Reza a lenda que João Gilberto se deu conta que o tom de voz baixo poderia ajudá-lo na modulação do ritmo de cada canção, desde que as batidas de seu violão apresentassem constância. Isso lhe permitia um controle do tempo, conduzido como bem entendesse. O resto a gente sabe que é história. E história não se admite, temos apenas que lidar com seus rastros.
Pé frio que sou, quando quero que algo não aconteça, normalmente digo que ocorrerá. Desse jeito sou traído pela aposta, mas não me sinto totalmente derrotado. Pois bem, então admito que 1917 (Sam Mendes, 2019) fará parte da história. Seus espantosos aparatos técnicos emulam a realidade como nenhuma outra ficção, o que cai como uma luva na indústria cinematográfica atual. É verdade que não é o primeiro a fazer do plano-sequência uma publicização do realismo. Porém, será visto como farol quando o cinema comercial incorporar de vez a experiência dos videogames. Mera questão de tempo. Em breve, o parque de diversões dos blockbusters se tornará um fliperama hi-tech e 1917 terá sido seu prodígio mais ilustre.
Como filme, podemos dizer que é o jogo mais realista que existiu. De Southland Tales (2006) aos novos Jumanji (2018 e 2019), o flerte com a linguagem dos games tem se intensificado radicalmente. E não é novidade que o ritmo das ações e a fugacidade dos planos façam do espectador uma espécie de avatar. Mas sempre houve uma barreira impenetrável: a montagem. O corte impede a passagem fluida a esse outro universo, evitando o transe como forma absoluta de imersão. A cada fratura, o avatar se desfaz e a distância da tela surge como um ativador de consciência.
1917 dá um passo além. Sua incessante busca realista e a quase ausência de cortes permite ao espectador uma condição de testemunha ocular permanente. Na companhia dos personagens, partilhamos de uma jornada repleta de fases e desafios a serem superados. Desse modo, até fica difícil notarmos a previsibilidade dos acontecimentos, pois somos impulsionados à constante iminência do perigo, traduzido em armadilhas e alemães, alemães e armadilhas.
Sam Mendes aproveita a trajetória dos protagonistas para decretar sua perspectiva estética. Para ele, a guerra proporciona fascinação em estágio máximo, até nos mínimos detalhes. A morte é filmada como condição heroica, os corpos dilacerados são virtuosos, a nódoa espalhada pelas trincheiras é magnífica e a trilha orquestrada imparável arremata de vez o mergulho numa jornada épica. Mas também passamos do macro ao micro num piscar de olhos. Um pequeno roedor gera uma grande explosão, uma faquinha mequetrefe promove uma tragédia e um pedaço de papel carcomido pela umidade suspende uma batalha.
Toda essa minuciosa plasticidade se arvora num tecnicismo excessivo, cuja finalidade é nos fazer observar cada detalhe da missão. Em contrapartida, surge uma contradição. O filme deseja que sintamos os impactos da guerra, entretanto não podemos suportar sua dureza, já que não somos suficientemente preparados para isso. Portanto, não é permitida a sensação de encararmos a barbárie bélica e sua consequente estupidez. O fascínio pelo real segue conduzido por trás de uma viseira. Resta somente a possibilidade de imersão num protótipo de game de combate, com bifurcações maquinadas e uma matemática limitada de ações.
A todo instante, impressiona como os recursos técnicos são operados e logo nos espantamos: “caramba, como aquilo foi feito?!”, “uau, não é possível ter sido filmado sem cortes!”. Quase sem cortes, aliás. 1917 é demarcado por planos que duram entre cinco e oito minutos. Contudo, as emendas entre eles são disfarçadas e ajustadas na pós-produção, causando a ilusão de que tudo foi filmado em tomada única. Ainda assim, olhos mais atentos percebem um corte causal e menos sutil que propõe uma elipse que transforma o dia em noite.
Mas seria um problema a aproximação entre as linguagens do cinema e do videogame? Não necessariamente. Inclusive, o esforço dos jogos tem sido até maior em tornar essa mistura mais propositiva. God of War (2005-2018), por exemplo, está aí para comprovar um realismo gráfico bastante similar ao dos filmes americanos de fantasia, com nuances dramatúrgicas valorizadas por uma consistência estética. Além disso, tenho que confessar que não sou daqueles carolas que acham que o som acabou com o cinema, que o vídeo acabou com o cinema, que o gif acabou com o cinema, que o cinema acabou com o cinema.
Nessa falta de xaxado, é preciso dizer que o grande problema de 1917 é seu tom monocórdico, e disso derivam outras complicações. Sendo Sam Mendes um artesão que não possui o domínio rítmico de um João Gilberto (seria exigir demais), o filme esmorece numa sistemática repetitiva que compreende a guerra como algo insistentemente vibrante. A ideia é lançar um emaranhado de situações cheias de obstáculos, que de tanta intensidade acabam parecendo iguais. Não há cadência, e tal descompasso contrasta com a noção de continuidade das ações, soando incompatível com o próprio dispositivo realista criado. É uma guerra de expressões boquiabertas, mas sem dor, sem respiro, sem o questionamento de sua própria existência.
Começamos nas trincheiras inglesas, partimos sem fôlego ao abrigo alemão, nos deparamos com uma casa abandonada, seguimos dentro de uma caminhonete abarrotada de gente, levamos um tiro, acordamos maravilhados com as chamas em meio aos escombros, encontramos um bunker, caímos num rio, acordamos ilesos, avistamos outros soldados cegos, rumamos ao front pra evitar a batalha e nos redimimos. Ou seja, aguentamos uma sucessão de fatos que não conseguem estabelecer qualquer sensação de selvageria e que apenas contribuem para preservar a etiqueta surrada dos filmes de redenção.
Acima de tudo, estamos diante da glorificação da técnica. Os personagens caminham com dificuldade por um terreno enlameado, sujando-se quase por completo. Ao contrário disso, a câmera os segue sem trepidações, oferecendo um contraponto óbvio ao percurso. Tal como nós, ela será uma parceira isenta de percalços. Estará o tempo todo presente, mas não poderá se sujar. Afinal, é preciso pegar o melhor ângulo, a melhor reação, o melhor tiro, a melhor queda. Valoriza-se o melhor de tudo. Não há espaço para deslizes técnicos.
Em outro momento, a morte de um personagem é seguida pela imediata palidez de seu rosto. Como não é possível a intervenção do corte, o recurso se materializa através da pós-produção. O intuito é mostrar que o realismo pode ser fabricado a qualquer custo. E a sensação de consumi-lo é mais interessante que sua própria condição. No fim das contas, é o que fica pra história. Forja-se uma realidade para edificar o fascínio. Fascina-se pelo espetáculo para sedimentar o heroísmo.
Finalmente, deixa-se o legado de que a guerra não foi algo tão intragável assim. Por sinal, o enfoque na Primeira Guerra Mundial sequer importa, embora as cartelas finais informem que o roteiro foi baseado em histórias contadas pelo avô de Mendes, ex-combatente no conflito. A guerra representada é um reles adorno. Os alemães, adversários inescrupulosos, parecem ter saído de uma caricatura nazista da Segunda Guerra, como observamos no embate entre o traiçoeiro piloto germânico e o generoso oficial britânico, naquele que talvez seja o momento mais esquemático do filme. O que motiva 1917 é nada mais que as sucessivas situações aventurescas geradas, empanturradas de seus diversos deslumbres.
Ao começar a assistir os curtas-metragens da mostra Panorama para esta cobertura, descobri um conjunto de filmes relativos à mostra Praça, que não seriam objetos da minha análise, mas que me despertaram o interesse em alguns títulos. A nomenclatura das duas mostras e sua descrição pareceram querer distinguir produções com um apelo mais direto, uma comunicação mais fácil com o público, de outra com produções mais densas e elaboradas, dentro do espirito, digamos “festivalesco” de competições entre obras. Mas isso não fica perfeitamente delimitado ao analisarmos o conjunto de filmes. A seleção das duas mostras é bem diversificada, em temas, estilos e estados de origem. Os curtas vão desde trabalhos de conclusão de curso de Artes Visuais e Cinema até filmes selecionados em festivais prestigiados como Cannes e Rotterdam, englobando tanto produções vencedoras de editais e concursos municipais e estaduais, quanto independentes. Para além do escopo inicial do texto, resolvi propor um dialogo entre estas produções denominadas como “populares” e as que representariam obras mais “elevadas” dentro de uma tradição cinematográfica. A proposta também serve como crítica a tal divisão, que, ao final, não teve um sentido claro, pois muitos filmes da mostra Praça teriam a elaboração e a qualidade para a mostra competitiva, enquanto alguns da mostra Panorama acabam se tornando itens de certo vício paradoxal da “originalidade da forma consagrada”.
Alguns filmes das mostras se destacam pela coesão de proposta e realização, sobretudo os dramas ficcionais. Os curtas manauaras O Barcoe o Rio, de Bernardo Ale Abinader, Enterrado no Quintal, de Diego Bauer, e Seiva Bruta, de Gustavo Milan, se destacam pela força de suas estórias e pela capacidade de sintetizar, em cerca de um quarto de hora, conflitos entre os personagens que parecem preceder muito o ponto onde os encontramos no filme, e continuar a se desdobrar em possibilidades latentes, mesmo encerrado o enredo. As incompatibilidades das irmãs que mantêm um serviço de barcos em O Barco e o Rio são bem explícitas, mas promovem uma sutil transformação de uma das personagens, ilustrada de forma visualmente muito interessante, com cores e composições de grande beleza. Enterrado no Quintal já mostra uma Manaus urbana, de trânsito caótico e personagens marginais, numa estória clássica de vingança, com uma crueza das imagens que acompanha perfeitamente o espirito conturbado das personagens (a atriz amazonense Isabela Catão protagoniza ambos os curtas). Seiva Bruta também se destaca pelas ótimas interpretações, retratando o sofrimento de uma imigrante venezuelana que tem sua árdua jornada para chegar ao Brasil em busca de oportunidades agravada por um acontecimento inesperado. O desfecho já reverbera outra estória, e mantém intacta a potência do devir, de uma continuidade do fluxo de mudanças na vida da protagonista.
Os curtas Menarca, de Lillah Halla, Ela Que Mora no Andar de Cima, de Amarildo Martins e Três Graças, de Luana Laux, também apostam em enredos bastante fortes e definidos. Menarca toma emprestados elementos do cinema fantástico para tratar das cruéis descobertas de uma menina sobre o Mundo dos Homens, e como sobreviver a ele. O filme não observa, necessariamente, o universo masculino, mas a dinâmica adulta e os afetos nem sempre altruístas que se confundem com o puro e, por vezes, vil desejo. Uma ótima ambientação e uma direção dinâmica equilibram toda a estranheza da premissa, tornando o filme muito atraente, mesmo sendo ele bastante elusivo. Ela Que Mora no Andar de Cima utiliza o humor e uma mise-en-scène bastante charmosa e estilizada, ainda que por vezes grotesca, para contar os jogos de desejo entre duas vizinhas, enquanto testam novas receitas de doces em um dos apartamentos. O curta utiliza trechos oníricos para representar o estado interior da personagem apaixonada por sua esfuziante companheira de prédio, mas que, na verdade, apenas tem valor por ser alguém que prova sem reservas as desastradas receitas da vizinha. O curta Três Graças também relaciona o destino de três personagens femininas, com atuações intensas e uma direção também vigorosa. Com sequências elaboradas, tanto nas composições quanto na iluminação, o filme varia o estilo das cenas, desde as mais fantasmagóricas, como uma procissão noturna de mulheres em volta de uma fogueira rendendo preces a Virgem Maria, até as belas tomadas de dança de uma das personagens. Intercaladas as rotinas amorosas malsucedidas das três mulheres, observa-se uma estrutura próxima de Gritos e Sussurros (1972), de Ingmar Bergman, tanto na evolução das tensões durante a trama, quanto no trecho final de caráter idílico.
Outras ficções como Primeiro Carnaval, de Alan Medina, 5 fitas, de Heraldo de Deus e Vilma Martins, Você Tem Olhos Tristes, de Diogo Leite, Won’t You Come Out to Play?, de Julia Katharine, e Fora de Época, de Drica Czech e Laís Catalano Aranha, apresentam contrastes bem notáveis entre seus trechos iniciais e os momentos em que as propostas dos filmes são expostas, de forma geralmente didática, tornado o sentido bastante fechado e óbvio, sem ambiguidades. São filmes mais diretos, e que por vezes trazem uma clara bandeira ideológica, tornando a abordagem, provavelmente, mais adequada, mas prejudicando, de certa maneira, o conjunto de impressões que uma obra mais aberta pode proporcionar ao expectador. As características variam entre a singeleza de Primeiro Carnaval e 5 Fitas, e a contundência de Você Tem os Olhos Tristes e Fora de Época, passando pelo pesado e dilacerante drama de Won’t You Come Out to Play?, único filme que, curiosamente, registra nos créditos a situação de produção durante a pandemia, com gravações isoladas e feitas pelos próprios atores.
Os curtas Casa com Parede, de Dênia Cruz, Quarta: Dia de Jogo, de Clara Henriques e Luiza França, Vagalumes, de Léo Bittencourt, Minha Bateria está Fraca e Está Ficando Tarde, de Rubiane Maia e Tom Nobrega, Opy’i Regua, de Júlia Gimenes e Sérgio Guidoux, Milton Freire, Um Grito Além da História, de Victor Abreu, Caminhos Encobertos, de Beatriz Macruz e Maria Clara Guiral, representantes de ambas as mostras, procuram tatear o fundamento de suas propostas nas imagens, mas, às vezes, não alcançam um momento que sirva de âncora dramática, importante mesmo no documentário, para extrair da realidade uma construção fílmica relevante. Existe, em tais filmes, a importância inegável da documentação cultural, social, mesmo biográfica. Mas outros documentários da mostra parecem ter conseguido melhor alcançar esta equivalência entre a realidade documentada e a construção de um foco de atração, que pode transmitir de forma mais eficiente as intenções com o objeto de interesse dos realizadores.
Em Pega-se Facção, Thaís Braga revela uma realidade árida e cruel nas extremidades mais frágeis do mercado de trabalho. Abrindo com o som intermitente das máquinas de costura, retrata as preocupações de três gerações de uma família que trabalham na produção de roupas. A obra demostra a sincera melancolia de um ambiente alienado, com poucas perspectivas de um futuro melhor para si e para quem virá a sucedê-las, no caso, os filhos. O tempo alongado de algumas tomadas repercute na noção da condição estática dessas existências, no tempo de espera, na frágil esperança que o ciclo se quebre para a chegada de algo melhor. Sem dúvida, um dos trabalhos mais marcantes da mostra, Pega-se Facção alcança um equilíbrio da forma em beneficio do drama. Curiosamente, participou apenas da mostra não competitiva Praça.
O vigoroso Adelaide, Aqui Não Há Segunda Vez para o Erro, de Anna Zêpa, utiliza uma interessante estrutura em primeira pessoa para realizar um resgate da literatura de Adelaide Carraro, artista marginalizada por seus escritos de alto teor erótico entre os anos 60 e 70, articuladora de claras posições políticas que afrontavam a moral conservadora de sua época. De Dora, por Sara, de Sara Antunes, também rememora a trajetória de uma figura politica, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, com as escolhas estéticas da diretora e atriz principal intimamente relacionadas à sua relação familiar com a personagem retratada, atingindo uma grande intensidade de convergência entre o registro fílmico atual e o passado histórico.
Em Rebu, Mayara Santana realiza uma interessante mistura da linguagem das redes sociais com os dilemas da aceitação de sua sexualidade, num documentário bastante vivo e efusivo, mesmo tratando de questões difíceis. Uma abordagem bem próxima de À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente, das diretoras Bruna Barros e Bruna Castro, que discute as possibilidades de um relacionamento homoafetivo, valendo-se de linguagem bastante ágil e poética. Estes dois filmes, além do anteriormente citado Fora de Época, de Drica Czech e Laís Catalano Aranha, demostram que os curtas-metragens são plataformas eficientes para fomentar discussões sobre gênero, em produções que refletem tais inquietações, principalmente por parte de jovens, sem se tornarem, tão somente, panfletos audiovisuais.
Alguns documentários exibidos reportam ambientes de produção musical, como Ainda Te Amo Demais, de Flávia Correia, e Noite de Seresta, de Sávio Fernandes e Muniz Filho, ambos da mostra Praça. Eles retratam muito bem uma teia de pessoas que estabelece um ambiente onde a expressão musical acontece – desde uma marcante cena embalada a reggae, em Ainda Te Amo Demais, até um retrato da boemia cearense e da paixão por cantar de uma personagem bastante pitoresca, em Noite de Seresta. O curta Rádio Capital Alvorada, de Rafael Stadniki, representa também uma cena musical, adaptando como ficção a história real de uma prestigiada rádio de Brasília em seu último dia de transmissão. Mas o filme esbarra num certo artificialismo que tira grande parte da graça da situação do enredo.
Os casos mais problemáticos se encontraram num conjunto de curtas da mostra Panorama, onde se ressaltaram algumas caraterísticas, digamos, vanguardistas. Na minha apreciação, foram as obras em que os recursos visuais nem sempre convergiram com as propostas, pois as sínteses do que se vê e do que se apreende foram, de alguma forma, prejudicadas. São eles Levantado do Chão, de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, Ilha do Sol, de Lucas Parente e Rodrigo Lima e Walter Reis, Animais na Pista, de Otto Cabral, O Jardim Fantástico, Fábio Baldo e Tico Dias, A Pontualidade dos Tubarões, de Raysa Prado, e Você Já Tentou Olhar Nos Meus Olhos?, de Tiago Felipe, Choveu Há Pouco Na Montanha Deserta, de Rei Souza, filmes bastante cifrados, com o desenvolvimento truncado por escolhas formais mais obscuras, de difícil acesso ao público em geral, e mesmo a uma visão critica. Existem recursos utilizados de forma interessante, como o longo plano-sequência de Animais na Pista, os inusitados ângulos de câmera de Ilha do Sol, ou o tratamento visual à moda do surrealismo francês da década de 20 em Levantando do Chão. Destacaria também a rarefação do drama, tão pertinente no cinema contemporâneo (principalmente, o oriental), em A Pontualidade dos Tubarões e Choveu Há Pouco Na Montanha Deserta, os ecos metafísicos, que remetem a Apichatpong Weerasethakul, em Jardim Fantástico, e a pretensão/despretensão experimental do breve Você Já Tentou Olhar Nos Meus Olhos.
São filmes nos quais faltam subsídios a um expectador médio, que não tenha a noção de valoração dos próprios recursos da linguagem cinematográfica (se é que esses recursos isolados possam ter valor sem ser veículos para as concepções criativas concretas). As obras propõem discussões que ultrapassam o relato ligeiro, e dificilmente vão ser atração fora de meio acadêmico ou crítico. Mas, certamente, se tratam de filmes com vocação para provocar a audiência, por estranhamento ou mesmo indiferença, atingindo tanto aqueles para quem jump cuts godardianos são expedientes habituais, quanto aqueles que os consideram um prato frio desde meados dos anos 60.
Por fim, alguns curtas da mostra têm um lugar bem estabelecido de expressão, cativando por sua originalidade e eficiência narrativa. O terno e doce Vida Dentro de Um Melão, de Helena Frade, é muito bem-sucedido em entremear um teatro de bonecos com lembranças familiares, numa linguagem que mistura o lúdico e o existencial, exaltando o carinho com os personagens reais retratados pelos seus simulacros de tecido. Magnética, de Marco Arruda, uma animação alucinada, utiliza inúmeras técnicas, e referências, desde a estética cyberpunk até o Cassino do Chacrinha e filmes como Terra em Transe e Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Trata-se de uma experiência sensorial, com signos jogados num liquidificador que explode em cores e formas inusitadas. Babelon, de Leon Barbero, é um curta com um enredo clássico do gênero sci-fi, onde paranoias no estilo do escritor Philip K. Dick conduzem o protagonista a questionar o estatuto de sua realidade. O filme apresenta um uso criativo dos elementos de cena, dos sons e apresenta vários elementos icônicos e enigmáticos. Vitória, de Ricardo Alves Jr, tem um claro conteúdo social, retratando uma organização de greve em uma fábrica de tecidos. O estopim para o levante é a tomada de consciência das empregadas sobre as desigualdades nas relações do seu ambiente trabalho. O curta tem um ritmo de composição muito limpo e austero, assim como o desenvolvimento da personagem principal, que passa de um sutil desconforto para a indignação e a ação conjunta para requerer diretos justos, num desfecho aberto do enredo, mas com todos os elementos dramáticos para que o expectador o complete à partir das sugestões do filme. A utilização do barulho do maquinário da fábrica também é muito bem empregada como moldura sonora e elemento de inquietação para o expectador.
Pode-se notar nessas impressões conjuntas das duas mostras que tanto a qualidade quanto o estilo permitiriam que muitos filmes da Praça participassem da mostra principal competitiva, ao invés da exibição pública apenas. Assim como muitos filmes da mostra Panorama apresentam um teor apenas de curiosidade, quase anedótico. Talvez servissem melhor ao estímulo mais direto de uma sessão ao ar livre, sem o peso da avaliação “oficial”. Não sei se existiu da parte da curadoria uma intenção de dividir as obras ditas importantes das mais prosaicas, mas não me pareceu que esse critério tenha feito justiça a vários filmes que tive o prazer, não só sensorial, mas crítico, de apreciar na mostra dita “menor”.
“Vertentes da Criação” é o tema da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O texto que descreve a temática, de Francis Vogner dos Reis e Lila Foster, fala sobre “novos pontos de partida” e “novos fundamentos para o mundo em que vivemos”. Entretanto, desde a estreia de Estrada para Ythaca (2010), filme repetidamente apontado como o marco inicial num processo de transformação nos modos de produção de longas-metragens brasileiros, em uma época em que a Ancine não conseguia romper com certo tipo de produção hegemônica e comercial de fazer cinema, o que os filmes que compuseram a Mostra Vertentes da Criação, realmente apresentam de “novo”?
Pedro Diógenes, que junto com os irmãos Pretti e Guto Parente, participou da direção de Estrada para Ythaca, traz o seu filme Pajeú (2020) para compor a Mostra Vertentes da Criação junto com os 8 outros filmes que aqui discutiremos. Sem o vigor de seu filme de estreia, Pedro Diógenes dá continuidade ao modo de produção independente[1] que parece perpassar sua filmografia. O filme começa flertando com elementos clássicos do terror. Uma figura fantasmagórica aparece no meio do Rio Pajeú nos sonhos da protagonista. Pajeú tem como tema central o problema do saneamento básico em Fortaleza. O rio, tratado como um ente de direitos, é concebido de forma similar com filosofias indígenas, sobretudo com as teorias latino-americanas do Bem-Viver[2]. A personagem desenvolve uma obsessão com o Pajeú e com o descaso que o poder público tem com o rio, transformado em um esgoto a céu aberto e desviado, a torto e a direito, em prol da construção civil.
A premissa interessante do filme é executada de forma que deixa a desejar. O terror cede lugar a um filme informativo repetitivo, em que o terror se torna apenas acessório. Pajeú acaba se tornando uma espécie de A Opinião Pública (1967), de Arnaldo Jabor, com o intuito de mostrar que a população local desconhece o rio que corta Fortaleza. Sem resolver seus conflitos, Pajeú deixa subentendido que o melhor amigo da protagonista é a figura fantasmagórica vista por ela em seus sonhos. O filme termina em uma cena de karaokê, com a personagem extravasando seus sentimentos ao cantar, mas não vai a lugar nenhum, uma vez que todas as cenas de karaokê me pareceram mais necessárias por preencher uma lacuna temporal, dando à obra duração suficiente para ser um longa-metragem.
Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020), de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, e #eagoraoque (2020), de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, são filmes que possuem desejos parecidos. Debruçados sobre questões políticas que permeiam o debate público com uma intensidade cada vez maior desde a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, executam, de formas diferentes, suas reflexões sobre nossos tempos.
Aiano e Pedro Maia estabelecem uma continuidade com seus curtas-metragens anteriores, como Videomemoria (2020) e Na Missão, Com Kadu (2016), sedimentando as ocupações urbanas no centro de suas filmografias. Diferentemente do que ocorre nos curtas, que poderiam ser definidos, através de imagens captadas por celulares em meio a um verdadeiro horror provocado pelas forças estatais, como filmes de terror político, em Entre Nós Talvez Estejam Multidões, os diretores parecem buscar uma construção fílmica que conversa com outras tradições cinematográficas. Com uma mise-en-scène mais controlada, composta por enquadramentos precisos, o filme nos traz uma experiência que lembra Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho, ainda que os diretores não coloquem suas vozes no filme.
Aiano e Pedro Maia criam um mosaico dos moradores da Ocupação Eliana Silva. Espaço, pertencimento e subjetividade se confundem. Aqueles sujeitos são o Eliana Silva. Os enquadramentos da casa de cada um contam sobre aquelas pessoas tanto quanto o que elas estão dizendo sobre si mesmas. Se Videomemoria mostra cidadãos sendo expulsos violentamente pelas forças policiais de Minas Gerais, em Entre Nós Talvez Estejam Multidões temos a oportunidade de conhecê-los de perto, de forma tocante e sensível. Seus anseios e suas lutas pela moradia no Eliana Silva transitam de forma fluida, criando um filme que conhece bem a potência de cada um dos personagens para a construção de um universo próprio, que nos engaja diante da tela.
As lideranças da Ocupação Eliana Silva, Leonardo Péricles e Poliana do MLB, ganham especial destaque na obra e compartilham o respeito dos demais moradores da ocupação. O filme, ainda que mostre que não existe um consenso político na ocupação, uma vez que é formada por pessoas muito diferentes entre si, demonstra que há um centramento político e que aquelas lideranças, que ali vivem e compartilham das experiências políticas com os demais moradores, são formadas e reconhecidas de modo orgânico, diferente do que acontece em #eagoraoque.
#eagoraoque é um documentário que, em alguns momentos, se intercala com encenações ensaiadas um tanto toscas do ponto de vista de técnicas de atuação, mas que ilustram bem os pontos apresentados pelo filme. Bernardet e Rewald buscam apresentar as diversas contradições que permeiam a ação política organizada no Brasil que vivemos nos últimos anos. Bernadet parece colocar seu filho, Vladimir Safatle, no banco dos réus. O que está posto no filme são imagens de uma celebridade, um intelectual de esquerda, professor universitário, que dá palestra para milhares de pessoas no seio da universidade, mas que não consegue transformar seu conhecimento em ações políticas concretas. Safatle não consegue convencer nem mesmo seu pai ou sua filha de que o caminho apontado por ele, a partir de suas pesquisas, é o adequado, quanto mais um grupo de líderes das periferias paulistanas.
Assistir #eagoraoque e Entre Nós Talvez Estejam Multidões na mesma mostra deixa um sabor estranho em relação ao primeiro. Parece haver uma resistência muito forte da elite-branca-universitária em ceder o poder. Vladimir Safatle, nas cenas finais do filme, conversa com lideranças negras e periféricas de uma forma vertical, com uma escuta defasada, enquanto no filme de Aiano e Pedro Maia, as lideranças são estabelecidas de forma orgânica. #eagoraoque acaba não chegando em nenhuma conclusão. Deve-se alimentar o anti-intelectualismo e a desconfiança profunda em relação a professores universitários de classe média alta dispostos a lutar contra o neoliberalismo? É preciso buscar o autogestionamento, paralelo ao Estado, como fazem os espaços dos quilombos e das ocupações urbanas? O filme parece contrapor as duas posições.
As transformações sociais que viveu o Brasil nos últimos anos fazem com que os apontamentos de Bernardet para o presente sejam um tanto quanto ultrapassados. Se na época do Cinema Novo e do Cinema Marginal, Bernadet conseguia se engajar com sindicatos, hoje as pautas políticas são ditadas por agentes muito mais diversos que a organização sindical em si. A verborragia de #eagoraoque produz uma obra enfadonha e que usa de uma tática que, nesse ponto, já deveria ser unânime na esquerda como não-funcional: dar sermão não é uma estratégia inteligente para ganhar pessoas para uma causa, sejam elas quais forem.
Negro em Mim (2020), de Macca Ramos, é um documentário um tanto quanto convencional, que mescla performances artísticas e relatos de artistas negros das mais variadas artes. Passando pelo teatro, música, moda, artes visuais, entre outros, o filme cria um caleidoscópio da cena preta de São Paulo, com a exposição de trabalhos complexos e cheios de subjetividade, sempre em diálogo com a ancestralidade diaspórica africana. Entretanto, o filme falha em transitar de um artista para o outro. Falta certa fluidez ao mudar de assunto. As falas, por vezes, são cortadas muito abruptamente, e as performances artísticas, posicionadas entre um relato e outro na montagem, em vez de ajudar na transição, colaboram para a sensação de que o fio da meada é perdido o tempo todo. Mas, ainda assim, é mais bem-sucedido que Agora (2020), de Dea Ferraz.
Assistindo Agora, eu me lembrei de uma frase de Ismail Xavier, em que ele diz que não é porque um filme tem um tema que me interessa que o filme vai ser bom. Não há nada particularmente cinematográfico em Agora. Uma espécie de teatro filmado, não há nada ali que não possa ser encontrado em um teste de seleção para qualquer escola de teatro brasileira. Sem uma proposta estética, o filme espera que haja um engajamento por parte do espectador a partir de algumas frases prontas, apenas porque elas possuem valor ideológico. Agora nos apresenta nada além de uma câmera fixa, um estúdio e pessoas fazendo exercícios teatrais básicos e vazios, sem conexão uns com os outros. Vários artistas apresentam técnicas corporais e vocais impressionantes, é realmente uma pena que eles tenham sido acometidos por uma direção incapaz de trabalhar a potência dos seus próprios atores.
Para além dos longas, a Mostra Vertentes da Criação apresentou 3 curtas-metragens. Filme de Domingo (2020), de Lincoln Péricles; Uma Noite Sem Lua (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro; e República (2020), de Grace Passô. Filme de Domingo nos traz uma mistura de linguagens. Há um diálogo muito forte com os signos do YouTube – que ilustra como, para as gerações futuras, a comunicação com a câmera vem de uma forma muito natural -, o musical – a premissa de que rap é compromisso já fora solidificada em outros filmes do diretor – o cinema experimental – estabelecido sobretudo na decupagem e na montagem -, e com o cinema mudo – através de letreiros. A ficcionalização é feita a partir de uma organicidade e naturalidade muito fortes trazidas pela personagem da criança, o que faz com que a rigidez dos diálogos entre os adultos fique muito mais acentuada. A criança nos faz questionar como fazer adultos recuperarem seus gestos naturais diante da câmera. Quando os adultos interagem com a criança, a fachada dura cai, pois diante da criança a organicidade é a regra.
Filme de Domingo aparenta, ainda que com o mesmo tipo de produção de baixo orçamento de outros filmes de Lincoln Péricles, traduzir sentimentos diferentes do tom de denúncia e revolta de Aluguel: O Filme (2015), por exemplo. Em Filme de Domingo há uma celebração das vidas de uma família preta, que nos toca através da afetividade compartilhada por mãe, filha e tio.
Uma Noite Sem Lua é também um filme híbrido, mas que, por sua vez, combina uma fotografia ultra estilizada com imagens de arquivo. Com uma experimentação visual estimulante, é um filme circular, espiral, com corpos sempre em movimento e com um controle rígido da mise-em-scène. Entretanto, acaba domesticado por uma narração que está presente na maior parte do tempo. A personagem declama um texto que, apesar de ter seus momentos potentes, é um tanto quanto redundante e acadêmico. Por vezes o texto acaba traindo a força que as imagens têm em si mesmas.
É em República que nos deparamos com o verdadeiro potencial criativo dessa mostra. Em seu curta-metragem, realizado durante o isolamento social, Grace Passô mais uma vez se solidifica como a maior atriz do cinema brasileiro contemporâneo. Não, não vou medir minhas palavras. Em República, Grace Passô traz não apenas sua experiência dramatúrgica do teatro, criando um enredo permeado por conflitos e sentimentos fortes, como também o corpo, a presença e a entrega que exige um palco de teatro, além de nos remeter a elementos cinematográficos do realismo ozuniano de suas experiências na Filmes de Plástico.
O filme começa com um tom muito realista. Mas o cotidiano logo ganha o tom absurdista que encontramos em suas peças teatrais. O Brasil é um sonho, ele só existe na cabeça de um xamã que vai acordar a qualquer momento. O alívio e a dor provenientes da constatação de que o Brasil não passa de algo sem materialidade física só podiam se fazer sentir com uma atuação do porte da que Grace Passô nos entrega.
A câmera, na maior parte de República, funciona como um plano sequência. Uma experiência que quebra com aquilo que o formalismo russo afirma ser o próprio do cinema, a montagem. A atuação sem interrupção se aproxima da experiência teatral, sem a fragmentação que caracteriza a atuação para o cinema. Quando o plano sequência é verdadeiramente interrompido, ele o é por uma figura que remete a imagens clássicas do cinema. Ela encena um ninja? Um gângster? Um viajante do futuro? Não se sabe. O que aparenta ser mais importante é que esse duplo da Grace Passô parece convocá-la. Já que o Brasil não acabou de fato, já que o que o sonho do xamã era apenas enredo para um filme, o que você vai fazer agora? “O seu Brasil acabou, o meu nunca existiu”.
Sinto que não poderia ter terminado as críticas com outro filme que não fosse República. Dentre todos, é o que, formalmente, mais brinca com signos já constituídos no cinema e os inverte, os manipula. Mas, no geral, acredito que o título “Vertentes da Criação” seja um pouco entusiasmado demais. O que eu vi talvez sejam Vertentes da Reafirmação. Não sei se consigo ver algo que de fato seja “novo”, como propõe o texto dos curadores. Para mim, o que assistimos foi a reafirmação de um processo que teve seu marco em Estrada para Ythaca, mas que, 10 anos depois, não encontra expoentes cinematográficos que realmente transformem esse estilo. O Novíssimo Cinema Brasileiro, com todo seu vigor, teve uma importância fundamental para resgatar modos de produção não industriais, para romper duras hierarquias econômicas e geográficas que dominavam a ANCINE na época. Mas eu me pergunto o que o cinema brasileiro independente tem para oferecer que de fato seja novo em uma época que suas narrativas já são massificadas pela Rede Globo, seja em novelas, seja em programas como o Big Brother Brasil, e pela publicidade e videoclipes milionários que têm condições muito mais robustas de brincar com efeitos especiais. Talvez falte nos diretores e demais criadores audiovisuais brasileiros um exercício de olhar com mais profundidade para experiências cinematográficas nacionais dos anos 60 e 70 ou experiências de outros territórios subalternos, como Hong Kong nos anos 80 e 90, para renovar nosso fazer cinematográfico. Olhar para além de um movimento cinematográfico brasileiro, iniciado há mais de uma década, que com toda sua importância política, parece ter se esgotado formalmente.
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, 2016.
BAHIA, Lia. Discursos, Políticas e Ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2012.
OLIVEIRA, Maria Carolina. Novíssimo Cinema Brasileiro: práticas, representações e circuitos de independência. Tese (Doutorado em Sociologia). UFSP, São Paulo, 2014.
XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Terra e Paz, 2001.
[1] Para uma discussão mais aprofundada sobre o cinema brasileiro contemporâneo, ver OLIVEIRA, Maria Carolina. Novíssimo Cinema Brasileiro: práticas, representações e circuitos de independência. Tese (Doutorado em Sociologia). UFSP, São Paulo, 2014.
[2] Ver ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, 2016. DUSSEL, Enrique.
“Governar o Brasil é criar desertos”. A frase cunhada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor da UFRJ, sintetiza a um primeiro vislumbre os seis filmes que integram a Mostra Olhos Livres, parte da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. A fala encontra eco na voz de Silvana Stein em Subterrânea (2020); se reflete na desertificação da cultura maxakali em Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra É Nossa! (2020); vira palco da jornada alucinógeno-transgressora na Wasteland à brasileira de Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) (2020); se interioriza como trevas no Brasil ditatorial de Voltei! (2020); reitera-se como deserto familiar em Irmã (2020); e transforma-se em ausência em Amador (2020).
Distantes a um primeiro olhar, enraizados em singularidades que ramificam essa vastidão geográfica compreendida por Brasil, os filmes fortalecem a necessidade do cinema brasileiro em tempos apocalípticos. Independente da enunciação, como documentário ou cinema de ficção, resistir aos desertos é o tema que prefigura as produções da mostra de 2021. O Brasil de Olhos Livres reúne espaços aparentemente dispares, verdadeiros arquipélagos – como o texto de abertura da mostra bem pontua. Trafega entre os confins do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Ceará e Rio de Janeiro, numa terra plural, sob a ótica de minorias assoladas por desertos. Ele ressoa resistência numa voz quase uníssona, que embora marcada pela discrepância tonal entre as narrativas, revela por meio do cinema Brasis de múltiplos desconhecidos, de anônimos coletivos e individuais, de verdades invisíveis ocultadas pela norma, gerindo espaços de visibilidade que refletem as problemáticas viscerais do país, traduzidas na epiderme cinematográfica.
Subterrânea respalda sua trama no jogo imbricado entre a superfície da cidade e seu núcleo segredista. Escrito, dirigido e fotografado por Pedro Urano, o filme projeta o percurso de dois pesquisadores, Silvana (Silvana Stein), “uma astrônoma do centro da Terra pra quem pedras são estrelas” e seu sobrinho, Leo (Negro Leo), que apesar de passar seus dias descobrindo minérios, não deixa de erguer os olhos para o céu que o envolve. Ambos partem em busca de um tesouro confinado no subsolo da antiga capital brasileira, como aquele descrito por Lima Barreto em “O Subterrâneo do Morro do Castelo”. O filme se inicia com a trajetória do Meteorito de Bendegó, “um pedaço de outro mundo descoberto pelo homem branco” em 1784, levado ao Museu Nacional do Rio de Janeiro ao final do XIX, e confirma as incongruências da história, desse Brasil que, apesar de estar em vias de abolir a escravidão, ainda persiste na força dos escravizados para tecer seu projeto de ciência. A desgraça que assolou o país com o incêndio do Museu Nacional em setembro de 2018 transforma o passado preto e branco das fotografias de registro do meteorito nas chamas violentas que dizimaram os traços físicos da nossa história de mundo, encerrados naquele edifício da Quinta da Boa Vista. Mas o fogo foi incapaz de destruir o fragmento celeste de mais de 4 milhões de anos que resistiu ao tempo, e resistirá também a nós. Silvana e Leo investigam os destroços do progresso, mergulham nessa Rio de Janeiro que, embora tomada pelo fogo, transborda-se de passado, como as águas do subsolo que vertem por entre as ruas do centro da cidade, outrora afogadas pelo mar.
E como a personagem Clara afirma que é preciso olhar para o chão a fim de se compreender o céu, o filme serve-se do subterrâneo para falar daquilo que está invisível na superfície. Os rizomas da ciência e da cultura – alicerces do cinema de Pedro Urano – permeiam essa busca verneniana ao centro da Terra. O cineasta fundamenta-se no fantástico para denunciar os crimes de nosso tempo, como Lima Barreto fizera, ao revelar o drama do tesouro dos jesuítas ocultado nas galerias do Morro do Castelo, conectando o Brasil de 1710 àquele governado por Rodrigues Alves em 1905, onde demolir é sinal de progresso. É sintomática a fala do funcionário da prefeitura, Giordano, que argumenta aos protagonistas sobre as demolições em nome do avanço.
Há certa maestria em confluir esses dois opostos – realidade e fantasia –, talhados num rigor absoluto da palavra, do auditivo e do visual. Jules Verne, Lima Barreto e Gustav Holst são os pilares dessa galeria de possibilidades extraordinárias, onde o tempo parece se articular sob uma atmosfera diversa, inquietante e descompassada, se comparada ao ritmo ágil da cidade na superfície. Ele enxerga na base do cinema – a câmera escura que dá acesso ao tesouro da Companhia Católica – a reflexão de um caminho possível para essa terra tomada por desertos.
Essa lógica de progresso em nome da destruição é também o cerne da denúncia que fundamenta Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra É Nossa!, documentário assinado por Israel Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Ganguçu e Roberto Romero. Os cineastas, vencedores de melhor longa no ano anterior, compõem um retrato da realidade indígena no Vale do Mucuri, narrado sob a ótica dos maxakali, e conduzem a narrativa documental através da acusação desse Brasil que se faz de desertos culturais, dos povos que tiveram suas terras expurgadas e remarcadas pela mão branca. O filme se inicia com a vista do litoral, subvertendo o discurso da chegada dos europeus ao Brasil. Como em Subterrânea, que se utiliza de representações do Rio de Janeiro, vemos aqui um detalhe da “Vista dos rochedos de Tucutucuara, à margem do Rio Espírito Santo, perto da cidade de Vitória”, água-forte gravada por Johann Gottfried Abraham Frenzel, que compunha o registro iconográfico da paisagem brasileira, na primeira expedição científica organizada pelo príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied em 1808, disponível para consulta no acervo do Projeto Brasiliana Iconográfica.
Durante os 70 minutos do filme, percebemos o silenciamento constante, a invisibilidade de um povo cuja cultura é exemplo de atração turística na região, mas que não é respeitada. A denúncia se revela ainda pela presença dos brancos, expresso nas reclamações do dono do bar sobre os furtos de lâmpadas, minutos após ouvirmos sobre o extermínio de pessoas da aldeia, ou ainda a presença da placa de “cultura índigena” (sic) que ornamenta o portal de Machacalis, refletindo a negligência da cidade com a própria cultura fundadora de seu espaço, a partir da exploração de uma iconografia estereotipada dos registros etnográficos dos povos nativos da América do Norte. A frase que intitula o filme, “essa terra é nossa”, ressoa como um manifesto no longa-metragem. A voz de Nũhũ yãg mũ yõg hãm é dos próprios maxakali, que são acompanhados pelo olhar da câmera, a qual revela com clareza os estertores que condensam a batalha pela terra.
De maneira diversa, o outro documentário da mostra, Amador, de Cris Ventura, acompanha os passos de Jonatas Amador, o Vidigal, um artista do underground belorizontino, falecido em 2019. Apesar de trazer o ponto de vista do indivíduo, Amador encerra em si um universo multifacetado. Foi artista plástico, poeta, cantor e, no tempo livre, andarilho de seus próprios passos, que encontrou no desconforto das ruas a voz para sua poesia. Há certo amadorismo na filmagem, a câmera por vezes oscila ao encontrar o enquadramento perfeito para narrar a história de Vidigal, mas pouco importa, pois a inquietude do filme se faz justamente na potência da fala, das referências que compõem o imaginário lúdico do artista, postas numa esfera híbrida entre o amadorismo e o “amar demais”. Nesse sentido, a opção de alternar entre o preto e branco e o colorido também nos ajuda a compreender um pouco a arte de Vidigal. Suas impressões de mundo ficam gravadas no monocromatismo da memória, mas sua arte, pinturas, performances e shows, condensam o universo de cores de sua agitada personalidade.
É um pouco nesse ritmo de multiplicidades que adentramos Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó), baseado na zine “O Sol de Icó não tem dó”, de Cleyton Xavier e Urutau Maria Pinto. Dirigido pelo trio Clara Chroma, Orlok Sombra e Cleyton Xavier, Rodson narra a peregrinação do protagonista homônimo (Orlok Sombra) pelo deserto ensolarado do Brasil distópico do ano 3000, sob companhia de seu fiel robô Caleb. Provavelmente, trata-se do filme mais absurdo da seleção, que não se envergonha da filmagem precária ou da falta de orçamento. Ao contrário, é na ilogicidade narrativa que Rodson alcança sua força e constrói uma trama absolutamente surreal e lisérgica, por vezes cômica, mas sempre interessante, sobre esse andarilho que vagueia numa distopia “anarcocrenty”, onde pastores pregam alucinadamente contra “comunistas cheiradores de cu”, cuja sobriedade simplesmente inexiste. Rodson é como Amador, que encontra na liberdade das ruas o sentido de sua existência e persistência no mundo. Ou ainda, sob a companhia de Caleb, remete ligeiramente a Peggy Gravel e Grizelda de Viver Desesperado (1977), de John Waters, ambas fugitivas da neurose rígida suburbana que descobrem na marginalidade insólita da comunidade de Mortville um espaço de resistência ao establishment.
Sob o sol de 2000°C, o jovem Rodson se depara com figuras diversas do submundo, como a polícia sadomasoquista, os pistoleiros milicianos, a banda Glamourings, Cavalona Dishavada e a gangue das Cavaletes. Se a sobriedade do argumento se perpetua nos demais cinco filmes da seleção, em Rodson o que impera é a absurdidade. O filme é composto por um reportório visual que amplia o campo do cinema; brinca com o videogame; flerta por momentos com a narrativa silenciosa, evocando o cinema mudo; transfere nossa realidade para esse futuro árido, onde redes sociais são os instrumentos perpetuadores da proibição artística e da intolerância religiosa.
Apesar da disparidade ilógica, Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) reflete o Brasil de hoje, em que igrejas neopentecostais utilizam-se do conservadorismo pútrido e corrupto para extorquir a população de suas riquezas e liberdades. Aqui, a ideia do futuro é precária. Não estamos em uma distopia onde a máquina impera com sua tecnologia avançada. Os cyborgues avançam na obscuridade, nesse mundo que – tomando de empréstimo a metáfora das três metades de Leo em Subterrânea – é meio humano, meio máquina e meio intolerância. A distopia é disfórica, e o futuro não é somente inóspito, mas ineficaz. Um pouco como aquele dos Morlocks de “A Máquina do Tempo”, de H. G. Wells, que sobrevivem às margens clandestinas no ano 802701. O grande trunfo de Rodson é a habilidade de empregar essa galáxia de referências, formas e composições numa montagem frenética e acelerada, assinada por Clara Chroma, e na trilha sonora, que indica uma espécie de faroeste do macrocosmo psicodélico, sem deixar de falar diretamente sobre o nosso próprio tempo e, quem sabe, o futuro.
É sob a órbita das distopias que Voltei! concentra sua trama. O filme, um roman à clef centrado no futuro próximo de 2030 sob o “regime do disparate”, acompanha a noite de duas irmãs, Bina, uma professora de história, e Alayr, uma delegada. Sob a atmosfera cálida da luz de velas, sequela da corruptela política que relegou o Brasil à escuridão, as irmãs conversam sobre seus dias; relembram a morte da mãe, uma esquizofrênica vítima da perseguição política, denunciada pela vizinha; bem como da irmã, Fátima, artista desaparecida, fuzilada pelo regime totalitário. Elas conversam sobre o passado enquanto escutam no rádio de pilha o julgamento e condenação do governo que implementou o golpe no país. Fátima retorna dos mortos, e as irmãs, agora reunidas, compartilham memórias, opiniões e melodias, devorando pratos de maniçoba, mordendo o violão.
O ambiente doméstico é flagrado pela câmera com evidente familiaridade e nos insere nessa conversa íntima, sempre próximos das personagens, sob a luz de uma fotografia que remete ao aconchego e ao lar. Apesar da deterioração da liberdade, expressa no filme pela escuridão avassaladora, a fotografia cálida entrega certo grau de acolhimento, e traz à mente aquela qualidade do chiaroscuro das cenas religiosas de Georges de La Tour. Um filme que fala sobre as angústias de viver na era da barbárie sem dar voz à insanidade. Em meio ao obscurantismo político de 2030, a casa das três irmãs acende a chama de uma lucidez urgente ante um mundo túrbido. Numa era de silenciamento, de povos marginalizados, as protagonistas são três mulheres negras que ocupam cargos de suma importância para nossa sociedade: a arte, a educação e a lei.
Irmã, por sua vez, primeiro longa de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, escrito em 2016, compreende um outro espaço, igualmente centrado sob a ótica feminina. Semelhante a Subterrânea, o longa reflete um Brasil de meteoritos, passado e história. Um road movie que se descortina no interior do Rio Grande do Sul, trilhando o caminho de duas irmãs, Ana (Maria Galant) e Julia (Anaís Grala Wegner), em busca do pai ausente, após o acometimento da mãe por uma grave doença. Filmado em Porto Alegre, Novo Hamburgo, Gravataí, Maquiné e Mata, os fósseis de dinossauros que perpassam a trama central refletem esses fantasmas paternais. As irmãs atravessam juntas as dificuldades da independência impostas pela perda. O fantástico pincela o drama cotidiano com cores pungentes, ao passo que Julia revela seus poderes sobrenaturais, capazes de atrair meteoros para a Terra. Irmã salienta a iminência de um futuro incerto, mas não impossível.
O Brasil de Olhos Livres, embora lide com tempos futuros ou pretéritos confirma as mazelas de um país contemporâneo, relegado à censura, ao silenciamento de minorias, ao absurdo que é viver sob um regime político que implode patrimônios, destrói vidas e dá voz à intolerância. Como escreveu Lima Barreto em “O triste fim de Policarpo Quaresma”: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.
O espectador que se aventurar a encarar os dez curtas-metragens da Mostra Foco (sessão competitiva da modalidade) irá encontrar uma tônica comum que sela um arranjo entre as obras: um movimento para a distopia. Em geral, todos os filmes programados na Foco deste ano situam-se em torno de uma realidade que não pode ser chamada de literal ou cotidiana, ordinária. Muito pelo contrário, estes são filmes que, em sua maioria, até aparentam situar-se em um universo corriqueiro, mas que, tão logo comecem, passam a revelar para quem os assiste um procedimento de linguagem ruidoso, arriscado, quase como um feitiço, que nos retira do lugar comum e nos insere em um universo multifacetado de imaginários acerca do caos cotidiano.
O primeiro dos filmes a fazer este movimento é Drama Queen (2020), de Gabriela Luíza, curta-metragem experimental constituído por um intercalado de diversos memes na tentativa de forjar uma narrativa catalisadora acerca do estado político das coisas. O filme começa com uma moça olhando para a tela enquanto fala ao telefone. Ela, basicamente, explica o mote da obra: quer fazer um filme com as imagens guardadas de sua amiga Mirela para que ele possa ser inscrito em um edital. A garota também recorda que não é uma atriz (apesar de estar se colocando neste lugar) e interrompe a sua ligação com uma risada violenta. Esse riso efusivo e rasante da menina em tela, que abre Drama Queen, pode ser encarado como uma metonímia da obra: eis um filme sobre o tal do riso engasgado, aquele mesmo que divide o limiar entre a graça e a tristeza, entre o rir e chorar (ou, melhor, entre o rir para não chorar).
Drama Queen opera todo neste processo, amparado numa lógica de que, já que não se pode mais chorar, é melhor fazer gozo com a tristeza. Daí pra frente, vêm e vão diversas imagens trágicas e populares do Brasil, tal qual o rompimento da barragem em Brumadinho (MG), esgotos e bueiros a céu aberto esguichando um turbilhão de água, e imagens de videogame, à la Phill Solomon, que trazem uma espécie de Bolsonaro do universo Grand Theft Auto (GTA) com uma espingarda nas mãos circulando ao redor de árvores digitais. Entretanto, mais do que esse coro às tragédias nossas de cada dia, Drama Queen enxerga uma maneira de fazer graça e injetar riso em meio a este processo, mesclando toda essa miscelânea de regimes com uma batida veloz de funk, alternando o significado inicial de cada um destes signos. De alguma forma, pode-se dizer que este não é um filme de derrota, mas um filme sobre o depois da derrota. O que fazer após a explosão das estruturas? Para Drama Queen, rir e bagunçar talvez seja a melhor solução.
Por sinal, falando em bagunça, o segundo filme da Mostra Foco leva quase que ao pé da letra a ideia do “Eu sei que fracassei. Eu tinha que avacalhar”. A Destruição do Planeta Live (2021), de Marcus Curvelo, é a consolidação de um projeto de cinema – composto por Mamata (2017) e Joderismo (2019) – que crê no fracasso como a força central que move o mundo. O já icônico personagem Joder, interpretado pelo cineasta, agora dá espaço à própria figura do realizador, um jovem que está dividido entre a árdua tarefa de realizar uma live ou dar um tiro na própria cabeça. Esse tom explícito do cinema de Curvelo, que trafega sempre no limite das experiências políticas catastróficas absorvidas pelos jovens da contemporaneidade, apenas revela que A Destruição do Planeta Live, possivelmente o melhor filme em exibição em toda a Mostra de Tiradentes de 2021, é a consumação de uma ideia que percorre todos os filmes do cineasta: filmar para não morrer.
E é mais ou menos disso que se trata o Planeta Live, um resumo do que é lidar com o mundo que já está em ruínas, que anda sempre na corda bamba entre o fracasso e a destruição. Para Curvelo, nunca houve sequer uma possibilidade de salvação e, por isso mesmo, toda e qualquer premissa já é, por si só, um desafogo, mais ou menos na lógica do: e agora, o que iremos fazer hoje para tentar contornar a depressão do planeta? Em se tratando de Planeta Live, filmar certamente é a resposta.
Ainda nesta toada do mundo em ebulição, da distopia como forma de fuga da catástrofe, Céu de Agosto (2020), de Jasmin Tenucci, e Lambada Estranha (2020), de Darks Miranda, fecham a sessão. Entretanto, estas duas obras parecem deixar fenecer uma estratégia muito bem sustentada pelas primeiras que era a da criatividade enquanto motor da criação, desviar-se das catástrofes através da imaginação. Céu de Agosto, por exemplo, é um filme repleto de ideias e conceitos – a proporção de tela que vai aumentando com o passar do filme, as metáforas com passarinhos mortos -, mas nunca concretiza de forma concatenada os seus anseios. O filme traz uma moça grávida como protagonista, remetendo muito à primeira parte de As Boas Maneiras (2017), com direito à participação de Gilda Nomacce (atriz assinatura dos realizadores) em uma cena de ultrassom. Na seara da protagonista, existem muitas possibilidades e inquietações: as dores acumuladas pela gravidez, um possível flerte com uma amiga da igreja e, é claro, uma pontada de esquisitice à cada ida indevida ao culto religioso. Mas Céu de Agosto faz bem o exemplar de filme que promete e não cumpre. O desfecho em relação ao filho da moça grávida é nulo – ou “metafórico”, artimanha usada recorrentemente no cinema brasileiro -, suas experiências com um possível novo amor não oferecem mais que uma ou outra troca de olhares enquanto se divide um cigarro e, por fim, o tal do céu anil, que finaliza a projeção, nada oferece além de uma manobra de estilo muito bem calculada, mas que derrapa duramente enquanto uma conjugação mais concisa de mise-en-scène.
O mesmo pode se dizer de Lambada Estranha, o filme com a menor das aspirações dentre todos os dez exibidos. Trata-se, desta vez, de uma literal distopia, de um Brasil que foi invadido por extraterrestres e que, agora, tenta conciliar as diversas possibilidades intergalácticas de sobreviver. Mas Luísa Marques e Darks Miranda, ao contrário do que haviam feito em Maldição Tropical (2017), aqui nada oferecem além de um pulular de corpos misturados no chroma-key, a dançar um ritmo uníssono diante da catástrofe que o filme prevê. Não temos uma mudança de arranjo, uma investigação destes corpos, e tampouco os motions e efeitos do filme oferecem qualquer saída para tentar pensar, refutar ou se afogar na narrativa. Pelo contrário, demonstram uma capacidade técnica muito rica de duas cineastas que deixaram de lado a criatividade para dar vazão a uma ideia um tanto quanto insossa de que apenas filmar as performances ao som de uma lambada possa dar algum sinal diante do futuro. Em Lambada Estranha, o céu derrete ao revés dos corpos cambaleantes, mas as cineastas parecem não ligar muito para isto. É como se o filme adotasse uma postura do “deixa disso”, a ignorar tudo ao seu redor numa dança. Mas esse movimento, esse requebrar de corpos, infelizmente não proporciona nenhuma saída plausível para a destruição, enquanto os atores e performances ficam todos ali, extasiados, a afundar cada vez mais dentro de suas próprias ruínas.
Em contraponto ao que assistimos na primeira parte da mostra, a Sessão 2 da Foco parece trazer uma diluição das dores diante do cenário de uma possível distopia. Esta é mais ou menos a tônica presente em Ratoeira (2020), de Carlos Adelino, De Costas Para o Rio (2020), de Felipe Aufiero, Eu Te Amo, Bressan (2020), Gabriel Borges, e 4 Bilhões de Infinitos (2020), de Marco Antônio Pereira. Outro movimento interessante é uma migração dos conflitos para um ambiente mais interno, uma catástrofe ou uma fenda mágica que se abre diante dos olhos através dos mais simples e pequenos sentimentos. Isso pode ser observado na trajetória do personagem Macgyver, por exemplo, de Ratoeira: um técnico de aparelhos eletrônicos que acumula em sua oficina um turbilhão de memórias e sentimentos através das coisas que as pessoas deixaram para trás. Em seus parcos 11 minutos, um dos mais curtos filmes da Foco busca concentrar-se diretamente na figura de seu ator para poder emular as memórias de suas crises. Para Macgyver, a destruição do planeta ou do Brasil não passa por uma invasão intergaláctica e nem mesmo por um anseio direto de morte. Muito pelo contrário, em Ratoeira a destruição da vida é sentimental e simbólica, e a maior das dores pode ser não conseguir mais achar uma memória querida em meio a tanta sucata abandonada.
Outro filme que aposta muito certeiramente em um movimento simples é o último curta de Marco Antônio Pereira, integrante de sua pentalogia de Cordisburgo (MG). 4 Bilhões de Infinitos encerra a sessão 2 da Foco trazendo o que de mais estiloso e delicado possui o cinema de Marco Antônio: a simplicidade. Na trama, a cidade do interior encara a falta de luz, enquanto dois irmãos pequenos discutem dentro de sua casa qual é a melhor maneira de se assistir a um filme. Um furto, então, entra na jogada, e o irmão mais velho revela que roubou o cinema da escola – que, na realidade, é o retroprojetor da instituição. Marco Antônio, porém, assim como é feito nos outros filmes da Foco (e durante todos os seus trabalhos) rejeita uma ideia literal de sentimento e trabalha em torno de um espaço cinematográfico imaginário, onde o cinema sempre é uma porta para oferecer o sonho. Em 4 Bilhões de Infinitos, a luz das casas está em falta, e o cineasta contorna esta condição narrativa escolhendo apontar sua câmera àqueles pequenos seres que, na falta de energia, usam da sua própria imaginação para criar uma sessão de cinema diante do lençol em branco que encerra a obra.
Por fim, Eu Te Amo, Bressan e De Costas Para o Rio, possivelmente, dão um passo mais além no sentido distópico, ficcional. Ambos os filmes trazem como mote a mitologia para desdobrar suas narrativas. Em De Costas…, uma serpente gigantesca irá engolir Manaus; em Eu Te Amo, dois amores perdidos são realocados em uma montagem que remete ao primeiro Godard, quase como se a ideia de amar alguém fosse similar a fazer um pacto com o diabo. Mas Eu Te Amo…, ao contrário de De Costas…, consegue contornar os seus ensejos sentimentais e ficcionais para chegar ao fundo de sua narrativa, levando o espectador a seguir o fio desesperado dos apaixonados até as últimas bordas do maneirismo. Já De Costas…, abandona a sua premissa em um filme que parece ser uma mistura dos documentários de Apichatpong com um cinema marginal dos anos 70 – câmera na mão, bagunça, desestrutura -, e, nessa amálgama de fatores, o resultado acaba sendo um pouco desconcertante – infelizmente, no pior dos sentidos.
Encerrando a Foco, na última parte, temos Abjetas 288 (2020), de Julia da Costa e Renata Mourão. De todos os exibidos, este é o filme que leva até à última letra a ideia de uma distopia. Estamos diante de um Sergipe ruidoso, metálico e sonoramente esgarçado, com duas protagonistas que buscam se comunicar com o mundo onde estão inseridas. Abjetas, entretanto, parece pouco interessado em suas protagonistas, no que de mais interessante elas poderiam oferecer, como experiência de vida e corpo, e acaba recolhendo-se a um movimento árduo de performance e experimentalismo mecânico batido, deixando de lado uma pulsão narrativa que, ao início, parecia poder render algo muito mais valoroso à obra.
Preces Precipitadas de um Lugar Que Já Não Existe Mais (2020), de Rafael Luan e Mike Dutra, ao contrário de Abjetas, pretende apostar em uma distopia como comentário mais sisudo em relação à realidade. Tudo no filme é exibido num sentido metafórico, desde o amigo que some em uma parada de ônibus até o espaço que seria considerado como um limbo, local de corpos periféricos, que possivelmente poderíamos ler como um pós-vida das tantas pessoas que costumam partir antes da hora. Dos três filmes da Foco 3, este é o que mais tenta um movimento de tensão entre a distopia e o real, e, por mais que seja através da metáfora (que reina na primeira parte, mas que na segunda descamba para uma literalidade exagerada) pelo menos é capaz de ofertar a quem assiste um relicário de observações e interpretações acerca das agruras da vivência.
Por último, Novo Mundo (2020), de Natara Ney e Gilvan Barreto, é uma reflexão que conjuga, assim como o filme anterior, uma metáfora em cima da chegada de corpos negros em um território novo, em um “novo mundo”. O encerramento da Mostra Foco escancara, com seu último programa, um ensejo de refeitura da nossa história, de possibilidades e imaginações para vidas marginais e de como um cinema brasileiro produzido por estas pessoas pode ser uma saída. Ao mesmo tempo, a Mostra como um todo (o que inclui também os filmes da última sessão), parece escancarar a ideia de uma invenção política como contorno ao estado das coisas no país em que vivemos. É como se estes filmes todos acreditassem que estados em colisão, em ebulição, tentando fabular sobre o que aqui acontece. É como se eles dissessem: o terceiro mundo vai explodir. Entretanto, ao que parece, devo dizer, a verdade talvez seja outra. Por aqui, o terceiro mundo já explodiu. E é bem possível que quem se dê melhor com isso sejam os cineastas que saibam ver no valor simples da imaginação uma maneira de começar a reconstruir as mazelas dos destroços.
Primeiro, um passeio com o todo. Digo “com” ao invés de “pelo” não à toa, pois a ideia de sobrevoo crítico nunca me agradou. Prefiro caminhar com os filmes lado a lado, me ajustando às suas qualidades e defeitos, sem solenidade. Assim, me sinto à vontade para conversar olhando nos olhos, de modo que também possam entender minhas limitações. Depois, farei uma excursão com cada um, aos poucos compreendendo suas essências.
Em síntese, a Aurora deste ano apresentou uma diversidade estética poucas vezes vista. De um documentário observacional como Açucena (2021), de Isaac Donato, a uma ficção lúdica como Rosa Tirana (2021), de Rogério Sagui, existem abismos. Mergulhar neles talvez seja importante pra encarar uma obra experimental como Oráculo (2020), de Melissa Dullius e Gustavo Janh, ou um filme-processo como O Cerco (2020), de Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spínola.
Se não quiser saltar, não tem problema. O recuo pode ser fundamental para enfrentar a afetividade além-mar de Kevin (2021), de Joana Oliveira, o horror confinado de A Mesma Parte de um Homem (2021), de Ana Johann, ou o riso melancólico de Eu, Empresa (2021), de Leon Sampaio e Marcus Curvelo. Independente do caminho, dele resultam tropeços, torções e sopros de calmaria. Fato é que não se passa ileso ao trajeto.
Dedicada a cineastas com até três longas-metragens no currículo, a mostra foi inaugurada por Açucena, que depois se tornou vencedor do Troféu Barroco. Trata-se de um filme com ritmo vagaroso e longos planos de contemplação de personagens, ações e espaços, quase sempre os escondendo mais que revelando. Tais escolhas aclimatam um mistério em torno da personagem-título, cuja presença se manifesta apenas no final. Mas o percurso narrativo é atravessado mesmo pelas vivências de Dona Guiomar, mulher negra, na casa dos 60 anos, que coleciona um número infindável de bonecas brancas, loiras e falantes.
O universo observado é fascinante, sobretudo pelo caráter dissensual que possui. Por que Dona Guiomar se identifica tanto com esses brinquedos de aparência diferente da sua? Por que a decoração infantil toma conta de seu lar? Por que a tão falada Açucena demora a aparecer? Por que há tanta naturalidade em tentar agradá-la?
O filme não soluciona essas dúvidas, o que é bastante louvável. Em contrapartida, prefere cortejá-las de forma distanciada. São vários os planos permeados por obstáculos, filmados à espreita ou mediados por reflexos, com total receio de invadir o cotidiano dos personagens. No entanto, se sobra respeito, falta partilha. Dessa forma, o filme nunca se desprende de sua premissa. Já o percurso de Dona Guiomar parece o tempo todo desafiar o registro a embarcar em suas complexidades.
O ponto alto dessa dissonância acontece na cena mais íntima, quando vemos a personagem interagir com uma de suas bonecas falantes em seu quarto. Nesse momento, percebo que Dona Guiomar tem um pouco de Açucena todos os dias, não apenas quando a erê se manifesta. Seus gestos são muito táteis, praticamente convidando o filme a entrar na brincadeira. Só que a câmera se posiciona de forma afastada, registrando-a em segundo plano, em meio a duas de suas bonecas servindo como moldura. E mesmo quando a câmera se aproxima, é por breves instantes, somente para estabelecer um raccord que possibilita uma leitura ficcional. De toda maneira, há consistência e metodismo na sustentação de um estilo particular, fazendo com que meu interesse pelo trabalho de Isaac Donato apenas cresça.
Por falar em método, o segundo longa exibido na Aurora se constrói a partir de um dispositivo bastante rígido. Realizado em película, Oráculo é composto por seis planos-sequência que têm praticamente a duração de um rolo 16mm, algo por volta de dez, onze minutos. Há também um plano mais curto no ínicio, que acompanha a cartela-título. Ser humano, espaço e tempo são as matérias que lapidam sua construção. Em cena, três personagens distintos: um rapaz tragado e expurgado pelo mar (Juarez Nunes), um senhor que caminha pela passarela de uma cidade transformada (Fernando Goulart Jahn) e uma jovem artista dando os primeiros passos rumo à maturidade (Alice Bennaton).
Ao contrário do que se espera de um oráculo, não há respostas prontas nem previsão de futuro. O caminho se faz ao andar. Os personagens agem diante do tempo estabelecido, criando associações simbólicas com o espaço que os rodeia. A vida e a morte são como as ondas que se chocam contra o rochedo, o passado e o presente estão aprisionados no mesmo quarto, a velhice é uma ponte que nos torna ilha. Nas duas cenas mais emblemáticas, a menina artista canta e ouve sua própria gravação, depois ela mesma anda à beira-mar e volta transformada em mulher (Luana Raiter). Tais momentos traduzem a noção de passado, presente e futuro habitando uma mesma espacialidade, grande tônica do filme.
Contudo, apesar da esplendorosa composição formal do duo Distruktur, conhecido por suas experiências atravessadas pelo exílio, sinto falta de uma abertura para que personagens e espaços possam suplantar o tempo material enclausurado pelo dispositivo. A desorientação incessante de outros registros da dupla, tais como Muito Romântico (2016) e El Meraya (2018), agora abre caminho para uma codificação espaço-temporal mais delimitada. Não deixa de ser uma aposta perspicaz, embora eu nem sempre tenha conseguido nadar na mesma correnteza.
Toda edição de Tiradentes tem uma narrativa própria. A deste ano valorizou as dissonâncias radicais entre os filmes selecionados para uma mesma mostra. Na Aurora, esse aspecto tornou-se definitivo a partir da exibição de Rosa Tirana, no terceiro dia do evento. Se Açucena e Oráculo prezam pela concepção de planos duradouros, quase sempre estáticos ou com lentos movimentos de câmera, o longa de estreia de Rogério Sagui se lança numa articulação estética oposta. Decupagem e montagem possuem ritmo fluído, acompanhando a orientação narrativa. Tal fluidez, é preciso dizer, facilita a caminhada do espectador, praticamente apaziguando sua relação com o que é mostrado.
No sertão nordestino, andamos junto com Rosa (Kiarah Rocha), criança pobre que foge de casa à procura de Nossa Senhora Imaculada, com o intuito de pedir à Santa que traga água ao seu povo. Sua jornada é situada entre a realidade, o pesadelo e o sonho. Mas ao contrário da Dorothy de O Mágico de Oz (1939), não existe amizade que possa lhe dar abrigo. Na melhor sequência do filme, isso fica bem claro. A menina recebe carona de um coronel (Rogério Leandro), que se aproveita dela e tenta torná-la cativa em sua fazenda. A ameaça de abuso sexual é filmada com bastante argutez. Sem nunca mostrar o rosto do coronel, vemos apenas fragmentos monstruosos de seu corpo e as reações angustiadas de Rosa. O mal, desse modo, é uma espécie de encarnação demoníaca, sem escrúpulos. Guardadas as devidas proporções, é como a imagem de horror de Robert Mitchum em O Mensageiro do Diabo (1955), entretanto sem face. Mas em Rosa Tirana o mal não tem rosto, ele se generaliza sertão afora e toma conta do solo árido por onde se pisa.
Todavia, apesar de boas escolhas formais em determinadas cenas, o filme padece de uma inventividade narrativa que possa ser melhor conjugada com seus atributos estéticos. No fim, o tom excessivamente pueril do enredo restringe a obra a um nicho de consumo muito específico, causando impressão de que as melhores experiências que tende a gerar encontram-se no circuito comercial televisivo.
Ainda assim, é interessante pensar sobre a atualização sertaneja que propõe, forjando pra si um onirismo palatável, em certa medida distante da tradição legada pelo Cinema Novo. Destaque também para a breve participação de José Dumont, que interpreta o avô de Rosa, um cego que parece traduzir a secura e a fertilidade de ideias que o próprio sertão proporciona.
Do sertão singramos para o além-mar. O filme exibido no dia seguinte foi Kevin. O documentário de Joana Oliveira começa em Belo Horizonte, apresentando rastros íntimos de sua própria rotina. Sabemos que Joana é professora, casada, tem um pai adoentado e se recupera de um aborto espontâneo. A troca de mensagens com sua amiga Kevin (Adweko) provoca uma vontade de mudança. Joana, então, deixa a capital mineira e parte para Uganda, terra-natal da camarada.
Daí pra frente vemos um filme de partilha, sobretudo espacial. Joana e Kevin quase sempre dividem o mesmo quadro, o que demonstra cumplicidade na convivência, ainda que ambas não se vejam há 20 anos, desde que moraram juntas na Alemanha. Mas as complexidades não demoram a se materializar. A branquitude de Joana destoa da pele preta das pessoas que transitam pelas ruas, feiras e demais espaços do lugar visitado. E, apesar da sintonia visível, Joana e Kevin não possuem a mesma trajetória de vida.
Uma cena, em específico, demarca essa discrepância. Kevin descreve as situações de racismo velado que sofreu com a filha enquanto esteve na Alemanha, coisas que Joana imagina por empatia, mas não tem como sentir na pele. Curioso que este é um dos raros momentos em que Kevin é mostrada num plano específico sem a presença de Joana. A decisão de registrá-la dessa forma é bastante justa, dando destaque ao seu relato. Mas me parece pouco diante de um filme dedicado a ela.
Ironia à parte, Kevin é o oráculo que o filme da Distruktur não possui. Seus gestos e falas são sempre precisos, desprovidos das inseguranças demonstradas por Joana. No entanto, teria sido mais propositivo investir no que o filme tem de melhor, que são as experiências vividas por Kevin em seu dia a dia, seja na Alemanha ou em Uganda, revelando ecos de uma existência repleta de camadas.
Ao invés disso, a narrativa se concentra mais em Joana, no afeto que ela emana e nas fugas que enfrenta para estar ao lado da amiga. A companhia de Kevin é para Joana um refúgio. Um abrigo que ameniza os traumas do aborto, a iminência de morte do pai ou o passeio de rafting que deu errado. Desse esconderijo brotam situações de incandescente acalanto, que fazem com que o filme comece, se desenvolva e termine de forma agridoce, algo que também tem seu valor.
A mostra Aurora seguiu com A Mesma Parte de um Homem, obra que rendeu à diretora Ana Johann o prêmio Helena Ignez de destaque feminino em Tiradentes. Renata (Clarissa Kiste) vive com o marido Miguel (Otávio Linhares) e sua filha Luana (Lais Cristina) em um ambiente rural bastante rude. Um acidente repentino acarreta a morte de Miguel. A partir de então, Renata terá de combater a ameaça incessante de outros homens, temor que se acentua com a chegada de Lui (Irandhir Santos), um desconhecido sem memória que aparece em seu sítio.
O medo logo se torna oportunidade. E esta é zona limiar na qual o filme melhor se coloca. Renata é uma mulher acuada pelo patriarcado que vê no rapaz a chance de proteção? Ou é alguém que se aproveita de Lui para satisfazer seus desejos sexuais reprimidos? As duas coisas convivem no mesmo campo, com fronteiras diluídas. E se Lui pode ser visto como o oposto do falecido marido, ou seja, um cara fino, educado e nada rústico, o clima de tensão criado em torno dele dá a entender que é capaz de manifestar o mal a qualquer momento. Afinal, Lui também seria uma metonímia de todos os homens, que só não é agressivo porque ainda não recuperou a memória. Ou, até mesmo, pode ser entendido como um duplo disfarçado de Miguel.
A mise-en-scène de A Mesma Parte de um Homem é composta por uma atenção especial à reação dos personagens, enquanto o que é fabulado se instaura no extracampo. A situação mais deflagradora dessa percepção encontra-se na parte final, quando Lui e Luana saem pra caçar e só voltam tarde da noite, deixando Renata apreensiva. O tempo todo intui-se um abuso sexual que faz com que a mãe perca as estribeiras e coloque Lui contra a parede. Para a construção desses gestos, quase toda a sequência aposta na reação de Renata e em seu imaginário, ao passo que nós, espectadores, seguimos na dúvida sobre o que realmente aconteceu.
Não deixa de ser essa uma metonímia do próprio filme. Entre as partes que nunca se encaixam, prefere-se acreditar nas incertezas do todo como forma de segurança. O problema é que, por mais que se dê trela pro discurso totalizante, a obra perde a oportunidade de tentar entender melhor suas partes. Dessa maneira, Lui torna-se mero adereço deslocado em meio às necessidades de Renata. E o perigo que se instala ao seu redor é sempre distorcido, nunca recebendo contrapontos. A hierarquia do olhar de Renata sobre o de Lui deixa o filme embarcar num caminho que parece simples, mas tem mais imperfeições do que a gente imagina.
O sexto dia da Aurora trouxe a estreia de O Cerco, filme concebido ao longo de sete anos (2013-2020). O período não poderia ser mais peculiar. Em 2013, uma série de manifestações populares tomou conta do país, abalando as estruturas do governo Dilma Rousseff. De lá pra cá, muitos acontecimentos têm levado a esquerda ao completo estado de apatia.
O Cerco não toca diretamente nesses assuntos, mas mostra que seus desdobramentos deixaram marcas profundas. Tais cicatrizes, por sua vez, não são apenas sociais, cravadas numa reação coletiva de rebanho. É nisso que o filme acredita, portanto olha pro todo sempre se debruçando sobre os efeitos gerados no plano subjetivo.
O indivíduo em foco é Ana (Liliane Rovaris), pessoa da qual pouco se sabe. O que se tem conhecimento é que é atriz, possui uma filha, um cachorro, é divorciada e mora num lugar que não é bem um prédio nem uma casa. E mesmo as coisas que conhecemos não chegam a se transformar em abordagem. O Cerco aborda mesmo é a clausura emocional e o medo de perder o pouco que se tem num país entregue às ruínas, cada vez mais reconectado a um passado sombrio.
A estilística se articula através de espaços e tempos desordenados. Tal aspecto já se nota desde o ínicio, quando três crianças brincam de cabra-cega. Com os olhos vendados, uma delas tenta, em vão, acertar as outras duas. Em que época isso se passa também não sabemos. E assim o filme segue o seu trajeto. Com uma venda no olhar, tentamos intuir os rumos narrativos, mas sem poder decifrá-los. Entre apresentações teatrais de comédia sem riso e áudios gravados na época da ditadura, Ana tenta lidar com fantasmas que parecem mais vivos que nunca, seja no andar de cima, de baixo ou dentro de seu lar.
O grande trunfo de O Cerco é fazer da sugestão uma condição imanente. Ao evitar a assertividade para confrontar o caos político, o filme nos permite embarcar na agonia impassível de Ana. E desse estado individual traçamos pontes imaginárias em direção ao coletivo. A concretização desse movimento pode ser vista numa das cenas finais. O plano mostra Ana diante de um microfone a cantar “Meu Disfarce”, de Carlos Colla e Chico Roque. Em questão de segundos, o microfone fica só, a música continua e a atriz segue para o palco na companhia dos colegas de teatro, brincando, sorrindo, se contorcendo. O filme de Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spínola talvez fale mais à classe artística, à esquerda classe média/rica, mas fala com um dor tão grande que até eu consigo sentir.
Havia dois caminhos possíveis para a construção de Eu, Empresa, último filme da Aurora. O primeiro era o do cinismo, tomando emprestado um universo que lhe é alheio apenas para fazer chiste ou galhofa. O segundo era o da escuta e, consequentemente, interação com o objeto filmado, nunca se colocando acima ou abaixo de suas jogadas. Por sorte, o filme acerta na mosca e trilha o segundo percurso, tendo que desafiar todos os buracos que aparecem no meio da estrada.
Como em vários dos curtas de Marcus Curvelo, vemos mais uma vez os dramas burgueses de Joder, personagem interpretado pelo próprio cineasta, que representa um narcisista fracassado incompatível com as exigências do mundo do trabalho. Mas não nos esqueçamos de que se trata de um filme dirigido por duas pessoas. Portanto, talvez seja importante lembrar das relações que o longa estabelece com Peito Vazio (2017), curta que Leon Sampaio correalizou com Yuri Lins, um dos melhores exibidos em Tiradentes nos últimos anos. Nessa obra, acompanhamos um rapaz desolado com o abandono da namorada, tentando sobreviver num país derrubado pela crise política. Tal como o curta mencionado, Eu, Empresa entende que a melancolia é permanente, a sobrevivência é necessária e o retorno ao passado é decerto impossível.
Resta seguir adiante. Ou seja, Joder precisa se adaptar aos novos tempos. E ele até tenta. Aprende sobre empreendendorismo, faz crossfit, procura ajuda de uma coach (Ritah Oliveira), esboça carreira de digital influencer, mas nada dá certo. Nas marés da grande rede, o sucesso não é tão fácil como muitos prometem. O personagem procura outros nortes. Faz bico como uber, pega um freela para dublar vozes infantis de um aplicativo, filma a construção de uma obra para empreiteira etc. Tudo isso dá a impressão de ser modulado através de esquetes, que não têm o desejo de confeccionar um arco narrativo linear, o que diz muito sobre Joder, sempre andando em círculos e não chegando a lugar algum. Até que, inesperadamente, o sucesso aparece. Mas, claro, ele também não demora, pois Joder é epítome da própria obrigação de ser um fracassado, não importa como, onde e por quê.
“O coach é presente e futuro”, diz sua orientadora vocacional. O passado precisa ficar pra trás. Entretanto, o filme brinca com essa confusão temporal do personagem, permitindo que passado, presente e futuro se cruzem e façam de seu destino uma areia movediça. Uma sequência ilustra bem essa estrutura. Enganado numa corrida de uber, Joder tenta constranger uma passageira no aeroporto, mas não a encontra. Em seguida, à beira da praia, faz um vídeo em primeira pessoa contando sua frustração. O vídeo viraliza, porém ele toma um enquadro de um amigo, que alerta que nem pro fracasso ele tem vocação. Tal sequência é a arte final de um desenho que se esboça do começo ao fim, algo que me agrada bastante e que corresponde às experiências e ao estado de espírito de toda uma geração. É como se o filme caminhasse um pouco, encontrasse uma pedra preciosa no meio do caminho, percebesse que era bijuteria e voltasse à primeira casa do jogo, sempre de cabeça baixa. E, ao tentar outro percurso, se deparasse com os mesmos elementos, numa rota infinita de sorte e azar.
Quem me vê escrevendo assim talvez pense que Eu, Empresa é um filme só de risos. Na verdade, o longa sobre a trajetória de Joder é de uma melancolia solitária que dá dó. Vemos nos ombros do personagem e em sua postura arqueada a tristeza de um clown. Mas vez ou outra até rimos dele. Rimos, porém é melhor que seja escondido, porque se alguém bem-sucedido nos pega, teremos que fechar a cara muito cinicamente. Falando nisso, não poderia haver fracasso maior ao filme do que ganhar a Mostra Aurora. Ainda bem que perdeu. Joder pode finalmente celebrar seu sucesso e continuar sua caminhada de lágrimas. Já eu me despeço aqui.
Produção paulistana filmada, em grande parte, na cidade de São Paulo, Skull: a Máscara de Anhangá tem seu ponto de partida na descoberta de uma poderosa máscara pré-colombiana em um sítio arqueológico na Amazônia. O preâmbulo se passa em 1944, quando militares usaram o artefato em seus experimentos, que acabam dando muito errado. No presente, a máscara é encontrada e levada a São Paulo, onde deveria ser exposta em um museu com toda a pompa, mas é despertada em um ritual e se aloja no rosto de um incauto que, possuído por ela, promove um verdadeiro banho de sangue pela cidade. A policial Beatriz Obdias, uma mulher durona, porém atormentada pela culpa por algo hediondo que cometeu no passado, é encarregada de investigar a onda de assassinatos.
Skull tem direção coletiva de Armando Fonseca e Kapel Furman, sendo o segundo da dupla (Kapel tem um terceiro longa dirigido, Pólvora negra, que foi pouco exibido, mas se espera que um dia ainda seja lançado). Os dois, ao lado de Raphael Borghi, comandam o Cinelab, um reality show para a televisão a cabo que já soma três temporadas de sucesso. No programa, o trio orienta um grupo de aspirantes a profissionais dos efeitos especiais sobre como realizar cenas muito baratas com resultados surpreendentes. A trajetória de Kapel como maquiador remonta ao início dos anos 2000, quando trabalhou em dezenas de filmes importantes como técnico de efeitos especiais. Sua experiência com encenação de lutas também é um fator relevante em seu cinema, que costuma ser um híbrido de ação e horror.
Em Skull essa tradição de confirma. Diversas cenas de luta permeiam o filme, algumas delas ambientadas em pleno centro da capital paulista. Dentro do subgênero slasher (filmes de matança), exportado da cinematografia estadunidense, muitas vezes o que diferencia uma história da outra é a data comemorativa do ano em que a narrativa se passa. Já aqui há a criação de uma mitologia própria, tendo como base a cultura indígena, apoiada em uma aura mística que enriquece o personagem (as cenas que mostram o espaço possuem um encanto cósmico que seduz até mesmo os mais ferrenhos detratores dos efeitos em CGI).
Apesar dos méritos, Skull acaba se perdendo um pouco no registro caricatural. Há a tentativa de construção de uma anti-heroína na personagem da policial Beatriz, mas ela não desperta o menor sinal de empatia, mesmo que esteja fragilizada pela ferida que carrega na alma. Em algum lugar entre o desenvolvimento da personagem e a atuação da atriz Natallia Rodrigues foram ocultados seus sentimentos, suas intenções, o que poderia ter ficado um pouco mais claro com o famigerado recurso do voice over nas cenas em que está sozinha, já que seu desempenho não dá conta da ideia que a personagem precisa transmitir para o espectador.
Se Skull é essencialmente urbano, O Cemitério das Almas Perdidas se passa em um cenário rural, bem distante da selva de pedra. O Cemitério… narra a história de um jesuíta corrompido pelos irresistíveis poderes do livro negro de Cipriano (de quem assume o nome), um instrumento que lhe permite dialogar diretamente com o Diabo e lhe confere poderes sem limites. Ao ancorar com um grupo de missionários jesuítas no Brasil-colônia, Cipriano enfrenta os indígenas e inicia um reinado de terror, até que é amaldiçoado a ficar para sempre em um cemitério. Séculos mais tarde, uma trupe de atores chega ao local e termina encontrando os diabólicos jesuítas.
O Cemitério…, sexto longa-metragem de Rodrigo Aragão, surgiu de uma inspiração muito pessoal do diretor, que, quando criança, ouvia muitas histórias sobre o livro de São Cipriano e que um vizinho supostamente teria um exemplar em casa, o que provocava muito medo nas crianças do bairro. Amplamente comercializado, o livro, na verdade, pode ser encontrado nas banquinhas próximas da sua casa, mas continua fascinando Aragão, que começou a planejar O Cemitério… há muitos anos. Uma outra parte da história, sobre a trupe, também é baseada em uma experiência pessoal, de quando Rodrigo viajava com seu próprio museu de horrores. O diretor, assim como Kapel, é um reconhecido maquiador de efeitos dentro do cinema brasileiro, tendo começado a trabalhar na área ainda nos anos 1990. Sempre adepto de um cinema mais familiar, literalmente envolvendo sua esposa, filha e amigos na produção dos filmes, O Cemitério… é a sua maior e melhor produção até o momento – a evolução do diretor e de sua equipe a cada longa-metragem é impressionante, bem como o alto valor de produção deste filme.
Ainda que a história tenha personagens e elementos em excesso, o que a torna confusa, essa desvantagem fica em segundo plano devido à beleza das imagens e das ações. O elenco de O Cemitério… também vale ser celebrado: Renato Chocair, que fizera sucesso como galã global no começo dos anos 2000, interpreta o satânico Cipriano e se destaca em um elenco com excelentes nomes como Francisco Gaspar e Clarissa Pinheiro.
Parece que há um problema estrutural em O Cemitério…, com o terceiro ato se antecipando no que deveria ser o segundo, o que torna o filme exaustivo, apesar da razoável duração de 94 minutos. É como se houvesse um excesso de clímaxes e isso desgasta um pouco a experiência, mas, no fim das contas, a lembrança que fica é de uma sessão intensamente divertida.
Essa proposta mais de entretenimento e diversão é uma das caras do cinema de horror feito no Brasil, que é múltiplo e autoral por excelência. A mostra Tiradentes promoveu uma conversa intitulada “A poética do cinema de gênero”, conduzida pelo crítico Marcelo Miranda e da qual participaram, entre outros realizadores, Rodrigo, Armando e Kapel. Foi este último que disse a frase que resume uma das características mais bonitas, mas muitas vezes incompreendidas do horror: “Skull não é sobre violência urbana e real, mas sobre se afastar disso. Não é sobre sadismo, mas a plasticidade que o sangue possibilita”. Já Rodrigo e Armando, quando questionados sobre o futuro incerto da produção cinematográfica no país, incentivaram a realização de produções menores e caseiras. Aragão, inclusive, já está colocando em prática o que prega, realizando curtas baratos e divertidos durante o isolamento social, publicados em seu canal no YouTube.
Tiradentes, há anos, tem a responsabilidade de abrir o calendário dos grandes festivais de cinema nacionais, servindo como bússola do que devemos acompanhar na temporada, e embora em 2021 tenha exibido filmes que já haviam sido amplamente discutidos no ano anterior, ao menos não deixou passar em brancas telas as obras de realizadores que já há vinte anos têm insistido em mostrar que existe cinema de gênero no Brasil. Realizado em versão online, desta vez a “Sessão Meia-Noite” marcou apenas o horário de liberação dos filmes na plataforma, não dependendo de cinéfilos notívagos como espectadores, e confirmando que toda hora é ideal para um filme de terror.
A 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes foi realizada sob condição diferente de todas as outras. Em razão da pandemia provocada pelo coronavírus, esta é a primeira vez em que o evento não teve, vejam só, a cidade de Tiradentes. É claro que uma ou outra ação foi promovida no histórico município mineiro, mas o grosso da programação foi transportado, de forma inédita, para o espaço virtual.
Acostumados à constante troca durante os oito dias de festival, convidados e público tiveram que se adaptar ao novo formato, sem sessões na praça e na tenda ou debates no Yves Alves. Quase todos os filmes ficaram em cartaz entre 23 a 30 de janeiro. Contudo, exceções como os filmes da Aurora e da Foco tiveram menos tempo de visualização, pois entravam numa determinada data e saíam do ar 48 horas depois.
Com a temática “Vertentes da Criação” servindo como baliza, o festival intentou priorizar a diversidade criativa na composição de suas mostras. Se nos últimos anos era comum notar tendências muito específicas do cinema brasileiro contemporâneo, com destaque para o hibridismo entre documentário e ficção, dessa vez o cardápio trouxe aspectos muito mais amplos. Sempre foi raro, por exemplo, ver filmes experimentais como Oráculo (2020), de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, na Aurora. Ou então, uma leva tão grande de curtas atravessados pela inventividade formal, como alguns exibidos na Foco, Panorama, Jovem e Formação. Veio a calhar também a homenagem à cineasta Paula Gaitán, uma das mais importantes realizadoras brasileiras das últimas três décadas, cujos filmes foram disponibilizados em caráter especial, destacando-se a obra-prima Luz nos Trópicos (2020) e o média-metragem Ostinato (2021), este exibido na abertura do evento.
A cobertura da Rocinante em 2021 também foi diferente das coberturas executadas nos anos anteriores. Com a modalidade virtual, tivemos a oportunidade de reunir uma equipe maior para escrever sobre um volume considerável de filmes. Resolvemos, então, publicar escritos panorâmicos dedicados a algumas das principais mostras. Roberto Cotta dirigiu sua atenção à Aurora, competitiva de longas-metragens para cineastas estreantes. Já a Foco, competitiva de curtas-metragens, recebeu as análises de Rubens Fabricio Anzolin em sua estreia na revista. A Olhos Livres, competitiva de longas avaliada pelo Júri Jovem, foi examinada por Letícia Badan. Alguns dos curtas da Panorama e da Praça foram esquadrinhados por Douglas König de Oliveira. Os filmes de horror da Sessão da Meia-noite ganharam a distinção da especialista Beatriz Saldanha. E a Vertentes da Criação, mostra temática do evento, foi analisada por Lea Monteiro, também marcando a estreia de suas colaborações.
Apesar de muitas benesses promovidas pela modalidade virtual, esperamos voltar ano que vem vacinados à tenda, à praça, ao Yves Alves e a toda comunhão de consensos e dissensos que a Mostra de Cinema de Tiradentes sempre proporciona. Que os festivais presenciais possam ser preservados, apesar de todos os pesares.
Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia: a – Esfregar pedras na paisagem. b – Perder a inteligência das coisas para vê-las. (…) e – Perguntar distraído: – O que há de você na água?
(Manoel de Barros, sempre)
No romance de ficção científica Nova York 2140, Kim Stanley Robinson imagina um futuro tomado pelas águas. Devido ao descaso com o meio-ambiente, descaso oriundo da essência predatória do capitalismo, o aquecimento global resultou na destruição de regiões costeiras ao redor do mundo. Com a elevação do nível dos oceanos, em parte graças ao degelo das calotas polares, ondas aquáticas de aniquilação provocaram a morte de milhares de seres humanos, cujas cidades litorâneas passam a existir submersas no mar. Atingida em cheio, entre edificações em ruínas e prestes a sucumbir, Nova York precisa reconstruir-se enquanto metrópole, reinventar seu viver num misto de precariedade material, crises ininterruptas e beleza oceânica. A humanidade passa por provações terríveis, deveria ter aprendido com seus erros, mas mantém-se submetida aos ditames predatórios do neoliberalismo. Enquanto muitos se afogam, passam fome ou perdem suas casas tomadas pelo oceano, alguns poucos prosseguem enriquecendo a partir dos mecanismos da especulação financeira.
Lido por mim em janeiro de 2020, o livro de Stanley Robinson, ao descrever um futuro sombrio que se tornou imagem corrente na ficção científica, parecia reverberar o mal-estar em torno dos graves problemas ecológicos enfrentados recentemente pelo Brasil. Os dias dedicados às primeiras linhas do romance, um calhamaço com quase quinhentas páginas, coincidiram com as notícias envolvendo a crise hídrica na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto um narrador de Nova York 2140 relatava a catástrofe do futuro, com os oceanos revoltos diluindo existências, a “vida real” expunha o descaso do tempo presente, a contaminação da água que deveria servir para o abastecimento da população carioca. Lá pelo meio do livro, os efeitos de nosso desenvolvimentismo desenfreado ampliaram-se ainda mais. Em Belo Horizonte, resultado de um urbanismo descontrolado à base de interesses espúrios e especulações imobiliárias, as chuvas torrenciais transformavam-se em alagamentos, redemoinhos, ondas de destruição e morte. Livro e vida compunham um painel de nossas crises. Do Rio a Minas Gerais, percurso do ônibus que me levou à 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, as águas estavam contaminadas, matavam, tornaram-se assustadoramente pesadas.
No dia 25 de janeiro, ainda às voltas com a leitura de Nova York 2140, decido acompanhar uma sessão de curtas-metragens no Festival de Tiradentes, parte da mostra paralela “A imaginação como potência”. Eu nada sabia sobre o primeiro filme da programação, A Felicidade Delas (2019), dirigido pela cineasta Carol Rodrigues. Realizado na cidade de São Paulo, aflitivo na representação de violências cotidianas presentes em um país autoritário, o filme apresenta uma situação agônica que ronda, no Brasil atual, aqueles que enfrentam o fascismo e lutam pelo direito à livre existência de seus desejos. Perseguidas pela polícia após participarem da Marcha Mundial das Mulheres, Ivy e Tamirys, duas jovens negras, fogem para o interior de um prédio abandonado, onde buscam algum lugar de refúgio. Acuadas pelas forças policiais, em silêncio enquanto escutam nervosamente os ruídos da violência inevitável que se aproxima, as personagens vêem seus desejos aflorarem em meio à tensão. Na penumbra avermelhada, no aperto entre quatro paredes, ao som sufocante que ecoa a perseguição, as duas cruzam olhares, aproximam respirações, tocam-se suavemente, amam-se. Não há a necessidade de falas, teses ou discursos. A alegoria dos desejos que emergem mesmo diante da pior opressão encontrava-se evidenciada na tela do cinema.
No entanto, quando o amor rebenta, na iminência da agressão policial, Ivy e Tamirys transformam-se repentinamente em água. Não uma água qualquer, não uma água a evaporar-se. Mas sim uma grande e calorosa onda a espalhar-se por São Paulo, a tomar posse dessa cidade historicamente acusada de ser o epicentro do descarte e do desamor. Como um maremoto da paixão, a despeito de tudo e de todos, as duas inundam a megalópole com a quentura de seus desejos e corpos. Após tantas águas contaminadas, sujas, mortais, destrutivas, as águas de A Felicidade Delas restituíam um pouco da crença no cristalino, na redenção pelo mar. Outros filmes da Mostra de Cinema de Tiradentes, com ou sem referências às águas, também traduziriam esse sentimento de afeto, encontro e redenção envolvendo o feminino. São os casos, sobretudo, de Um Dia com Jerusa (2019), de Viviane Ferreira, e de Até o fim (2019), de Ary Rosa e Glenda Nicácio. Entre tantas coisas, a arte é mobilizadora de desejos em meio a projetos arruinados de sociedade.
Acontece, porém, que o Brasil atual, em suas perversidades, parece naufragar as expectativas de futuro. Residir no Brasil, hoje, é viver uma incansável ressaca da felicidade. É como um abrupto e exaustivo movimento das marés. Quando a praia se apresenta viável para o banho, criando um sentimento de que a democracia irá emergir das águas, logo depois algo de ruim acontece para nos recordar que as ondas também podem ser traiçoeiras e afogar anseios. Ainda no dia 25 de janeiro, após sair da sessão de A Felicidade Delas e com o pesado volume de Nova York 2140 na mochila, alguém recorda uma das piores tragédias de 2019. Exatamente um ano antes, não muito distante da cidade de Tiradentes, a barragem de Brumadinho rompeu-se, resultando em um dos maiores desastres ecológicos do país. A onda cristalina e desejante de A Felicidade Delas sobrepunha-se a outra onda, assassina, de rejeitos de mineração, de um lodo mortal proveniente da ganância desenvolvimentista do ramo industrial. As ondas chocavam-se. Enquanto a onda na tela reagia à violência com amor, a outra onda, de lama, dos rejeitos retirados das entranhas da terra, resultou na morte de quase trezentas pessoas. Uma lama criminosa e sem punição. Dizem: é preciso desejar, desejar, desejar. Mas não é fácil.
Três dias depois, 28 de janeiro, as ondas entrechocavam-se com mais força. Nas poucas horas vagas da Mostra de Cinema de Tiradentes, prosseguia a leitura de Nova York 2140. E o livro, já em sua parte final, anuncia um terrível furacão a destruir ainda mais a cidade submersa no mar. De Belo Horizonte, vinham notícias terríveis: prosseguiam as chuvas, as mortes, as crateras que engolem seres humanos. Em Tiradentes, a potência dos discursos e dos filmes, potência criativa e real de atores sociais historicamente silenciados em um país autoritário, convivia inevitavelmente com a catástrofe cotidiana que cerca o país. Arte e vida não se desligam, não vivem em separado. A confusão mental entre potência das telas e impotência da nação, confusão minha e que talvez seja partilhada por outros, confusão entre ações e inações, tornava-se ainda mais pungente no dia 28 de janeiro. E foi durante à noite, nessa mesma data, que a Mostra de Tiradentes exibiu o curta-metragem Egum (2019), de Yuri Costa.
Pelo que me recordo, não há alusões às águas no filme Egum. A onda de opressão que atravessa o filme, uma onda que remete às heranças escravocratas presentes até hoje na constituição autoritária do Brasil, refere-se, como metáfora, ao movimento destrutivo que aniquila as populações pobres e negras em nosso país. Composto por planos fechados e angustiantes, com uma câmera a tremer de modo quase ininterruptivo, Egum apresenta, a partir de três breves atos, uma situação de extrema violência na qual uma família em colapso, com pai entregue às bebidas e mãe acamada, vê-se assediada por um estranho casal que ali aparece para tudo retirar-lhe. Aqueles que acossam, alegoria de uma branquitude dominadora com seus discursos empresariais e religiosos totalitários, batem à porta, com sorrisos forçados, para extrair da família negra sua cultura, seus poucos pertences, seus integrantes, seu existir. A onda de dominação que atravessa o curta-metragem do início ao fim, situação que reporta a séculos de escravidão e racismo, rebenta no filme como sufocamento contra o qual os oprimidos não conseguem reagir. A despeito das tentativas do filho, guardião de uma potência própria aos que retornam à casa de origem após anos de aprendizado no mundo, a inundação promovida pelos opressores não consegue ser contida. No terceiro ato de Egum, ponto de culminância da onda invasiva, nada mais resta para segurar a violência que se avizinha. A porta da casa, escancarada, deixa entrar um mar de corpos violadores, uma massa terrífica que torna-se proprietária das vidas, dos espaços e das culturas negras. Estupendo como alegoria de nossa condição autoritária, sem oferecer pausas fílmicas para o respiro, dias depois Egum seria agraciado pelo júri de Tiradentes com o prêmio de melhor filme da Mostra Foco.
O terror que ronda o país, essa violência estrutural que nos (de)forma, encontra-se assustadoramente presente tanto em Egum quanto em A Felicidade Delas. No primeiro filme, a experiência sensorial é de amarga derrota, de impotência. A onda que atravessa o filme, onda-lama, onda da contaminação, traduz o movimento dos dominadores em seus processos destrutivos. No segundo curta-metragem, a despeito da violência, o amor livre restitui a crença na felicidade. A onda, nesse caso, é potência, é água cristalina, manifesta a permanência do desejo a despeito de tudo. Tal desencontro ondular nada surpreende, ainda que amplie a exasperação contemporânea entre potência e impotência. A arte, em sua pluralidade, é raio-x dos nossos fracassos e também é manifestação de nossas vontades. Existe, sem dúvida, para nos retirar continuamente do lugar de segurança. Desorienta sem necessariamente orientar. Claro que esse movimento de choque, de confronto ondular, não advém sem uma boa dose de amargor. Afinal, o que nos falta para o salto adiante, para superar a violência presente em Egum e efetivar, na vida real, esse maremoto transformador sugerido em A Felicidade Delas?
No dia seguinte, 29 de janeiro, vou embora de Tiradentes. Lamento a impossibilidade de permanecer na cidade até o encerramento do Festival. No ônibus de retorno ao Rio de Janeiro, retomo a leitura de Nova York 2140. Nas páginas derradeiras de seu livro, Stanley Robinson surpreende seu leitor com uma grande reviravolta narrativa. Após uma situação que leva a cidade submersa ao pior de seus colapsos, a solidariedade dos humilhados e humanistas impulsiona uma onda coletiva de reação contra a elite do capitalismo. Na ficção científica, escrita imaginativa acerca do futuro, por vezes descrições sombrias da humanidade convivem com desejos de projetar ações coletivas que irrompem como tentativas de nos salvar da catástrofe. Inevitavelmente, sob o efeito de Nova York 2140, penso nos paradoxos provocados pelo desencontro entre as ondas de Egum e de A Felicidades Delas. Penso, sobretudo, no contemporâneo. Diante do fascismo crescente que ronda o Brasil, e que nos deforma há tempos, muito antes do extremismo de direita ocupar a centralidade do poder, por que não emerge uma resistência plural e efetiva que reponha alguma crença possível de futuro na nação? Por que não se materializa uma força coletiva, de oposição concreta, ao estado das coisas? Face a tantas potencialidades reais, sobretudo de atores sociais que o país escanteou historicamente, é possível imaginar um caminho que saia da fragmentação e resulte na união? Entre as curvas da estrada, fecho o livro de Stanley Robinson. Talvez o anseio da solidariedade plural seja a face de um romantismo que ainda me povoa. Tal desejo, talvez, tenha migrado da luta política para as especulações da ficção científica. Difícil dizer.
Chegando em Niterói, onde
vivo, decido caminhar pela orla. O clima é quente, a maré está baixa. Cercada
por pedras, entre ondas suaves, uma tartaruga se debate em meio ao lixo que flutua
na Baía da Guanabara. Solitária, ela tenta, sem sucesso, livrar-se da
armadilha. Talvez consiga retornar à amplidão do mar apenas na maré cheia. Talvez
eu pudesse ajudá-la, mas desisto da ideia. Penso que somos como aquela
tartaruga, mas a metáfora, pobre demais, me chateia. Volto a caminhar,
incomodado. Nesse momento, cavoucando a memória, ecoam livremente as palavras provocativas
da escritora Helena Vieira, naquela que foi uma das falas mais instigantes da
Mostra de Cinema de Tiradentes. Ao relembrar o nosso esgotamento atual e a nossa
incapacidade de projetar futuros, alertando para a desesperança de uma nação
Brasil que se constituiu na morte, ela sugere que assumamos a imaginação, que
inventemos um novo mundo. Invenção que não tem receitas fechadas, mas parte de
um lugar de desorientação: é preciso compreender que nossas fórmulas políticas fracassaram,
aceitar a derrota daquilo que um dia povoou nossas crenças utópicas de futuro,
para que a partir desse movimento de deformação surjam novas potencialidades de
transformação. São palavras que me confundem, que me viram do avesso. Não sei
se reproduzo com fidelidade o que Helena falou ou se traduzo ao meu modo. É
quando penso, pela primeira vez, em escrever esse texto estranho, meio diário e
meio crônica, como sintoma das minhas confusões. Estou confuso. Quem não está?
Mas apesar da confusão, não há pausa no pensar. Nem no desejar.