Foi no dia 21 de junho de 1961. Será? Quanto ao ano podemos ter certeza. Agnès Varda comemorava 33 anos de idade, 4 curtas, 1 longa-metragem e filmava aquela que se tornaria uma de suas obras mais potentes e duradouras. O abalo que Cléo das 5 às 7 causou na história do cinema moderno fez ressoar ondas que rebatem até este nosso 2020. São 59 anos. E é justamente o tempo um dos eixos mais importantes do filme. Pensar nele é uma das habilidades que parecem ter sido roubadas pelo sistema em que vivemos. Há pressa e o tempo que nos interessa é aquele prático, calculável, em minutos ou horas. Quase material. Uma cultura dominante – e dominadora – se impõe em nossos modos de vida e nos faz perder de vista suas magias e possibilidades. Um tempo enquanto ideia de futuro, abstração, infinitude.
Contudo, há obras de arte que, vez ou outra, despertam para nos lembrar de tal magia. Em Cléo das 5 às 7, Varda coloca o tempo em relação tanto com a vida (pela narrativa), quanto com o próprio cinema (pela forma). Dividida em 13 capítulos, a fita acompanha uma hora e meia do fim de tarde da cantora pop Cléo Victoire (Corinne Marchand), no primeiro dia do verão de 1961. Cléo aguarda ansiosamente pelo resultado de um exame de biópsia – que será liberado às 18h30. É durante essa última hora e meia que ela enfrentará todo tipo de pensamento, reflexão, fantasma ou ilusão a respeito de sua vida e morte. Um prato cheio para uma pensadora das imagens interessada em explorar temas como o empoderamento feminino, os padrões de beleza, a guerra e, sobretudo, a liberdade. Cléo das 5 às 7 instaura uma espécie de limbo entre o aprisionamento (físico, emocional, social e simbólico) e a liberdade mais plena, que (talvez) seja alcançada por uma tomada de consciência. Ambas essas extremidades do limbo se manifestam na personalidade de Cléo, derivando assim outras duas personagens que guiam as metades do filme – “Cléo primeira” e “Cléo segunda”.
As primeiras imagens de Cléo das 5 às 7 não são em preto-e-branco, como todas as demais até o fim do filme, mas bastante coloridas: um plano fechado no qual duas mãos surgem em close embaralhando cartas de tarô sobre uma mesa. Uma voz se manifesta, “Corte senhorita”. Uma nova mão surge no enquadramento e corta o baralho. Mas o “corte” não ocorre apenas na diegese no filme, há o corte da imagem para o plano seguinte, mais aberto, que revela novos objetos sobre a mesa. Corte das cartas, corte das imagens – um dos vários jogos visuais que Varda concebe em tom sarcástico, característico de seu estilo. Cléo das 5 às 7 frustra os procedimentos formais de um cinema tradicional e acomodado – brincando com a continuidade de imagens e sons, por meio de jump-cuts, dessincronizações, quebras da quarta parede etc. A liberdade em Cléo das 5 às 7 permite que o mágico e o místico predominem em vários momentos, como este. As personagens do filme – e seus papéis na vida da protagonista – são todas apresentadas pela cartomante, de forma imaginária, simbolizadas pelas imagens do tarô. É como se o argumento inteiro do filme fosse dado nesta conversa, onde temos início, meio e fim desvelados. Já embebido pelo preto-e-branco, que prevalecerá até o fim, a sessão termina com Madame Irma (Loye Payen) confirmando para uma desesperada Cléo que ela de fato possui câncer.
Começa a sequência de capítulos cronometrados, que acompanham o tempo real das ações internas do filme. Junção do tempo mensurado em minutos com aquele mensurado em sensações. O primeiro capítulo – “Cléo de 17h05 a 17h08” – dura não apenas três minutos na vida da personagem destacada, mas também três minutos no relógio de quem assiste ao filme, efeito garantido pela cuidadosa montagem. Desesperançosa, Cléo se detém por um instante diante de um espelho que faz seu reflexo cair em uma mise-en-abyme, metáfora visual para as confusões mental e emocional da personagem que geram um labirinto, que culminam na sua própria imagem. “Ser feia, eis a morte! Enquanto eu for bela, serei viva, e 10 vezes mais do que os outros” ela diz a si mesma. Essa se torna uma espécie de “epítome” da “Cléo primeira”, infantilizada, guiada pelos padrões sociais, crente na beleza superficial e plástica como verdadeiro antídoto para a morte.
O espelho se torna um motivo recorrente para a “Cléo primeira”, surgindo como metáfora do enclausuramento da cantora e não como mero lembrete de sua vaidade. Não é sua pele, seu cabelo ou o rímel que ela contempla quando observa seu reflexo, mas sua alma atormentada, à qual ela insiste em escapar via futilidades. Em uma cafeteria qualquer, Cléo se encontra com Angèle (Dominique Davray), figura estranha, maternal, que se presta a governanta ou “tutora” de Cléo, mas que na realidade a mantém dentro dos padrões, cumprindo a vigília mais íntima, infiltrando-se na vida domiciliar da cantora.
É a excessiva superstição de Angèle que leva as duas a evitarem um táxi dirigido por um homem – graças à placa do carro que “daria azar” – e a pegarem um táxi conduzido por uma mulher. “É um trabalho duro para uma mulher, não?”, pergunta Angèle, “Mas eu gosto mesmo assim”, responde a taxista, que completa “Medo da noite? Por quê? Não sou do tipo medrosa”. O passeio em uma tarde de Paris a bordo do táxi da motorista é um passeio sob a perspectiva de uma mulher – da diretora Varda, da taxista e das passageiras – que se manifesta pelo espelho (mais uma vez) retrovisor do carro, onde estão refletidos os olhos da taxista, enquanto vemos a cidade através do pára-brisa. A modernidade do cinema de Varda se faz sentir pela dissonância – novo choque para o olhar conformado com os ilusionismos do cinema dominante – entre a boca fechada da taxista refletida no retrovisor e sua voz na banda sonora. O que importa não é a sincronia imagem/som, mas a força do relato ouvido em articulação com a cidade vista.
Nessa sequência, Varda insere um importante comentário político em sintonia com os anseios de sua geração. No rádio do carro, duas notícias parecem reforçar o contraste entre as duas partes do filme, e consequentemente as duas “Cléos”. Na primeira, fala-se do lançamento de um novo shampoo à base de whisky para mulheres norte-americanas, capaz de revitalizar os fios capilares. Em seguida, uma notícia a respeito de novas manifestações de muçulmanos ocorridas na guerra de independência da Argélia, que resultaram em 20 pessoas mortas e 60 feridas. A estação de rádio noticia que o Comandante Georges Robin[1] havia sido condenado a 6 anos de prisão por traição à pátria. Isso representa uma espécie de “vitória anti-colonialista” para aquelas e aqueles que, ideologicamente, aderiram à luta pela independência da Argélia, principalmente à FLN (Frente de Libertação Nacional). Varda faz não apenas um uso político da imagem cinematográfica, mas torna o cinema o próprio meio de comunicação da Revolução, como que “dando notícias” sobre a situação na Argélia (a Guerra acabaria em 1962, um ano após a filmagem de Cléo das 5 às 7). Há ainda uma notícia sobre a importante paralização de fazendeiros e agricultores da região da Bretanha, conhecida como “Revolta dos camponeses de junho de 1961”[2]. Varda faz política pelas imagens e consegue tornar política a matéria-prima do cinema (imagem + som), não apenas noticiando fatos da crônica política francesa, como fazendo-nos imergir em uma crítica que só é possível pela leitura das imagens e dos sons em conjunto. Cinema como veículo.
Em sua casa, um cenário exageradamente decorado com incontáveis relógios – o tempo, sempre ele –, Cléo receberá visitas de duas figuras masculinas importantes em sua vida: seu amante, José (José Luis de Vilallonga), e seu parceiro profissional, o compositor Bob (Michel Legrand, que também assina a trilha musical de Cléo das 5 às 7). O primeiro, um homem mais velho e paternalista, com interesses pela beleza plástica e jovial de Cléo, sua “Cleópatra”, e que procura mantê-la aprisionada a padrões de beleza retrógrados e opressores. “Sua beleza é sua saúde” diz ele à protagonista. O segundo, jovem que dissimula compreender as aflições de sua amiga, mas que, na realidade, não tarda em ofensivamente tachar Cléo de “vaidosa e carente”. O machismo não tem idade, o músico apenas atualiza a insensibilidade do amante. Ainda assim, o filme extrai uma potência de recusa e resistência por parte da cantora, quando, em um dos seus planos mais célebres, Cléo entoa um canto supremo, enquanto encara a câmera. Ali testemunhamos o poder de seu talento. De um plano de conjunto, onde vemos todas as personagens envolvidas na sequência, a câmera se move e aproxima-se de Cléo e, à medida que a música ganha em dramaticidade, a imagem vai se fechando até que o torso e rosto de Cléo preencham todo o enquadramento, sobre um fundo escuro. Na trilha musical passamos a ouvir outros instrumentos que não só o piano diegético, carregando o filme para outra dimensão (a interior, mental, de Cléo?) que foge das amarras lógicas de uma representação naturalista. Uma lágrima nasce e corre em seu rosto, sem cortes. Quanto tempo dura uma canção? Quanto tempo dura um plano cinematográfico? O que delimita o seu início e o seu corte?
O canto parece trazer à tona o espírito inquieto de Cléo. Ela não pode mais esconder sua vida interior, tão abalada pela possibilidade do câncer, da morte. Revoltada, ela se troca por trás de uma cortina preta, que, em determinado plano, cobre por completo a imagem. Num gesto triunfante a cantora “desvela” o enquadramento, abrindo a cortina de supetão e revelando seu novo figurino, completamente preto. Nasce a “Cléo segunda”. O filme é construído para que os contrastes entre as duas faces de Cléo fiquem evidentes dali em diante, não só em sua figura, mas na forma do filme. Varda transpõe essa liberdade que Cléo almeja para as filmagens na rua, posicionando a câmera agora diante da personagem, frontalmente, contrastando com a perspectiva voyeurística, observadora, de antes. A experiência da protagonista muda quando ela agora efetivamente olha para o Outro, encara a vida alheia, anda pelas ruas parisienses e se depara com as várias passantes, cujos rostos agora figuram em vários planos do filme. Em Cléo das 5 às 7 essas figuras são frequentemente capturadas, sobretudo para reforçar o “contato com o mundo externo”. Cléo deixa de ser observada para se tornar observadora, atrás de seus óculos escuros.
Apequenada diante da opressão da vida urbana, ela recorre à amiga, Dorothée (Dorothée Blanck), modelo que posa para escultores em um ateliê de artes. A colega surge como um respiro de liberdade, não se importando em desnudar-se publicamente, afirma sentir-se “feliz, não orgulhosa” com o próprio corpo ao ser questionada pela insegura Cléo. Após mais uma volta de táxi, Cléo vai ao Parque Montsouris para caminhar sozinha e espairecer. É lá onde Cléo conhecerá o intrigante Antoine (Antoine Bourseiller), um soldado em licença que voltará para seu posto na Argélia no dia seguinte. O comentário político de Varda a respeito da Guerra da Argélia vem metamorfoseado na personagem de Antoine. Seu conceito de morte não é aquele, ainda que cruel, mais “confortável”, da morte por doença. Para ele a morte era aquela “morte por nada”, a mais deprimente de todas, comum nas guerras. É um soldado avesso à guerra. O terror externo (guerra, colonialismo) se encontra com o interno de Cléo. A morte é o que os une. Juntos, cantora e soldado rumam até o hospital para saberem o resultado da biópsia, ação que preenche todo o último capítulo do filme – “Cléo e Antoine de 18h15 a 18h30”.
Varda mantém sua crônica da vida banal com uma imagem penetrante. Ao decidirem ir ao hospital para receberem o exame com o resultado em mãos, Antoine e Cléo pegam o ônibus (ao contrário dos sucessivos táxis e caronas de carro que Cléo pegara ao longo do filme). O ônibus é esse microcosmo da cidade, excelente observatório da vida privada (e alheia). Enquanto passageiras e passageiros observam um recém-nascido atravessar a rua dentro de uma incubadora carregada por dois enfermeiros, ouvimos na faixa sonora algumas mulheres figurantes conversando, e uma delas lembra que seu filho esteve dentro de uma por dois meses e tudo que ela pôde fazer era olhá-lo. É o gancho para que Antoine continue a contar mais histórias a Cléo. “Nascimento”. É a demonstração frágil e efêmera do que a vida é diante da morte. A vida é regrada pelo tempo (a duração de Cléo nos lembra) mas a morte, é eterna. A notícia dada pelo médico de que ela de fato está doente, contudo, já não surte os mesmos efeitos apocalípticos do início do filme, Cléo agora encara vida e morte de outra forma, mais livre e pessoal.
Por que “Cléo das 5 às 7”, se paramos de acompanhá-la às 18h30? Porque Varda priva nosso olhar observador, quiçá julgador, dos melhores 30 minutos do dia de Cléo, durante os quais provavelmente ela sairá com Antoine. São dela. Essa privação do olhar rompe com a expectativa gerada já pelo título da fita. A liberdade do filme não se rende às exigências de uma “arte com fim” (em ambos os sentidos) e termina em aberto. E é sobre essa liberdade, da mulher, da artista, da câmera, do tempo, do movimento e do cinema, que Cléo das 5 às 7 consegue abordar de forma tão poderosa. Há por fim a liberdade da morte também, que passa a ser encarada sem idealizações feitas por pessoas que (obviamente) nunca a experimentaram. Ela existe, ponto. Lidemos com ela. Há filmes que não envelhecem nem bem nem mal, simplesmente não envelhecem. O vigor de Cléo das 5 às 7 morrerá apenas no dia em que o cinema também morrer. Talvez, num fim de tarde, por volta das 7, ou nunca.
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[1] Militar ligado ao “Putsch de Argel”, uma tentativa fracassada de militares nacionalistas-extremistas franceses que tentaram derrubar o presidente Charles De Gaulle, que iniciava negociações com a Argélia, por não aceitarem que a França perdesse o controle colonial.
[2] Os agricultores manifestavam contra a qualidade de vida no interior, a estagnação dos baixos preços de produtos agrícolas e o crescente endividamentos no campesinato, além das demandas de produção cada vez maiores por conta do aumento das “cosmópolis” francesas, inversamente proporcional ao número de pessoas trabalhando no campo.
Eu parti de impressões mínimas, muito tênues, quase nada: de fotos de família.
Em detalhe, vê-se um grupo de pessoas, todos estão em torno de uma mesa,
sob uma árvore, eles levantam suas taças e sorriem olhando para a objetiva da câmera.
Olhando a foto, você se diz: é a felicidade! Apenas impressão.
Olhando melhor, você é atingido por uma inquietação:
todas essas pessoas, não é possível, há 15 pessoas na foto, velhos, mulheres, crianças,
não é possível que eles tenham sido, todos ao mesmo tempo, felizes…
Ou então, o que é a felicidade, já que eles parecem tão felizes?
A aparência de felicidade é também felicidade.
(Agnès Varda em entrevista concedida a Jean-André Fieschi e Claude Ollier, publicada na revista Cahiers du Cinéma nº 165, de abril de 1965[1]).
Agnès Varda iniciou seu trabalho artístico na fotografia, prática que influenciou bastante sua obra cinematográfica. Seus conhecimentos sobre pintura também encontram expressão em sua filmografia, seja como ponto de partida de uma jornada ensaística (Os Catadores e Eu) ou como referência para a composição plástica da obra (As Duas Faces da Felicidade). Estamos diante de uma artista multifacetada, que se desloca do documentário à ficção, do cinema narrativo ao ensaio audiovisual – muitas vezes criando nos interstícios desses registros. Sua obra é, antes de mais nada, locus de reflexão crítica e experimentação formal – e é nessa chave que pensaremos um de seus filmes mais celebrados, As Duas Faces da Felicidade, de 1965.
Se o leitor atento se dedicar ao exame de críticas e outros textos sobre Varda e sua obra, logo notará algumas caracterizações recorrentes que não nos ajudam a entender a força reflexiva e plástica dos filmes da autora belga. Termos como “fragilidade”, “ingenuidade”, “intimização do registro”, “universo afetivo”, “carinho”, “cuidado” são usados de forma recorrente para caracterizar a cineasta. Somado a estas tristes escolhas para falar do cinema de Varda está o famigerado “olhar feminino”[2] que esta mulher aparentemente ostentaria. Nada mais vago do que essas palavras que, apesar de colaborarem para a criação de um fetiche, não contribuem para a construção de um ponto de vista analítico sobre os filmes da cineasta.
Dito isto, procuro neste texto analisar alguns elementos formais de As Duas Faces da Felicidade para, depois, relacioná-los ao mundo apodrecido em que a obra foi criada. Apresento uma leitura concisa e pessoal de um filme que me espantou – obra que muitas vezes foi lida como um drama visualmente deslumbrante sobre a infidelidade. Certamente é um filme belíssimo, com um cromatismo vivaz e cenas intensamente iluminadas que conferem um ar paradisíaco ao universo construído por Varda. No entanto, minha leitura destaca dois aspectos que dão sentidos sombrios a esta plástica da felicidade: a ironia e a brutalidade do filme – ainda que este efeito brutal seja tecido com sutileza.
A princípio, podemos notar a ligação deste filme com os impressionistas. As cenas em que a família de François e Therese realizam piqueniques no campo e descansam em meio à vegetação nos remete a quadros dessa época. Como disse Varda em entrevista concedida a Yvonne Baby em 1965 para o jornal Le Monde:
Pensei nos impressionistas: em seus quadros, há uma vibração da luz e da cor que me parece corresponder exatamente a uma certa definição da felicidade. Aliás, os pintores desta época adaptaram sua técnica à sua temática e, assim, eles mostraram piqueniques, refeições sobre a relva, domingos que se aproximavam de uma noção de felicidade. Eu utilizei a cor, porque a felicidade não pode ser ilustrada em branco e preto.
No entanto, a autora articula essa imagística do passado de forma completamente irônica, subvertendo a imagem da felicidade erigida nos quadros de pintores como Renoir e Monet, ao fazer interagir essa estética com uma perspectiva crítica do mundo. O primeiro elemento que nos fornece uma pista para essa afirmação é a utilização do cromatismo como recurso expressivo. Para além de um naturalismo simples que pasteuriza as cores em sua tentativa de imitar a natureza em cena, As Duas Faces da Felicidade nos apresenta um movimento de constante variação cromática entre as manchas do arco-íris. Amarelo, vermelho, verde e azul são combinados no cenário, figurino e montagem (com os inúmeros fades). Diferentes tons da mesma cor são combinados em cena, configurando uma composição cromática manifestamente exagerada.
Os quadros impressionistas que retratavam cenas vivamente coloridas em dias ensolarados no campo se transformam, na mise en scène da obra, em cenas em que as cores se tornam recursos para causar estranhamento, o que confere ares surrealistas ao filme. Nós estranhamos a improvável e ilimitada felicidade da família e este processo de distanciamento começa com o excesso de cores. Nesse sentido, Varda deforma a realidade a partir de sua apropriação singular da estética impressionista, nos mostrando uma felicidade aberrante, um pequeno mundo paradisíaco que, no entanto, está fadado à ruína pela ação do homem, o carpinteiro François.
As Duas Faces da Felicidade expõe com sutileza o cinismo dos homens em relação às mulheres. Uma sequência nos permite pensar melhor essa questão. O casal François e Thérèse está conversando em sua pacata moradia. Eles estão no banheiro. O homem se barbeia e sua esposa o pergunta quem ele prefere como mulher. François está lavando seu rosto e, antes de o secar com uma toalha azul, responde: você. Um corte nos conduz subitamente a um primeiro plano de um armário no ambiente de trabalho do carpinteiro. Uma série de imagens de cantoras e atrizes famosas estão coladas na porta do móvel, exibindo seus corpos seminus numa espécie de pequeno atlas de fetiche. São corpos gloriosos, mas objetificados por trabalhadores que, em sua vida cotidiana, sonham em possuí-los: o que provavelmente nunca acontecerá. A porta do armário é aberta por um trabalhador anônimo e a cena é encerrada. A montagem desses dois planos efetua um distanciamento em relação às palavras de François, um homem que, em sua casa, faz juras de amor à esposa e, no trabalho, compartilha a paixão pelas imagens de mulheres impossíveis. Essa inclinação, que nesse momento está apenas sugerida, se concretizará em sua paixão por Émilie.
Podemos dizer que este filme combina alguns procedimentos recorrentes da Nouvelle Vague francesa com uma perspectiva crítico-feminista da sociedade. A profusão de planos-sequência, a movimentação da câmera, os ângulos abertos, as filmagens em locações, a utilização de falsos raccords e a manipulação das cores como na contramão de um naturalismo raso são articulados para descortinar as entranhas da felicidade conjugal heterossexual – pequeno mundo caricatural criado pela autora para, ao final da projeção, ser implodido pela luxúria do homem. Esses recursos são mobilizados para além da narração de uma história sobre a infidelidade masculina, instaurando uma profunda reflexão sobre o mundo corroído (apesar da impressão radiosa de felicidade) pela dominação dos homens, universo em que a vontade masculina atropela a vida das mulheres.
Durante quase toda a projeção somos conduzidos pelos caminhos de uma vida conjugal perfeita – de uma perfeição manifestamente exagerada, como mencionei. A predileção de Agnès Varda por personagens errantes ou outsiders dá espaço para a figuração de um casal perfeitamente estabelecido entre o trabalho e a vida familiar. A trilha sonora parece orquestrar harmoniosamente essa vida alegre no campo. Uma coleção ou inventário de gestos é mostrado na mise en scène de forma fragmentária, descrevendo a vida cotidiana em andamento em planos rápidos em que, para citar dois exemplos, a mulher trabalha em casa em sua máquina de costura e o homem, diante de outra máquina, realiza seu trabalho de carpinteiro. Tudo vai bem. François se apaixona subitamente por Émilie e isso parece não abalar a ordem das coisas – e nem a plasticidade do paraíso.
O romance de François e Émilie conduz o homem a um estado excessivo de regozijo. Observando o estranho êxtase do marido, Thérèse o questiona sobre os motivos dessa afetação exagerada. Num gesto cínico, François repete o que havia dito em cena anterior a Émilie: “felicidade acumulada”. Em sua perspectiva, as duas mulheres se completavam, não para benefício mútuo, mas para servir ao seu prazer. No desenrolar da conversa, François confessa seu amor extra-conjugal e, para o espanto dos espectadores de inclinações mais puritanas, sua esposa termina por aceitar o fato consumado, não sem hesitar. Nada parece abalar a vida paradisíaca desta família.
O ato final da obra produz o efeito que anunciei no início deste ensaio. Varda inscreve uma ruptura trágica na narrativa, nos mostrando as entranhas do mundo paradisíaco tecido no filme – a tragédia se infiltra no paraíso. A confissão de François é realizada num encontro sob a relva, tal qual uma cena impressionista. O casal adormece depois desta conversa aparentemente harmônica. A única pista para o conflito é a hesitação de Thérèse em sua resposta. O marido acorda e percebe que sua mulher desapareceu. Ele sai em sua busca com os filhos nos braços. Nessa perambulação pelo Éden, encontra sua esposa morta. Causa da morte: afogamento. Seria suicídio? Varda prefere deixar a motivação em suspenso, apesar de oferecer pistas para que tiremos nossas conclusões.
Não importa a razão da morte de Thérèse. A brutalidade que anunciei no início do texto se concretiza, como efeito, no final da obra. Depois do enterro de sua esposa, François procura Émilie para a convidar a tomar o lugar de Thérèse. Afinal, no universo construído por Varda, um homem precisa de uma mulher, pois não pode criar as crianças sozinho. Para pontuar o tempo passando de maneira harmoniosa, Varda coloca em cena novamente aquela seriação do cotidiano que mencionei antes, mostrados em planos fugidios, formando uma constelação de gestos triviais da vida do novo casal. A mulher busca as crianças na escola. O casal se beija na cama. Uma mão posiciona os travesseiros. A mulher prepara as crianças para dormir. O despertador é ajustado. A roupa dos infantes é passada a ferro. O homem se barbeia com um sorriso no rosto e depois o vemos trabalhar na carpintaria. Enfim, tomamos conhecimento de um cotidiano tão harmonioso quanto a vida entre François e Thérèse. Os vivos estão felizes.
A cena final é estarrecedora. Vemos a nova família chegar a partir de um travelling para a direita. Eles estão num carro azul, atravessando o bosque em pleno outono. A paisagem é amarelada, as folhas cobrem o chão. François estaciona o carro e eles descem. O casal veste suéteres idênticos em cor mostarda, enquanto as crianças estão de vermelho, como se suas vestimentas se misturassem à paisagem. O cromatismo de seus corpos vibram com a coloração do bosque outonal como se eles estivessem em completa harmonia com o ambiente. A câmera continua em seu movimento em plano médio, nos mostrando a família feliz em sua coreografia dentro do paraíso. Eles estão sorrindo. François toca numa árvore para depois encontrar Émilie. Todos dão as mãos e seguem em caminhada para o fundo do quadro. Ironicamente, a felicidade prevalecerá. A história que será contada aos filhos é uma narrativa de harmonia, na qual os conflitos são varridos para debaixo do tapete. Os caminhos da felicidade são tortuosos mas, ao fim e ao cabo, todos – ou melhor, quase todos – ficarão bem. Este plano final tem a força crítica de desestabilizar o espectador e nos reconduzir a um cotidiano de violências mudas. A cena final concretiza a crítica irônica da obra, colaborando para a construção de uma atenção às relações violentas de um mundo em que os homens impõem seus desejos às mulheres, muitas vezes em detrimento de suas vontades e ideias.
As Duas Faces da Felicidade é um drama irônico sobre o relacionamento num mundo caracterizado pelo machismo. Esta é uma obra que apresenta um realismo deformado pelo uso reflexivo de recursos estéticos, afirmando-se como um dos frutos maduros do cinema moderno. Varda tece com sutileza uma crítica ao mundo masculino em que vivemos, dominado por homens cínicos e pela aparência de uma felicidade que apresenta a imagem da família heterossexual como seu emblema. Essa crítica é tecida pelas mãos hábeis de uma cineasta que sabe pensar através dos detalhes formais de seus filmes. Ao final da projeção, somos reconduzidos brutalmente ao mundo apodrecido que, 50 anos depois do lançamento desta obra-prima, continua a se recriar – apesar das transformações levadas adiante por mulheres como Agnès Varda. Thérèse morreu, mas a vida continua. Tudo vai bem no mundo dos homens.
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[1] Os dois trechos de entrevistas apresentados aqui foram coletados do catálogo da retrospectiva “Agnès Varda: o movimento perpétuo do olhar”, de 2006.
[2] Gostaria de agradecer a Nayla Guerra por sugerir a recorrência deste termo na caracterização da estética de Agnès Varda – e por ter me emprestado uma importante referência para a redação deste texto.
A consciência gráfica de uma escrita que traduz forma, natureza e feitio, equivalendo ao gesto que organiza e direciona um pensamento, uma inscrição, se replicada no cinema aproxima-se do termo cinescrita, criado por Agnès Varda para particularizar sua concepção de linguagem cinematográfica. Para a cineasta, ‘escrever é estilo, e no cinema estilo é cinécriture’.
Agnès Varda transitou por diferentes formatos e gêneros, ao longo de mais de meio século de intenso trabalho. Com uma produção contínua e diversa, sua obra é marcada por características muito particulares, através das quais a narrativa é constantemente subvertida a favor da sua escrita fílmica.
O cinema vardiano se legitima na expressividade e autenticidade que emergem da composição dos elementos presentes na imagem. Nada está ali sem finalidade, tudo é escolhido com rigor e precisão, compondo uma geografia interna que dá ritmo ao arranjo. São decisões atentas e estruturadas pela própria cineasta que assina, na grande maioria dos seus filmes, não apenas direção, como também roteiro, narração e montagem.
Seu primeiro filme, La Pointe Courte (1954), foi realizado cinco anos antes do início oficial da nouvelle vague, chegando a ser indicado por alguns autores (FARMER, 2009) como o primeiro filme do movimento, pois, marcado pela ampla liberdade de estilo, o trabalho já demonstrava a forma como a cineasta realizaria e ‘assinaria’ seus filmes, expondo, de antemão, o aspecto autoral tão caro aos manifestos cinematográficos da época.
Comparado a um romance, o filme ganhou destaque pelas suas marcas literárias. Assumidamente, Varda buscou inspiração na obra “Palmeiras Selvagens” (1939), de William Faulkner, absorvendo a dupla narrativa que se apresenta no livro e aplicando-a no filme. Ao mostrar a história de um casal (interpretado por Philippe Noiret e Sylvia Monfort) visitando a ilha de Sète e, em paralelo, o cotidiano dos pescadores e moradores locais, Varda já misturava ficção e documentário, algo que se repetiria ao longo de toda sua obra, bem como fragmentos e inspirações autobiográficas: a cineasta viveu em Sète entre 1940 e 1944 em um barco com a família, ao deixarem a Bélgica fugindo da guerra.
A ideia de um cinema com maior liberdade de estilo, favorecendo uma escrita particular, marcada pela forte presença narrativa, experimental, pessoal e social, refletirá nos trabalhos seguintes da cineasta. Entre 1958 e 1965, Varda realiza alguns curtas documentais como Ô Saisons, ô Châteaux (1957),A Ópera Mouffe (1958)e Du Côté de la Côte (1958),e os longas Cléo das 5 às 7 (1962) e As Duas Faces da Felicidade (1965), apontados por críticos como obras importantes para a compreensão desse cinema autoral, social e político.
Embora com um conhecimento cinematográfico anterior restrito, se comparado ao padrão de cinefilia dos cineastas da novelle vague, Varda chegou no cinemacom um trânsito significativo pelas artes plásticas, fotografia e literatura, fazendo seus filmes ganharem, rapidamente, o respeito e a aprovação da crítica especializada pela densidade estética que demonstravam.
Exemplos dessa mestiçagem artística aparecem ao longo de sua carreira de variadas formas. Em relação à fotografia, posso citar, como exemplos importantes desse rastro fotográfico, Cinevardaphotos, umatrilogia de filmes realizados a partir de fotografias, composta por Saudações aos Cubanos (1963), um retrato filmado a partir de três mil fotografias de viagens; Ulisses (1982), abordando a memória e o esquecimento a partir da reflexão sobre a imagem fotográfica; e Ydessa, les ours et etc… (2004), sobre uma colecionadora de fotografias amadoras dos séculos XIX e XX. Não podendo deixar de mencionar as fotografias recorrentes como parte da diegese, presentes na galeria e nos cartões postais em Uma Canta, a Outra Não (1977).
Já a pintura é recorrente desde La Pointe Courte, com a escolha da atriz Sylvia Monfort por sua semelhança com as mulheres retratadas pelo pintor italiano Piero della Francesca. Em Cléo das 5 às 7, Varda busca inspiração nas pinturas do alemão Baldung Grien; As Duas Faces da Felicidade (1965) carrega o impressionismo em suas cores; Os Renegados (1985) é comparado à uma pintura do quattrocento (MCGUIRE, 2004).
Em 1967, Varda mudou-se para os Estados Unidos com o então marido Jacques Demy, proporcionando à cineasta o contato com algumas questões políticas e sociais, sobretudo com o universo feminista, a partir de uma visão anglo-saxônica, que convocava um aspecto mais austero e desafiador do que a diretora estava habituada na França (LETORT, 2014).
Como resultado, os filmes dessa época são marcados por temáticas sociais e feministas, como os documentários que retratam a luta social e política dos ativistas do movimento Panteras Negras. Varda residia na Califórnia quando o líder do grupo Huey P. Newton foi preso, acusado de matar um policial em 28 de outubro de 1967. A cineasta realizou dois trabalhos sobre as manifestações em apoio a ele: Huey (1968), em preto e branco, mostrando a campanha Free Huey, durante o comício organizado em 17 de fevereiro de 1968; e Panteras Negras (1968), colorido, mostrando as atividades do movimento, sempre destacando o papel das mulheres afro-americanas que trabalhavam pelos direitos coletivos nas comunidades oprimidas.
Nos trabalhos sequenciais, Varda passa a abordar frontalmente os direitos das mulheres em questões relacionadas ao sexo, aborto, trabalho e maternidade, como no documentário Resposta das Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo (1975), e no longa Uma Canta, a Outra Não (1977). Em decorrência, o engajamento feminista torna-se uma constante no cinema vardiano, algo que, para a cineasta, passa pelo filmer en femme, quando as imagens das mulheres devem ser feitas apenas por mulheres, um “laboratório de uma escrita fílmica no feminino” como sugere Preto (2007, p. 6).
Neste cinema pautado por questões sociais, históricas e políticas, Varda sempre encontrou lugar para referências autobiográficas, como em Documentira (1981), no qual, retornando aos Estados Unidos, deixa transparecer um pouco da sua história pessoal. No filme, uma francesa recém-separada, interpretada por Sabine Mamou, reinicia sua vida com o filho de 8 anos, interpretado pelo próprio filho da cineasta, Mathieu Demy.
Em diálogo com essa proposição, alguns anos depois Varda realiza Sem Teto, Nem Lei, sobre a outsider Mona, interpretada por Sandrine Bonnaire, vivendo os ideais de ‘liberdade’ das décadas anteriores. Com uma crítica sociopolítica e uma ampla reflexão sobre a condição feminista, a cineasta apresenta a personagem em um percurso que vai desestabilizando os costumes, as normas e as regras sociais.
Assim como os trabalhos anteriores, a construção narrativa dos filmes desse período propaga-se por deslocamentos que partem de um eixo inicial e vão se associando a outras camadas, no caso, de cunho social e político. Se antes estas digressões estavam relacionadas às experimentações iniciais, ao filme-ensaio, descobertas de uma cineasta iniciante em plena nouvelle vague, depois disso passam a refletir as características mais robustas e permanentes da sua cinescrita.
Varda estrutura seus filmes incorporando um fluxo de associações que inicialmente parecem livres, mas estão rigorosamente amarradas ao eixo temático principal. Estes deslocamentos, muitas vezes, partem de elementos variados, convocando novas leituras relacionadas com as pontuações pretendidas, sejam elas sociais, políticas ou pessoais.
Sob a forma de digressões, as narrativas desenvolvem-se em um território heterogêneo, no qual o espectador é levado a transitar por uma justaposição de imagens e textos, desenhos, pinturas e fotografias. Se ficamos livres para buscar novas associações, é por que os filmes, em suas composições, estruturam este percurso pelos deslocamentos que oferecem.
Nos anos seguintes, com Varda ainda separada de Demy, as temáticas dos filmes percorrem questões ainda mais autorreferenciadas. Os filmes O mestre do Kung-Fu (1987) e Jane B. Por Agnès V (1986) compõem um retrato cinematográfico da mulher de 40 anos, independente, solitária, melancólica e produtiva. O primeiro, uma ficção, traz novamente o filho da cineasta no elenco. O segundo é um documentário estruturado em curtas representações e testemunhos da atriz, modelo e cantora Jane Birkin, em diálogo com a própria Varda.
Após um longo período afastados, Varda e Demy reatam o casamento no final dos anos 1980, o que vai influenciar diretamente a produção seguinte da cineasta. Demy, já muito doente, inicia uma viagem ao lado da esposa por diversos lugares do seu passado, revisitando importantes paisagens da sua infância. Juntos, constroem um projeto para dar forma cinematográfica à biografia detalhada de Demy em Nantes, Jacquot de Nantes (1991).
Mesmo debilitado pela doença, Demy esteve presente durante todo o processo, acompanhando as encenações que Varda construía das suas memórias, vindo a falecer duas semanas após o término das filmagens, em 1990. Na sequência, Varda realiza mais dois documentários inteiramente dedicados ao marido, Les Demoiselles ont eu 25 Ans (1992) e O universo de Jacques Demy (1995), homenagens que também aparecem nas instalações artísticas que ela realiza na década seguinte.
Segundo Conway (2015), a experiência do luto e as viagens ao lado do marido nutriram uma nova fase da carreira de Varda, que passa a abordar, em seus trabalhos, as paisagens e seus habitantes – em sua maioria os marginalizados –, ao mesmo tempo em que começa a refletir sobre sua trajetória como fotógrafa, cineasta e artista visual.
É com Os Catadores e Eu (1999) e sua sequência, Les Glaneurs et la Glaneuse… Deux Ans Après (2002), que Varda consolida seu estilo como documentarista comprometida com o social e o político. Combinando sensibilidade, ironia e bom-humor, a cineasta coloca-se na frente das câmeras, trazendo reflexões sobre si mesma, sobre a passagem do tempo, o apagamento e a manutenção da memória.
Para a cineasta (CONWAY, 2015), ao filmar os catadores, na tentativa de retratar o desperdício, acabou encontrando muito de si mesma, muito da ‘catadora de imagens’. Dessa forma, a partir das digressões autobiográficas; da narração que pontua e conduz o espectador; da justaposição de referências visuais, funcionando como vestígios de uma multiplicidade de vozes, Varda atualiza uma das principais características da sua cinescrita: fundir o social e o político com suas próprias experiências e reflexões.
Este compromisso foi sendo construído e elaborado num contínuo ao longo de toda sua carreira e está explicitamente estruturado no documentário autobiográfico As praias de Agnès (2008). O filme, organizado em uma disposição heterogênea e fragmentada, conta a história da cineasta, a partir das imagens dos seus filmes, depoimentos e algumas encenações das suas vivências, por vezes, falando mais sobre o mundo, o político e o social, do que a trajetória pessoal e profissional da realizadora. O mesmo ocorre em seus dois últimos trabalhos, Visages, Villages (2017) eVarda por Agnès (2019).
A longa trajetória de Varda é marcada por uma continuidade e unidade no seu método, com raras rupturas estéticas, como observa Conway (2015). Sua forma de realizar repete-se ao longo de sua carreira, funcionando como uma costura entre todas as fases da cineasta.
Agnés Varda concebeu um cinema provocativo, acionando diferentes pontos de escuta, em um percurso feito de associações e dissociações. Vida e obra estiveram sempre alinhadas, em ressonância com seus processos criativos, compondo uma estilo que favoreceu as digressões e provocou reflexões, dando espaço para a improvisação em uma estrutura rigorosamente preparada, na qual o significado nunca foi o foco principal e sim a imagem, já que em sua cinescrita, por si só, as imagens significam.
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REFERÊNCIAS
CONWAY, Kelley. Agnès Varda. Champaign/IL, Estados Unidos: University of Illinois, 2015.
DeRoo, Rebecca J. Agnes Varda between Film, Photography, and Art. Berkley/CA, Estados Unidos: University of California Press, 2008.
[1] Mestre em Comunicação pelo PPGCOM/PUCRS (2019). Especialista em Expressão Gráfica pela PUCRS/FAU (2008). Participa do Kinepoliticom (CNPq): Grupo de Pesquisa em Cinema, Audiovisual, Estética, Comunicação e Política.
“(…) Seu firme andar de passos gráceis, dentro dum círculo talvez muito apertado, é uma dança de força cujo centro ergue-se um grande anseio atordoado”.
Rainer Maria Rilke
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“É preciso estar morto para ser realmente um criador”.
Thomas Mann
É uma trajetória de morte, ou antes: um desejo de extinção. Cada passo milimetricamente fatal, dolorosamente sentido. Os Encontros de Anna (1978), de Chantal Akerman, situa-se algo além da tristeza, do vazio, da solidão; assim como o corpo, já há muito abandonado pela vida, se dirige, na crueza dos planos, na decupagem quase ritualística – um ritual rilkeriano (“…até verter nela a minha alma, enfim”) – para uma forma intransigente de automatismo.
Um autômato que, contrário à sua natureza, tudo sente, mas sem poder compartilhar, transmitir. No caso aqui, falamos da cineasta imantada por Aurore Clément. A ela, só cabe prosseguir fiel à sua própria encenação do fim. Sobre os instrumentos que dispõe para se personificar – os filmes que faz, por exemplo – não sabemos nada. Temos, forçosamente, que imaginá-los, e provém daí o vínculo criado entre nós e essa estranha personagem que a todo tempo (sob a aparência da frieza) recusa a nossa empatia, mas que, ao cabo do percurso, nos leva a sentir que poderíamos ter morrido com ela. E morremos um pouco, sim.
Não fosse pela presença epifânica da música e nos seria insuportável tal deslocamento – é quando a personagem de Clément oferece, em seu derradeiro encontro com Jean-Pierre Cassel, essa espécie de canção de ninar, vivificando seu semblante por uma ocasião única e fugaz durante o filme (o suficiente para nos preencher de esperança naquele momento).
Há quem considere, com a objetividade que requer a análise de um filme, que Os Encontros de Anna traga, em subtexto desencantado, um panorama do pós-guerra e das feridas abertas por esses conflitos mundiais em grande escala. Mas todo cinema realizado na segunda metade do século passado, de alguma maneira, reverbera esse trauma, e não seriam duas ou três conversas – notadamente o encontro primeiro de Anna com seu “amigo alemão” e, posteriormente com a sua mãe – o que particularizaria a experiência dilacerante que é entrar em cada cômodo, cabine de trem, carro e até mesmo varanda; como quem reconhece os contornos inescapáveis do seu ataúde.
Chantal Akerman está sempre ao passo esquivo do que a mera reflexão analítica pode nos proporcionar. Se é um filme tão imiscuído de morte, é que a vida parece não ser grande o suficiente para nos trazer todas as respostas. Essa é a constatação da sua protagonista, essa é sua aflição. O quanto isso nos afeta como espectadores, naturalmente, é variável – vai depender do quanto já se viveu até aqui a ponto de reconhecer a morte como uma possibilidade de entendimento das coisas, o último e definitivo entendimento.
A trilha da chegada ou saída do inferno. A isso se reduz tudo.
Aproximar-se ou afastar-se do inferno.
Eu, por exemplo, mandei matar.
(Roberto Bolaño, “Prefiguração de Lalo Cura”)
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Era como se o áspero deslocamento da terra pelo espaço
se houvesse de repente tornado audível.
(Joseph Conrad, “Coração das Trevas”)
I
Salvo Mulher à Tarde (2010), a impressão que me escorre ao final de Sete Anos em Maio (2019) é muito similar à experiência dos outros dois longas-metragens de Affonso Uchôa, Arábia (2017, co-dirigido com João Dumans) e A Vizinhança do Tigre (2014). Acabados os três filmes, sobrava uma sensação de incompletude: um sentimento desorientado de por onde começar a digerir ou morder o filme, suas imagens, seus personagens. Isso tudo não só pelo fato das obras parecerem tão distantes, mas especialmente por seus destinos materializarem-se em uma linha muito ríspida entre o plano da vida e da morte, borrando a ficção para começar a rasgar a carne do real. Assim é com os garotos de A Vizinhança do Tigre tanto quanto com o narrador de Arábia: algo ali existe para além do frame – uma relação cotidiana, perene – que transforma em matéria dura a contingência impalpável do cinema. Que arranha a pele do opaco dando lugar à uma severa transparência.
A vida (o que sobra sempre depois dos filmes), entretanto, exige ao menos que permaneçamos em ordem, tentando decifrar ou penetrar (pelo menos um pouco) esse conjunto de filigranas que nos atinge. Ela pede que andemos, vaguemos – juventude em marcha – em direção desses códigos que soam tão descomunais, tão incertos. E, se nesse caso do cinema de Uchôa, a questão central é mesmo o que se opera num sentido de vida, acredito que seja especialmente porque seus filmes – como objeto e corpo, acontecimento – a efeitos cruciais, lidem mais diretamente com a morte.
Pois, se A Vizinhança do Tigre apontava para uma geografia de garotos que flertavam com o mundo da violência e da criminalidade quase que instantâneamente (reconhecendo esses espaços, esbarrando nos seus gestos, penetrando em uma camada da intimidade que derrubava o real cinematográfico – de sentido mais documental, objetivo – para alcançar quase uma substância de aura, de sensação do que se vive), Arábia era propriamente uma jornada que se ligava e tecia através da morte, o operário que rememora seus relatos post facto, empreendendo uma visão de Brasil dos anos 2010 a partir do seu lugar social, mas na dependência exata da morte como dispositivo. Liamos o caderno de Cristiano para compreendê-lo, especialmente porque, em matéria presente, não mais estava ali. Vivíamos o filme dentro da memória, através dela.
O que se desprende disso, enfim, é a relação que as obras de Uchôa estabelecem com figuras que frequentemente encaram o findar do mundo, esse mundo tão próximo ao realizador, tão mano-a-mano. (Para os personagens de A Vizinhança do Tigre, o fim das aulas, o limbo da vida adulta, a ronda do cárcere e da drogadição, o exercício da perda da inocência em uma infância precoce; para o operário de Arábia, o trabalho como mote de morte, a desidentificação do todo como processo de apagamento, de impessoalização). É através dessa relação que se consuma uma narratologia que atravessa a vivência, o já visto, já sentido – o mundo que, futuramente, me atravessaria como espectador, em forma de frame; mas que, antes, foi o mundo que atravessou Junim, que atravessou Cristiano, e que, por sua vez, é o mesmo que atravessa Rafael, protagonista de Sete Anos em Maio.
II
Talvez seja exatamente por isto que o primeiro plano de Sete Anos pareça uma presença tão material e simbólica dessa concepção de mundo em queda, em que o personagem vaga por um largo espaço de tempo por uma estrada, envolvido pela escuridão abissal da noite.
Dessa imagem, são possíveis duas computações. Por primeiro, a de quem parte, pois o mundo de Rafael se desmonta enquanto caminha – em estrutura de plano, a primeira decupagem do filme joga-nos à um negro quase absoluto: Rafael desloca-se por uma rua larga, nas suas costas estão as poucas luzes das casas, do bairro, da civilização. A falta de presença material do plano em questão permite-nos perceber poucas coisas de fato, a mais clara delas é que Rafael se dirige à frente, abandona um rastro de sociedade que suas costas amparam – atrás dele estão não só as pequenas fagulhas da cidade, como também sua estrutura arquitetônica, o que, na figura das construções, se resume ao espaço de uma civilização; à sua frente, em direção ao espectador, o extra-campo esconde o destino do rapaz. No mais, compreende-se apenas que Rafael caminha, tal qual um tipo vivo-morto, por um espaço que não permite ao espectador reconhecimento. Ou seja, Rafael caminho por um não-espaço. Acerca do destino do rapaz, pouco tem-se informação, mas a narratologia que a imagem dá conta de construir passa por uma necessidade de caminhar – fugir, partir -, complementada por uma construção severa de abandono: se algo cruza o caminho de Rafael no plano em questão, pequenas luzes e faróis de carros alheios, logo fundem-se ao rosto do rapaz para ir embora. Desconhecemos o espaço do quadro tanto quanto as luzes desconhecem e desconfiguram o rosto e o corpo de Rafael. Estabelece-se uma noção de indefinido.
Então, partimos para a segunda computação, o escuro – esse escuro tão presente, tão palpável. Já em determinado andamento do plano, mal se pode ver Rafael, qualquer fagulha de cidade ou mesmo o caminho pelo qual passou. A luz pela qual passou já não ganha força para delinear em claro uma figura: resta-nos as formas das sombras.
Esse tal escuro que toma conta do campo, por sua vez, recria uma construção que dialoga diretamente com a presença da morte ou mesmo da passagem, do porvir. A escuridão, nesse caso, fornece ao personagem um legado de indefinição: ninguém o reconhece enquanto passa, ninguém nota sua presença. O andar rasteiro, quase zumbi, de Rafael o torna para o espectador em si uma dúvida – perde-se o deslocamento espacial e temporal e começamos a refletir se ainda há vida naquele espaço, se ele em si já não foi todo desmantelado, assim como acontece com o personagem no decorrer do plano. É exatamente por isso que se o rapaz caminha assim por tanto tempo no breu da noite, em cinema-fluxo, desvendamos um jogo de luz e sombra, uma zona de risco que a dilatação do plano defende, fundindo o corpo do personagem com o espaço escurecido, impreciso. Virar matéria, domar o quadro, converter-se em frame, em potência fotográfica – o cinema não mais centrífugo (do quadro em direção ao campo), mas sim centrípeto (o campo que assombra o quadro), tal qual a noite tomava conta da fogueira de Cristiano ao fim de Arábia, para que tudo se convertesse em escuridão, em passagem, em final.
Dessa forma, o que Sete Anos em Maio propõe é a construção de um espaço narrativo indefinido, não delineado. Através dessa computação, o filme compreende que a história de Rafael não permite uma representação (refazer os fatos tais quais ocorreram, dar nome aos personagens), mas sim exige um processo de reencenação. Se a “trama” central passa pelo relato do jovem que foi abordado por uma batida policial violenta na periferia de Minas Gerais e, por consequência, foi obrigado a ir embora – passando por toda espécie de perrengue e provação que essa situação possa exigir -, Uchôa também compreende que o ardor do processo da vida do rapaz talvez não coubesse em uma medida mais realista. O que, por consequência, explica a construção de um espaço para-narrativo (constituído em matéria de cinema por um escuro absoluto, imagens que não necessariamente permite que enxerguemos) em que pode-se articular sobre a vida de uma pessoa ao mesmo tempo que é possível viabilizá-la como metáfora de um processo de discriminação ou de violência geográfica.
Em Sete Anos em Maio, Rafael é tanto a si (objeto documental cênico, figura que atravessa o limiar da vida e da morte) quanto pode ser tomado como tantos outros jovens (habitantes de processos culturais e locais similares, vítimas de uma violência estatal estrutural). Figuras à sombra dos abutres.
Se Sete Anos, enfim, se passa todo durante à noite, é muito mais pelo fato de que no escuro e nos vãos de luz o universo se torna indefinido: as coisas nos escapam, tal qual os gritos da batida policial, tal qual o personagem tem de escapar de casa. No claro, a representação exige formas do real, já na noite pode-se ver, pode-se não ver. Na noite é possível que não se exista, que se deixe de existir. A noite pode não acabar. Diante dessa condição imprecisa, talvez nunca cheguemos à luz do dia, assim como o protagonista Rafael. Assim como tantos outros protagonistas possíveis. O espaço se torna eterno, a escuridão também.
III
Quando escreveu sobre Tarumã (Aloysio Raulino, 1975), Jean Claude-Bernardet defendia que havia ocorrido no processo de filmagem um movimento instantâneo: o cineasta percebera na imagem de uma mulher a ressignificação absoluta dos pessoas da região – trabalhadores de uma área pobre camponesa -, e, a partir dali, havia focado o seu filme absolutamente nela: a câmera não procurava então mais nenhuma poiese, mas sim focava-se em enquadrar perfeitamente a moça. Isso dava-se, para Bernardet, por que Raulino (e o restante da sua equipe, que, ao fim, assinam o filme conjuntamente com ele – Guilherme Lisboa, Mario Kuperman, Romeu Quinto) haviam compreendido a necessidade de um elemento cinematográfico mínimo: só o que importava no plano em questão era o que falava a personagem, seu rosto, seus gestos. Isso bastava e tornava-se suficiente para evocar o seu discurso; mais que isso seria desviar a atenção ao que de cristalino havia naquele relato e ao que de respeitoso havia naquela representação. A conclusão era que o cineasta, então, ao minimizar toda a forma cinematográfica disponível – o enquadramento, a voz, o nome dos realizadores (que ao final são apenas citados, sem assinatura) -, atingia um grau máximo possível de representação de um explorado pelas vias de um artista. Nesse respeito da forma, nesse mínimo, construia-se um modo de alavancar o subjugado através do filme, dar-lhe lugar.
Algo muito similar ao que ocorreu em Tarumã acontece no miolo central de Sete Anos em Maio, quando a câmera posta-se frente ao protagonista para que ele narre sua história. O relato que, ora aparecia em voz over, dá luz a um plano inominável, absolutamente direto do rosto de Rafael: pela primeira vez conhecemos sua face, e nela ficaremos por uma longa duração. Em frente a fogueira, o rapaz que conta para o espectador a falência dos anos que passou fora de Belo Horizonte, as feridas de sua história.
Não haveria ali, talvez, para Affonso, outra maneira de fazer Rafael falar. Ou de falar tão claramente. O que o gesto cinematográfico denota, nesse caso, é a essência de uma cosmogonia no filme: um elemento mínimo que é exigido para poder fazer-se o relato, quase que pela via literária. A necessidade que existe, nesse caso, é a de narrar, contar. E Rafael – pelo seu peso histórico, pela força de sua figura, de sua trajetória, talvez só pudesse ser ouvido à luz do fogo, em meio ao nada, à noite absoluta.
Por isso mesmo a importância da fogueira na narrativa, pois, assim como o deslocamento do narrador era o que mais causava espanto em Arábia, é também esse código da ancestralidade o maior ponto de impacto aqui. Caso analisarmos a fundo a cena em que, pela primeira vez, podemos observar Rafael de frente – com o rosto dado às nossas vistas -, iremos perceber que é também como se o mesmo falasse para o espectador. O que o fogo reencena nesse jogo (que depois virá a ser absolutamente desvirtuado por um corte brutal da montagem, revelando outra presença no campo) é uma reconstituição da oralidade: apesar de hoje ser possível que acompanhemos as perdas e as dores da vida de Rafael por meio de uma abordagem mais simples e direta (o relato fechado, objetivo) talvez seja necessário que essa figura tão central do imaginário brasileiro – o marginalizado, o operário, o oprimido – possa se expressar através de um código mais antigo, mais in natura – ou seja, o mesmo código que perpetuou o imaginário brasileiro acerca de tantos mitos, ritos e figuras; através da fala banhada pela noite, da fogueira que forma as primeiras sombras, deforma as primeiras imagens da história. Um retorno ao primitivismo.
Em decorrência disso, o que torna tudo mais interessante é exatamente uma concepção de eterno que essas imagens (a noite e a fogueira, juntas com a voz em quadro) podem guardar. Ali, no momento da fala, impõe-se a cosmogonia, algo que rodeia o filme todo. Cosmogonia como concepção de mundo, muito por que se parece que Rafael, Neguim e todos os outros personagens que fazem parte de Sete Anos habitam um universo muito próprio, um pouco mínimo, à parte; muito mais representacional que documental. O que, evidentemente, pode remeter a um estado social mais primitivo – de novo o fogo, a fogueira, mote zero do desenvolvimento da civilização -, calcando a narração como processo de criação de mundo: ou seja, o que acontece à Rafael, acontece a quanto tempo (?), com quantas pessoas (?).
Seria por isso mais possível dizer que, tal qual Rui Chafes fala sobre Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa (cineasta que parece cada vez mais influente no cinema de Uchôa), Sete Anos em Maio também soa como um filme que “acontece quando todo o resto deixa de acontecer”, por que essa presença da noite também carrega junto uma sensação de isolamento, de solidão – não à toa Rafael e Neguim conversam sozinhos, ninguém observa o momento da abordagem policial, nenhum carro para na estrada. Além de reconstituir a ancestralidade, a noite também refaz esse modelo persuasivo de uma construção de universo muito particular, quase metonímica, em que a figura central alia solidão e presença de morte como um conto ainda muito vivo da realidade brasileira. Se Arábia era antes um Brás Cubas (narrar a vida depois da morte), Sete Anos em Maio é muito mais um projeto de Quincas Borba (a vida depois da sobrevivência e antes da morte). A vida nas intempéries do realismo, seus gostos e desgostos. Seu dessabor.
Um cinema dos contrários, de regência negativa. Em que não se caminha, não se atua, não se vê. O que importa mesmo é o arrebatamento que atravessa o peito, a força que aquelas imagens e vozes geram em nossa cabeça, sua sinestesia fantasmagórica. Um sonho, um pesadelo. Ali onde se vive, mas não se delimita o que é real ou ficcional, quando é possível dormir ou caminhar. É a vida todas as noites ou a morte antes do amanhecer.
A constelação de movimentos e manifestos, ofensivas e discursos que tiveram lugar na França, em maio de 1968, fizeram há pouco 50 anos. Acontecimento múltiplo, a onda de lutas estudantis e populares que paralisou parte do país e se espalhou pela Europa e por boa parte do Ocidente não parecia ter um centro definido, uma pauta regular de reivindicações. Ao contrário das jornadas da juventude e das greves gerais antes deflagradas, o aspecto econômico do problema parecia ser, num primeiro momento, menos importante, ocupando a margem da cena num contexto em que, tradicionalmente, sempre deteve relevância decisiva, quase absoluta. Ao contrário, portanto, do que os olhos estavam acostumados a ver, o Maio de 1968 francês foi uma realização sobretudo política, uma disputa no campo ideológico na qual a própria existência comum, seu significado e suas possibilidades, por assim dizer, estavam em questão. Mais do que em outros conflitos sociais de expressão semelhante (como, por exemplo, os protestos brasileiros de Junho de 2013 no Brasil), o ponto explosivo das ações estava assentado sobre uma espécie de desejo de revisão geral de valores, de crítica ampla a tudo o que se apresentava como hábito e tradição constituída (na Universidade, no universo do trabalho, nas relações familiares, no sexo e nas próprias formas de organização da Esquerda). A vida mesma, seus dilemas e modos de usar, era o motor dos questionamentos: os slogans que se espalhavam pela cidade, nos arredores da Sorbonne principalmente, Il est interdit d’interdire! e tantos outros, pareciam reivindicar a própria potência da vida como aquilo que, de mais essencial, deveria ser preservado a qualquer custo, posto livre de quaisquer limites e formas de controle. Assim, num levante em que os corpos ocuparam o primeiro plano, não mais como plataformas neutras a partir das quais ideias eram levadas a cabo e expostas ao mundo, mas como protagonistas de um processo urgente de desregulação e liberdade, não seria de espantar que a arte tivesse parte considerável no que sucedeu ali, uma vez que, por tratar-se de matéria sensível, aesthesis que aponta antes para aquilo que o corpo sabe antes que o espírito, ela fosse um território privilegiado das batalhas que se desdobravam a céu aberto.
O cineasta Jean-Luc Godard, talvez mais do que qualquer outro artista do seu tempo, esteve envolvido de diversas formas nos acontecimentos de 1968. É bastante conhecida a tese de que seu filme A Chinesa (1967), do ano anterior, havia antecipado, de modo surpreendente, o clima de radicalização da juventude, a intensa mobilização que, silenciosa e talvez inconsciente, já ia se formando. Participando diretamente das passeatas, filmando a partir delas, trabalhando ativamente em meio aos protesto que paralisavam as engrenagens do poder e ameaçavam a troca incessante de mercadorias (o fundamento do capital e sua ordem instituída, antes mesmo de qualquer arranjo político ou governamental), o diretor pôde observar atentamente o que se passava, procurando compreender – como todos os que ali estiveram, e muitos dos que se debruçam sobre a história do movimento – as energias que se desprenderam daquele processo e as razões que levaram, algum tempo depois, ao seu recolhimento. Foi, no entanto, num filme-ensaio realizado meses depois do epicentro dos conflitos, Sympathy for the Devil (One Plus One) (1968), rodado inteiro em Londres, que Godard pôde apresentar uma leitura do que a França – e o Ocidente, é possível dizer – havia experienciado. Não se trata, é claro, de qualquer tentativa de reconstituição dos fatos via ficção, nem mesmo da elaboração de uma linguagem documental que pudesse recolher os cacos da História e os organizar numa narrativa coerente. Quem está minimamente familiarizado com a filmografia do diretor sabe da recusa aos expedientes tradicionais da sintaxe cinematográfica, bem como reconhece a sua preferência pela complexidade reflexiva que se dá pela via da montagem, da fragmentação discursiva e pela explosão da linearidade e da causalidade. Até então quase sempre trabalhando a partir dos gêneros tradicionais da indústria do cinema, tentando sabotá-los por dentro, a partir dessa época o diretor abandona as experiências com filmes de alguma penetração comercial e radicaliza as experiências de vanguarda (estética e política) dos seus filmes. Algo havia se rompido e não voltaria mais a existir nos mesmos termos para o diretor. Nesse sentido, afirmar que Sympathy for the Devil é a resposta de Godard ao Maio de 1968 é dizer que, nessa película particular, o diretor procura atravessar os acontecimentos do período – ainda frescos na mente do público – com um contradiscurso que os procure, ao mesmo tempo, interpretar e interpelar, isto é, os abrir em todas as suas possibilidades de compreensão e propor, algo violentamente, de maneira instituinte e em choque, uma rede de significados que se estenda como um véu sobre os eventos, ao mesmo tempo encobrindo-os e reorganizando-os.
O filme está partido em dois, cindido mesmo em sua estrutura fundamental, conforme o subtítulo One plus One já deixa perceber. Embaralhados, os blocos imagéticos (os sintagmas visuais, pois não faz mais sentido pensar em instâncias narrativas aqui) do filme vão se sucedendo na tela: logo de início (e ao longo de todo o trabalho) o diretor apresenta o registro íntimo de uma canção, como que a origem de uma obra de arte: os Rolling Stones, banda de rock inglesa então muito pouco convencional, prepara Sympathy for the Devil, música que surge em vários estágios diante do espectador, dos acordes iniciais e desorganizados dos violões do grupo – no que mais parece um ensaio preliminar, quando a canção lembra um samba ou outros ritmos sincopados da música latina – até a forma final com que foi veiculada no álbum “Beggars Banquet”. Justapostas a essa filmagem despojada e como que doméstica, cenas de registro muito diverso vão aparecendo em contraponto, de mistura, atravessando a unidade pressuposta da sessão documental do filme: num ferro-velho, em meio a carros empilhados e a muitos dos resíduos produzidos pelas sociedades de consumo, um grupo de homens negros armados recitam agressivamente textos duros, igualmente agressivos nas posições ético-políticas que apresentam – à esquerda e à direita, em repetição às vezes indecisa; junto a eles, é encenada a execução sumária de atores brancos, bem vestidos e de modo claro ligados – é o que se sugere pelo contraste entre os atores em cena – à burguesia e outros setores das classes dominantes. A referência imediata, naquele contexto e por tudo o que ali se diz e faz, é aos Partido dos Panteras Negras (BPP), movimento revolucionário norte-americano (de inspiração maoísta) que procurava questionar e combater, de armas nas mãos, a feroz divisão racial e a violência – política, econômica, cultural – que segregava a população negra daquele país.
Numa nova sucessão de blocos, as imagens dos Stones vão ser aproximada e tensionada com cenas urbanas, captadas em diferentes regiões de Londres, nas quais homens e mulheres se põem a pixar a cidade, escrevendo sobre muros e demais superfícies palavras de ordem anti-establishment, senhas para o caos do Estado e das instituições oficiais (o cinema comercial-convencional entre elas). Tudo isso, toda a multiplicidade fragmentária das revoltas encenadas pelo diretor vai se chocando com a construção da canção pop, opondo e somando, deslocando e acumulando sons, informações, pedaços distintos do mundo. A técnica usada pelo diretor – apoiado num processo de montagem bastante estudado, é certo – parece remeter a um dos romances modernos mais instigantes do século XX, texto já antes visitado pela filmografia de Godard: “The Wild Palms” (1939), de William Faulkner. Esse texto também se apoia na sucessão de blocos narrativos desconectados entre si, com histórias que não se tocam em nenhum momento mas se atravessam de maneira continuada pelo fato de, a cada suspensão de capítulo, a parte anterior dar lugar a sequência do outro texto, que assim, nessa lógica contrastante, vai se fazendo como todo orgânico, peça feita pela disjunção e pelo estranhamento. Como o que ali acontece, em Sympathy for the Devil os diferentes módulos não se comunicam diretamente (apesar de as imagens e os sons algumas vezes chegarem a se confundir em amálgama breve). Igualmente como o que se dá no romance de Faulkner, a disposição não-linear dos blocos narrativos estabelece uma espécie de zona de contaminação de sentidos, na qual os sucessos de uma parte afetam os outros, projetando-se sobre eles, deixando algo do seu significado aberto e incompleto para ser preenchido pela imagem que virá. Essa disposição aparentemente anárquica, mas que tem muito de cerebral e cuidada, articula desse modo vetores distintos e complementares, forças que se encontram e chegam, com o desenvolvimento do trabalho, a se confundirem: criação e demolição, invenção e sabotagem formam o corpo do filme, indicando já, sobreposta a película ao seu contexto histórico imediato, aos acontecimentos contraditórios e inextricáveis daquele período rico e difícil, 1968.
O que Sympathy for the Devil parece localizar com precisão é o coração verdadeiramente inabordável dos eventos do Maio francês, da onda revolucionária que injetou esperanças de transformação em diferentes sociedades que, por parecerem engessadas e firmes, expuseram o solo movediço sobre a qual seus fundamentos repousam. O binômio criação-destruição, seu caráter reversível e dialético, sua natureza nunca de todo explicável, parece guardar alguns dos sentidos possíveis da experiência daquele período. A crítica implacável que os movimentos político-culturais faziam das normas sociais vigentes, dos hábitos inamovíveis do mundo capitalista e sua moral sexual, seus ordenamentos econômicos, apontava para a derrocada de tudo o que estava de pé; a juventude parecia querer reiniciar a vida, partindo de um hipotético ponto zero da experiência. Ao mesmo tempo, e de modo inseparável, esse desejo negativo de quebra vinha acompanhado da proposição intensa de novas formas de encontro, de diferentes possibilidades de luta política, de linguagens e comportamentos até então pouco ou nada vistos. Nos termos de One Plus One: a desagregação explosiva das vanguardas estéticas e políticas, o cineasta que se move em meio aos detritos, os jovens negros armados de fuzis e niilismo; o rock vai surgindo peça por peça, ao mesmo tempo rebelde e integrado ao mercado, um rasgo crítico e irônico que, no entanto, alimenta as engrenagens do capital e do show business.
A dualidade desse processo, portanto, que esteve no cerne das agitações revolucionárias daquele tempo, ocupa o cineasta inteiramente, uma vez que ele coloca a máquina de seu filme para representar, pensando-a por imagens, o aspecto paradoxal do processo. A música que acompanha de perto o sofrimento e a guerra, (“Let me please introduce myself/I’m a man of wealth and taste/And I laid traps for troubadours/Who get killed before they reached Bombay”) é a mesma que brilha sob as luzes mistificantes da TV. Derrisória e assimilada. Do mesmo modo, o terror e violência revolucionárias são, ou podem ser, as mesmas que disparam ciclos intensos de destruição, muito mais próximos do irracionalismo do que se poderia inicialmente supor. O contraste (o choque das imagens que se opõem) e a elipse terminam por ser os procedimentos estéticos fundamentais do diretor, que não quer explicar de modo cabal o que não podia ainda, naquele contexto, ser explicado, preferindo elaborar um ensaio visual complexo que pudesse capturar, a partir da tensão, o ponto de suspensão em que as coisas se paralisam e o desconhecido, o novo, pode ser vislumbrado, mesmo que não se torne realidade imediata, permanecendo como contradição ou latência.
A promessa contida na canção anárquica do Stones, música que, em sua densidade formal apresenta um conjunto de metáforas e episódios extremos e dissociativos, aponta para a construção de uma obra, um produto afinal reconhecível e pleno, uma realização da cultura, enfim, vitória do engenho e da arte contra o caos e o nada. O que se afirma, no entanto, nesse produto é coeficiente de destruição que carrega, a negatividade que o marca ambiguamente como resultado da indústria do entretenimento e vislumbre terrível do fim de tudo, do horror da História e das forças explosivas que se agitam no homem. O convite, por sua vez, feito por cada um dos fragmentos encenados do caos e do questionamento que informam as muitas passagens violentas do filme, aos trechos mais diretamente paródicos e àqueles resistentes mesmo ao sentido, se traduzirá, por inusitado que pareça, na construção de uma nova realidade social, novas formas de convívio e organização; por mais que se encene a brutalidade e o absurdo, não se trata apenas de pulsão de morte, uma vez que a dialética do olhar lançado sobre as coisas indica a reversibilidade do processo, o fim como ponto de reinício, utopia renovadora, abertura de um novo ciclo. Os usos e sentidos da vida, enfim, é o que está em jogo no filme de Jean-Luc Godard: a necessidade construtiva e a força que tudo arrasa (ou quer arrasar), são como potências específicas, propriedades da vida que, no maio de 1968, vieram à tona para, segundo propõe o diretor, não mais submergir.
Dois anos após a estreia de No Coração do Mundo (2019), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, o filme se assenta como uma das principais obras para se pensar atuação no Brasil. Victor Guimarães, em texto para a Revista Cinética, afirma que o sucesso do filme está atrelado ao elenco e à direção de atores que respondem à altura dos desafios técnicos que o filme exige. Diversas entrevistas concedidas pelos diretores – a Adriano Garrett para Cine Festivais e a Daniel Cury para Cinemação, por exemplo – apresentam questões sobre a direção de atores da obra; sobretudo acerca da curiosidade em relação ao trabalho com Grace Passô e MC Carol e o processo de amadurecimento dos personagens de Contagem (2010).
No entanto, sinto falta de uma conversa que aprofunde a questão da direção de atores no filme. Portanto, realizei a presente entrevista com Maurílio e Gabriel, objetivando dissecar o processo de direção de atores em No Coração do Mundo (2019). A entrevista foi realizada online devido à pandemia de coronavírus.
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Como que vocês se dividem na direção dos atores?
Maurílio: Existiu uma divisão igualitária durante todo o processo. Às vezes, em algumas tarefas específicas, um ou outro apresentou maior dedicação, devido a diversos fatores envolvidos, como tempo disponível ou entendimento maior de determinado assunto. Entretanto, a divisão foi embasada em muita comunicação e colaboração e, embora existissem algumas divergências de pensamentos durante o processo, o resultado final foi uma convergência de ideias. Eu e o Gabriel nos acertávamos com regras básicas: nunca cortar antes de entrar em contato visual com o outro e nunca se dirigir a um ator/atriz sozinho. Essas regras eram subentendidas, sendo seguidas de formas automáticas, não havendo nenhum tipo de divisão formal no trabalho. Também nunca ocorreu algum tipo de comunicação que o outro se sentisse prejudicado. Nossas conversas anteriores ao set, ensaios, eram importantes para organizar a direção naquele momento, mas não precisava necessariamente haver uma combinação metódica. (Era) instantânea, segundos antes de falar. As conversas, de modo geral, foram balizadas durante todo o processo de direção.
Como que a relação com os atores mudou desde Contagem? Como ela amadureceu? Foi para uma mesma direção desde o início? Como todos os trabalhos feitos até chegar em No Coração do Mundo foram transformando a relação com os atores? Além disso, como foi o processo de construção desses personagens? Os personagens da Bárbara Colen, Kelly Crifer, Leo Pyrata e Robert Frank já existiam em Contagem e o da Rute Jeremias já existia em Dona Sônia Pediu Uma Arma Para Seu Vizinho Alcides (2011). Como foi desenvolver, anos depois, esses personagens? E como foi a recepção dos atores? Você acha que foi mais fácil para eles, visto que já haviam interpretado aqueles papéis antes? E como foi o processo de convite para outros atores, como por exemplo Grace Passô e MC Carol? Gostaria de entender como o quebra-cabeças do universo da trama foi se montando, a partir de atores com histórias de vida tão diferentes.
Gabriel: Desde que as filmagens de Contagem terminaram, por volta de seis anos (antes do início de No Coração do Mundo), nosso trabalho amadureceu muito. Fizemos muitas coisas diferentes, participamos de muitos outros projetos; e uma grande parte do elenco do filme No Coração do Mundo veio a partir desses atos, tendo um aspecto muito forte de que muitos atores/atrizes eram iniciantes, como por exemplo a Babi (Bárbara Colen) e a Kelly (Crifer), e a presença de atores veteranos, como a Robert (Frank). De lá para cá, criamos uma relação com essas pessoas, nos aproximando muito delas. Quando filmamos No Coração do Mundo, já tínhamos uma intimidade muito maior, o que favoreceu a química no set. Tudo isso aprimorou o diálogo, o entendimento do cinema e do que nosso projeto buscava. O elenco que fez o longa, independente de terem tido outras experiências depois do Contagem, já conheciam nosso trabalho, já tinham visto nossos filmes. Nesse sentido, existia um entendimento do processo. Era uma relação com intimidade familiar, nos dando a possibilidade de explorar muito mais o potencial (de cada um). Por exemplo, o Robert conheceu a Babi em Contagem e, quando filmamos No Coração do Mundo, eles já eram amigos próximos. Tudo isso ajudou na química necessária pra desenvolver os personagens dos dois, permitindo a relação ocorrer de uma forma natural.
Maurílio: Entre Dona Sônia Pediu Uma Arma Para Seu Vizinho Alcides e Contagem houve o Estado de Sítio (2011), onde conseguimos ver amigos atuando, dirigir um elenco de amigos e também passar pelo processo de autoavaliação. Após Estado de Sítio, a experiência que se sucedeu foi marcada pela formação do elenco de Contagem, o qual foi afetado pelo processo do Dona Sônia, que contava com a escolha do meu vizinho, um grande amigo meu.
Quando o Gabriel traçou os perfis dos personagens de Dona Sônia, minha irmã me perguntou por que não escolhíamos o Delardino (Caetano); mas eu nunca havia cogitado tal possibilidade. Após essa barreira ser rompida por minha irmã, decidimos alocá-lo para o elenco. Delardino, juntamente com a Rute (Jeremias), aceitam participar do filme e, apesar de que ainda não estivesse pronto, os resultados das filmagens já tinham nos agradado, tornando como nossa tônica dominante a mescla entre o (Luiz Fernando) Fillizolla, junto com Rute e Delardino, ambos idosos, periféricos, evangélicos e tradicionalistas; e vale a pena ressaltar que estavam fazendo um filme com uma trama pesada, que envolve o empréstimo de uma arma de fogo para uma mãe que procura vingança. É uma história pesada e, na época, Delardino tinha 75 anos de idade e dona Rute tinha 68. E, embora tivéssemos contaminados com essa essa experiência, ainda não tínhamos os resultados das filmagens (em tela, pois o filme ainda estava sendo montado).
Logo em seguida veio Contagem e, junto a isso, todos os efeitos do Estado de Sítio. Então, quando começamos a escolher o elenco, como por exemplo o Leo Pyrata, foi muito natural. Ficamos encantados com a performance dele como ator. Eu gosto de frisar isto pois não foi uma escolha baseada em amizade, e sim a partir de uma performance. Claro que a convivência, a leitura que a gente faz de um amigo dentro de um contexto de atuação, tem outros olhos. Enxergávamos uma dupla face: como ator, a partir da sua performance, e além disso sabíamos do potencial dele a partir da convivência. A escolha de Pyrata está intrinsecamente relacionada com o Estado de Sítio.
A escolha de Robert foi embasada na amizade e confiança nos seus dotes artísticos. Éramos amigos desde 2002. A partir de certo momento ele se torna um dos melhores amigos do Gabriel, dividindo vários projetos juntos. A escolha de Robert é mais atrelada a um pré conhecimento de como ele era do que a uma performance artística, propriamente dita. Partimos do princípio de que ele tinha muito dote dramático, nos dando uma ideia do que poderia se esperar, nos levando a crer que poderia ser a pessoa ideal para o papel. O irmão do Robert faz o Beto, uma participação super-rápida; papel que fora substituído pelo Renato Novaes em No Coração do Mundo.
Encontrei a Kelly Crifer em uma peça que eu e Gabriel precisávamos ir para fazer um relatório para a aula de direção de atores, onde nos deparamos com a forte presença de palco dela. A Kelly é um monstro no teatro, sua presença é realmente muito potente, nos impactando e encantando instantaneamente. Dentro dessa performance, precisávamos conversar com ela por causa da atividade acadêmica e, nesta conversa, percebemos que era a escolha perfeita para o papel de Ana.
Bom, nesse ponto, faltava escolher mais dois atores. Um era o da Rose, que no roteiro era uma mulher por volta dos 45 anos. Quando nosso diretor de produção, Matheus Antunes, abre ensaios e cria anúncios para o papel, nos abrimos a uma quinta possibilidade: espalhamos panfletos em escolas de teatro, no qual encontramos a Babi. Ela estava em sua primeira semana de aula e ainda não tinha atuado, o que nos conectava de alguma forma mesmo sem termos uma conexão prévia. Quando ela faz o teste, o encontro dos dois (com o Robert) foi lindo, incrível. Todas as vezes que vejo eles atuando juntos me vem uma sensação gostosa, de como que o encontro dela com Robert foi algo poderoso. Espero que seja uma dupla que trabalhe em outros projetos futuramente.
O último nome a ser escolhido era o pai da Ana, um personagem com diversas peculiaridades e, embora tivesse apenas uma fala no roteiro, tinha a questão do gestual, do físico. E a gente não conhecia tantas pessoas em Belo Horizonte, era o início de nossa trajetória nesse universo. O pai do Gabriel, que frequentava o AA, conhecia o Osman (Rocha Alcântara) e, a partir disso, cria-se uma ponte e ele aceita o convite. Quando ele chegou, era um vulcão, tinha uma série de histórias que lhe acompanhavam. Era como se ele performasse o tempo inteiro, com câmera ligada ou não. A história do Osman é interessante, pois não houve ensaio prévio. Na hora em que foi liberada a gravação na loja em que faríamos a cena, o Osman não tinha preparado antes, sendo que o Gabriel viu ele atuando pela primeira vez já com o rec ligado. Foi uma espécie de confiança cega, uma comunhão de pensamentos otimistas de que a escolha daria certo.
Bom, eu fiz questão de frisar essa relação com o elenco e as escolhas tão díspares, cada um com suas características, pois ela passa a ser instintivamente parte do nosso trabalho. Não que esta marca não estivesse presente no Dona Sônia, ou mesmo em outros filmes nossos. Mas em Contagem, passamos a confiar nesses instintos e fazer essa mescla ousada. Então, essa relação deu muito certo. O nosso modelo de trabalho sempre foi pensado no que era melhor para o filme e os personagens, não tendo outro tipo de modelo, a não ser ir ao limite do que é melhor. Foi isto que nos moveu até chegarmos em No Coração do Mundo. Em tal filme, este modelo se amplia, tendendo pro lado radical. Por exemplo, convidar uma atriz como a Grace Passô, através da indicação de um amigo, remete à escolha do Osman, que tinha sido indicado pelo Geraldo.
A gente se cerca desses amigos que nos entendem, auxiliam nosso trabalho; como por exemplo o Adilson (Marcelino), um grande amigo meu e que me auxiliou na escolha da Grace. A confiança que eu tenho no Adilson, e em outros amigos, é suprema. A partir do momento que eles falam que tal pessoa é adequada para tal personagem, não costumo questionar, apenas confio e aceito.
Outra coisa importante a ser frisada é a mudança de gênero no elenco, que impactou a forma com que olhamos para os personagens. O personagem da Grace foi pensado para ser um homem, um andarilho e pai ausente, que desejava ser presente. A mudança foi realizada em 2016, a partir de tudo que estava acontecendo conosco e com o mundo. A parte mais maravilhosa desse processo é que não alteramos as características dos personagens, e por isso ela tem todos aqueles trejeitos que chamaram atenção. Não houve uma perspectiva de se aliviar a trama por causa do protagonismo feminino, confiamos que daria certo e fizemos do jeito que foi feito.
Quando foi realizada a escolha do elenco, o que nos interessava era que essa potência do personagem estivesse devidamente caracterizada na face, no corpo e no gestual da Grace. Tudo isso impacta a relação com o elenco, muda a forma com que você faz um convite para o ator ou atriz, transforma a forma com que você entrega algo que está estruturado dentro da lógica do arquétipo – entregando um personagem que é manco dentro das estruturas arquétipos -, não sendo uma coisa nem outra, transitando entre as características que historicamente o cinema foi pondo como masculinas. Além disso, ao escolher uma mulher que não é alta, musculosa e magra fomos em contrapartida a todos os padrões, não tem como não emocionar vendo a Grace invadindo aquela casa e comandando aquele mundo. É impossível. Você pode odiar o filme, mas é impossível se deparar com a cena de ação em que ela troca tiros com o homem, pegando o carro e indo embora e não se emocionar. Tudo isso está presente nesse trabalho, nessa história toda.
Gabriel: Os processos foram fáceis e naturais, pois já havíamos consolidado visualmente os personagens. No caso da Babi e do Robert, tomamos uma maior liberdade de desenvolver algo novo, pois na época do Contagem, todos os quatro atores principais não tinham tido uma caracterização tão profunda, pois nossa estrutura era insuficiente. No Coração do Mundo exigia uma caracterização mais profunda, criativa, havendo uma mudança radical no visual dos atores. Fomos abrindo portas para novos caminhos para os personagens, pensando em como era a vida deles para além daquele microuniverso que tínhamos criado. Além disso, não precisávamos respeitar o roteiro dos curtas Dona Sônia e Contagem, então começamos a ter ideias muito amplas para os personagens. Nossa vontade de explorar mais o bairro imergiu no roteiro, existindo essa vontade de contemplar as pessoas que já conhecíamos (seja no teatro, seja na própria cidade).
O personagem da Grace não foi pensado para ser uma mulher; inclusive tínhamos em mente chamar o Mano Brown para realizá-lo, mas a partir da indicação do Adilson Marcelino percebemos que a Grace seria perfeita para o papel; e ela realmente conseguiu conduzir a narrativa para um outro lugar. Toda a escolha do elenco foi pensada nessas escolhas meio afetivas, além de ser um conjunto de pessoas muito distintas, com energias muito diferentes. A ideia era manobrar pessoas muito diferentes entre si, foi algo planejado. Cada ator aprendia e nos fazia aprender com a experiência, engrandecendo o projeto como um todo. Ficávamos um pouco curiosos para saber como ficaria ter essa mescla de atores experientes e inexperientes.
Quando começamos a pensar no longa, o Maurílio sempre mencionava o Amarildo, um conhecido dele que era uma espécie de faz-tudo, um empreendedor nato. Não era uma pessoa que se envolvia com o crime, mas tinha esse tino para negócios. Pensando nessa concepção, começamos a pensar no personagem como um macho alfa, digamos. Só que na verdade, essa ideia passou a ser muito mais interessante ao ser transportada para uma mulher. Além disso, a personagem da Mc Carol, que era para ser performado pelo Leo (amigo de Maurílio), que foi preso na época das filmagens, também foi pensada para um homem, mas o resultado obtido foi muito mais interessante. Nesse contexto, o personagem Marcos, marcado por atitudes machistas e misóginas, é rodeado por mulheres fortes, o que aprofunda as nuances da trama. Se fosse um embate de Marcos com um homem, provavelmente ficaria repetitivo, já vimos antes cenas como essa.
Maurílio: Rompemos com a linearidade cronológica, fazendo o Contagem virar uma espécie de licença poética em relação ao tempo. A partir dessa ruptura, estabelecemos novos parâmetros para esses personagens, procurando entender melhor os personagens e suas histórias. Ao mesmo tempo que embasamos nos moradores locais e nas vivências reais, retemos o máximo possível de características que pudesse lembrar quem houvesse assistido Contagem. Nesse momento, a Kelly vira uma cobradora (queríamos trabalhar com a ideia do ciclo infinito, que se repete incansavelmente), transformamos a Rose em uma dona de salão, rompemos com algumas características dos personagens, mas o coração permanece o mesmo, tendo a liberdade de dar carne para esses personagens. Esse trabalho foi feito concomitante ao processo de criação de novos personagens, ramificando as histórias. A criação foi feita pensando no entorno, sendo a cartografia muito importante para a trama. A escolha da Mc Carol se deu da mesma forma, visto que ela incorporou a Brenda pensando na mescla entre a Carol verdadeira e a personagem Brenda.
Nesse sentido, os personagens de No Coração do Mundo foram fruto do nosso desejo de manter os nomes, os mesmos atores, mas também parte de uma criação muito nova. Os atores reagiram de uma forma incrível, pois eles também visualizam a ramificação e o aprofundamento das histórias dos personagens. É complexo e maravilhoso pensar que o Miro (de Contagem) e Beto (Dona Sônia) de repente se tornam parentes e, dentro desse universo, a impressão que fica é que eles sempre foram irmãos. Essa é a potência de se trabalhar com esse tipo conjunto de coisas, desde a escolha do elenco, de como os personagens são influenciados pelo ambiente, de como as características locais são implantadas nos atores e de como essas histórias se conectam. Considero que a reação de todos foi muito boa, visto que, com a exceção do irmão de Robert e Osman, todos aceitaram voltar a participar do projeto. Conseguimos reunir todos os universos que foram pipocando por ali.
No curso de atuação para cinema, que fiz com você (Maurílio), muito foi dito sobre equalização e que existem diversas formas de se atuar. Nesse sentido, eu gostaria de entender como que foi esse processo em No Coração do Mundo. Exemplificando, a Mc Carol teve sua primeira atuação no cinema neste filme, alguns atores não-profissionais como o Renato Novaes e Leo Pyrata começaram com vocês, sem terem experiência anterior na atuação, mas em No Coração do Mundo já chegaram como atores mais experientes e premiados. Ao mesmo tempo vocês estavam trabalhando com a Grace Passô, que tem um imenso currículo no Teatro Espanca, Eid Ribeiro no Galpão, Kelly Crifer e Rejane Faria também no teatro, a Karine Teles que tinha já uma carreira consolidada no cinema. Eu lembro que você também falou no curso como o processo de direção de atores sempre passa por uma conversa com cada um. O que eu gostaria de entender é como vocês se adaptam ao método ou não-método que cada ator traz. E como é a abordagem com cada um.
Maurílio: Essa pergunta é o cerne do nosso trabalho e quando você cita todas estas pessoas, conseguimos compreender o resultado, como que eles funcionaram, no que eu passei a chamar de equalização. Na falta de uma expressão melhor, acabo usando este termo para falar sobre coisas distintas sendo executadas em conjunto e que soam dentro de um mesmo espectro, como uma orquestra. Quando fazemos esse tipo de coisa, não pensamos anteriormente que precisaríamos pegar um ator X e ator Y, mesclado com outro ator A e ator B, que produz um ator Z. Caso agíssemos dessa forma, o processo ficaria burocrático e engessado, soando artificial e ruim. O que acontece é uma dose de instinto e de confiança no que fomos realizando ao longo do tempo, somadas às perspectivas futuras e ao trabalho sintonizado entre os integrantes da equipe, não importando qual é o método individual (dos atores) utilizado.
Existem conversas individuais, olho-no-olho, com os atores e conversas coletivas, que são importantes para entender o que aquela pessoa nos traz, quais as caraterísticas, quais os métodos utilizados, como podemos encaixar tais características a partir do que a gente tem de texto e o que esperamos do personagem lá na frente. Todo resultado que eu e o Gabriel alcançamos é superior ao concebido inicialmente, justamente pelo fato de mirarmos no futuro e confiarmos em nosso potencial.
Quanto ao método, é necessário ter a sensibilidade de entender e lidar individualmente a cada ator, visto que cada um se manifesta e se devota de uma forma. Por exemplo, a Karine é uma pessoa aberta às conversas, absorvendo como uma esponja. Outros atores, não conseguem absorver tão bem novas informações, ocasionando perda de potência. Além disso, existem aqueles que se devotam inteiramente ao texto, como a Grace por exemplo; e outros como o Pyrata que são mais devotados ao conteúdo do que ao texto.
A atuação da Grace é mágica, ela consegue quebrar cada palavra do texto, respeitando até mesmo as vírgulas, e transformar aquele conteúdo em algo do personagem. É incrível. Muitas vezes não lembrava que havia escrito daquele jeito, voltava para conferir e lá estava. A naturalidade pela qual Grace transforma as falas é impecável.
Nesse sentido, a dedicação, o tempo, os métodos, as conversas e o entendimento se dão a partir dessa lógica de sensibilidade da percepção do que vai acontecer nas conversas, nos ensaios e como a gente anseia o que aquilo seja. Muito mais do que a previsão, mas o anseio de onde queríamos que o projeto chegasse. E, claro, também não vou mentir, existia um know how adquirido a partir das nossas experiências bem-sucedidas desses procedimentos. Poder fazer essas junções e alongamentos de características é o que mais nos agrada no processo de direção dos atores. O resultado que obtivemos, e falo isso com segurança, foram equalizados. Podem existir momentos de altos e baixos, mas, como um todo, se você parar para assistir nossos filmes em uma timeline só, eles estão equalizados, não há um elemento deslocado. Quando há algum deslocamento, é proposital.
Gabriel: Eu acho que não dá para dizer que fizemos uma direção exclusiva e diferenciada para cada pessoa. Partimos do princípio de que, ao escutar a pessoa interpretar o roteiro, da forma com que ela naturalmente faria, já vamos detectando alguns vícios e limites de cada trajetória dessas pessoas. A partir disso, adaptamos muita coisa – e isso é uma vantagem de dirigir o próprio roteiro. Um caso interessante para ilustrar o quanto a vivência dos atores na comunidade local influencia a atuação aconteceu quando fomos gravar a cena da Dona Fia (Gláucia Vandeveld) gritando com o filho, e existia uma dificuldade da Gláucia conseguir remeter à realidade da personagem, visto que são vivências muito opostas. Entretanto, em um dia, quando estávamos ensaiando na casa de uma das moradoras da comunidade, Gláucia ouviu a dona Dulce dando uma bronca no filho, e isso a inspirou para fazer a cena.
O entendimento do que estamos fazendo é o maior responsável pelo alcance da equalização, sendo menos uma coisa da gente direcionar as pessoas pela experiência e mais de tornar muito claro o que é o projeto do filme, e para onde essas personagens irão. Temos uma ideia de atuação que perpassa pelo improviso, com alguns ruídos; e que o texto não é dado de forma tão engessada. Preferimos ser surpreendidos e, cada pessoa tem uma forma de se fazer isso. Nos trabalhos e ensaios coletivos era claro como existia o embate das características de atuação entre os próprios atores, como por exemplo o Pyrata e Grace. Existe uma disputa saudável entre os profissionais, que torna a atuação potencializada e equilibrada.
Eu acho muito bacana a abertura que vocês dão para os atores, eu acho que isso reverbera na forma com que eles atuam. Você concorda que isso influencia?
Gabriel: Sim, se fôssemos fazer alguma coisa com mais presa, engessada, poderia ser pior tanto para os atores experientes quanto para os atores inexperientes. Mas tudo tem a ver com o que esperamos daquele ator, a composição física, gestual, etc. Nesse processo, não subestimamos o ator, visto que cada pessoa tem a sua capacidade de trazer as atuações de seu modo.
Isso me remete às questões do sotaque, que também ajuda na caracterização dos personagens, correto?
Gabriel: Sim, não faria sentido tentar mudar o sotaque, ou a essência das pessoas. E é justamente isso que nos interessa: a essência desses atores. Por mais que existam adaptações necessárias, a gente não chamou pessoas que estão interpretando a si mesmas. Cada um está representando uma versão de si, na qual a pessoa consegue projetar algo embasado em suas próprias vivências. É um exercício de empatia, se colocar no lugar do outro. Praticamente todos os atores do longa tinham experiência no ofício da escrita, tinham a capacidade de criar histórias. Isso foi algo muito favorável no enriquecimento da narrativa, visto que os atores entendiam aquela dinâmica. Quando se dá liberdade para os atores, há um aumento da autoconfiança deles, por isso acho tão fundamental esse modelo mais livre.
Qual o tempo dedicado a cada personagem? Foram parecidos, ou alguns precisam de um trabalho maior? Por exemplo, a cena da personagem da Rute comprando a blusa com o rosto do filho, a personagem da Carla Patrícia está ótima, o tempo dela é diferente dos demais? Como funciona?
Gabriel: No geral, depende do personagem. Algumas cenas cruciais do filme precisamos ouvir várias vezes, passar o som repetidamente, fazer mudanças, testar… principalmente se tratando de um filme com planos longos de câmera e filmagens complexas. O tempo de ensaio, de passagem das cenas, tiveram mais a ver com isso do que com os atores. Existem alguns tipos de cena, como por exemplo a da Carla com a dona Rute, que são mais objetivas, não demandam repetidos ensaios. Em contrapartida, existem cenas que são mais difíceis de serem feitas, como por exemplo a de sexo da Babi e do Robert, exigindo um longo entendimento do que irá se encaixar ou não, que é necessário avaliar tudo que está em jogo na cena, com os atores e com o cenário. Na hora das filmagens, essas cenas precisam estar bem ensaiadas, para não termos problemas com as câmeras, dúvidas ou coisas do tipo. Eu acho que tem coisa que não tem como não ser repetidamente ensaiado. A confiança entre nós e os atores é mútua. Na hora do set, já temos o texto pré-definido, mas é necessário adequar a cena ao corpo natural do ator.
E qual a importância dos ensaios para se fazer essas descobertas do que vai além? Como funciona esse processo?
Maurílio: Acho que concomitante ao ensaio, está a conversa. É na conversa que você vai descobrir que aquela pessoa canta; ou que perdeu o pai e se emociona com a música x; ou que determinada pessoa teve uma história de vida que possa ser incluída no roteiro. Então você vai imbuído de um desejo, e a pessoa te entrega uma outra coisa, nessa conversa, e você pensa “ok, vamos costurar tudo isso”. É no ensaio que os ajustes são feitos, é onde você observa se soa bem, dentro da boca do ator, realiza as observações, as conversas propriamente ditas.
O processo de ir conhecendo a pessoa para incluir no filme tem algo relacionado com a psicologia? Ou vocês tentam se desprender de qualquer tipo de psicologismo?
Maurílio: Não. Existe uma linha muito tênue quando você avança nesse tipo de individualidade, correndo o risco de ferir eticamente a pessoa. Claro que fazemos uso das individualidades vocais, gestuais, até mesmo da psicologia quando a pessoa se dispor àquilo; mas sempre levando em consideração apenas o que está disponível. Não tenho nada contra quem faça, mas eu acho que esse limite é muito tênue, e eu acho que até hoje as coisas vieram e foram alcançadas a partir dessas conversas e do que a pessoa, por si mesma, passa a achar que ela vai fazer uso.
Gostaria de entender o processo de como o texto é construído, de como ele chega para os atores.
Gabriel: Isso depende de cada pessoa, mas em geral todos leem o roteiro anteriormente. Tentamos não ficar muito presos ao papel, sempre conversávamos muito durante os ensaios e propiciávamos um jogo de improvisação entre os atores. Tinham pontos cruciais de informações que não poderiam ser engessados, e isso nos fez acostumar com a ideia de uma cena ficar com mais ou menos influência da sequência de falas do roteiro.
É interessante que, quando o ator/atriz decora o roteiro, pode acontecer da memória falhar e vir a calhar um tipo de improvisação na encenação, e nisso ocorre uma certa magia. É conveniente não ficar acompanhando o tempo todo (com o texto), apesar de que somos bastante direcionados pelo roteiro e seu contexto geral. É uma junção das duas coisas, deixando sempre o entre cenas muito aberta. O ator vai inventando um personagem melhor do que escrevemos, e por isso é tão interessante essa abertura. Mesmo se escrevemos especificamente para uma pessoa, a performance sempre supera o que imaginamos para o personagem. Na montagem final, essa abertura também ocorre.
Maurílio: O que acontece não é um campo de experimentação ilimitado. Temos um proceder ligado ao texto, visto que somos roteiristas também. Consideramos o ofício da escrita como algo muito importante. No texto do No Coração do Mundo, um roteiro enorme, está tudo lá nas gravações. O que acontece com o texto, e não é muito diferente do processo da escolha, é que permitimos uma apropriação por parte de quem o vai interpretá-lo, além de darmos uma liberdade de propor novas coisas, seja textual ou gestual. Tudo isso se interliga com o que eu disse anteriormente sobre nossos anseios de algo diferente, melhorado. A partir do momento que você permite que o ator traga suas particularidades, e a pessoa entende essa liberdade e incorpora no personagem, dá ao texto a capacidade de se alocar na boca desse ator/atriz, voltando de uma forma muito melhor. Falo até mesmo de pequenos detalhes textuais e gestuais. Há um desejo inicial, sendo que o texto funciona como um condutor da narrativa, mas também há liberdade do encaixe dessas peças por parte de quem vai interpretá-lo. Quando um ator/atriz pega o texto, ele não pertence mais a mim nem ao Gabriel, ele é incorporado àquela pessoa.
Assistindo os trabalhos da Filmes de Plástico, noto que existe um bom equilíbrio entre dramatização e desdramatização. Eu acho que vocês quebram a linha do cinema brasileiro, pelo menos dos últimos 15 anos, que tende a querer desdramatizar tudo. Eu vejo que vocês não têm medo das emoções. Por exemplo, as explosões entre o personagem do Robert Frank e o do Renato Novaes são muito orgânicas. A personagem da mãe do Marcos, Gláucia Vandeveld, também tem uma cena muito orgânica de explosão com o filho. No dia a dia, as pessoas gritam com os familiares daquela forma. Eu queria entender como vocês enxergam esse balanço, tendo cenas mais desdramatizadas, de respiro, e ao mesmo tempo chegar nessas cenas com emoções difíceis, incômodas.
Gabriel: Eu acho que existiu, sim, uma fuga, uma negação de certos aspectos que pudessem perpassar o melodrama do Cinema Novo. Também acho que exista um aspecto mais conceitual que acaba esvaziando um pouco a força dos personagens. Somos latinos, viemos de uma cultura onde o povo é muito intenso, emocional, e acho que exista um viés elitista de se sair disso. Nossos filmes são apenas uma representação de tensões e energias que fazem parte da periferia, das nossas histórias, das nossas famílias, de quem a gente é. Eu e Maurílio somos muito intensos, o que se reflete em nosso trabalho. Apesar de serem cenas mais difíceis de se dirigir, eu me interesso por esse calor. Considero que No Coração do Mundo é maximalista, no sentido de que era tudo muito intenso, desde a trilha sonora, às cores utilizadas, embates… tem um fervor presente em toda a trama. Não tinha por que fugir disso, trazendo para nossos filmes um lugar de acolhimento emocional. Geralmente os filmes que perpassam essa estética ficam exagerados, mas certamente não foi o nosso caso. Priorizamos trazer as intensidades sem objetificar/minimizar as ambiguidades de nenhum personagem. Pretendemos seguir nesse caminho em nossos próximos trabalhos.
Maurílio: O processo de desdramatização está intrinsecamente interligado com o processo de dramatização, porque muitas vezes o que estas pessoas estão contanto, que soa como documental, ou que soa como algo que não faz parte da própria vida da pessoa, é uma dramatização exarcebada, pois muitas vezes não tem nada a ver com o contexto da pessoa. Então, muitas vezes trazemos esse grito, explosões, dentro desse processo, porque são naturais e é o que imaginamos na vida cotidiana daquele filme.
Esse é o grande truque: a dramatização está em todos os processos, em um nível muito alto. Mas a dramatização em excesso é propositalmente pensada para causar o efeito da desdramatização. Por exemplo, é o que acontece com a arte do filme. Primeiramente gravamos o filme completamente sem barulho, depois incluímos os efeitos sonoros controlados. Quando passamos a filmar em nosso próprio espaço, na periferia, quando filmamos as pessoas dentro da casa delas, foi algo muito incrível. Como as pessoas estão filmando a própria vida, dá a impressão de registo documental, mas é ao contrário, visto que os diálogos foram construídos artificialmente.
Existe diferença em trabalhar com atores profissionais e não-profissionais? Ou isso vai de pessoa para a pessoa independente da formação?
Maurílio: No set nunca houve. Pode ser que haja, mas até hoje nunca houve na prática. Quando o Osman, por exemplo, chega para atuar pela primeira vez, com todo o seu passado, e se depara com a experiente Kelly e desenvolvem juntos aquela cena, não há como tratá-los como desiguais. O que acontece é que são potências de mesmo nível. Seria um erro da nossa parte tratá-los assim. Se você não olha para os dois, e atua sobre aquilo de modo a pensar na equalização, seu trabalho ficará manco. O grande segredo é trazer as pessoas com grande conhecimento para o entendimento dessas ações. Muitas vezes, para um profissional experiente e com vícios de atuação, é mais difícil trazer para esta dinâmica. Quando fazemos a seleção de atores que ainda não conhecem nossos trabalhos, é de praxe que expliquemos as dinâmicas da nossa direção, procurando uma equalização.
Se, por exemplo, tivéssemos tratado Karine (Teles) e Maria Luísa (Ramos) como diferentes, não teríamos conseguido filmar aquela cena maravilhosa entre as duas. As duas estavam em pé de igualdade e acreditam na potência uma da outra. Isso é necessário acontecer sempre. Lembro da Marília Pêra falando do Fernando (Ramos da Silva), o garoto que fez o Pixote, do respeito que ela tinha perante a atuação dele, e como aquilo foi representado na cena. Não há nenhum desequilíbrio. É necessário se desvestir de algumas armaduras, para conseguir aumentar a potência. Em suma, é necessário crermos de forma igualitária na potência dos atores escolhidos.
Gabriel: A principal diferença que eu enxergo é na história de vida dos atores, e não no âmbito profissional da atuação. Nesse sentido, existem pessoas que nunca tiveram uma formação profissional, mas que apresentam de forma natural um entendimento do processo; então na prática os atores sem experiência não estão muito distantes dos atores experientes. Tem a ver com personalidade, história de vida. Uma pessoa que fez 50 filmes, por exemplo, pode encontrar em nossa proposta uma forma diferente de se projetar. A experiência é uma coisa muito relativa, e cabe na individualidade de cada um.
Arraial do Cabo: um filme antinaturalista por vocação
Adolfo Gomes
Uma reportagem ou pesquisa, invariavelmente, sempre tem no horizonte avançar, aprofundar – o máximo possível – no tema, cenário e personagens nos quais se debruça. Parece ser o movimento oposto o que propõem Mario Carneiro e Paulo César Saraceni em Arraial do Cabo (1959). O que nos desconcerta é todo o mundo fora de campo, preservado em sua dialética e complexidade – seria por escrúpulo e fina autoconsciência dos realizadores?
Talvez “generosidade” seja a palavra mais apropriada para nos aproximarmos dessa experiência de desnaturalização do real. Reconhecer a limitação do registro, a representação como um olhar que se abre e se projeta sobre a natureza e o homem, sem nunca aspirar sua captura, o mero flagrante da realidade. É um procedimento rosselliniano: esbarrar-se com a beleza, o fluxo cotidiano em seu pormenor e surpresa. Mas, é bom que se frise, não há nada de aleatório em tal carpintaria de imagens.
Arraial do Cabo é, no fundo, antinaturalista por vocação. Trata-se de pensar e compor, antes de se apropriar da geografia, das histórias e silhuetas sócio-políticas de uma gente, de um lugar. Logo no primeiro plano, é como se ouvíssemos a orientação dos cineastas: “pegue o copo, beba o café, vá até a porta!”. O gesto, diante do dispositivo cinematográfico, é sempre “posado”, então Carneiro/Saraceni exploram o potencial dramatúrgico, quase ficcional, que impõe a simples presença de uma câmera. Por outro lado, ao expor o “comando”, orientar a ação, libera o personagem de “falsear” o que é, o que faz… É um caminho para se encontrar algo de imprevisível, franco, pessoal – esse é o trabalho da arte.
Assim, quando entramos no mundo industrial – e aqui estamos numa vila de pescadores em travessia para o ambiente fabril – não é o olhar do recém-operário, subjugado pela “modernidade”, que encontramos. É um olhar épico, imponente e arquetípico, que se constrói em cada estágio de um assombroso plano de ascensão, imantado num volúvel contra-plongée a nos lembrar, o tempo todo, da instabilidade de qualquer perspectiva prévia. Temos, aí sim, a certeza de que a oposição, o paradoxo entre dois regimes de trabalho, será abordado fora da dualidade reducionista (o bom selvagem versus o automatismo assalariado).
Se há tanto a absorver e mapear, através dos nossos sentidos e vivências, no decorrer de menos de 20 minutos de projeção, é porque o espectador também é instado, aqui, a participar da conversa, ocupar seu espaço no discurso (estruturado como um diálogo) e, no meio desse trajeto, criar novos e atemporais vínculos com aquele momento histórico. Quer dizer: agora, qual a nossa distância de Arraial do Cabo? Bem que poderia ser a mesma que separa o mar, a fábrica, do bar, para o qual todos convergem, no filme, após o trabalho.
Em certo sentido, a eleição desse espaço comum, festivo, representa a recusa do pragmatismo temático, do mero engajamento ideológico, em favor da poesia, da digressão certificada. No fim das contas, são os “desvios” que conferem maior perenidade ao relato, é aquilo que não passa, que não é passado, mas subsiste em nossas relações, a “etnografia da amizade” a que se refere o também cineasta Ricardo Miranda ao revisitar a obra de Saraceni em outro documentário.
Bem, Arraial do Cabo é a pedra de toque desse projeto cinematográfico, o ponto de partida de “uma etnografia da amizade” – a liga que une Saraceni a Carneiro, e eles aos habitantes dali, à nós, depois de tantos anos e sempre que reencontramos o filme. De todas as utopias que o cinema (novo, velho ou atual, documental e de ficção) alguma vez ousou conjurar, essa espécie de comunhão é a que ainda persiste e nos refugia. E isso está documentado.
Escrever sobre Agnès Varda vai na contramão do trabalho que ela realizou toda a sua vida. Assistindo às suas obras e, principalmente, ao seu último filme, Varda por Agnès (2019), a impressão que ela nos passa é a de ser uma mulher de muitas certezas. Varda era absolutamente convicta sobre o que iria criar e a forma como iria criar, o que torna a correlação entre sua vida e suas obras a assinatura sem a qual, acredito, ela não conseguiria encerrar a sua carreira. Por isso, é um desafio falar sobre essa mulher que, tão genialmente – com todas as ressalvas ao uso dessa palavra – escolheu compartilhar com o mundo as impressões de quem melhor poderia definir Varda: ela mesma.
Inspiração, criação e compartilhamento. A obra de Agnès Varda pode ser desenhada a partir dessas três palavras que, segundo a própria cineasta, a motivaram a fazer filmes por tantos anos. Ela nos conta isso sentada em sua cadeira de diretora, no meio do palco de uma grande ópera transformada em sala de cinema, logo nos primeiros minutos de Varda por Agnès. Com a firmeza característica de sua maneira de se expressar, ela nos oferece a possibilidade de acompanhá-la durante toda a sua trajetória enquanto cineasta, fotógrafa e artista visual, à medida que retorna a diversos trabalhos e, gentilmente, compartilha com diferentes plateias – e espectadores – seus modos de pensar e realizar.
Todo o filme se estrutura a partir de relatos de Varda para diferentes audiências, intercalados com cenas de outros filmes seus, fotografias, instalações artísticas e entrevistas feitas em anos anteriores. Apesar disso, não é um filme que se atém à cronologia exata dos acontecimentos. O tempo, para ela, parece ser objeto de extremo cuidado e sutileza, sendo trabalhado com cautela. Isso fica claro, por exemplo, no gesto minucioso de usar os mesmos tons e as mesmas roupas nos relatos concedidos em diferentes ocasiões, mas que contribuem para a continuidade do filme.
Parte do encantamento que Varda provoca em quem entra em contato com seu trabalho se dá pelo fato de ela ser, antes de criadora, espectadora. Com total consciência do espaço que ocupa e do mundo à sua volta, ela redefine o significado de espectadora. Para além de apenas observar pessoas e situações, a sua espectatorialidade passa também pelo processo de registrar e de compartilhar. Nenhuma obra é feita de forma isolada, Varda sempre esteve atenta ao outro, achando em situações aparentemente banais algo digno de ser contado. Citando a própria cineasta, “Nada é banal, se você filmar pessoas com empatia e amor, se você as achar extraordinárias, como eu fiz”.
Partindo das três palavras motivadoras – inspiração, criação e compartilhamento –, o último filme de Varda é um passeio pela mente extraordinária da cineasta. Acredito que fazer esse passeio a partir da relação que ela estabelece com o tempo pode ser algo particularmente fascinante. Um bom exemplo é Tio Yanco (1967), curta-metragem que a diretora realizou durante um dia e meio, entre a sua inspiração e as filmagens, sobre um tio recém descoberto, o que a própria Varda trata como um milagre. Ela sabia imediatamente como filmá-lo e, então, levou seu tempo editando.
Em determinado momento de Varda por Agnès, inclusive, a diretora nos fala sobre a cine-escrita, que “abrange todas as escolhas feitas durante a realização de um filme”, inclusive as escolhas relacionadas à temporalidade. Varda estava interessada em construir sua própria linguagem no cinema e, desde a concepção de seus filmes, a originalidade da cineasta se mostrava decisiva. Embora Tio Yanco possa ter se iniciado de maneira surpreendente, alguns de seus filmes tiveram um planejamento prévio minucioso.
Aqui, iniciamos o passeio considerando o tempo enquanto medida objetiva de dias, horas, minutos, segundos. É o caso de três grandes filmes da diretora: Cléo de 5 às 7 (1962), Daguerreótipos (1976) e Os Renegados (1985), cada um à sua maneira. Contando detalhes de cada obra, Varda deixa clara a precisão com que conduz seu trabalho. Cléo de 5 às 7 foi elaborado a partir da necessidade de se fazer um filme com baixo orçamento, o que deu origem à ideia de construir a narrativa de forma a acompanhar a personagem principal durante um curto período de tempo. O filme, de uma hora e meia, é estruturado de maneira a ter o seu ápice na exata metade dele. No entanto, além do trabalho desenvolvido com a duração do filme, Varda também teve o desafio de ilustrar o tempo subjetivo, a partir das aflições de Cléo, comuns à época em que o filme se passa.
Daguerreótipos é um registro cotidiano dos habitantes e comerciantes da Rua Daguerre, rua de Paris em que ela viveu durante alguns anos. A câmera, no documentário, se coloca como uma observadora silenciosa: “Nada acontece, ainda que algo aconteça por dentro. É isso. Vídeos e comerciais se movem muito rápido. Mas quando você está na duração, você está realmente dentro”. Já Os Renegados é dividido de maneira precisa entre 13 travellings e períodos de tempo de duração iguais entre cada um. “Eu gostei de montar um enigma do qual apenas eu conhecia o segredo”, conta-nos Varda. No entanto, também nesses filmes podemos pensar o tempo enquanto registro histórico de uma época.
Se Cléo de 5 às 7 foi escrito a partir dos medos compartilhados na década de 1960, como o câncer, e Daguerreótipos a partir do cotidiano vivenciado pela cineasta, Os Renegados surgiu da observação de um movimento crescente entre jovens que viviam de maneira nômade, “sem teto nem lei”. É esse interesse dedicado ao que acontecia à sua volta que revela grande parte do cinema de Varda, algo que fica mais aparente em seus numerosos documentários, mas que também se faz presente nas ficções, sempre tocadas por elementos reais.
Black Panthers (1968), Uma Canta, a Outra Não (1977), Os Catadores e Eu (2000), Amor de Leões (1969), Mur Murs (1980), são exemplos, dentre tantos outros, de filmes que surgem por causa – mas não apesar – dos contextos nos quais Varda se via envolvida, desde o movimento dos Panteras Negras nos anos 1970 até o movimento feminista, já muito forte nos Estados Unidos no final dos anos 1960. Ilustrando o desdobramento da profissão de respigadores para os catadores do início dos anos 2000, passando pelo movimento hippie na Hollywood dos anos 1970, até chegar ao filme da década de 1980 que explora os murais da cidade de Los Angeles, ilustrar o tempo a partir da perspectiva coletiva e fazer disso um registro histórico está entre os maiores feitos da cineasta.
Retornando à ideia de compartilhamento, tão importante para Varda, não podemos ignorar a pessoalidade com que ela constrói sua arte. Ela sabia que olhar para o outro era também uma forma de olhar para si mesma. A Ópera Mouffe (1958) e Documenteur (1981) são exemplos de filmes com aspectos sutis, porém muito presentes, de situações pessoais vividas pela cineasta – o primeiro, a gravidez, e o segundo, o divórcio. Aqui, vemos o tempo para Varda como símbolo de situações marcantes na história da diretora. E talvez seja o filme Jacquot de Nantes (1991), iniciado por uma casualidade imposta pela vida, o principal exemplo disso. O filme, sobre a trajetória de Jacques Demy, surgiu por causa do estado de saúde fragilizado do diretor e marido de Varda. Respeitando a biografia e o trabalho dele, ela acompanha o tempo com sua câmera enquanto constrói uma narrativa que reflete a pessoa que Jacques Demy foi em vida.
Não se limitando a falar apenas dos filmes que fez, Agnès Varda congela a imagem e retorna aos anos 1950 e às câmeras fotográficas. Relembrando a profissão que exerceu em sua primeira vida, como ela mesma nos conta, a artista passa rapidamente pelos registros de diferentes personalidades, ensaios feitos com amigos e fotografias dela mesma. Mas o que mais sobressai nessa passagem é a curiosidade que Varda tinha em relação a novos processos, equipamentos e criações e a capacidade de ressignificar sua própria arte.
Aqui, falo do tempo enquanto reconstrução e reciclagem. O trabalho que Varda fez enquanto artista visual, já mais velha, atravessa as suas criações como fotógrafa e cineasta, seja no jogo entre imagens em movimento e imagens estáticas ou nas instalações artísticas que dialogam com filmes seus, como “Patatutopia”. É o caso também das cabanas de cinema que ela construiu a partir de rolos de filmes, como a instalação que ambientava o seu longa As Duas Faces da Felicidade (1965), ou a obra QuelquesVeuves de Noirmoutier (2006), criada para a galeria de Paris, que reúne confidências de viúvas sobre a ausência e a solidão, sentimentos compartilhados pela artista após a perda de Jacques Demy.
Por fim, percebemos o tempo como marca do envelhecimento. Jane B. por Agnès V. (1988) surgiu do encontro da diretora com sua amiga, a atriz Jane Birkin, que achava terrível a perspectiva de estar com quase 40 anos. A decisão de fazer o retrato da atriz se iniciou a partir daí. “Eu sugeri isso, animada, a uma mulher vivaz, o oposto desse tributo a atrizes mortas, que compilam trechos de seus filmes e entrevistas”. O documentário, portanto, é uma encenação repleta de aspectos reais e diálogos com diferentes expressões artísticas.
Quando fez As Praias de Agnès (2008), aos 80 anos de idade, o sentimento de Varda era de urgência pela necessidade de completar algo. Assim ela desenvolveu seu autorretrato, uma história de sua vida a partir da relação que cultivava com as praias. “Se abríssemos pessoas, encontraríamos paisagens. Se nos abríssemos, encontraríamos praias”.
Dona de uma sensibilidade única, Agnès Varda criou um cinema próprio, no qual coloca em igual importância os outros e a si mesma. A escolha de seus autorretratos, As Praias de Agnès e Varda por Agnès, são uma reivindicação da potência existente em contar a sua própria história e resgatar as memórias anexadas a ela. Se, por um lado, um filme não é o desejo de parar o tempo, mas acompanhá-lo, por outro, ela decidiu que a melhor maneira de ser acompanhada era por meio de suas próprias percepções.
Não podemos dizer que Varda por Agnès é o filme de despedida da diretora, mas sim um presente da cineasta para todas que acompanham e se sentem tocadas pelo trabalho dela. Em meio a uma tempestade de areia, ao lado de seu amigo e companheiro de estrada e profissão, o fotógrafo JR, com o qual fez o filme Visage, Villages (2018), Varda decide terminar a conversa conosco, desaparecendo na névoa, deixando-nos com a possibilidade de poder sempre retornar ao universo da artista, que tão extraordinariamente soube ilustrar o mundo em que vivia.
Os Renegados (1985), de Agnès Varda, é sobre a jovem errante Mona. No filme, a câmera e a narrativa também são errantes. Não é uma errância descontrolada. Pelo contrário, a obra denota um extremo controle, com sofisticados movimentos e composições. Mas a sua narrativa é permeada por lacunas, como se seguisse os instintos fragmentados de uma rememoração, e não o teor absoluto de uma dramaticidade convencional, que guia o espectador por etapas lógicas e lineares.
Devido a essa errância dramatúrgica e estilística, o filme não apresenta nenhum julgamento claro sobre o modo de vida da personagem principal. Andarilha, Mona não é um símbolo romântico, mas nem a protagonista de uma tragédia decadente. O que ela é ou pode ser, cabe ao espectador decidir.
Trago a questão da memória pois ela é a mais importante para esta obra de Varda, já que temos acesso não somente às andanças de Mona, mas aos relatos, breves ou longos, das pessoas que passaram pelo seu caminho, com todas as digressões, invenções e enternecimentos que podem existir no ato de rememorar.
Consequentemente, Os Renegados é um road movie inconvencional. Seu foco não recai sobre o processo de descobertas de um ser errante a partir de sua vida na estrada, já que o filme não é uma janela aberta para o mundo da protagonista –inicialmente, a conhecemos a partir da lembrança de terceiros e não de maneira linear. Mas vale notar que a ordem entre lembrança e relato nunca é equilibrada: às vezes, o relato aparece primeiro e a lembrança depois; às vezes, ocorre o inverso.
Dito isso, gradativamente, nos é indicado que nem toda a representação em cena parte de relatos ou da lembrança de outros – primeiro porque há momentos que contrastam com relatos (como o caminhoneiro que fala mal da personagem, mas não comenta que ele insinuou favores sexuais); segundo porque alguns relatos são somente breves reflexões, sem um acontecimento específico. Além disso, cada vez mais os acontecimentos em tela se tornam independentes de qualquer relato, existindo por si.
Destas relações, de distância e proximidade, surge um contraste com um comentário narrado logo no começo do filme, na única vez em que ouvimos uma voz narradora:
“Ela tinha morrido de morte natural sem deixar rastro. Imagino se quem a conheceu criança ainda pensa nela. Mas as pessoas que ela tinha conhecido recentemente se lembravam dela. Essas testemunhas ajudaram-me a contar as últimas semanas de seu último inverno. Ela deixou sua marca sobre eles. Eles falavam dela, não sabendo que ela tinha morrido. Não quis dizer a eles. Nem que o nome dela era Mona Bergeron. Eu mesma sei pouco sobre ela mas parece-me que ela veio do mar”
De certa forma, o restante do filme problematiza essa fala, já que alguns personagens sabiam que ela tinha morrido e parte considerável do filme não parte de um relato. Isto ocasiona mais uma quebra de expectativa: inicialmente, parece que o filme será uma espécie de Cidadão Kane da estrada, mas, cada vez mais, a fragmentação polida da narrativa de Welles perde espaço para uma fragmentação mais brutal. O objetivo aqui não é mais demonstrar as diferentes facetas de um indivíduo a partir das lembranças (“enviesadas” ou “seletivas”) de terceiros, mas problematizar a própria questão do deixar marcas, já que as marcas lembradas pelos terceiros de Mona parecem incompletas.
Todavia, como já comentei, não acredito que o cerne de Os Renegados seja o contraste entre lembrança/relato e realidade. É uma questão importante, porém o filme não aprofunda esse paradoxo, principalmente devido à vida própria de alguns relatos. Ao não seguir fórmulas de narrativas sobre lembranças na estrada, o que o filme de Varda lança mão? Um caminho: David Bordwell comenta que, ao não resolver a mistérios importantes da trama, o filme de Varda é marcado por uma incompletude que leva o espectador a pensar como ele iria reagir a uma personalidade como a da protagonista. Nós não somos incentivados a tentar solucionar, por exemplo, o que causou a sua morte. O principal é o impacto que Mona pode causar.
Um complemento a esse comentário: os personagens em volta de Mona não comentam somente sobre os encontros com a andarilha. Eles têm uma vida além da reação, e acompanhamos parte dela. Eles falam sobre relacionamentos, sobre a profissão e, às vezes, sobre Mona, de maneira negativa ou positiva. Assim, além de demonstrar as nossas reações a alguém como Mona, o filme também demonstra como essas reações estão intrinsecamente ligadas às caóticas reflexões de cada indivíduo, que, no caso do filme de Varda, variam bastante, pois a protagonista encontrou desde acadêmicos, trabalhadores do campo, operários até outros vagabundos.
A relação destes com a câmera varia bastante. Alguns personagens conversam com policiais (como se o relato fosse parte de uma investigação), outros estão em um ambiente doméstico, não reconhecendo a presença da câmera. Há também relatos de pessoas andarilhas, como Mona, que, quase por acaso, se lembram da moça em frente à câmera, para logo em seguida voltarem à vida normal.
Todas essas reflexões são sobre um ser que o espectador sabe que morreu. Tal contraste entre a realidade final de Mona e os diferentes sentimentos transmitidos pelos relatos (alguns mais banais, outros mais intensos) é potente. A força da obra reside também em tal contraste, já que ela não trata da solução racional de algum mistério ou de explicação biográfica da motivação de Mona para o seu estilo de vida.
A potência entre o contraste dos personagens cria uma sensação de solidão, que é presente em Mona e nos indivíduos à sua volta, seja quando alguns se afundam nos próprios afazeres, não dando importância para a existência intensa da protagonista, ou quando se desestabilizam diante de vida tão pouco convencional.
Yolanda é a personagem da sociedade em que essa condição solitária é mais cristalina. Namorada de um homem delinquente, várias vezes ela reclama de sua vida conjugal em meio às lembranças de Mona. “Estar sozinha é duro. Mas ser um casal solitário não é melhor. Me sinto sozinha nos braços de Paolo.” Ela é a personagem que mais olha diretamente para a câmera enquanto reflete, ainda que esteja na presença de outros personagens. Precisando mais da companhia de amigos, Yolanda é completamente diferente de Mona, mas ambas não deixam de ser solitárias, ainda que Yolanda sinta uma solidão diferente, uma solidão populada e social, que, de tão intensa, parece lhe fornecer a capacidade de encarar a lente, mesmo quando os outros personagens em cena não reconhecem o fazer fílmico.
Yolanda ainda se destaca por ser uma das únicas personagens que reconhece a sua solidão em meio à sociedade. Mona procura uma solidão distante de qualquer convenção doméstica e social, em busca de uma liberdade própria. Partindo do contraste entre essas diferentes condições, o filme lança várias questões: será a solidão uma condição inevitável? A liberdade total existe? Quais as consequências da busca por essa liberdade? A solidão pode matar alguém? Se a solidão total é obrigatória para essa liberdade total, vale a pena o sacrifício?
Os Renegados não oferece uma resposta clara para esses questionamentos. Ainda que um pastor afirme que amigos estradeiros de Mona estão mortos “porque a solidão acabou com eles”, o filme de Varda não segue esse julgamento. Primeiramente, como já comentado, a obra não representa a solidão como uma via de mão única: ela pode existir tanto na estrada quanto em sociedade. E essas solidões não existem somente com a ausência de terceiros; paradoxalmente, elas são formadas pelo contato, agressivo ou não, com outros corpos: Yolanda se sente solitária com seu próprio namorado, Mona conhece várias pessoas e chega a ter relações sexuais com algumas.
O aspecto dialógico dessas solidões diz muito sobre uma condição de gênero, já que Varda nunca apaga as dificuldades e particularidades da suposta vida livre e independente da mulher Mona. As relações com os homens parecem comuns para a protagonista, seja com aqueles que ela gosta e conhece há alguns dias, ou com um chefe sem personalidade, que a abusará no meio da natureza. No entanto, nenhuma dessas relações totaliza Mona, pois ela se move por uma força própria, e nunca é definida totalmente a partir da relação com um ou outro personagem.
O fim de sua vida é trágico e solitário. Ela passa por situações tensas, como um abuso, a fome e o frio intenso. Mas, ainda assim, a trajetória da personagem não é uma jornada decadente. O foco de Os Renegados, de certa forma, não é a deterioração de Mona. Ainda que ela passe por vários problemas, a sua personalidade não dá espaço para uma vulnerabilidade absurda. Nós a assistimos tendo dores, mas não a vemos sofrer. As angústias acometem mais a algumas das pessoas que ela encontra no caminho, como a pesquisadora que se arrepende de a ter abandonado.
Mona não se arrepende. Às vezes, ela joga fora qualquer possibilidade de estabilidade, seja quando um pastor lhe oferece um pequeno pedaço de terra ou quando uma mulher lhe oferece abrigo e carinho. Quando o acolhimento aumenta, Mona se torna mais ríspida. E quando ela dá sinais de que pode ceder, é abandonada.
Essa estranha espécie de autonomia não significa, necessariamente, felicidade (poucas vezes vemos Mona sorrindo). Tal condição gera mais uma energia solitária que, em nenhum momento, é julgada pela narrativa de Varda. O final da personagem é estarrecedor, porém, mais sufocante é o vazio em volta dela.
Não é necessariamente um vazio dela, já que Mona é cheia de si. Trata-se de um vazio exterior, como se a sua existência não tivesse imprimido um relato sólido para a posteridade. Ao final do filme, sabemos tão pouco sobre ela. Quando escreve na poeira do espelho de uma casa abandonada, um amigo chega a comentar: “Não deixe marcas”. Mas isso é algo ruim?
A “errância narrativa” do filme, ao mostrar fragmentos de outras pessoas, mesmo quando Mona não está por perto, aumenta a transparência e fragilidade das marcas da protagonista no mundo onde caminhou. Estilisticamente, Os Renegados acompanha esse desencanto e quebra de expectativa. Um movimento recorrente no filme é o travelling lateral, bastante usado para acompanhar os passos de alguém, se tornando um elemento comum em road movies. No entanto, os travellings do filme de Varda, quando acompanham Mona, geralmente não identificam onde ela estava e nem para onde foi; são fragmentos de uma caminhada sem rumo para o espectador.
Também há momentos em que a câmera não acompanha a movimentação do corpo, apenas sua fixidez. Por vezes, ainda o ultrapassa. Nessas cenas, ela vai de um lugar a outro, até parar em alguma informação nova relevante (como caixas caídas ou uma parede nova). É como se a câmera acompanhasse a errância da narrativa e da personagem, representando graus de independência de Mora, mas somente com o objetivo de errar mais ainda. A suposta falta de sentido de um movimento de câmera, de um relato, de uma caminhada, parece reforçar a intensidade da personagem, assim como as perdas de suas marcas.
Mas retorno a uma questão: será que não deixar marcas é realmente um problema? Mona não parece se importar com esse questionamento. Tal indiferença não é colocado como algo superior, principalmente porque Mona não discursa muito sobre a sua condição. Ela rebate quando é questionada (“champanhe na estrada é melhor”, “comi por uns dez anos, estou farta”). Mas, se distanciando de um herói à la Thoreau ou Kerouac, ela não comenta muito sobre a sua situação, as suas angústias ou tristezas. Ela, “simplesmente”, vive.
Julgar se essa vida é superior ou inferior às outras não é uma questão importante. Tornar Mona um modelo de intransigência é uma leitura romantizada. Ela é paralela ao verbo de Rimbaud, não ao Rimbaud idolatrado, mas ao poeta sem passado e sem o futuro que escreveu: “Nos caminhos, em noites de inverno, sem pousada, sem roupa, sem comida, uma voz me estreitava o coração gelado: ‘Fraqueza ou força: aqui estás, é a força. Não sabe aonde vais nem por que vais, mas entra em toda parte, aberto a tudo. Não te matarão mais do que se já fosses cadáver.’”
A liberdade proveniente desse tipo de poesia não está concentrada em nenhum espectro de fácil definição. É o que presenciamos em Os Renegados de Varda.