assim como o enredo edificante e afirmador das diretrizes ideológicas do socialismo, dá lugar a um tratamento cambiante da personagem, assim como a ênfase em aspectos formais antes ignorados (e ainda fortemente criticados pelo discurso oficial) na obra dos cineastas soviéticos. Os filmes eram realizados, mas não havia garantia que seriam distribuídos, pois um comitê avaliava se estavam alinhados às ideias do partido. Nesse processo, muitos cineastas tiveram filmes proibidos ou não recomendados, e suas carreiras foram prejudicadas de forma irreparável.

Em Breves Encontros (1967), de Kira Muratova, podemos ver a influência de toda a gama expressiva do cinema europeu do início dos anos 60. No filme, temos o retrato íntimo emoldurado pelo contexto histórico e social, que é tão caro à obra de Resnais, assim como o uso da memória e do presente no mesmo espaço diegético para o desenvolvimento da trama. Outro fator derivativo são os planos distendidos e as variações do foco principal do drama para momentos de liberdade formal, comuns nos filmes de Antonioni nesta época, e a leveza e agilidade na condução do enredo e as repetições e quebras de padrões visuais e sonoros característicos da nouvelle vague francesa de Godard e Truffaut. A cineasta também incorporou o caráter romanesco presente nessas três referências, com ênfase em relacionamentos amorosos entre casais (como em Hiroshima, Mon Amour (1959) e Acossado (1960)) ou triangulares (como em Jules e Jim (1962) e A Noite (1961)), ao invés do típico personagem do realismo socialista. Toda essa vinculação à estética dos cineastas europeus chegou a inspirar a cena de uma nova onda do cinema soviético, como ocorreu contemporaneamente no Japão e no Brasil.

O filme de Muratova segue o triângulo amoroso de duas mulheres, Valentina (interpretada pela própria diretora) e Nadia (Nina Ruslanova), e o esposo de Valentina, Maxim (Vladimir Vysotskiy). Maxim e Valentina fazem parte da burocracia do Estado, enquanto Nadia é uma atendente de um bar que o geólogo encontra em uma de suas viagens de trabalho pelo interior. Um aspecto interessante é que a relação desses vértices do triangulo não é explícita. Valentina e Nadia amam o mesmo homem, mas Nadia nunca revela essa história, embora trabalhe na residência do casal. Maxim também não toma conhecimento do convívio das duas durante o filme, pois não retorna de sua viagem até o encerramento da narrativa. A tensão não tem ênfase dramática, mas se baseia num registro existencial, permeado principalmente por elementos da memória das duas protagonistas.

As elipses constituem a estrutura que constrói o enredo, a toda hora movendo-se do passado ao presente para formar o vínculo entre os personagens. Na primeira metade do filme, a câmera adquire uma incomum liberdade, como que para tatear a cena, desvelando detalhes e aspectos visuais e dinâmicos de um formalismo bastante original. Vemos, então, um movimento de despir-se de um agasalho seguido com a câmera em toda a sua amplitude vertical, momento em que uma personagem parece introspectiva, enquanto observa os próprios braços se agitarem por sobre a cabeça. Observamos também o deslocamento circular de Valentina na sala de seu apartamento, à medida que elabora um discurso para o comitê do estado sobre agricultura.

Em vários momentos do filme, o tempo e o espaço adquirem um ritmo eminentemente sensório, desprendido do alinhamento dramático, dando ênfase a precisos e complexos movimentos de câmera. Mas, diferente dos tempos-mortos de Antonioni, que desde Crônica de um Amor (1953) enfatiza a continuidade e distensão de um plano também como estratégia de distanciamento, os momentos de liberdade formal em Muratova se integram completamente à cadência da trama. Isso traz novos elementos “descobertos” pela câmera, além dos que consideraríamos um plano usualmente padronizado. Esse é um aspecto que torna toda a invenção visual desses momentos muito naturais, não precisando de um contexto tão fechado na estilística para ser apreciado como fator poético. Por isso, ainda hoje, causam um efeito não datado e profundamente marcante do estilo, então recém-estabelecido, da diretora.

Outro aspecto que inverte uma convenção de linguagem é o fato de as personagens femininas problematizarem as figuras masculinas. Em diálogos travados com as mulheres, Maxim reclama do reducionismo em tentar decifrá-lo e prevê-lo de alguma forma, enquanto muitas vezes recorre a canções para mostrar seu ponto de vista (hábito que Valentina se opõe durante uma conversa importante do casal).  No cinema e na literatura, é comum que as mulheres sejam vistas como figuras misteriosas, com certa tendência para a ambiguidade, ao passo que o homem, dotado de traços de racionalidade, tenta entender as motivações delas. Mas, no filme de Muratova, o olhar muda de posição, e a mulher é que tenta apreender a essência ambígua do universo masculino, simbolizado pela dimensão prática do extrativismo mineral do geólogo Maxim em contraste com seu temperamento artístico.

Valentina aparece no filme às voltas com a administração da construção de condomínios populares e o abastecimento de água dessas habitações. Nadia sai do interior para a cidade na condição de também servir, antes como garçonete, agora como auxiliar doméstica de Valentina. As duas estão ligadas ao amor pelo mesmo homem, e também compartilham a tensão de ter que lidar com a inconstância e complexidade desse personagem, que se esquiva de classificação e das características de uma construção familiar convencional. A notícia do retorno de Maxim, no trecho final do filme, é motivo de alegria e alívio pra Valentina, mesmo tendo ela promovido a separação, dadas as incompatibilidades com os compromissos afetivos. Nadia, por sua vez, entende a volta do rapaz como o estopim para sua própria emancipação. De alguma forma, Maxim contribuiu para que Nadia encontrasse a felicidade que vislumbrava na sua figura de aventureiro, ainda que perdendo a chance de obter exclusivamente o seu amor.

O embate entre as dimensões sociais das duas mulheres baliza a principal relação tratada pelo filme. Se, no socialismo, os membros mais diretamente ligados às funções estatais ou partidárias podem ser identificados como uma elite, existe uma parcela da população que espera que, dessa elite, emanem as ações que nortearão seu cotidiano, suas condições materiais e ideológicas.

Valentina e Maxim fazem parte dessa “casta” privilegiada e, de certa maneira, bastante exigida nas suas ações públicas. Nadia faz parte da outra metade, e tem a oportunidade durante sua convivência com Valentina de observar como ela age com as pessoas as quais gerencia ações estatais (a população à espera dos apartamentos, principalmente). Além disso, pode analisar a maneira nem sempre positiva como essa população vê e avalia os agentes do Estado (como nas cenas da pensão e do salão de beleza) e também a abertura que essa parcela de poder proporciona a quem está próximo (como na situação do primeiro encontro das duas, quando Valentina oferece a chance de Nadia continuar os estudos utilizando sua influência para colocá-la numa boa escola). Se o sentimento amoroso por Maxim as aproxima, as diferenças de suas posições na sociedade apresentam uma invulgar distância.

O retrato dessas relações em Breves Encontros não parece contribuir para lisonjear a máquina estatal que a patrocina. As angústias e as dificuldades de adaptação de Valentina às demandas oficiais, agravadas pela falta de companhia do errante e fugidio Maxim, não são exatamente os exemplos que o regime socialista queria transparecer para os seus cidadãos. A moralidade do trânsito amoroso entre os três personagens também não parecia desejável pelos padrões vigentes da época.

Se hoje vemos uma obra vigorosa e original da jovem Muratova, que se adapta ao que acostumamos ver no cinema mundial nos anos 60; na época, sua falta de apoio (ainda que não uma proibição) pelo Comitê Estatal de Cinematografia, praticamente, condenou o filme. Depois de uma relativa consagração de seu trabalho é que puderam vir à luz seus primeiros longas. Se pareceram inúteis e desvirtuados para a visão oficial da União Soviética, hoje constituem obras do mais alto grau de interesse cinematográfico, que estimulam novos desdobramentos sensíveis, ainda que por muito tempo inertes no gelo que encarcera a arte em determinados momentos da história.

Verão (2018), de Kirill Serebrennikov

Nada disso aconteceu

Maria Eduarda Gambogi

Cedendo às tendências da vida e aos pedidos da alma, começo esse texto, cuja proposta original era a dedicação a um certo filme, para falar, também e principalmente, sobre um outro que me toca mais fundo (ou cutuca, incomodando). O próprio desvio é inspirado pelos dois filmes em questão, vistos em uma mesma semana: Verão (2018), de Kirill Serebrennikov, e A Mãe e a Puta (1973), de Jean Eustache.

Unidas pela defesa da vagabundagem (de diversas formas), as personagens corajosas dessas narrativas díspares desafiam o que se espera delas, movendo-se apenas pelo que as move de fato, seja o motivo nobre ou torpe. Os vagabundos, triângulos amorosos, alcoolismo e as amizades que preenchem as longas horas das duas histórias configuram, entretanto, projetos praticamente e particularmente opostos.

Comecemos, então, pelo assunto oficial. Os esforços investidos em Verão parecem, desde a escolha publicitária do nome, se voltar para a construção de uma espécie de moldura para a narrativa, que se sobrepõe a ela. Uma aura de magia técnica encobre cada elemento do filme, dos movimentos de câmera perfeitos até o truque hollywoodiano do cigarro onipresente em bocas bonitas, passando pela mudança de tratamentos na imagem, números musicais, trilhas dramáticas, etc.

Sinto essas escolhas estilísticas como “aura” justamente porque elas se desenvolvem à parte, desvinculadas e pairando sobre a narrativa (que nunca deixa de se colocar como corpo).  A disjunção entre a história e o filtro colocado sobre ela se repete na aparição do fantástico na narrativa. A vontade de separação entre o normal e o “surreal” é tão explícita que chega a se materializar na frase “Nada Disso Aconteceu”, dita pela personagem que aparece apenas para observar a diegese nos momentos de grandes aventuras e números musicais, marcando-os como sonhos impossíveis. Ainda que possam ilustrar uma espécie de potência da juventude sufocada pela repressão soviética, tais episódios fazem questão de dar vazão a ela de uma forma segura e controlada. As fantasias frenéticas não só são colocadas em um universo oposto ao naturalismo que envolve a vida das personagens, como operam enquanto pequenas explosões que ofuscam o edulcorante que deixa a narrativa palatável, recatada e fofa para todo os tipos de público, apagando, com o “sonho”, as operações que constroem a “normalidade”.

Se a vida de Viktor Tsoi, Mike e Natasha Naumenko, ainda que dentro do universo dos astros de rock, transcorre quase tranquilamente, com pequenos obstáculos e alegrias, ela é engrandecida, decorada e perfumada por um buquê de intervenções espetaculares. A mistura de artifícios explícitos e disfarçados envolve, então, o corpo fílmico em uma fragrância indie e artística, “de festival”. Leve e fresca, ela parece anunciada nas primeiras cenas que, à maneira de uma propaganda de perfume, nos vendem o lifestyle dos rockstars que arrasam no palco e curtem a vida loucamente. À beira de um lindo lago (do amor) corpos-livres-pelados-bebem-fumam-dançam-cantam, capturados e soltos pelos cortes rápidos de uma câmera dançante e publicitária, que nos deixa a desejar.

A dinâmica anunciada pelo prólogo torna-se um padrão para toda a narrativa. Em meio à nuvem que o ronda, (e parece, de fato, se materializar na fumaça que envolve várias cenas), o corpo fílmico, a carne, se anuncia e some, como que para se manter enquanto espectro e, através da brevidade, preservar a sua beleza. Sem tempo para conhecer seus poros e complexidades (apesar da longuíssima metragem) somos deixados apenas com indícios de acontecimentos, de personalidades, de relações, de conflitos. Para garantir que o olhar não se desvie ou perverta a maneira como estas imagens fabricadas devem ser vistas, os espaços vazios – tanto as lacunas narrativas como os “respiros” em que processamos o que vemos – são preenchidos pela aura carregada com o imaginário – mercadológico – de um (grande) nome, de uma imagem, de uma era.

Em meio à onipresença saturada de signos tão rasos e literais (sobre a juventude, principalmente) como pseudo-filmagens em Super-8 e  rabiscos lúdicos (raios, guitarras, corações) que ilustram as letras dos hits americanos, risadas soltas e inexplicáveis, momentos poéticos e singelos se perdem na narrativa. Através de uma linguagem descolada, propagandística e confiante de sua eficiência, imagens preguiçosas são vendidas como épicas e grandiosas, e todo o investimento artístico se dedica à nossa compra da ideia, a ser paga com a liberdade de nosso olhar.

A Mãe e a Puta, apesar de ter sido, assim como Verão, um hit do Festival de Cannes (e da história do cinema), me parece se construir, ao contrário, em torno do desmascaramento dos signos e, principalmente, do fedor. Esse fedor vem de dentro, escapa pelo hálito das personagens e pelas rachaduras das lindas edificações do universo edulcorado em art deco¹ pela qual a juventude parisiense transita, um cosmo que, assim como o dos rockstars, já habita o imaginário popular como um lugar mais bonito do que a realidade. Lá, os bon vivants trepam, bebem, flanam pela cidade bela e viva. Em um país livre, são livres sexualmente, culturalmente e sempre têm dinheiro para alimentar a indústria dos cafés e bares.

Alexandre (Jean-Pierre Leaud) vive um relacionamento aberto com Marie (Bernadette Lafont) – a Mãe –, que também o abriga e o sustenta financeiramente. Ele conhece Veronika (Françoise LeBrun) – a Puta –, uma enfermeira que divide as suas ocupações entre o trabalho e o sexo. Em uma progressão sem glamour, que ecoa a marcha torta e lenta da vida fora das telas, um relacionamento se inicia.

Diferentemente do inocente amor de Verão, não há espaço para o romance e, nem mesmo para o encantamento platônico do espectador em A Mãe e a Puta. O filme se constrói a partir da observação intensiva e impiedosa das personagens e seu amor ébrio, suado e hospitalar que nasce, complicado, da simples convivência entre os que têm tesão, tempo e disposição para testemunhar a existência e compartilhar o mundo – as impressões sobre, a beira do rio – junto a um outro.

Enquanto Verão nos dá apenas indícios das relações que o atravessam, elas protagonizam o longo longa de Eustache, que se dedica a captar contradições e complexidades, golpeando, justamente, o imaginário romântico que envolve e simplifica as interações conjugais. Desinteressadas em serem ídolos ou exemplos, as personagens vão se revelando carnais e carnívoras, e é desta maneira que se relacionam entre si e o ambiente que as cerca.

Em planos médios quase invariáveis, as janelas fixas que seguem as personagens parecem se abrir para a tensão imprevisível que o mundo real impõe a cada momento da filmagem. Os planos são dotados de uma vida particular e o corpo que geram muda constantemente, formando uma ponte com o mundo real e desencantado através dos ruídos diferentes que habitam cada cena, pelos olhares que se encontram rapidamente com a câmera, pelas luzes que variam. Ao invés da “qualidade impecável” de Verão, baseada na homogeneidade de estilo e no acúmulo de alegorias que ratifica um ponto de vista totalizante (sobre uma história que cobre mais de dez anos, diga-se de passagem), o tempo generoso e obstinado de A Mãe e a Puta se destina a mostrar a pluralidade e as vísceras das relações amorosas em sua liquidez, em um vômito sincero que nenhuma fragrância apaixonante consegue disfarçar, e ao qual me agarro romanticamente, em um mundo inebriado por perfumes enjoativos.

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¹Ou “art decocô”, estilo arquitetônico conceituado por um querido amigo.

Roma (2018), de Alfonso Cuarón

A memória (re)constituída

 Filipe Schettini

 

“De uma só vez, o tempo faz passar o presente e conserva em si o passado.”

Gilles Deleuze

Dentre as mais diversas funções que o cinema pode ter, uma das mais recorrentes é a de evocar e embalsamar a memória. Neste sentido, o filósofo e teórico de cinema Gilles Deleuze elaborou dois conceitos particularmente importantes para o estudo da sétima arte: o de imagem-tempo e imagem-cristal. O cinema é comumente caracterizado como “imagem em movimento” e, levando em consideração teorias de que o tempo está subordinado ao movimento, no cinema, a imagem dependeria deste para ter sua duração. Mas, segundo Deleuze, o movimento é que está subordinado ao tempo e, na arte cinematográfica, a imagem e o tempo são indissociáveis, criando a imagem-tempo, tanto na elaboração da mise-en-scène quanto na autotemporalização dos planos. Em consequência, a imagem-cristal seria um produto da anterior, com uma reflexão do tempo dentro da própria duração da obra, em uma relação direta do passado e presente no tempo fílmico e em seu conteúdo.

Utilizando estes conceitos, podemos partir para leituras do impacto que o novo filme de Alfonso Cuarón, Roma (2018), vem causando no público e na crítica, obtendo de ambos aclamação quase que unânime. O filme, que se passa no início da década de 1970, acompanha a rotina de Cléo (Yalitza Aparicio), empregada doméstica de uma família de classe média alta, com a qual possui um bom relacionamento. O lopping rotineiro é alterado quando o patriarca da família abandona a mesma em busca de se aventurar com a amante. Ao mesmo tempo, Cléo descobre estar grávida e acaba sendo rejeitada pelo pai da criança, um homem estranho e, como posteriormente se descobre, perigoso.

Vale salientar que o filme é parcialmente biográfico, representando uma versão ficcionalizada da empregada que cuidou do diretor em sua infância e retratando eventos históricos reais a partir desta perspectiva. O cineasta realiza um grande esforço para recriar o período em que se passa a trama nos mínimos detalhes, através de uma direção de arte impecável. Para constituir a imagem-tempo e imagem-cristal em sua obra, observo que o cineasta mexicano utilizou diversas ferramentas cinematográficas para composição de longos e detalhados planos.

Refletindo as banalidades do cotidiano, de maneira atenciosa, os planos do filme prescindem de adornos, buscando apenas a essência daquele universo particular. A duração deles é subordinada à mise-en-scène, que por sua vez é visivelmente conduzida de acordo com a movimentação da câmera. Consequentemente, o filme vai criando um mosaico de imagens-tempo, com uma duração que “valida” as ações e reações apresentadas. Alcança também uma imagem-cristal, forma pura da imagem-tempo, livre de expectativas do prolongamento. Assim, as imagens do filme evocam a memória e percepção do diretor sobre a figura de Cléo, dos outros personagens e de acontecimentos reais.

A fim de entendermos as escolhas estéticas do filme, será necessário visitar também outro teórico do cinema: André Bazin. Dentre os vários conceitos que elaborou, foquemos na ideia de duração de um plano, e em como a pouca utilização de cortes nas cenas atribuem maior realismo para o cinema, respeitando três unidades básicas: a ação, o tempo e o espaço.

Alfonso Cuarón move sua câmera de maneira fluida em panorâmica horizontal, movimento muito constante em todo o filme. Tal emprego reduz a necessidade do corte. Tomemos uma cena em específico, quando Cléo vai contar para sua patroa, Sra. Sofía (Marina de Tavira), que está grávida. A mulher, que conversava com sua mãe, pede à empregada que traga os filhos para dentro de casa (eles se encontram na varanda). A câmera já compôs o plano no início desta cena e, assim, quando Cléo se movimenta saindo da sala e da casa, o movimento feito pela câmera é a panorâmica horizontal girando no próprio eixo do equipamento. Quando Cléo sai da casa e busca as crianças, a imagem é vista no momento em que a câmera chega ao ponto de vista de dentro da sala – observamos pela janela o que ocorre na varanda. O mesmo movimento continuará no sentido contrário, quando Cléo e as crianças retornam para dentro da casa, com a doméstica ajudando-as a tirar as capas de chuva e as guardando em um suporte. O plano, eventualmente, volta a ser o mesmo no início da sequência. É apenas então que o diálogo da Sra. Sofía com Cléo ocorre (neste momento, inclusive, podemos ver um leve movimento da câmera em direção às duas).

Cuarón respeita as unidades básicas, citadas anteriormente, a fim de atingir o público com a realidade dos momentos, compondo e recompondo planos e utilizando ferramentas da fotografia para potencializar a linguagem do filme. Exemplos como este estão espalhados por toda a obra – inclusive, é notório o uso de lentes grande angulares, que captam maiores proporções do enquadramento, tanto para cenas internas (o que não é muito usual), quanto para externas. Prova disto são as pequenas distorções de proporção que as grande angulares fazem nas bordas dos enquadramentos. Mas, obviamente, tal procedimento não é gratuito, já que nos oferece uma dimensão única do ambiente, o que potencializa mais uma vez a imersão do público.

A distensão do tempo nos planos é uma característica forte na composição da maioria das cenas. Exceções disso ocorrem quando a montagem trabalha para ajudar na elaboração dos detalhes. Um exemplo está na cena em que o patriarca da família, Sr. Antonio (Fernando Grediaga), aparece pela primeira vez, entrando na casa com seu precioso carro. Como a garagem é pequena para o veículo, a manobra é minuciosa. Temos um momento atípico no filme, quando os planos têm duração rápida, mostrando a mão do Sr. Antônio com cigarro e manuseando o volante, as rodas, a garagem, a família na expectativa de sua chegada, Cléo segurando o cachorro. As ações do personagem estacionando o carro são cuidadosas, devido ao seu aparente carinho pelo veículo, com a montagem chegando a ser cirúrgica.

Tratando agora da atenção que o diretor dá aos detalhes em Roma, muito vem sendo dito acerca de como o filme é um exercício de observação. Ora, creio que a obra se configura mais como um exercício de composição pelos detalhes. Os personagens transitam e determinam o tempo dos planos, mas realizam tais movimentos dentro de uma mise-en-scène que segue o movimento da câmera. Não acredito que isto se configure como observar, mas, sim, como compor. É visível o rigor de Cuarón ao representar detalhes dos ambientes – os objetos históricos e a reconstituição da Cidade do México no início da década de 1970. A partir de escolhas estéticas da fotografia, possibilita ao espectador assimilar cada textura captada pela câmera, por conta da distensão do tempo nos planos.

Apesar de todo o protagonismo de Cléo, é necessário colocar em perspectiva que toda história é contada pela visão do diretor, seja em como acompanhou os fatos que aconteceram ou na ficcionalização dos mesmos. Assim, o desenrolar da história foca em seu objetivo com os personagens: aumentar os vínculos afetivos entre eles. Diversas análises apontam para uma comparação direta com outro filme que trata da relação da empregada doméstica com a família para qual ela trabalha, Que Horas Ela Volta? (2015) de Anna Muylaert. Mas, diferentemente do filme brasileiro, Roma não busca questionar o lugar da empregada no ambiente familiar, e sim, reforçar os laços de modo conciliador.

Na verdade, todo o filme de Cuarón é bastante neutro em diversas questões, incluindo as relacionadas à diferença social, que, apesar de evidenciada em momentos pontuais do filme, como na cena de ano novo que mostra a festa dos “patrões” e a dos “empregados”, não são aprofundadas ou são suavizadas. Sinto falta, como espectador, de maior aprofundamento justamente nestas diferenças e injustiças sociais, que definem também o papel da protagonista na sociedade mexicana. Uma cena que gostaria de ter visto, por exemplo, seria uma visita da Cléo à sua mãe, mesmo após os eventos que não a permitiam fazer isto.

Uma cena que foge desta neutralidade é a do ataque aos manifestantes, que de fato aconteceu e ficou lembrado como o Massacre de Corpus Christi, no qual é exposta a violência e brutalidade do evento. Na cena em questão, o cineasta utiliza os mesmos movimentos de câmera e variações de foco que realizou em todo filme (que normalmente passam uma sensação de quietude), mas aqui os movimentos fluidos contrastam com as imagens de ações bárbaras e violentas. É comum em cenas deste tipo ser feito o uso de “câmera na mão” acompanhando a ação, ou planos fixos com enquadramentos mais fechados. Esta escolha técnica, no filme em questão, funciona pelo contraste citado, potencializando o desespero sentido pelo espectador (que até este ponto do filme está acostumado com as constantes movimentações fluidas da câmera).

Em um apanhado geral, Alfonso Cuarón realiza um filme com fotografia, direção de arte e atuações impressionantes, que trabalham questões afetivas dentro de um contexto histórico e evoca, assim, a memória de maneira intimista e pessoal, sem ousar trabalhar de modo profundo questões sociais. A obra é uma bela carta de amor à uma pessoa especial para o diretor, e ainda assim realiza um trabalho de composição que utiliza de linguagens cinematográficas para criar um mosaico afetivo.