Sete Curtas-Metragens (1958-1984)

Um olhar de viajante

Douglas König de Oliveira

São poucos os cineastas que mantém o interesse pelas metragens menores durante toda a carreira. Depois da oportunidade do primeiro longa, os curtas-metragens, que serviram como treinamento ou esboço para uma obra mais extensa, deixam de ter a importância de quando o cineasta viabilizava ideias, estabelecia seu estilo e esboçava temas que serão recorrentes em sua filmografia, através dessas vigorosas e joviais miniaturas.

Agnès Varda é uma das marcantes exceções a essa regra, tendo sua produção mesclado as mais variadas durações e gêneros, sempre com a marca de sua poética em todos os formatos, desde os curtas-metragens do início da carreira até a aproximação da vídeo-arte de sua fase derradeira. A coletânea Sete Curtas Metragens (1958-1984) apresenta um panorama dessa produção, com obras tão diversas na forma quanto tendo também características e temas em comum.  

A Ópera Mouffe (1958) é o seu segundo trabalho para cinema. Baseia-se em trechos episódicos, cada um com um subtítulo, nos quais se mesclam o registro documental de tipos humanos (principalmente rostos, a maioria exóticos e de uma aparência particular) com um enredo de romance, em que os modelos aparecem em vários trechos nus. Seu parceiro nas imagens é o fotografo Sacha Vierny, que se celebrizaria em trabalhos posteriores de Alain Resnais, já tendo, nesse ponto, participado do clássico documentário Noite e Neblina (1956). O grupo formado por Varda, Resnais, Chabrol e Marker formou uma espécie de antessala artística do que seria conhecida como a Nova Onda do Cinema Francês (Nouvelle Vague), para introduzir cineastas que alcançariam maior evidencia a partir do reconhecimento do movimento. Godard, Truffaut e Rohmer, vindos principalmente do meio da crítica cinematográfica, notadamente da lendária revista Cahiers du Cinéma, alcançaram renome internacional poucos anos depois, ou mesmo concomitantemente (o caso de Resnais) à estreia dessa geração anterior nos longas-metragens.  O estilo de Varda em A Ópera Mouffe é mais assemelhado à descontração e informalidade do estilo típico da Nouvelle Vague do que do cinema francês pouco anterior, na mesma década de 1950, notadamente o formalismo extremo de Bresson e Tati, e a herança lúgubre do realismo poético francês, na década de 1930.

Em Saudação aos Cubanos (1962-63) Varda tece um retrato idílico de Cuba na primeira década da revolução socialista liderada por Fidel Castro. Mostra uma ilha repleta de nuances culturais, e também estruturas econômicas e estatais que sustentam o país depois da emancipação da influência do vizinho capitalista Estados Unidos. Também se concentra bastante nas vozes artísticas (literárias, das artes plásticas e do cinema) que dão identidade ao país sob o novo regime. Traça um panorama dos povos que compõem o tecido humano de Cuba, suas etnias, religiões, músicas, seu trajeto até chegar a compor esse complexo e, até então, harmonioso conjunto. Detém-se pouco na figura de Fidel, destacando apenas brevemente a história da resistência que se instalou em Sierra Maestra até a eclosão da ação revolucionária e a deposição do general Fulgêncio Batista, então presidente do país. Também apenas cita a peculiaridade do espirito falastrão do líder Fidel, com seus famosos discursos que poderiam durar horas.

O filme, após um início ainda situado na França (no qual podemos ver Alain Resnais, entre outros, filmando um grupo de músicos cubanos), se desloca para o território cubano, onde a visita da cineasta é toda reproduzida através de fotografias, animadas através de um engenhoso processo de montagem em função da sonorização, representando a dinâmica do movimento real por intermédio da sucessão rítmica desses fragmentos. A técnica de conduzir um enredo através de fotografias se assemelha muito ao utilizado por Chis Marker no curta sci-fi La Jetée, também de 1962. Mas o temperamento menos austero de Varda dá ao seu filme um aspecto muito vivo e divertido, não impedindo de, através de fotografias, registrar habilmente a dinâmica de danças típicas e rituais, utilizando bastante as recorrências de planos e de sequências para estabelecer tais cenas de forma bastante satisfatória cinematicamente.

Essa relação pacifica e afetuosa com a mídia anterior ao cinema, no caso a fotografia, também é o mote do curta Ulisses (1982), em que Varda estabelece relações de pessoas e lugares com uma antiga composição fotográfica sua. O filme se concentra na busca pelas reminiscências da convivência de pessoas retratadas em suas fotos, curiosamente, habitantes, juntos com a jovem Varda (ainda não tornada cineasta) da rua Daguerre, em Paris. Louis Daguerre foi um dos pioneiros da fotografia, em meados do século XIX, com o também francês Nicéphore Niépce. A concepção mecânica do registro da luz, a Fotografia, seria explorada por Le Prince e os Irmãos Lumière, entre outros, para estabelecer o registro da imagem em movimento, o Cinema. A jornada que a diretora propõe aos personagens engloba memórias e impressões atualizadas sobre as imagens que serviram de modelos humanos, numa reflexão que se assemelha muito a proposta por Roland Barthes em seu ensaio “A Câmara Clara” (1980). Para além da letra fria dos signos (semiologista que era), Barthes fazia uma ontologia baseada em vivências, ao modo do existencialismo de Camus. Também as incursões nos elementos da memória, típicos do cinema de Alain Resnais, tornam o curta um labirinto de impressões, ora fugidias, ora vitais para caracterizar os personagens e sua história, no enredo proposto pela cineasta.

Esse viés ensaístico também perpassa os curtas Respostas de Mulheres ( 1975) e As Supostas Cariátides (1984). O primeiro é quase uma resposta explícita aos dilemas colocados pelo universo masculino às mulheres, elaborada por um conjunto de atrizes bastante heterogêneo quanto idade e estilo. Tal conjunto desfila os argumentos roteirizados pela diretora olhando diretamente para a câmera, estando suas integrantes sozinhas ou em conjunto, por vezes para um grupo estereotipado de homens que permanece silente. Trata-se de um curta-metragem francamente feminista, feito quando esta abordagem ainda era rara no cinema, assim como (ainda hoje) a representatividade das mulheres no meio de produção cinematográfico.

O segundo filme fala sobre as estátuas neoclássicas das fachadas de Paris, tendo a diretora estabelecido um contraponto com as figuras masculinas também presentes nessas fachadas, mas geralmente em situações bem menos diversificadas que as femininas. A riqueza das diferentes Cariátides que ornam as colunas dos edifícios parisienses, com suas faces sugestivas de uma linguagem oculta nos traços de pedra, e a nudez incompleta de algumas delas rivalizam com as estátuas masculinas, geralmente em situação de sustentação de pesadas estruturas, transparecendo em suas faces o sofrimento e peso bastante diverso da altivez que caracteriza as criações femininas. Ainda que de modo cifrado, trata-se de uma abordagem também de valores, que remete ao fortalecimento da identidade feminina.

Black Panthers (1968) reporta as ações, nos Estados Unidos, do Partido dos Panteras Negras, uma organização socialista revolucionária da cidade de Oakland. O curta é organizado em torno dos protestos pela liberação de um dos seus líderes, Huey Newton, cuja acusação de um ataque armado a um policial branco, a organização refuta. Aqui o estilo é muito diferente do filme sobre os revolucionários cubanos, não havendo espaço para recursos cinematográficos que distraiam do conteúdo quase jornalístico. Os temas são tratados através de entrevistas com os líderes do movimento e do registro das manifestações culturais e políticas do grupo.  A força das imagens e do discurso conduz o curta, não havendo espaço para um excesso de artifícios visuais, também sendo utilizada uma narração mínima para contextualização. A cineasta parece sacrificar grande parte de seu estilo em prol da relevância da causa defendida pelos Panteras Negras, de igualdade racial e justiça social. No ano seguinte, o cineasta italiano Michelangelo Antonioni fez seu “filme americano”, Zabriskie Point (1969), que conta também com a participação de Kathleen Cleaver, esposa de um dos líderes do partido, Eldridge Cleaver. No documentário de Varda, ela tem uma participação importante, retratando o papel da mulher na organização, assim como contestando padrões de beleza e comportamento a que os negros eram submetidos historicamente. No filme de Antonioni, ela interpreta uma personagem baseada nela mesma, que lidera uma reunião estudantil. Ao contrário de Varda, Antonioni não se abstém de sua poética para retratar a convulsão social dos Estados Unidos à época, apostando num drama alegórico e escapista, e abordando de maneira demasiadamente indireta as manifestações políticas e culturais da contracultura estadunidense. No curta de Varda, os temas parecem mais importantes que a forma, e talvez daí seu despojamento, condizente com a responsabilidade de transmitir a mensagem de forma clara e sem ambiguidades (ou com poucas delas) ao público europeu.

Em Tio Yanco (1967) a diretora documenta o encontro com seu tio, o pintor Jean Varda, que reside numa comunidade alternativa de casas flutuantes na baia de São Francisco, mais especificamente na cidade de Sausalito, Califórnia. Sua casa é ponto de encontro de jovens hippies e artistas, sediando manifestações artísticas e de troca de experiências, capitaneadas pela figura paternal e agregadora de Jean, nascido na Grécia, mas naturalizado norte-americano. O que mais chama a atenção no curta, a princípio, é o uso esfuziante das cores. Elas compõem cada cena, vindas das roupas, pinturas, da decoração extravagante da casa ou de artifícios utilizados em cena pela diretora, como molduras e transparências. Outro aspecto forte é a informalidade e a transgressão de algum possível decoro diegético do filme. Há uma infinidade de intervenções, desde planos rápidos, desconectados da continuidade das sequencias, até a repetição de tomadas e a interferência explícita da diretora enquanto também personagem do filme. Varda faz um retrato bastante vivo e afetuoso de seu “parente distante”, usando toda gama de recursos expressivos, desde cortes abruptos, belíssimos planos gerais das paisagens da vila aquática, até o recurso da entrevista e de letreiros com inscrições, assim como os de A Ópera Mouffe e Respostas de Mulheres.

Essa coleção de curtas-metragens mostra um universo bastante rico em temas, mas também uma constância no interesse da diretora em retratar atitudes de resistência e emancipação. Apresentam uma invulgar competência na utilização dos recursos cinematográficos, que podemos verificar também nos seus seminais filmes pré-Nouvelle Vague e nas obras da maturidade, assim como na sua missão de preservação da obra de seu marido e parceiro artístico, Jacques Demy.  As obras de Agnès Varda trazem à superfície uma arte ao mesmo tempo humana e de livre e intensa criação, distinguindo seu olhar por detrás de uma câmera de cinema.

O Amor dos Leões (1969)

Em busca do sol

Thomas Lopes Whyte

O Amor dos Leões (1969) é fruto das inquietações políticas que varreram o mundo ao final dos anos 60. As manifestações francesas de 1968, a ofensiva Tet lançada por norte-vietnamitas e vietcongues, o fechamento do regime no Brasil e as lutas norte-americanas por igualdade e direitos civis são alguns dos movimentos que absorveram parte cada vez maior da atenção de artistas. Com a popularização da televisão e o desenvolvimento, no início da década, de tecnologias mais portáteis para a tomada de imagens, foi possível aproximar universos tão distintos como um arrozal bombardeado nos arredores de Saigon e uma casa de classe média no interior do Nebraska. Os conflitos, em pleno período de desenvolvimento da linguagem publicitária televisiva, tornam-se também espetáculos imersivos, organizadores de imaginários que agem cada vez mais como catalisadores de neuroses.

É nesse ambiente de saturação das imagens e da multiplicação de signos e suas dimensões políticas que Varda se lança às investigações de um território tão fascinante quanto a Los Angeles de 1969. Ao contrário dos europeus exilados da escola de Frankfurt, que adotaram uma postura de repulsa em relação a cidade, ela dedica um olhar mais afetuoso ao seu objeto. Vale lembrar que, enquanto Godard participava dos movimentos franceses em maio do ano anterior, a diretora preferiu voar aos Estados Unidos para documentar os protestos dos Panteras Negras, de caráter notadamente mais feminista e revolucionário. Contraditoriamente, se os Estados Unidos, com seu macartismo embolorado, poderiam parecer vulgares aos olhos de uma Europa que mal acabara de perder suas principais colônias no Sul, eram também um país que deixava os manifestantes franceses, com seus terninhos bem cortados, parecendo um bando de aristocratas saídos de um clube de caça.

A partir de um intrincado dispositivo de filmagem, Varda tenta sucessivas aproximações em direção ao coração desse torvelinho cultural. Enquanto focaliza um trio de artistas praticantes do amor livre, a diretora ambiciona criar um retrato – bastante solto, é verdade – das distensões políticas norte-americanas. Por um lado, há o esfacelamento das utopias, e por outro, um universo suave e quase nostálgico, irradiado a partir das interações do trio principal de personagens. Às sequências jornalísticas saídas da televisão e do jornal, contrapõem-se os jovens, em longos planos entre lençóis, banhados por luzes suaves, filtradas pela cortina. E como agente capaz de organizar essas duas vertentes, Shirley Clarke é evocada e tomada aqui quase como um avatar de Agnes, apesar de sua aparição no próprio filme.

Mas qual é a Hollywood habitada por esses Leões que se amam? Ainda que não aponte o caminho que a nova Hollywood iria traçar de 69 em diante, o filme faz coro aos que anunciavam a década de 1960 como o sepultamento da Hollywood dos anos dourados. O período entre os assassinatos de John e Robert Kennedy (evento abordado no filme) prefigura o momento de transição radical, que até então não havia sido acompanhado pelo cinema, ao menos em sua versão industrial norte-americana. Mas se o filme de Agnes permite uma certa inclinação ao porvir, ele ainda se faz sobre uma forma museográfica, apoiando-se reiteradas vezes sobre evocações suscitadas pela memorabília hollywoodiana.

Essa versão ambígua do éden de Hollywood, no entanto, é construída sobre a inversão operada por uma estética vardariana aplicada ao Kitsch californiano. É como se um tipo de véu fosse jogado sobre as palmeiras de plástico e piscinas ameboides, transformando a própria natureza da matéria descartável e sintética em lírica. O mundo pop de cores saturadas e do apelo publicitário é mergulhado, por vezes, em uma luz “mole”, um tipo de éter em meio a qual o movimento deixa seus rastros, prolongando as ações como afirmação da imprecisão do fazer artístico. Varda opera, a seu modo, uma alquimia capaz de criar um terceiro elemento a partir da síntese entre quadros de artistas tão contrastantes como Degas e Ed Ruscha.

Thom Andersen, em sua obra-prima Los Angeles Plays Itself (2003), nos lembra que L.A., mais do que qualquer outro aglomerado urbano, é o resultado do encontro de uma dupla história. Sendo a cidade que mais vezes representou a si mesma no cinema, sua síntese repousa em uma torrente confusa, formada por ficção e realidade, com alguma vantagem talvez para a primeira vertente. Ao lado da história antimítica e de formação social, escrita nos anos 30 por intelectuais ligados aos movimentos sindicais, e das guerras pelo acesso à terra narradas pelo Los Angeles Times e Chinatown (1974), pululam histórias tão fascinantes quanto contraditórias, forjadas a partir de uma mistura de literatura Noir e distopias militaristas. Não é por acaso, que desse caldo derivem fenômenos culturais tão distintos quanto a cientologia e o Gangsta Rap do NWA.

Nesse sentido, talvez o gesto observacional empreendido por Varda tenha sido incapaz de se desvencilhar da camada superficial das miragens projetadas pela própria Hollywood. As ideias imprecisas sobre fama, arte e política, em um contexto tão fractal quanto o da costa Leste, acabam funcionando como uma armadilha, ao induzir a atenção e os olhares em direção ao brilho de suas estrelas, que apesar de fascinantes, muitas vezes repetem o já desgastado arquétipo do artista pequeno-burguês blasé. O gesto abrangente que tenta capturar o ethos da geração Hippie a partir de um registro lírico transforma-se, acidentalmente, em uma cópia dessaturada de seus objetos reais. E, talvez por não assumir totalmente a postura de quem prefere um olhar mais generalista, o resultado dessa “representação total” acabe sendo menos brilhante do que a própria ilusão do sonho ingênuo californiano apresentada em seu estado puro.

Se o grande sistema de estúdios e seus artistas, ainda sufocados pelo peso de tradições, pouco tinham a dizer sobre o ano de 1969, qual teria sido o resultado de um filme semelhante se ele houvesse sido filmado de fato, nas ruas de L.A.? Em Mur Murs, filme de 1981, a diretora retoma o tema Angelino, mas a partir da exploração de manifestações culturais pontuais. Assim como Brassai, que fotografou os grafittis parisienses durante os anos 30, Varda mapeia os grandes murais espalhados pelas ruas do imenso subúrbio. E é somente a partir dos depoimentos dos próprios artistas que nos é dada a possibilidade de perfurar, parcialmente, a superfície sublinhada por Andersen. Ainda que à primeira vista possa parecer um mero catálogo ou um compêndio de arte urbana, o formato adotado aqui ganha relevo a partir da transformação profunda operada pela película sobre o objeto mural. Sendo as pinturas reflexos indissociáveis das comunidades que as deram origem, é principalmente a partir do binômio som/imagem que nos é permitido acessar suas bases históricas e eliminar o fetichismo que tende a subalternizar as manifestações populares de arte e cultura. Realizados em um período anterior à popularização do hip-hop, esses afrescos modernos revelam parte de uma heráldica urbana complexa e amplamente ignorada até então. Filmado durante a abertura da cidade para as “benesses” do mercado de arte global, Mur Murs é uma pequena joia arqueológica que abre caminhos fecundos para outras interpretações de uma capital historicamente violenta como L.A.. Os barrios da região centro sul, os muros do comércio local e as muretas de Venice Beach, contam uma história artística antiga, de uma longa linhagem que, com alguma dose de imaginação, poderia nos levar aos célebres painéis de David Alfaro Siqueiros.

Mas, talvez, O Amor dos Leões seja menos um retrato sobre uma sociedade específica e mais sobre os atropelos da própria história e a dificuldade de se situar artisticamente em um mundo delirante, no qual os eventos se acumulam em ritmo cada vez mais alucinado. Parte do que vemos na tela é, em certa medida, a “derrota” de Shirley Clark e, por que não, da própria Varda. Perdidas entre solicitações confusas de estúdio e um mundo disforme, elas acabam fazendo um filme que fala mais sobre o processo de filmar do que, propriamente, daquilo que poderia se descobrir. Tomado dessa forma, e ao contrário de seus outros filmes californianos, o longa é um retrato da apreensão da autora, diante de um mundo cada vez mais refratário às simplificações das grandes narrativas.

Em determinado momento do longa, Shirley tenta, sem sucesso, encontrar caminhos que a permitam realizar suas tomadas, mas, diante da confusão vaga e irreversível, só lhe resta desabar sobre o sofá e aceitar a impossibilidade de uma tradução. Extrair de Hollywood e Los Angeles um objeto coerente e controlável é tarefa impossível, e talvez seja por isso, e não pelo acaso, que a cidade tenha se transformado no cenário que cineastas mais gostam de destruir; o grande epicentro dos filmes catástrofe.

Ó, Sol (1967), de Med Hondo

As formas do magma

Rubens Fabricio Anzolin

O que não é Deus, é estado do demônio…

(João Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”)

Eis-me prostrado a vossos peses

 que sendo tantos todo plural é pouco.

 Deglutindo gratamente vossas fezes

 vai-se tornando são quem era louco.

 Nem precisa cabeça

 pois a boca nasce diretamente do pescoço

 e em vosso esplendor de auriquilate

 faz sol o que era osso.

(Carlos Drummond de Andrade, “As Impurezas do Branco”)

Obra diaspórica da literatura universal, o romance brasileiro “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, desabrocha-se de forma seminal. O travessão: –Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja”. Este gesto sutil – que repercute e ecoa com impacto severo em todo o causo – é digno apenas dos mais astutos narradores da arte. Não pelo gesto em si, mas por seu significado: “Grande Sertão: Veredas” é uma obra falada do início ao fim, possui uma longa narração, uma interlocução de mais de 400 páginas. Joia bruta que concentra a força do relato nesse espaço amplo de descobertas: a conversa. O diálogo. 

Daí não só a importância desse leitmotiv que vai navegar por toda a extensa bibliografia de Guimarães Rosa e de outro narradores como Simões Lopes Neto, Graciliano Ramos, Gabriel García Márquez, Abbas Kiarostami, Spike Lee etc…, mas também o ponto crucial de partida para se tentar abordar a ardência e a brutalidade enigmática de Ó, Sol (1967), barulhenta estreia na direção do ex-ator mauritano expatriado Med Hondo.

É importante afirmar que Ó, Sol, apesar de trazer o diálogo como elemento diegético dentro da obra, se propõe muito mais à articulação de diferentes sinestesias, ao invés de lançar mão de uma oralidade direta. Abarcando um experimentalismo radical (uma mistura de influências esparsas entre Eisenstein, Godard e Vertov), o que parece estar em questão no filme, acima de tudo, é o corpo. Afinal, de onde mais seria possível emanar a narração e o diálogo senão da voz, do gesto ou do olhar? Qual a estrutura base de onde parte a comunicação senão o corpo – esse inventário variado de possibilidades e aberturas.

Sim, o corpo é artefato central na narrativa de Ó, Sol, e Hondo compreende a força e a ambiguidade de seus movimentos desde sua cartela inicial, em que uma figura supostamente monárquica é cercada por dois outros seres invasores, não se sabe se para um afago ou apedrejo. Essa reconstituição da oralidade através do corpo talvez seja um meio razoável de traçar um paralelo na estrutura absolutamente fractal e incerta da obra especialmente se observarmos que todos os planos/passagens/fragmentos delimitam-se à dominação de espaços/consciências/culturas. Dentro desse jogo de significados, a matéria (imóvel, dura, concentrada de magma) se corrói e se transforma, à luz das interações e intenções humanas (a força do bem e do mal, a religião, o trabalho).

Das confluências da matéria

Dessa forma, existem muitos planos centrais em Ó, Sol que podem demarcar essa diegese. Poucos deles, apesar de tudo, talvez sejam tão exemplares quanto duas passagens que envolvem a presença material de notas de dinheiro.

Uma primeira, após uma gag cômica absolutamente funesta, em que um general branco levanta um soldado derrotado do chão apenas esfregando-lhe no rosto uma nota de dinheiro. A segunda, no perfilar de um sonho-pesadelo, das visões mais tenebrosas que o cinema haveria presenciado até então, na qual o personagem principal (Robert Liensol) se vê em meio a uma guerra, absorta de fogo, explosões e destroços, tirando notas e mais notas de dinheiro de seu corpo e atirando-as à terra – quase como quem expele algo ruim do corpo, um inimigo, uma toxina. Uma briga constante contra o processo de deterioração.

O dinheiro, nesse caso – motivo que promove a diáspora africana, a “invasão negra” em Paris – é entendido desde o início como espécie maligna, elemento atrativo para o mal, quase como uma arma (o gesto do homem branco, afinal, de tirar uma nota do casado na passagem inicial, assemelha-se muito ao movimento de quem saca uma arma). Tal significação reitera a ideia não-narrativa de Hondo de que existem elementos que, quando sobrepostos ao corpo, ao indivíduo, impõem barreiras não só à conversa, mas também a um processo de miscigenação. Muito além de um maniqueísmo – apesar de que, sim, é absolutamente possível interpretar o homem branco como uma figura diabólica em Ó, Sol(aquele que detém o mal e sabe como operá-lo) -, as figuras da matéria no filme são partículas que ressignificam a ação dos sujeitos. Há uma crença muito especial na potência do magma dos objetos, herança particular da origem africana de Med Hondo, que vê o indivíduo não só como portador da partícula da oralidade, como também portador da possibilidade de inibi-la ou mesmo anulá-la.

Isso tudo pode acabar passando desapercebido dentro da abordagem mais brutal e insípida do filme, mas se abre frente a uma herança quase bressoniana de filmar os objetos para dar a eles um significado maior – especialmente quando os mesmos exercem tanta influência sobre os corpos e espaços. O que seria necessariamente material realoca-se junto do elemento humano, abstraindo muitas vezes sua capacidade de diálogo (o que talvez explique as máscaras e fantoches da sala de aula estarem tão soturnamente presentes nos momentos de catolização/colonização didática perante o negro africano). O entendimento dessa condição pelo personagem principal só reitera um desejo do cineasta resistir e conscientizar-se.

Quase como um alerta, um apontamento. Precisamos disto? Fere a nós, machuca? O que é o dinheiro, o material, o capital? Moeda de troca, falta de interpretação, produtor de preconceito expandido?

Reside também nessa operação de resistência o valor de importância das sequências narrativas em que Robert Lierson caminha por Paris e vê diversos africanos na França, enquanto um narrador debate que, afinal de contas, o homem negro postulava, criava e alimentava a economia europeia tanto quanto os brancos, não só realçando sua capacidade e entendimento, mas abolindo do corpo negro a necessidade material de conter aquilo que o fere. Um desejo de voltar-se ao campo de batalha diário, agora não mais para ser ludibriado por generais, mas para seguir resistindo a eles, os expurgando.

Não à toa, apesar da catarse final, a última cartela Ó, Sol é, mais que um aviso, um alerta: continua. A consciência imanente de que o processo de desabrochamento de uma catarse e um domínio material é algo constante, corrente, contemporâneo – um fluxo narrativo. Um diálogo interminável. Daí também a semelhança com o “Grande Sertão: Veredas”, o símbolo do infinito no final da narrativa – algo que indica que, sim, uma conversa nunca acaba. Alguém responde, alguém pergunta. A oralidade não pertence aos espaços, mas aos indivíduos que os habitam. Sempre mais ou menos influenciados pela profusão pictórica da matéria em seus corpos. Daquilo que vestimos, representamos ou detemos.

Toda a matéria em Ó, Sol dita uma estrutura de concessão ou não à conversa. A esse sistema de incorporação de raciocínios, ideias e distinções. O que também permanece claro tanto nos momentos em que o protagonista do filme sai à procura de emprego como quando se reúne em uma noite boêmia para resistir aos cantos de seus ritos naturais. A força material imana, repercute e rege sobre ele um poder impulsionador do diálogo – algo como o rio que vai abrindo as veredas da comunicação: dando os caminhos, apresentando as arestas, revelando Deus… o Diabo.

A Voz Suprema do Blues (2020), de George C. Wolfe

A música presa por grilhões

Douglas König de Oliveira

A transposição de uma peça teatral para o formato cinematográfico, por vezes, coloca alguns dilemas para quem se propõe a avaliar seus méritos: em que sentido as ferramentas do cinema potencializam o que foi concebido para o palco? Como preservar a singularidade da atuação em um espaço teatral, em contraste com o registro mecânico e incorruptível do filme? O texto crítico deve ater-se às qualidades compatíveis entre as duas expressões, seus aspectos compartilhados, como a exposição do texto e as atuações, ou analisar o sucesso da transliteração de uma arte em outra, baseada apenas na análise da dinâmica do cinema? O crítico de cinema teria necessidade de ser também um crítico teatral, para então emitir pareceres sobre o estilo do autor da peça, sobre a relevância de sua dramaturgia? Ou poderia se refugiar numa instância formal, tratando unicamente dos meios de sua competência?

A Voz Suprema do Blues (2020), baseado na peça de teatro “Ma Rainey’s Black Bottom”, do dramaturgo norte-americano August Wilson, tem poucas qualidades cinematográficas notáveis, além de ser um veículo razoável para que o texto e as atuações brilhem. Mas se o objetivo do filme for provavelmente este, o equívoco é de quem pretende impor objetivos e ambições alheias ao projeto. Se imaginamos o tema e o texto com sua potência melhor aplicados na materialidade da atuação teatral, ao invés da construção virtual do espaço fílmico, deveríamos procurar, em uma primeira oportunidade, um ciclo das obras de August Wilson, para apreciar a legítima dimensão desses elementos que o filme toma emprestado, mas dos quais não parece desejar, em nenhum momento, se desvincular. Como sabemos da escassez desse tipo de oferta cultural, e do alcance e facilidade dos serviços de streaming, podemos considerar essa adaptação uma justa divulgação da obra do dramaturgo, repleta de senso histórico e social. Mas isso não abona a falta de ousadia que permeia o filme, tornando um contexto cultural tão incisivo em algo por demais diluído para a audiência.

Seguimos os passos da cantora Ma Rainey, considerada uma das pioneiras do blues, e sua peregrinação pelo norte dos Estados Unidos, mais especificamente Chicago, para a gravação de um álbum por uma grande gravadora. Apesar do contexto musical, os números são poucos, mas demonstram bem a maestria da cantora e da banda no seu ambiente de expressão artística. Os embates da personagem de Viola Davis com seu produtor são um tanto caricatos e pitorescos, não ilustrando bem as tensões raciais e comerciais que permeiam o ambiente do estúdio durante as sessões de gravação. A interação dos músicos na sua ausência consegue uma dinâmica muito mais intensa e diversificada, indo da comédia ao drama pesado, até a desilusão e a tragédia. Ali se destaca o personagem de Chadwick Boseman, um trompetista tão genioso quanto a cantora principal, e que tenta a todo custo obter sua independência dentro do processo industrial de comercialização de música negra para o público branco, que era o objetivo dessa sessão.

Os dois personagens são os que mais rivalizam desde as sequências iniciais do filme, até concluírem, independentemente, no desfecho, que são vítimas do mesmo processo de exploração, semelhante à escravidão de seus antepassados recentes no sul dos Estados Unidos. O produtor e o proprietário da gravadora, ambos brancos, não fazem questão de integrá-los diretamente ao mercado musical, mas antes, utilizam o que lhe é proveitoso para obtenção de lucro. De volta à sua relativa marginalidade em relação ao mundo da produção industrial de entretenimento, a cantora de blues e o trompetista veem sua música, que é a crônica de sofrimentos ancestrais, mas ainda latentes, tornar-se produto de círculos que os tomam apenas como criações exóticas. O abismo dessa situação, de certa forma, degenera o espírito que a arte edifica. E nem todos são fortes o bastante para ultrapassarem inteiros o processo.

O tratamento dado a este enredo é bastante modesto, sendo utilizadas poucas cenas que não remetam ao ambiente do palco de teatro. Mas alguns silêncios e perplexidades dos personagens preservam, provavelmente, a força da concepção original, apesar de o cinema conseguir amenizar este impacto por escolhas mais convencionais no uso da linguagem. O que talvez não fosse desejável, visto a relevância e a força dos dramas ali representados.

Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), de Céline Sciamma

A sensibilidade do ato de olhar

Lauren Mattiazzi Dilli

Desde os primórdios do fenômeno de captação de imagens em movimento, há um grande interesse em pensar as relações do cinema com outras linguagens. Entre esses estudos, está o lugar que o cinema e a pintura ocupam em uma história da representação, portanto, do visível. Tanto a pintura quanto o cinema apresentam uma forte ligação com o ato de olhar, não somente enquanto apreensão técnica de luz, cor, formas e enquadramentos, mas também enquanto percepção do que representar e como realizar este procedimento.

Tais reflexões vieram à tona ao assistir Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), escrito e dirigido pela francesa Céline Sciamma e premiado com o Melhor Roteiro e com a Queer Palm no Festival de Cannes. O longa em questão apresenta Marianne (Noémie Merlant), uma jovem pintora que foi designada a fazer um retrato de Heloïse (Adèle Haenel), sem que ela saiba. A trama se passa na França, em meados do século XVIII, e a pintura tem o propósito de efetivar o casamento arranjado entre a fidalga francesa e seu pretendente milanês. Por ser um matrimônio indesejado por Heloïse, a jovem já havia recusado anteriormente posar para um pintor, o que justifica o sigiloso trabalho de Marianne a pedido da mãe da moça.

Entretanto, a relação entre cinema e pintura nesta obra vai além de uma questão narrativa: o modo como os planos são construídos, tanto nos cenários do interior do casarão onde habita a jovem fidalga quanto nos ambientes externos naturais, e o uso das cores vibrantes nos vestidos das personagens dão uma pictorialidade às imagens. Ademais, o modo como a câmera as acompanha, evidenciando seus olhares atentos, evoca o pensamento acerca da observação. Marianne é tida como uma acompanhante de caminhadas para Heloïse, e nesses passeios à luz do dia por uma paisagem formada de rochedos e a imensidão do mar, a pintora registra em sua memória os traços observados na moça para depois passá-los à tela durante a noite, à luz de velas. Enquanto uma olha para o horizonte sem fim, a outra decora atentamente os detalhes do rosto ao seu lado. E quando os olhares se encontram, uma potente conexão nasce.

Além disso, algumas ideias de André Bazin dialogam muito com essa reflexão, sobre como a pintura é centrípeta e como a tela de cinema é centrífuga, na medida em que a moldura de uma pintura conduz o olhar para o centro do quadro, e o enquadramento no cinema sugere o que está ao redor da cena. Por mais hipnotizante que seja prender-se nos olhos daquelas personagens e nas pinceladas de tinta sobre o retrato, os olhares para fora de quadro também nos fazem pensar no extracampo: seja ao encarar alguém que está além do enquadramento, seja ao se deparar com a imensidão do oceano e as imagens que essa visão provoca. Para além da tautologia de ver somente o céu e o mar, Heloïse admira o que ainda desconhece, tudo aquilo que se encontra além do horizonte e que somente poderá conhecer caso aceite o casamento. Com isso, questiona essa liberdade cuja única possibilidade de ser obtida é através do aprisionamento. Isso porque, o que vemos diante nos olha dentro, abre um vazio que nos concerne e constitui.

Sobre esse paradoxo do ato de ver, o filósofo Georges Didi-Huberman analisa a relação entre “o que vemos, o que nos olha” e o quão impactante é essa assimilação. Após uma crescente aproximação entre Marianne e Heloïse, e a revelação de que a suposta acompanhante de caminhadas estava ali com outros propósitos, a jovem fidalga concorda em posar para Marianne. Em certo momento, a pintora afirma que detestaria estar no lugar da outra, pela desconfortável posição de ser observada aos mínimos detalhes. Por sua vez, a modelo prontamente contesta: “Nós estamos no mesmo lugar. Exatamente no mesmo lugar.” A artista se aproxima de sua modelo, e o choque fica evidente em sua feição ao perceber que, na verdade, há uma dupla tensão na troca mútua de olhares. “Se você olha para mim, para quem eu olho?”

É importante destacar também o olhar da roteirista e diretora Céline Sciamma, que, entre tantas cineastas, também busca uma maior representatividade feminina no cinema. Desde Líros D’água (2007), Tomboy (2011) e Garotas (2014), Céline tem construído uma obra com a presença de questões relacionadas a gênero, sexualidade e autodescoberta de meninas e mulheres. Em Retrato de uma Jovem em Chamas, essas temáticas também se fazem presentes, em uma narrativa carregada de amor em suas múltiplas formas: o romântico, o da amizade, do cuidado e da sororidade.

O encontro entre Marianne e Heloïse é marcado por profundas transformações em ambas, onde as relações se estreitam a cada dia e a descoberta de uma paixão acontece. Há uma sensibilidade no retrato dessas mulheres, em um relacionamento construído pouco a pouco, num processo fluido e paciente do apaixonar-se. Em entrevistas, Céline comenta que as lésbicas têm sido sacrificadas no cinema, muitas vezes representadas com um olhar masculino e estereotipado, e, então, acabou se dedicando à própria política que uma história de amor pode carregar.

 O convívio das moças também é marcado por uma terceira mulher: a jovem criada Sophie (Luàna Bajrami). Na ausência da mãe em casa, devido a uma viagem, a conexão entre o trio se fortalece nos momentos vividos juntas, podendo citar o preparo das refeições, das atividades como o bordado e a leitura, e o dia em que Sophie conta que está grávida, embora não desejasse. Essa decisão em nenhum momento foi questionada, muito pelo contrário. A reação foi de empatia. Há uma consciência entre as personagens de que a mulher deve ter autonomia sobre o seu próprio corpo, e de que se casar e ter filhos não se trata de uma obrigação feminina. Ainda mais quando não há presença e nem responsabilidade paterna.

Interessante também é perceber que uma ausência masculina permeia o longa em questão, mas mesmo assim existe uma relação de poder onipresente. Os poucos homens que aparecem em cena não ganham destaque, como os barqueiros que levam Marianne para o casarão no litoral onde a maior parte do filme se passa. Além disso, sequer demonstram reação quando a tela da artista cai na água, ao passo que ela mesma se atira ao mar para resgatar seu instrumento de trabalho. Porém, a influência masculina é inescapável: o casamento com o pretendente milanês é a única opção destinada a Heloïse, assim como Marianne utiliza o nome de seu pai para apresentar suas pinturas nas galerias, pois a arte feminina não tinha tanto prestígio e reconhecimento quanto à realizada por homens.

O modo como o filme lida com a questão do aborto também é muito emblemática. Após tentativas fracassadas, com técnicas que envolvem o uso de ervas e exercícios físicos intensos, as personagens recorrem a uma senhora do vilarejo, provavelmente uma parteira, já que na época era muito comum esse tipo de procedimento. A cena em que Sophie aborta transparece dor física e emocional. E não há como ter total noção da complexidade dessa situação se ela não faz parte da sua vivência, por isso nem há uma tentativa de entender os motivos que levaram a esse desfecho. Mas podemos imaginar o quão doloroso é chegar a essa decisão, e isso deveria bastar. Uma experiência tão profunda quanto essa necessitava de uma forma de expressão, e foi Heloïse quem teve a iniciativa de retratá-la em pintura. A força desse registro carrega uma pauta tão delicada que permanece sendo discutida até o contexto atual. Reforça-se que os poucos avanços que se tem hoje com relação ao assunto são frutos de um árduo trabalho de amadurecimento ao longo dos séculos.

Outro momento muito marcante no longa é quando várias mulheres se reúnem à noite ao redor de uma grande fogueira. A construção da mise-en-scène pode remeter aos episódios de queima de mulheres, muito realizados durante a perseguição religiosa intitulada de “caça às bruxas” na Idade Média. Contudo, o que presenciamos aqui é uma celebração do sagrado feminino. Ver mulheres de diferentes idades juntas, cantando melodias que tocam a alma, carrega uma resistência tão grande que essa acaba sendo uma imagem difícil de esquecer, tanto para nós, espectadores, quanto para Marianne. Observar Heloïse do outro lado da fogueira, com as chamas dançando e criando uma ilusão de ótica sob seu corpo, como se a própria moça estivesse incendiando (e que realmente está em chamas, pois a barra de seu vestido acidentalmente é consumido pelo fogo), é uma das visões que mais ficaram marcadas na memória da pintora. E a partir dessa lembrança, Marianne registrou o momento em uma pintura nomeada com o título do filme, e que é responsável pelo flashback que narra todas essas reminiscências.

Após a pintura encomendada ser finalizada, cujo prazo era o retorno de viagem da mãe, cada uma segue sua vida, levando consigo recordações de um amor que outrora queimou como fogo. Algumas vezes, seus caminhos se cruzaram, mas somente a partir do ponto de vista de Marianne, cujo olhar atento foi capaz de percebê-la entre as multidões. O plano final corresponde à última vez em que a artista avista Heloïse. Os olhares não precisam se encontrar para sentir a conexão que ainda permanece viva, mesmo com a distância. De maneira sensível e lírica, é surpreendente o modo como Céline lida com suas personagens e questões, unindo várias linguagens artísticas e dedicando um olhar apurado para pautas de grande relevância, simultaneamente à realização de uma bela obra de arte.

Undine (2020), de Christian Petzold

Afoga-me, Undine

Odorico Leal

A Enciclopédia Britânica explica: Undine — Undina ou Ondina, em português — é uma criatura mitológica europeia, “ninfa da água que se torna humana quando se apaixona por um homem, fadada a morrer, caso ele lhe seja infiel.” Há outras versões do mito de Undine, que remonta às Nereidas, sacerdotisas de Poseidon, mas, para o novo filme de Christian Petzold, Undine (2020), é a explicação da Britânica que convém ter em mente, pois contém o nó trágico que sustenta o arco do filme e amarra seus detalhes.

Os detalhes estão por ali, acenando para o mito: no café onde parte da ação se passa, ao lado da mesa onde se senta Undine e o amado infiel, na abertura do filme, se vê uma estátua esverdeada de Poseidon. O amado confessa: há outra mulher. Undine pouco fala e, quando fala, é para anunciar o que a ela parece quase lógico: terá de cometer suicídio. De fora do mito, estamos lidando com o pior pesadelo dos rompimentos amorosos — o momento do desenlace, do desenlaçar-se, do soltar à deriva um amor gasto ou perdido, que, recusando o desatamento, anuncia que se afoga. De dentro do mito, estamos no terreno do destino inapelável: o amante foi infiel, e Undine está fadada a morrer. Segue-se um enredo tipicamente trágico: a heroína prossegue em erro, esquecida da morte que deve ao destino: afoga-se num novo amor, vive uma breve plenitude que, no fim, só garante que seu destino se cumpra.

De saída, é preciso fazer uma distinção pontual: como em O Farol (2019), de Robert Eggers, ou Midsommar, de Ari Aster, em Undine, o espectador hesita entre uma representação realista, assombrada pela ameaça de irrupção do sobrenatural pagão. No Ocidente cristão — essa joça que habitamos —, o sobrenatural pagão está condenado ao suspense, jamais alcançando o terror propriamente dito, por uma razão muito simples: o terror depende de uma disposição à crença por parte do espectador. O terror envolve a possessão da psique da audiência, que é convocada à presença do Mal. O terror, portanto, é epifânico. Nenhum espectador ocidental está inclinado a crer em sereias, rituais solares de fertilidade ou ninfas apaixonadas. Daí que qualquer filme que trafique nesse ambiente mitológico — Os Pássaros, por exemplo — terá de se contentar com o suspense. Eggers percebe isso muito bem: apesar do visual caprichado, o Farol é mero suspense psicológico — bem mequetrefe, aliás —, com toques de horror, ao contrário de A Bruxa (2016), que, inserido na tradição demônica cristã, alcança de fato o terror. Aster também percebe o mesmo problema: Midsommar até tenta acenar para o terror sugerindo alguma filiação ao demonismo, batizando seu protagonista masculino de “Christian” (o que insinuaria uma leitura na qual os rituais pagãos da primavera são instâncias demoníacas, logo, uma faceta do Mal). Mas é pouco: apesar dos horrores, o filme é uma fantasia que não chega ao terror, ao contrário de Hereditário (2018), do mesmo diretor, que, como A Bruxa, fincado no demonismo cristão, acerta em cheio o coração do terror. Com isso não estou dizendo que, no Ocidente, o terror necessite invariavelmente da temática cristã: filmes de fantasmas ou entes malignos como Freddie Krueger são legítimos filmes de terror, e o são justamente porque, no Ocidente, tanto quanto acreditamos no diabo, acreditamos em fantasmas. A situação é esta: apesar de todos os esforços, o diabo e os fantasmas seguem aterrorizando a psique ocidental — sereias, rituais de fertilidade e nereidas, não. Talvez, em mais algumas décadas, dobrando nossos valentes esforços, consigamos esvaziar a força epifânica do demonismo, quando, então, teremos transformado obras-primas do terror, como O Bebê de Rosemary (1968)e O Exorcista (1973), em meros suspenses fantasiosos. Eu pergunto: vale a pena?

Voltando ao assunto: não quero dizer que Undine seja um filme na mesma linha de O Farol ou Midsommar. Estes dois buscam francamente o aterrorizante, convocam o horror; Undine, não. Undine é um suspense discreto. Mas que recorre também — e com ele tece suas teias de perplexidades — ao sobrenatural pagão. Como, nesse caso, o sobrenatural pagão é dos mais fantasiosos, para não degenerar de vez nas atrocidades de uma A Dama da Água (2006), dependemos inteiramente da cinematografia e da profundidade da articulação do drama humano, que emprestará dignidade ao mito. Emprestar dignidade ao mito implica que ele já não sirva apenas de instrumento do suspense, tornando-se antes uma moldura arquetipal que marca aquele drama humano como emblemático. E, nesse ponto, o filme de Petzold — diretor alemão que até aqui eu não conhecia e que aparentemente é cultuado por um filme chamado Transit — se sai muito bem. Pois o filme consegue ferir, com pouquíssimo palavrório, um tema que, ainda que eterno, tem uma inflexão muito peculiar na contemporaneidade: a infidelidade.

A cena de rompimento que abre o filme é um primor de síntese, graças também ao delineamento dos personagens: no amado infiel, está caracterizado à perfeição o Narciso sem escrúpulos, constantemente correndo as mãos pelo cabelo, como quem se penteia, mas também como quem se afaga; quando Undine se apressa a conferir a redação da mensagem no celular, Narciso se impacienta: o que está escrito não importa. Nada importa, exceto a direção do meu desejo. Com a mesma displicência com que parte, ele volta: destilando charme, semeando vento, tomando liberdades com a fragilidade alheia. Terá seu castigo.

O filme chega a ser didático nesse delineamento de seus personagens masculinos: ao Narciso emocionalmente promíscuo e vaidoso, opõe o mergulhador másculo, quase maniacamente comprometido com a hombridade e, consequentemente, com os protocolos do amor. Não por acaso é um escafandrista: aquele que pode submergir profundamente nas águas, isto é, no elemento que é próprio à Undine. É ele que pede que Udine recite sua apresentação, que conte do castelo destruído, que retorna depois de muitas peripécias da História — uma cena belíssima, com o olhar do escafandrista sempre cravados em Udine, cobrindo-se com o edredom, como um desabrigado — o amor também é uma falta de abrigo, é quando já não somos mais nosso próprio abrigo —, pressentindo que ela lhe escapará, pois, como termina a apresentação de Udine, “não há progresso”: o destino terá a última palavra.

Esta é a contribuição de Petzold ao mito: ao arco original do amado infiel e da morte de Undine, acrescenta um amor fora de lugar. Quando o escafandrista, no fecho do filme, desce às águas, é como se dissesse: “Quero participar do teu mito, quero também, Undine, morrer”. Mas o mito é de Undine. Que lhe devolve o boneco, a efígie, isto é, a própria vida do mergulhador.

O suspense romântico de Undine, portanto, amarra satisfatoriamente o mito ao drama humano — faz o que pode para dignificar o mito, isto é, para dar estofo para que o mito cumpra a sua função de enquadramento trágico emblemático. Em resumo: apesar das pontas soltas (sobretudo no aproveitamento um tanto aleatório da história das duas Berlins), faz o que pode com a premissa estapafúrdia que tem nas mãos e, no limite, alcança uma pequena vitória. Nada do tipo acontece nos horrores sensacionalistas de Midsommar e O Farol, meros suspenses americanóides fantasiosos, com toques de horror que chocam, mas não aterrorizam, nem comovem ninguém.

Saint Maud (2020), de Rose Glass

Predestinação e martírio

Daniel Murta

Em Saint Maud (2020), a cineasta estreante Rose Glass constrói uma tragédia que deambula pelos temas da loucura e do sagrado e profano, sem fixar-se em um só ponto até o último quadro. Todavia, a história e o plot centrados na personagem-título são claramente delineados, com momentos distintos em que ela encontra uma vocação, cai em desgraça e renasce como santa. Nesses entremeios, a alma de Maud é impiedosamente dilacerada. 

Desde que Friedkin estabeleceu os parâmetros no assunto possessão demoníaca, há quase meio século, o cinema de terror parece ter adquirido grande interesse em lidar com a corrupção da alma humana por via de entidades malignas. A pureza profanada de Regan em O Exorcista (1973) inspira direta e indiretamente toda sorte de cineastas, dos quais Glass, sem dúvidas, faz parte.

Logo nos primeiros minutos de seu debute, Glass enquadra Maud subindo uma escadaria estreita, localizada em um beco entre dois prédios, aceno visível a imagem iconográfica de O Exorcista. Não estranha que Saint Maud tenha sido prontamente comparado ao outro em algum grau. A comparação mais possível entre os dois, no entanto, reside na natureza claramente antitética das duas obras. 

Em sua introdução narrada, Maud discute a providência divina que rege sua vida de recém-convertida. A moça virtuosa assume um trabalho como cuidadora de uma ex-dançarina famosa aposentada, que atrofia em função de um câncer e vive numa espécie de síndrome de Norma Desmond, exilada em sua mansão nos arredores de uma cidade que parece tão moribunda quanto ela mesma. Maud logo entende que sua missão ali ultrapassa os cuidados paliativos, entrando no campo da salvação espiritual. Impondo-se como a redentora predestinada, Maud termina por prejudicar sua relação com Amanda e ser demitida. Nesse período de queda, ela é tomada por descrença e se entrega ao pecado por um breve período.

Se, tradicionalmente, no horror, a influência do sobrenatural desvirtua e destrói, aqui ocorre justamente o contrário. Maud é, essencialmente, pecaminosa e cheia de falhas. Ao contrário do que a heterocromia de seus olhos indica, ela não é especial de modo algum. Em seu delírio, entregar-se ao divino é a salvação para redimir-se do passado que oculta um erro trágico, para justificar a razão de ser no presente e resguardar-se no pós-vida. É em Deus que Maud encontra prazer verdadeiro, com seus orgasmos espirituais, enquanto o contato carnal mostra-se ato sujo e cruel. 

Essa aproximação inusitada que vira do avesso um tema tão básico é o grande sinal de originalidade que existe em Saint Maud. Para além disso, Glass reproduz um cacoete comum a muitos cineastas estreantes, que é constantemente ecoar suas referências cinematográficas dentro do filme. Notam-se, por exemplo, contornos de Persona (1966), na relação de erotismo velado entre as mulheres, ou de Psicose (1960), nos passeios voyeurísticos de Maud pelo casarão no alto da colina. Sem precisar voltar tanto no passado, há uma clara homenagem ao terror mais importante da década, A Bruxa (2015).

Em termos de direção e fotografia, a predileção de Glass pelo cinema clássico surge especialmente no aspecto retrô que permeia o filme, tanto pelas locações quanto pela ausência quase total de efeitos computadorizados que descolam o filme de qualquer senso de temporalidade. Essa distanciação se dá tanto no plot, com o foco em personagens lidando com suas relações tête-à-tête, quanto na mise-en-scène que prioriza ora a decoração dos ambientes retrô, ora espaços vazios. Tal característica já era perceptível nos curtas realizados pela cineasta e aponta para uma tendência dentro de sua obra, que há de se confirmar nos seus próximos trabalhos.

A premiada direção de fotografia corrobora com a construção estética dessa história como algo perdido no tempo. Os planos abertos, que mais parecem pinturas paisagísticas, criam um ambiente hostil e gélido para Maud, anunciando a única saída possível para ela. 

A minúcia artística na composição de planos cheios de angulações, cores harmoniosas e formas geométricas parece dialogar bem com uma tendência do cinema indie atual, sem que, necessariamente, acrescente algo ao filme, salvo exceções como alguns planos belíssimos que dão a Maud uma silhueta divina. Esse aspecto, assim como diversos outros dessa personagem, ficam subexplorados dentro da duração curtíssima, que mal chega aos oitenta minutos.

Saint Maud, mais um lançamento da A24, segue a cartilha imposta pela produtora/distribuidora que tem dominado parte do cenário de horror atual e que, frequentemente, agrada mais à crítica que ao público. Parte desse movimento que tentaram, frustradamente, batizar como pós-horror, preza pela economia em diversos sentidos, do orçamentário ao estético. Apesar de possuir uma beleza estonteante, Saint Maud é minimalista até demais, optando por amarrar o enredo numa curta duração, sacrificando assim diversos potenciais dramáticos e imagéticos que poderiam tê-lo elevado ao patamar dos filmes de Aster e Eggers, figuras bem próximas a Rose Glass. 

Parasita (2019), de Bong Joon-ho

Atemporalidade do sobreviver

Lauren Mattiazzi Dilli

Pensar as relações de poder através do cinema é algo já explorado por muitos cineastas, em diversos contextos históricos e geopolíticos, e de múltiplas formas estéticas. No entanto, isso permanece tão intrínseco ao fazer artístico justamente por haver uma necessidade recorrente de questionar o modo de vida imposto em uma sociedade capitalista. Entre esses cineastas, um nome que tem ganhado muito destaque é Bong Joon-Ho, diretor e roteirista do premiado Parasita (2019), cujo trabalho é conhecido pela mescla de gêneros cinematográficos na construção de suas obras.

O longa-metragem em questão nos apresenta a uma família que vive na periferia de Seul, capital da Coreia do Sul. A família Kim, formada por pai, mãe e um casal de filhos, luta por sua sobrevivência quase que de um modo popularmente conhecido como “jeitinho brasileiro”, roubando wi-fi dos vizinhos, trabalhando com montagem de caixas de pizza e entregando o serviço pela metade. O lar da família fica abaixo do nível da rua, com o sistema de esgoto prejudicado, pouca comida e infestação de insetos pela casa.  Em meio às condições precárias, uma oportunidade surge na vida dos Kim: o filho consegue um emprego como professor particular de inglês para a filha da abastada família Park.

A diferença entre a vida dos Kim e dos Park é quase como um abismo intransponível, sem ponte construída para conseguir chegar ao outro lado. Até pode ser possível desfrutar minimamente do luxo que o lado de lá proporciona, mas o alcance máximo possível sem uma ponte é somente a beirada do abismo. Do lado de lá, a casa é bela e gigantesca, projetada por um grande arquiteto, cujo contraste entre suas condições de moradia torna-se um símbolo da desigualdade social entre as duas famílias. Porém, o perspicaz filho da família Kim logo percebe modos de fazer com que o restante de sua parentada possa ter também o vislumbre do outro lado do abismo.

Em pouco tempo, o plano mirabolante do filho obtêm êxito e os Kim são empregados pela rica família, com a irmã trabalhando como terapeuta de arte do filho abastado, o pai como motorista e a mãe como governanta da casa, todos eles contratados pela ingênua Sra. Park. O plano tão bem articulado até então, formado por uma rede de mentiras, acabou por despedir a Sra. Moon-kwang, antiga governanta da casa que esconde seu marido no porão da mansão há 4 anos, devido a complicações com agiotas. E é esse o elemento surpresa que acaba por condenar toda estratégia construída pelos Kim.

Seria fácil apontar que o parasita em questão é formado pela pobre família que faz de tudo para se infiltrar na casa rica, mas isso é uma questão de perspectiva. Para a biologia, o parasita é um ser vivo que retira do outro, o hospedeiro, os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento. Os Kim podem até estar dependendo dos Park para sobreviver, mas quem realmente suga toda a energia da classe trabalhadora é quem detém o capital. Algo interessante que a biologia também nos ensina é que na natureza existem relações ecológicas entre os seres vivos, que podem ser harmônicas ou desarmônicas. De acordo com esses conceitos, a vida em sociedade seria uma relação harmônica, pois os indivíduos da mesma espécie cooperam entre si, mas, ironicamente, esse conceito não parece se aplicar completamente aos seres humanos, se formos considerar a desarmonia da hierarquia da qual fazemos parte.

É válido lembrar que estamos falando de um filme que se passa na Coreia do Sul, tido como um dos países mais desenvolvidos do mundo. Se a realidade da família Kim é também um retrato da Coreia, o que falar de um país de Terceiro Mundo como o Brasil? Mesmo sendo países muito distantes entre si, não só enquanto distância física, mas também econômica e cultural, o que Parasita nos mostra é que há possíveis semelhanças entre os sistemas que somos submetidos. Esse sistema é o que Foucault vai chamar de “dispositivo”, que diz respeito a qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de orientar, determinar e controlar os gestos, condutas, opiniões e discursos dos seres viventes. É através da reflexão acerca desse dispositivo que podemos perceber o quanto a desigualdade social, o desemprego, a má distribuição de renda e a exploração da classe trabalhadora são pontos em comum da organização de mundo que temos hoje, tanto para um país oriental, quanto para um latino-americano. As diferenças ainda permanecem, mas as semelhanças também têm muito a nos dizer.

E já que estamos falando de Brasil, impossível não lembrar do trecho da música que bombou no final dos anos 90, da banda de axé As Meninas: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária. Onde o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre. E o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe, e o de baixo desce”. Essa verticalidade expressada na música é trabalhada de modo visual em Parasita, pela Direção de Arte e Fotografia que exploram os altos e baixos na geografia da cidade. Enquanto a casa da família Kim é quase subterrânea, é preciso subir muitas ladeiras até chegar à mansão dos Park.

Em uma das cenas mais marcantes do filme, os personagens voltam para sua casa na periferia durante uma chuva torrencial, e essa verticalidade simbólica na imagem também é muito explorada. Pai e filhos correm ensopados, descendo as escadarias da cidade até chegarem em sua casa totalmente alagada, quase submersa. A família tinha achado que a ponte sobre o abismo estava construída, mas passagens tão grandes desse tipo não são tão fáceis de sedimentar. Essa falsa esperança de estar ascendendo socialmente faz com que a descida ao fundo do poço seja mais desoladora, por ser um momento de tomada de consciência dos personagens sobre o lugar que realmente lhes pertencem.

Outro cenário descoberto através dessa verticalidade é o porão da mansão, que abriga o marido da Sra. Moon-kwang. As cenas nesse ambiente escondido da casa, cujos donos não fazem ideia de sua existência, são de disputa entre as famílias menos favorecidas. Por mais que esse tenha sido um lugar de refúgio, agora ele não está mais a salvo, e a luta que se estabelece acaba sendo em torno de qual família conseguirá subir e qual irá descer e permanecer no plano de baixo. Ou seja, a relação ecológica da vida em sociedade dos seres humanos se prova não somente como desarmônica entre lados opostos de uma hierarquia, mas também como pode ser desarmônica entre indivíduos que estão no mesmo nível das relações de poder. Afinal de contas, essa é uma luta pela sobrevivência.

Enquanto tudo isso acontece embaixo do nariz da família Park, com exceção do filho caçula, ninguém é capaz de perceber o que tem acontecido ao seu redor. A bolha egoísta em que a milionária família vive, que acredita que a forte chuva foi “uma verdadeira benção” para limpar a poluição da cidade, não pensando duas vezes antes de reclamar do cheiro de seus funcionários, é a bolha que será estourada brutalmente no massacre que tem o jardim da mansão como palco. Aqui, a tomada de consciência foi pelo sangue, pela morte, pelo irreversível.

No Brasil, um dos grandes cineastas que tivemos, muito conhecido pelo modo como realizava sua crítica social através do cinema (e também uma das inspirações de Bong Joon-Ho, segundo entrevistas) é Glauber Rocha. Em seu manifesto do Cinema Novo, texto intitulado como “Eztetyka da Fome”(1965), Glauber diz que “a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”. É pelo ato de matar que os personagens de Parasita encontraram a brecha do sistema, a falha do dispositivo, que é a ameaça à vida das pessoas amadas. Apesar das consequências, a violência se torna o clamor mais desesperado por humanidade.

Em outro texto, com o título de “Eztetyka do Sonho” (1971), Glauber escreve que “o sonho é o único direito que não se pode proibir”. Talvez essa seja a essência da cena final do filme de Bong Joon-Ho, com a esperança do filho Kim em dar a volta por cima e poder salvar seu pai do aprisionamento. Depois de tanto sofrimento e miséria, ainda é preciso ter forças para sonhar, pois isso é o que resta a fazer. A desolação desse final bate forte no espectador porque a vida, de um jeito ou de outro, vai nos ensinando a dificuldade que alguns sonhos têm para se concretizar, e algumas vezes nos faz sentir também a sensação de não poder realizá-los. Contudo, é preciso continuar acreditando. Essa é a nossa resistência.

Parasita é um filme que provavelmente poderá ser assistido no futuro e ainda será muito atual, seja na Coreia, no Brasil, ou por onde a atual organização capitalista de mundo permanecer. Essa contemporaneidade é o que faz com que as obras de Glauber Rocha, por exemplo, também possam ser discutidas para se pensar o tempo presente, mesmo tendo sidas realizadas em um contexto histórico diferente. Para Giorgio Agamben, “o contemporâneo que se pode entrever na temporalidade do presente é sempre retorno que não se cessa de se repetir” (“O que é o contemporâneo?”, 2006). A compreensão dessa ciclicidade da história e a capacidade anacrônica de manter uma certa distância com tempo presente, ao mesmo tempo em que se mantém uma conexão singular com ele, pode dar à luz a obras incrivelmente atemporais.

Nós (2019), de Jordan Peele

Através do espelho

Letícia Badan

E seu sussurro característico tornou-se o verdadeiro eco do meu

(Edgar Allan Poe, “William Wilson”)

Em 2017, Jordan Peele lançou seu primeiro longa-metragem, Corra!. A obra, que lhe rendeu o Oscar de melhor roteiro original, possuía claras referências à história do cinema e da literatura fantástica. Como uma espécie de atualização de “Mulheres Perfeitas”, o filme sondava o tema da transmutação corpórea da consciência. E, assim como os maridos da idílica Connecticut do romance de Ira Levin buscavam substituir suas desobedientes esposas por cópias robóticas submissas, Corra! reformulava a trama de ficção científica, trazendo negros como os desejados receptáculos corporais da consciência de idosos brancos da classe média alta norte-americana. Peele tem origem no universo da comédia, mas a energia que atravessa suas produções de suspense e horror mostra a verdadeira mão de autor do cineasta.

Em março de 2019, estreou no cinema seu segundo longa-metragem, Nós. O prólogo ambientado em 1986 desenvolve-se sob a perspectiva de uma garotinha, Adelaide, e sua visita ao parque de diversões Santa Cruz Beach Boardwalk, na noite de seu aniversário. Seu pai conquista, em uma das barracas de jogos, um prêmio escolhido pela primogênita. Uma camiseta de Thriller, de Michael Jackson, que a mãe prontamente censura. A atmosfera noturna, iluminada somente pelas luzes coloridas das atrações infantis, condensa o caráter inquietante da cena. Afastando-se do pai, entretido pelo jogo Wack-a-Mole, Adelaide caminha solitária em direção à praia, observando, com olhar atento, os demais à sua volta. Encontra uma casa de espelhos, de onde pisca um letreiro néon com os dizeres: Encontre Você Mesmo.

No interior do Shaman’s Vision Quest, uma voz masculina (a do próprio diretor) ecoa trechos do Mito da Criação Hopi, em que Taiowa, o criador, congratulando Sotuknang pela concepção dos nove mundos, demanda-lhe agora a gênese da vida. É ali, na labiríntica floresta de vidro, que Adelaide defronta-se com os diversos reflexos de seu próprio ser. Na busca pela saída, depara-se com uma outra imagem de si própria e observa atônita o desvelar sombrio perante seus olhos. A imagem dissimulada não era mais uma de suas réplicas diante do espelho, mas uma garota em carne e osso, mimese macabra de seu próprio eu. Adelaide desaparece por 15 minutos, retornando com um aparente trauma, que a impossibilita de falar ou agir normalmente, como a filha que seus pais antes conheciam.

Quando nos encontramos novamente com a protagonista, já adulta, retornamos também, com seu marido (Gabe) e os dois filhos (Zora e Jason), para a antiga casa de veraneio dos pais de Adelaide. A proximidade com o local desperta nela uma nova inquietação. Algo obscuro, atado a seu passado, parece ainda lhe exercer uma influência muito grande. E que permaneceu adormecido nos confins daquele estranho palacete de espelhos cravado na areia.

Aos poucos, o mundo que conhece, solar e acolhedor, dá espaço a uma realidade soturna, imersa em sombras e na escuridão. A garota que havia encontrado na casa de espelhos volta agora, ela também com uma família formada, decidida a pleitear seu merecido lugar na superfície. Um a um, os membros da família Wilson confrontam-se com seus algozes, e como naquele jogo com o qual seu pai se divertia, devolvem as toupeiras a seus devidos buracos. Assim, Peele insere o tema do duplo de forma inventiva e calamitosa.

Os acorrentados, como identificam os antagonistas, são doppelgängers, presos a um mundo subterrâneo. Possíveis vestígios de experimentos genéticos do governo estadunidense, outrora utilizados numa tentativa de controle da população, descartados por sua inútil serventia. É assim que Red, a sombra de Adelaide, explica sua existência. O homem foi capaz de clonar o corpo humano, mas incapaz de replicar sua alma. Os duplos estavam fadados então a uma vida acorrentada àqueles da superfície, mas o que imperava nesse mundo de sombras era apenas o ódio, por viverem sem o livre-arbítrio. Enquanto as pessoas alimentavam-se de refeições quentes e saborosas, suas sombras devoravam coelhos vivos. Enquanto as crianças brincavam com jogos divertidos, as demais feriam-se com objetos pontiagudos. As toupeiras, são condenadas a vagar os infinitos túneis sem destino que atravessam os Estados Unidos de ponta a ponta sob a sombra das ações de seus similares.

A família de Red reflete o avesso dos familiares de Adelaide. O marido, Abraham, cuja vista – percebemos por Gabe – é prejudicada pela ausência de óculos, segue a esposa tal como o filho de Terá acolitara cegamente a Deus. Pluto, o filho mais novo reflete a bestialidade infantil, com a face deformada pelo fogo, sempre velada por uma máscara. Umbrae, como seu nome indica, abriga a sombra, com a alma maliciosa e doentia, cuja obscuridade se faz visível nas marcas sob os olhos. São espelhos distorcidos de identidades duplicadas.

O filme, brilhante e duplamente protagonizado por Lupita Nyong’o, se concentra em dois momentos específicos da vida da personagem, entre sua infância e vida adulta. E se, em Corra!, Peele explorava as inquietações subversivas ocultadas pela máscara da normalidade social, em Nós o que se tem é o revelar de um universo macabro em que a identidade e a duplicidade mostram-se como os pilares constituintes do terror.

Red percebe que deve guiar os acorrentados em sua busca pelo fim da servidão involuntária. Concebe um plano de ataque baseado em todos aqueles elementos formadores de sua infância. Veste seus iguais como um exército. Macacão vermelho (semelhante ao que o Rei do Pop usara no videoclipe de Thriller), luva de couro em apenas uma das mãos (que lembram as de Michael Jackson, Freddy Krueger e David Kibner), sandálias de tiras nos pés, parelhas àquelas que usara em sua fatídica ida à praia, e tesouras, necessárias para cortar o vínculo entre acorrentados e libertos. E assim,Hands Across America[1], cuja propaganda havia assistido na televisão, torna-se o modelo salvador de sua classe. Unir os Estados Unidos de costa a costa e quebrar os grilhões da alienação, para enfim a dar luz a uma corrente de visibilidade.

Retomando o início do filme, antes da chegada de Addie e sua família ao parque de diversões de Santa Cruz, Peele apresenta uma cena breve, que remete aos momentos aterrorizantes de seu primeiro filme. É a imagem de um televisor, semelhante àquele responsável pela submersão de Chris no temível sunken place, de Corra!. Sob a perspectiva de Adelaide, cujo reflexo vemos na tela do aparelho, ele exibe todos os grandes ícones edificadores de seu cinema. Aqueles cruciais para a formação de seu universo cinematográfico, bem como os educadores fiéis de sua juvenil protagonista, Adelaide. Tudo está ali, explicitamente demarcado. Os filmes: C.H.U.D., Os Eleitos, O Médico Erótico, Os Goonies confirmam seu repertório cultural e preveem, de forma trágica, o ineludível destino da jovem.

Jordan Peele representa os medos e influenciadores de sua geração. A televisão em tubo, com o reflexo de nossa protagonista centralizado e imóvel, as estantes, recheadas com VHS de grandes clássicos da ficção científica e do universo fantástico da década de 80, as reportagens televisivas, o comercial de Hands Across America, todos solidificam os alicerces culturais do cineasta e de todos aqueles, como ele e sua protagonista, membros da Geração X.

A sequência trouxe à mente uma frase de um grande amigo, que durante uma conversa, já longínqua, afirmou: “As TVs eram nossas babás”. De fato, uma verdade inconteste. A TV educou os jovens da Geração X. E se hoje são outros aparelhos eletrônicos e meios de entretenimento – Youtube e as plataformas de streaming, principalmente – que embalam as crianças e adolescentes do novo milênio, nos anos 80 e 90 essa função era o daquela mídia. A TV e a cultura popular sempre tiveram um papel na formação das gerações que cresceram no período, ou parafraseando os versos de “TV Party”, da banda punk Black Flag, “não temos nada melhor para fazer, que assistir à TV e tomar algumas cervejas”.

São inúmeros os filmes que trazem o terror da alienação televisiva como epicentro dos eventos diabólicos. Videodrome (1983), de David Cronenberg, Demons II – Eles Voltaram (1986), de Lamberto Bava, e Shocker – 1000 volts de terror (1989), de Wes Craven, são exemplos claros da disseminação do mal pelo televisor. De forma semelhante, o mundo de Adelaide se mostra condensado no interior daquele aposento residencial de 1986. As referências que absorve, seu conhecimento de mundo, todos partem da cultura pop de sua época. Os valores familiares e a educação maternal indicam vestígios de um passado permanentemente esquecido.

É evidente que seu modelo de mundo é tão frágil quanto ela, flagelada pela dureza daquele espaço nas sombras. O evento de Hands Across America, que reuniu milhares de celebridades, obteve pouco efeito com sua panfletária mensagem de acabar com a fome na África. A crítica social presente na ação comunitária do governo Reagan indicava que a América devia abrir seus olhos para os desabrigados e famintos.  Aqueles cujo sofrimento, como os sem-teto da Nova York de C.H.U.D, só é digno quando observado pela lente do obturador fotográfico, brilhando anonimamente nas paredes das galerias e museus.

A história de Adelaide e seu encontro com Red remetem ao tema do duplo, o qual encontra um caminho fecundo na cultura. Dentre as tantas abordagens sobre o tópico, uma, em particular, parece trazer semelhanças àquela disposta por Peele em Nós. Foi Edgar Allan Poe quem, em 1839, escreveu uma história de veia similar, “William Wilson”, cujo protagonista homônimo porta para além do sobrenome, semelhanças claras com a heroína dúbia encarnada por Lupita Nyong’o.

Desde a infância, no colégio do reverendo Bransby, William percebia ter relações com um outro estudante. Relações essas que extrapolavam os limites da racionalidade humana. Aos poucos, o garoto, que dividia com ele o mesmo nome e data de nascimento, mostra-se cada vez mais parecido consigo próprio. Transformando seus gestos, o andar, e até a fisionomia aos moldes dos seus. Ao passo que se desenvolve na vida adulta, William encontra persistentemente com seu igual, e sempre uma nova mudança aproximava os dois. Apenas um elemento o distinguia de William Wilson. Sua voz não passava de um sussurro, marcado por uma deformidade gutural. A tentativa de tomar o lugar do protagonista, resolve-se na batalha entre ambos. William ataca fatalmente seu perseguidor, que num sopro final de vida, proclama:

Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu, e para a Esperança! Em mim tu vivias… e, na minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo![i]

Como ele, Red possui o elemento da voz ruidosa. Um traumatismo nas cordas vocais, explicado quando, num flashback da infância, descobrimos que a jovem que encontrara na casa de espelhosestrangula a pequena Addie. A verdadeira garota, cuja história até então acreditávamos acompanhar, é arrastada para os corredores dos acorrentados e abandonada ali, para que sua igual tome ardilosamente o seu lugar. A reviravolta da trama condensa uma série de elementos e referências que explicitam o caráter sempre ambíguo do filme e de seus personagens. Nada reflete um único significado e os aspectos de dualidade se evidenciam sempre na imagem.

Vemos o duplo nas tesouras, unidas por um centro que equilibra as duas metades; nas sombras agigantadas que acompanham os Wilson em sua chegada à praia; na citação bíblica de Jeremias 11:11, reforçadas igualmente nos relógios, na televisão, nas camisetas com o logo de Black Flag. Ou ainda a corrente humana de Hands Across America e o destino que persegue Adelaide até mesmo no adesivo familiar do vidro traseiro do carro.

A todo momento nos são lançadas as pistas de sua real identidade. Mesmo fugindo das correntes mundo de baixo, a protagonista se vê sempre presa a algemas. A cada vítima que assassina, volta às raízes. O aspecto selvagem, caracterizado pelos sons inumamos que balbucia durante os ataques, nos fazem perceber que algo foge da normalidade. E se Red tenta com a tesoura cortar os fios que a unem a Adelaide, esta só conseguirá se soltar usando o elemento constituinte de suas origens, as algemas. Estrangulando, novamente, sua ameaça congênere.

Peele é a nova face de The Twilight Zone, que em 2019 ganhou sua quarta adaptação televisiva. A série original de Rod Serling abordou, em sua primeira temporada, uma trama semelhante, quando, em Mirror Image, fazia Millicent (Vera Miles) duvidar de sua sanidade vendo uma mulher, à sua imagem e semelhança, tomar seu lugar num terminal rodoviário. Ali, sua possível explicação balizava-se na coexistência de planos alternativos de realidade.

A história do cinema fantástico é, portanto, farta na representação dos duplos. Invasion of the Body Snatchers, em suas duas primeiras adaptações para o cinema, caracterizava o medo norte-americano do outro. Em Vampiros de Almas (1956), de Don Siegel, o terror ao comunismo é o que move Miles, em sua alucinada corrida em meio aos carros, proclamando ferozmente “Eles já estão aqui. Você é o próximo!”. Na versão de Phillip Kaufman (1978) o medo, por sua vez, não é externo, mas interior. A quebra dos ideais familiares ganhava força com a Me Generation, conforme fundava-se uma insegurança com o governo Nixon e os escândalos de Watergate vinham à tona. Era essa mesma geração que iria posteriormente, no governo Reagan, retornar aos conformes sociais, cristalizando uma sociedade reacionária.

Peele nos indica que, tal qual Os Invasores de Corpos, os inimigos podem parecer semelhantes a nós.Como Red, que questionada sobre sua identidade, afirma: “nós somos americanos”, e como o título original duplamente elabora, Us abriga também o sentido de U.S (United States). A consciência compartilhada, seja ela por corpos distintos (em Nós) ou no interior de uma única mente (em Corra!), é uma preocupação evidente do cinema de Jordan Peele.

A troca sigilosa de olhares entre Adelaide e seu filho, Jason, ao final do filme, reflete os paradigmas de um mundo em que os limites entre o herói e o vilão não são sempre bem demarcados. Ali, no paralelo dubio da identidade, o outsider encontra seu espaço no mundo. Pouco importa se não conseguem se adequar às normas, se cavam tuneis na praia, ao invés de construir castelos de areia. A normalidade nada mais é que uma máscara. É um grandioso filme, que remarca a tese de que o medo ocupa o reverso do espelho.


[1] Hands Across America foi um projeto do grupo USA for Africa, que em 1985 havia produzido o hit mundialmente conhecido “We Are the World”. O evento ocorreu em 25 de maio de 1986 nos Estados Unidos, reunindo cerca de 6 milhões de pessoas, como o nome sugere, numa corrente humana que pretendia se estender de costa a costa do país.


[i] POE, Edgar Allan. “William Wilson” IN Contos de terror, de mistério e de morte. Tradução: Oscar Mendes. 5ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 119

O Rei de Staten Island (2020), de Judd Apatow

Um rei em risco

por Gabriel Martins

Quando passeamos pela carreira de Judd Apatow como roteirista, diretor e produtor, percebemos um rastro de mediações que transformaram, definitivamente, a comédia americana para melhor. Por trás de clássicos como Superbad: É Hoje (2007), Missão Madrinha de Casamento (2011), O Âncora (2004) e O Virgem de 40 anos (2005), Apatow é um cineasta com excelente faro para um talento bem específico de atores autores, artistas com uma facilidade imensa para improviso e, frequentemente, escritores de projetos ligados a suas próprias personas ou trajetórias. Além disso, Apatow entendeu o seu cinema como uma oportunidade para unir dois elementos fundamentais presentes em praticamente qualquer ato de stand up comedy, o seu ponto de origem: o poder da palavra e a inadequação de um sujeito em busca de aceitação (própria e de outrem).

O Rei de Staten Island (2020) é um projeto especulativo que, nas palavras do próprio Apatow, pensa o que Pete Davidson poderia ser caso não tivesse encontrado a comédia. Pete, protagonista e roteirista, é mais um na linha de atores comediantes que figuram dentre os protagonistas falantes apatownianos: Seth Rogen, Amy Schummer, Adam Sandler, Jonah Hill. Aqui, Pete escreve o roteiro junto com Apatow e seu amigo de Saturday Night Live Dave Sirus. Fora das telas, a morte real do pai de Pete Davidson, bombeiro e uma das vítimas do 11 de Setembro; na tela, uma história parecida, não vinculada ao evento global, mas estudada nas consequências desta ausência na vida de Pete, o relacionamento com sua mãe (Marisa Tomei) e sua irmã (Maude Apatow, filha de Judd), esta a caminho da faculdade. Para quem acompanha a carreira de Pete Davidson, não é novidade a abordagem cômica da tragédia familiar, tendo como auge a sua participação nos Roasts do Comedy Central de Justin Bieber e de Rob Lowe, onde, de maneira muito inteligente, reverteu o tabu desta temática para um jogo de humilhação diante dos presentes: Ele diz para Kevin Hart e Snoop Dog, atores de Soul Plane (2004), que a sua pior experiência na vida com aviões foi o filme. Pete faz um stand up estranho, que muitas vezes não consegue risos imediatos e intensos, trocando-os por um tom mais sutil e obscuro de humor. Neste aspecto, ele é a escolha inevitável para interpretar Scott, esse personagem desastre ambulante niilista que não cabe em seu próprio corpo e muito menos no mundo ao seu redor.

Staten Island é o burgo esquecido de Nova York, distante ao sul e distante emocionalmente das decisões da cidade e dos encantos que a fazem famosa globalmente. Aparentemente parada no tempo, a cidade de nascimento de Pete Davidson é terra ideal para pensar essa inércia sufocante de sua vida e de seus amigos, um grupo cujo passatempo é não fazer nada, e que tem como destaque a namorada Kelsey, não assumida por Scott. A garota, responsável por refletir um dos principais pontos de contradição do personagem, acredita no potencial do rapaz, assim como acredita em Staten Island. Ela quer trabalhar no planejamento da cidade para que possa gentrificar a região como foi feito no Brooklyn, fazendo com que ela se torne mais atraente para quem a vê de fora. Esta é a estrutura e premissa dominante em filmes de Apatow, uma conexão muito clara entre as ações e oportunidades, de forma a incentivar e tornar bem digerível o arco dramático dos personagens. Ele vai muito bem nesta empreitada e se torna um dos herdeiros mais talentosos de John Hughes, jogando com peças de identificação imediatas com um tempero próprio, conectado a uma contemporaneidade muito viva em todos os elementos do quadro – o cinema de Apatow é intimamente ligado à cultura pop. Tempero este que, como dito no início, muda a comédia americana ao trazer do stand up comedy uma essência absurda de improviso, deboche e, simultaneamente, melancolia.

Apatow consegue transitar cada vez melhor pela densidade de temas como suicídio, depressão, orfandade e amor próprio e, ao mesmo tempo, acelerar sem medo na máquina de piadas. Usa um método para isso, ao filmar com duas ou mesmo três câmeras simultâneas e deixar a cena acontecer livremente. É comum ver em bastidores dos filmes Apatow com um microfone em mãos soprando falas para o elenco e fazendo o momento render muito para além do roteiro original. A montagem conecta estas reações como em um documentário, tentando sustentar o momento e os desvios de rota. Isto, para além do elemento de jornada de seus filmes, todos passados em um espaço de tempo bem longo, torna Apatow um diretor de comédias longas, frequentemente superando duas horas. Ao mesmo tempo, percebe-se, às vezes, algum desgaste desta técnica, como na cena em que os amigos vendem droga a um garoto no porão, cena que é construída em função do verbo e que sai um pouco demais pela tangente, ao criar um próprio esgotamento do humor que ali não parece tão eficiente ou original. Junto a isso, soma-se alguma previsibilidade da estrutura geral, fortemente apoiada em montagens musicais e pontuações um pouco óbvias de conflito. Entretanto, talvez valha dizer que O Rei de Staten Island avança um pouco mais nas pretensões dramáticas do diretor ao apostar em um tom mais escuro, que se marca desde a primeira cena e se estende por todo o filme. Escuro literalmente, sendo o filme de Apatow em tonalidade menos saturada, metaforizando uma ausência de brilho que reflete a perspectiva do personagem sobre esta cidade e, consequentemente, sua existência nela. Muito interessante a escolha de Robert Elswitt, um diretor de fotografia cujo trabalho não passa pela comédia, e que, aqui, definitivamente, influencia bastante o clima, desde a escolha do 35mm como suporte até a forma como ilumina as internas ao longo do filme, criando uma identidade de luz e de espírito muito coerente por toda a obra.

Bill Burr, também lenda do stand up comedy, representa Ray, bombeiro que a mãe de Scott começa a namorar, e o ponto de oposição maior do protagonista. Ray representa tudo que Scott não quer, que é a aceitação da vida como um espaço possível de superação. Interessante ver como o filme resolve no final a relação dos dois com um caos visual de tatuagens ruins de um Scott não muito talentoso nas costas de seu novo padrasto, um código de rivalidade pacífica que sempre estará inerente àquela situação impossível de se resolver por completo. Esta é a máxima do cinema de Apatow, o entendimento registrado na estrutura dos filmes de que este ciclo documentado continua, segue, e não poderemos participar do seu desenlace. Nada de fato se concretiza no seu cinema e, geralmente, os desfechos apresentam um espaço de futuro a se contemplar, neste caso os edifícios de Manhattan, lugar que parece apresentar uma solução em relação ao abandono de Staten Island, mas que, ao mesmo tempo, sufoca de alguma forma o personagem. Nisso reside um final ambíguo e interessante, pois Scott decide se esforçar para andar aquele quilometro a mais, necessário para corresponder às expectativas que são depositadas sobre ele, mas, ainda assim, retém algo de uma identidade própria que é real, moldada por situações que ele não consegue controlar – novamente, ressalto, o caos das tatuagens como um elemento chave deste resultado. O filme não endereça o 11 de Setembro real da vida de Pete Davidson, mas se torna quase inevitável ligar o universo do corpo de bombeiros à tragédia que é marco na vida de toda uma geração. Scott, em certo momento do filme, diz que é possível ver o lixão de Staten Island do espaço e, de fato, o local é famoso por ser um depósito de dejetos. Inclusive, no pós-World Trade Center, se tornou o único lugar possível próximo para se levar os escombros das torres gêmeas e, consequentemente, de corpos ainda presos nestes escombros. Staten Island, cemitério de Nova York, é onde nasce Wu Tang Clan, banda lixão que recicla dejetos para produzir arte. É onde também surgem personagens apatownianos como Pete/Scott: sonhadores desajustados que, à beira da morte, encontram o amor.