Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020), de Eliza Hittman

As tantas vozes do silêncio

Letícia Badan

Eliza Hittman, cineasta e roteirista que no passado fora responsável por títulos como Parece Amor (2014) e Ratos de Praia (2017) assina em seu terceiro longa-metragem o roteiro e a direção. A sexualidade adolescente, tema caro e notado em produções anteriores, declara-se como ponto de partida do lançamento de 2020, vencedor do Urso de Prata do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Não se trata de um filme confortável e, no entanto, certa beleza perpassa a história. Mais que pelo tema, esse desconforto se manifesta como pano de fundo do cotidiano das personagens, dilatando o drama inicialmente privado e íntimo para a esfera do coletivo. E embora a trama se teça sobre o fio individual, encarando o tema do aborto, uma denúncia mais geral ressurge na urdidura, fundamentando Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre como uma obra concomitantemente sensível e política. Indubitavelmente, o longa de Hittman nos reporta a Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias (2007), filme que inclusive serviu de inspiração para a diretora, não por suas evidentes qualidades, mas pelas “falhas”, como ela própria comenta em entrevistas. Sobretudo, lhe incomodava a empatia pálida com a qual Mungiu tingiu seu drama.

A aproximação, contudo, se faz em algumas passagens do filme. Em sequências, enquadramentos e mesmo no caráter silencioso de ambas as narrativas, com suas protagonistas isoladas em espaços de clausura e incompreensão. Mas Hittman subverte essa trama e encontra essencialmente no silêncio a força motriz de seu cinema. O filme entrega uma visão muito particular sobre a condição do feminino na atualidade. Ele denuncia, num sentido mais amplo, uma sociedade pouco receptiva à mulher, que se reitera persistentemente ao longo de todos os gestos, ações, falas e olhares lançados pelas figuras masculinas no decorrer da história. Há sempre uma violência embutida nos homens. Na escola, no ambiente familiar, no trabalho ou na viagem, as duas protagonistas se veem obrigadas a lidar e sobreviver a constantes assédios e abusos.

Mas as inspirações para a realização da obra não se resvalem somente no longa romeno. Hittman tomara conhecimento de um caso de negligência médica ocorrido em 2018, no Hospital Universitário de Galway na Irlanda. Repercutido mundialmente, o episódio levou a óbito a jovem indiana Savita Halappanavar por septicemia. O caso pôs em xeque a 8ª Emenda Constitucional irlandesa, que garantia ao feto o direito à vida, e permitia a realização do procedimento de interrupção gestacional somente para casos em que a vida da mãe fosse posta em risco. A emenda foi insuficiente para salvar a vida de Sativa, mas a comoção com sua tragédia levantou questionamentos acerca da lei de 1983, resultando na aprovação, em 2018, da 36ª Emenda Constitucional, que revogava a anterior. A trágica história de Savita fez Hittman se questionar acerca da política de direitos da mulher, do acesso legal ao aborto e das diversas imbricações burocráticas que se mostram como verdadeiros impedimentos para a segurança garantida da mulher. As problemáticas da gravidez indesejada têm ganhado cada vez mais espaço no campo cinematográfico, e são ponto de encontro de diversos lançamento dos últimos anos, como o road-movie Unpregnant (2020), de Rachel Lee Goldenberg; Saint Frances (2019), de Alex Thompson; ou ainda com tom mais perturbador, Devorar (2020), de Carlo Mirabella-Davis.

Em Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, acompanhamos o drama de Autumn Callahan (Sidney Flanigan), uma jovem de 17 anos residente em uma cidade interiorana, na Pensilvânia. Após uma visita a uma clínica local e a descoberta – equivocada – de 10 semanas de gestação, Autumn apela para tentativas frustradas de aborto autoinduzido, em detrimento da lei estadual que não permite a realização do procedimento para menores de 18 anos. As sequências, como boa parte do filme, causam inquietação. Nós a vemos ingerir uma quantidade exorbitante de pílulas de vitamina C e, numa exploração ainda mais violenta e aflitiva, Autumn inflige socos contra o próprio ventre – uma sequência que sintetiza a incomensurabilidade da rede de abusos na qual se vê aprisionada. A fim de realizar o procedimento sob amparo legal, Autumn embarca em uma viagem para Nova York em companhia de sua prima, Skylar (Talia Ryder), onde as leis são mais inclusivas.

O filme se descortina, portanto, nos poucos dias que compreendem a descoberta da gravidez e seu percurso nas diversas clínicas, tanto em sua cidade natal, quanto em Nova York. Apesar de nossa participação no drama de Autumn se concentrar no transcurso de sua viagem, a duração da jornada parece interminável. O procedimento, que em teoria levaria um dia para ser realizado, se estende por três morosas e insones noites, devido ao diagnóstico impreciso acerca do tempo da gravidez – 18 semanas, na realidade. Autumn e Skylar perambulam como duas outsiders que sobrevivem às margens de Manhattan, levando consigo somente as roupas do corpo, um montante de dinheiro rapidamente engolido pelo sistema de saúde, e uma mala que, arrastada por entre as ruas e escadarias da cidade, mais parece uma espécie de materialização metafórica do peso burocrático, social e dramático de sua condição.

Embora Jasper, o rapaz que conhecem no ônibus (Théodore Pellerin), comente diversas vezes sobre as qualidades da cidade, Autumn e Skylar não são turistas prontas a desbravar as novidades. Sua permanência ali se faz somente em locais de trânsito e em não-lugares, onde a existência se camufla no anonimato, dissolvendo-as entre as incontáveis misérias individuais na turba. A Nova York que vemos aparece desfocada nas ruas movimentadas da Time Square, nas estações de trem, nos vagões de metrô que revelam assediadores, nas lanchonetes 24h, nas assépticas salas de espera dos consultórios médicos. Há uma qualidade opressora em tudo isso, uma sensação de esmagamento e claustrofobia, numa cidade de interiores iluminados por lâmpadas fluorescentes, e cujo céu é aludido somente na artificialidade da decoração de nuvens que recobre o teto de uma das clínicas. Há algo de inóspito nessa Nova York pervígil de Hittman, e sua aspereza confirma um evidente não-pertencimento.

Mas isso não ocorre somente em Nova York. A câmera aprisiona tal sensação desde o nosso primeiro encontro com a protagonista. A forma como Hittman inicia sua trama, no palco, e as primeiras falas de Autumn consolidam uma via de manifesto de sua silente incompreensão, reiterada ao longo do filme. Somos apresentados a ela durante um show de talentos na escola local, onde a jovem oferece uma performance musical que parece a confissão mais sincera de suas angústias. Em meio às apresentações animadoras de seus colegas, entre rockabilly e paródias de Elvis Presley, a voz de Autumn ecoa dor, amor, impotência e submissão numa reinterpretação melancólica de He’s Got the Power, cuja letra manifesta a denúncia e sintoma de sua situação. Isso ocorre novamente na sequência do karaokê, em Nova York. E Don’t Let the Sun Catch You Crying parece imortalizar aquela noite inacabável, na qual se faz necessário esconder do dia prestes a surgir não somente as lágrimas, como também a dor lacerante de caminhar desconfortavelmente pela cidade com uma laminária no cérvix. Flanigan, que também é cantora, faz aqui sua estreia no cinema, e o realismo com o qual absorve o drama de sua personagem é tocante.

Desde o início, somos postos diante de diversas evidências de relações instáveis. Autumn parece uma desconhecida em meio às irmãs mais novas, à mãe e ao padrasto, Ted (Ryan Eggold). Suas afinidades afetivas são corroídas e maculadas. A residência e a relação familiar são problemáticas e as poucas palavras que ouvimos do patriarca confirmam a turbulência do relacionamento. O drama se estende ainda numa denúncia mais alargada de negligência, insinuado pelas palavras de Ted à cadela da família – oscilante entre o elogio e o insulto –, ou ainda na cerveja entregue à adolescente pela mãe. Os olhares de Autumn para Ted, sempre furtivos, parecem tentar fugir de seu encontro. Será que estamos diante de um caso de abuso entre adolescentes de mesma idade, ou a aspereza da relação paterna delata algo de ordem mais complexa?

De forma similar, sua invisibilidade se faz notar em diversas passagens do filme, sendo talvez a visita à primeira clínica, em Ellenboro, a mais delatora. Autumn recebe um tratamento pouco acolhedor do corpo médico local. A instituição parece um lugar congelado no tempo, onde o excesso de ornamentação característico desse espaço de confidencialidade feminino – isto é, as flores artificiais, a decoração antiquada e até mesmo a idade dos funcionários – parece refletir diretamente uma visão ultrapassada e preconceituosa acerca do direito ao aborto. Não há suporte profissional ou emocional para a protagonista. E até a marca do teste de farmácia que realiza na clínica, Right Time, parece ecoar certa ironia. “Um positivo é sempre um positivo”, “este é o som mais mágico que você escutará” são exemplos das falas que escuta e que confirmam a falta de empatia com a gravidez adolescente. Os panfletos que recebe apontam mais da presença paterna nas relações infantis, ao invés de denotarem preocupação e solidariedade com a mulher.

É nesse momento em que a médica, após perceber a inclinação da jovem para a interrupção da gravidez, apresenta-lhe o documentário Hard Truth, um filme de propaganda antiaborto realizado pela American Portrait Films. A sequência é um tanto quanto catártica, devo confessar, pois trouxe à minha mente um episódio da adolescência, quando certa professora, sob pressupostos similares àqueles da doutora, exibiu um documentário de veia parelha, também produzido pela American Portrait Films e intitulado The Silent Scream (1984). Talvez o conteúdo daquele VHS esclareça um pouco sobre o tom conservador e obsoleto do ambiente clínico de Ellenboro, engessado em fanatismos religiosos de origem duvidosa, numa falsa promessa de zelo pela vida.

Como um filme que fala sobre o privado, a cineasta aproveita esses recursos de proximidade para doar simultaneamente a sensação de um mundo recluso, particular e introvertido, enquanto confere certa ideia de desajuste, de pouca familiaridade com o entorno. A fotografia de Hélène Louvart consegue interpelar pela câmera na mão certa ideia de instabilidade e intimidade que flui em sintonia com a atmosfera tímida e deslocada das personagens. Há uma atenção aos detalhes, majoritariamente expressa pelo uso recorrente do primeiro plano, do close e do plano-detalhe, que conferem certa qualidade íntima e privada às cenas, enquanto igualmente evidenciam sua inospitalidade. Desta forma, a mise en scène reporta uma inegável falta de familiaridade com o espaço e as pessoas de sua vida, por meio dessa insinuação fragmentária, imposta pelos detalhes. O monocromatismo outonal da fotografia e a granulação perceptível do filme realçam a atmosfera gélida e solitária.

Esmaecida como a estação que a nomeia, introvertida e desarticulada tanto em sua cidade, quanto na Nova York desconhecida na qual percorre sua jornada, Autumn encontra cumplicidade e o apoio na figura de Skylar, numa relação que, persistentemente, ultrapassa os limites das palavras. O silêncio impera, e prevalece também certa qualidade do dizer através dos gestos entrecortados pela câmera avizinhada com cautela, pela revelação dos retalhos que compõem sua narrativa de adversidades. Uma sequência parece acusadora de tudo isso: Skylar descobre sobre a gravidez da prima no banheiro do supermercado em que trabalham. Por entre a fresta da cabine, a câmera deixa entrever um fragmento do mundo sigiloso de Autumn, como se Skylar adentrasse um universo completamente individual e confidencial, tornando-se, a partir de então, cúmplice sincera de seu drama. Skylar é a única consistência no mundo perturbado de Autumn.

Essa sensação de cumplicidade e acolhimento aparece também em um dos momentos mais impactantes do filme, durante a entrevista com a assistente social. Interpretada por Kelly Chapman, uma assistente social de uma clínica de Planned Parenthood, Autumn sintetiza nas lágrimas e nas expressões interrompidas pelo embaraço, tentando pesar nos termos postos pelas palavras que compõem o título do filme, as marcas de traumas passados ou presentes, submersas na memória. Diante delas, as respostas parecem transitar nas entrelinhas, deixando latente algo da ordem do não-dito. É exatamente essa sensação que percorre o filme de Eliza Hittman, em que a mera existência feminina é indelével resistência. A câmera repousa por longos 11 minutos sobre o rosto de Autumn, o qual expressa, com um incomodo quase emudecido, suas respostas à assistente.

Muito do filme se mantém sob o véu da sugestão, principalmente os motivos que levaram Autumn aos eventos dispostos no decorrer da trama. Sua imobilidade dramática perante os eventos manifesta-se como resiliência. Apesar do pouco rendimento que o filme teve devido à pandemia, as indicações e prêmios recebidos confirmam sua grandiosidade. Não se trata apenas de uma visão feminista sobre o tema, mas de uma obra que aborda com precisão técnica a simbologia poética constituinte desse olhar confidencial e humano acerca de um drama coletivo.

Era uma Vez… em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino

Amor, afeto e algumas dúvidas

Leandro Afonso

“O cinema é um olhar que se substitui ao nosso

para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos”

(Michel Mourlet)

Era uma vez… em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, nasce e morre entre a repetição e a reinvenção, entre o prazer da zona de conforto e o risco da coragem, num dilema próprio de quem já acertou na estreia (Cães de Aluguel, 1992), realizou um clássico instantâneo em seguida (Pulp Fiction, 1994) e foi refinando sua arte como (em ordem crescente de habilidade) roteirista, dialoguista e encenador, sem grandes deslizes, até atingir o ápice em Bastardos Inglórios, a última parceria com a montadora Sally Menke.

Coincidência ou não, após a morte dela, o cinema tarantinesco parece ter perdido em precisão, incluindo aí seu mergulho no conturbado contexto americano da família Manson. Esse cenário é essencial porque, diferente dos outros longas de Tarantino, o motivo real da vingança está menos na tela que na História, com agá maiúsculo. A dramaturgia cede espaço à memória. Tarantino parte do princípio de que nós sabemos, portanto podemos sentir a tensão pelo ataque iminente e, em consequência, o prazer pela vingança. Porém, em todos os seus filmes, a imaginação e a revanche são mais importantes que a História e, neste quesito, da fantasia como revisionismo, da lenda que se torna fato, ele está dentro da zona do conforto e da repetição. Quando é então que ele a deixa e como é que se sai?

Aqui Tarantino revisita a cidade e a época mais caras à sua formação, mas que são também o berço de um dos últimos ou talvez do último grande período criativo do cinema estadunidense. Num dos momentos em que Pussycat (Margaret Qualley) esboça o primeiro flerte com Cliff Booth (Brad Pitt), por exemplo, começa a tocar Mrs. Robinson, de A Primeira Noite de um Homem (Mike Nichols, 1967), num filme que trata justamente do oposto num instante histórico também na contramão do atual. Ali, a dois anos do que viria a ser Woodstock, uma mulher mais velha e casada se envolvia com um jovem que poderia ser filho dela, enquanto agora uma adolescente paquera um homem de meia-idade; hoje os EUA são governados por uma caricatura intolerante e desprezada mesmo por muitos que o apoiaram, enquanto na época eram liderados por um Lyndon Johnson que substituía o trágico e tão admirado John Kennedy. Em Era uma vez…em Hollywood, imediatamente antes de começar o refrão de Mrs. Robinson, tão marcante em sons e tão ligado à história do cinema e a uma era, vem o corte seco. Quando a nostalgia tende a tomar conta do filme, pulamos para meio século depois. Esse balanço, geralmente equilibrado, que traz a referência sem se prejudicar, recordando outro filme mas sem se afastar do seu próprio, tende a ficar mais complexo e difícil de manter nesse nível de comparação, e Tarantino demonstra ter clara consciência disso. Quando podemos pensar que ele se inebriará com as referências potencialmente maiores que o seu cinema, ele se contém.

Há outros horizontes de expectativas, claro, e um deles se apresenta escancarado no massacre final, mas achar que o melhor ou o mais puro Tarantino está ali (ou mesmo no jogo com as referências, uma espécie de piada interna para a cinefilia), é resumi-lo a uma sanguinolência que, por mais presente que esteja em seus filmes, está longe de representá-lo na sua integridade, ou mesmo no que ele tem de mais interessante. QT é sobretudo um grande entendedor da imagem, da combinação audiovisual, e podemos percebê-lo no seu melhor em pelo menos três sequências.

A primeira é o flash-back com Bruce Lee (Mike Moh); a outra é uma conversa sem palavras, apenas dosando enquadramentos e expressões, entre Cliff (Brad Pitt) e Pussycat (Margaret Qualley), que culmina num choro sinalizado; e a última é a no Spahn Ranch dos Manson, que remete diretamente ao maravilhoso uruguaio-espanhol ¿Quién puede matar a un Nino? (Narciso Ibañez Serrador, 1976): um grupo de crianças e/ou adolescentes aparentemente inofensivos mas que, juntos e com uma encenação precisa, podem se relacionar a danos infinitamente maiores que de jovens numa situação ordinária.

Na maior parte do resto do filme, Tarantino vai menos construir grandes cenas, menos investir na sua cuidadosa artesania audiovisual de linguagem, e mais tentar construir e mergulhar nos personagens. Segue o sempre rígido controle do quadro, mas agora há uma maior liberdade de imersão e tempos quase mortos, no que talvez resida o maior desafio autoimposto pelo diretor até agora. O cineasta que abraça a história do cinema como uma criança que acabou de se apaixonar por um brinquedo, aqui tenta investir menos no procedimento e mais no material, menos na grandiloquência das situações, menos no virtuosismo da linguagem, e mais nas nuances da celebridade que retrata. Não tem a mesma vitalidade, energia, vibração de outros filmes, mas até que ponto, dentro do que ele se propôs, poderia ter?

A cena que abre o filme mostra Rick Dalton (Leonardo Di Caprio) e o seu dublê como artistas, projetados numa outra tela, e é seguida por outra imagem do protagonista desenhada em sua casa, enquanto ele e seu duplo são agora acompanhados “apenas” pela câmera do filme. A mudança dada pelo quadro, pelo movimento, pelo ponto de vista cinematográfico, está presente já nos seus três primeiros filmes, mas aqui a questão da imagem é outra: como as pessoas enxergam Rick Dalton e como de fato ele é?

O filme é imagem e representação num nível diferente daquele a que QT se acostumou, que ele domina, o da (meta)linguagem. A relação “eu-cineasta com a minha ferramenta de linguagem” passa o bastão para o “eu-personagem com minhas imagens”, as projetadas e aquelas que outras pessoas fazem baseadas nas projetadas. É menos paixão e mais amor, menos energia e mais afeto, representado especialmente na amizade entre uma imagem (ator) e sua outra-imagem (dublê), entre um eu e um alter-ego.

Tarantino vai do conforto de quem poderia “só” brincar com sons e imagens, de quem sabe fazer isso como poucos no cinema, e vai ao risco de trabalhar com (sub)gêneros específicos, o bromance, o buddy movie, zonas por onde ele até passou, mas nunca fincou raízes. Agora, é o foco sobretudo no personagem, na crise alcoólica, no choro, na promessa não cumprida, mas como se dá esse foco?

A cena em que o personagem mais se abre, mais se expõe, mais traz nuances, é também a cena em que a montagem mais intervém, dando sinais de que a entrega a toda dor e angústia do personagem é menos importante que o riso causado por aquela situação. A vontade de Tarantino trazer (quase sempre) a comédia sobrepõe a carga dramática.

Na maravilhosa cena em que Bruce Lee enfrenta Cliff Booth, oscilando entre o cômico e as artes marciais, Tarantino escolhe o realismo cênico de longos planos. Na sequência em que a dor interna poderia ser expressa, Tarantino (em conjunto com Fred Raskin, essencialmente um diretor de filmes de ação) se abstém. Num filme de quase três horas, por quê?

Num dos momentos-chaves da parte final do filme, toca Out of Time, dos Rolling Stones. Uma possibilidade de analogia dela com o longa é conectá-la a um Tarantino se afastando de sua imagem já consolidada e se aproximando de outro cinema, fora de mão e de tempo, tentando falar sobre uma cidade e um instante já filmados incessantemente, buscando mais sentimento, mas seu receio de sentimentalismo acaba resultando num grande Frankenstein. Um filme estranho ligado a um passado forte e a uma tentativa de buscar um presente distinto, numa espécie de procura por uma identidade (sempre?) mutável. Mas não seria exatamente essa complexidade esperada de quando fazemos uma autoimersão, explorando as semelhanças e diferenças entre o que fomos, o que nos tornamos, e as imagens que fazem do que éramos um dia e do que somos agora?

A Mulher que Fugiu (2020), de Hong Sang-Soo

Fugiu e foi ao cinema

Daniel Dalpizzolo  

Injustiças que persistem em alguns círculos: Hong Sang-soo produz sempre o mesmo filme; o cinema de Hong Sang-soo é apenas banal e naturalista. Injustiças porque, a cada novo projeto, o coreano sempre dá um jeito de bagunçar estas convicções quando a obra finalmente chega ao olhar do espectador – que, em um primeiro momento, pode considerar um plano como o de uma mulher cortando lentamente uma maçã como apenas mais uma cena naturalista, mas não deverá manter a mesma impressão quando essa cena se repetir durante o mesmo filme, em outra situação e sob um novo contexto. Identificar a autoconsciência da repetição cíclica de gestos triviais permite não somente reavaliar certas convicções que se formaram em torno do cinema de Sang-soo; permite, também, identificar subtextos preciosos em seu cinema, em especial como as situações convocam o espectador a perceber nas imagens, sejam elas fabricadas ou espontâneas, motifs que transcendem a aparente banalidade de suas superfícies.

Se o fantasma de Um Corpo Que Cai (1958) sempre assombrou a obra de Sang-soo, seus trabalhos mais recentes sentem-se ainda mais à vontade ao lado de Janela Indiscreta (1954), obra-prima de Hitchcock sobre o olhar e o cotidiano – filme no qual um voyeur testemunha um assassinato com os olhos fechados, levemente adormecido, e atravessa o restante da história à procura de uma imagem que comprove e dê corpo à sua fantasia. Em algum lugar entre o sonho de James Stewart e os pequenos recortes da vida que ele testemunha através da varanda do apartamento, A Mulher que Fugiu (2020) dá continuidade a essa investigação de narrativas e imagens impossíveis, mergulhando em situações narradas de personagem para personagem por meio da fala, e que ganham corpo na imaginação do espectador – ele próprio convocado a escutá-las enquanto, em tela, observa uma maçã sendo cortada, uma carne grelhada no fogo ou alguém dando os últimos goles em um copo de bebida. Filmes de palavras, alguns dirão, mas que também poderíamos nomear, parafraseando Jorge Luis Borges, como filmes de imagens sonhadas, flutuando em um espaço compartilhado entre o cinema, a literatura e a fantasia.

Em A Mulher que Fugiu, como em Grass (2018) ou A Câmera de Claire (2017), a triangulação entre narrador, objeto e espectador ganha contornos ainda mais literais, à medida em que a personagem de Kim Min-hee, a jovem mulher que está longe do marido pela primeira vez em cinco anos (como ela mesma reafirma três vezes, para três mulheres diferentes), é deslocada ao papel de espectadora das histórias narradas, em companhia ao próprio espectador do filme. Durante as inéditas férias do relacionamento com seu marido, ela adentra residências de antigas amigas que, no conforto de seus ambientes domésticos, discorrem sobre casamentos fracassados, transas acidentais, stalkers insistentes, novas paixões e desejos. Algo entre os apartamentos de Mrs. Lonely e Mrs. Torso em Janela Indiscreta, a personagem-espectadora transita por pequenas histórias do cotidiano e presencia conflitos que brotam não apenas da relação com o outro, mas principalmente da relação com os homens – que, quando surgem em cena, interrompendo o bate-papo, ocupam o primeiro plano de costas para a câmera, bloqueando a nossa visão, quase sem pertencer ao filme.

Essa triangulação adquire novas camadas conforme as conversas avançam, acumulando repetições e coincidências, como a própria interrupção desses homens que, em outros tempos, seriam os reais protagonistas de um filme de Sang-soo – sujeitos inseguros, confusos, passivo-agressivos e desajeitados com mulheres, que tentam insistentemente conquistá-las ou convencê-las, e que aqui também são observados por uma perspectiva deslocada. É deste acúmulo de repetições e deslocamentos que surgirá a principal ruptura dramática da obra, ao final do terceiro bloco, quando a protagonista-espectadora ganha efetivamente o centro da ação, reencontrando, acidentalmente, um homem do passado e sendo, neste encontro, movida de espectadora a protagonista do drama, tendo seu próprio sentimento finalmente confrontado em tela. A oscilação da câmera, no momento em que seus olhos cruzam com os de seu antigo amante, remete ao momento em que o assassino finalmente olha no olho de James Stewart e, consequentemente, no do espectador, trazendo o observador para o centro da imagem.

A imagem, em A Mulher que Fugiu, ainda ganha em complexidade se considerarmos que os jogos estruturais de Sang-soo, fundamentais às narrativas de filmes como Turning Gate (2002), Conto de Cinema (2005), Certo Agora Errado Antes (2015)e Yourself and Yours (2017), se revelam cada vez mais sutis e metamorfoseados no plano, inundando as cenas com outras microcenas. Nestes filmes de personagens-espectadores, não somente o olhar e a audição são convocados a perceber a ação sob novas perspectivas, como o próprio cotidiano recebe intervenções diretas das imagens-dentro-da-imagem, sejam elas produzidas por câmeras de vigilância, projetores de cinema, portas ou janelas (os planos de paisagens que, com um pequeno zoom out, se transformam em planos de interiores, materializando as transições de dentro para fora dos ambientes), sendo os momentos mais notáveis a cena do abraço, no primeiro conto, a qual assistimos por meio da tela do circuito de vigilância interna do condomínio, e a cena final, quando, após Kim confrontar o fantasma de seu passado, a imagem que ela assiste, projetada na tela do cinema, ganha cores – e a câmera de Sang-soo aproxima-se da tela para torná-la o último plano do filme, ocupando toda a extremidade da imagem.

A cada novo trabalho, Hong Sang-soo refina esse método metanarrativo, transformando os próprios mecanismos na narração em leitmotiv, porém o faz de modo cada vez mais sutil e discreto. Nesse sentido, A Mulher que Fugiu aponta para caminhos frescos e ainda pouco explorados na filmografia do coreano. À medida em que a manipulação do autor sobre a história se apresenta ao espectador em cada detalhe, no modo como articula as repetições improváveis, as triangulações entre a narrativa e o espectador e as cenas-dentro-da-cena, seus planos têm se tornado mais austeros e misteriosos, inclusive, também, mais naturalistas, porém deitando na relva de uma ficção inesgotável. Algo como a imaginação de um voyeur ao espiar a vizinhança com um binóculo, adormecendo lentamente enquanto preenche cada janela com pequenas histórias. Ou como uma fuga até a sala de cinema, com as portas fechadas e o projetor apagado, para sonhar um filme na tela.

Os Mortos Não Morrem (2019), de Jim Jarmusch

Pensando em zumbis

Fábio Feldman

I

Algumas características recorrentes do cinema de Jim Jarmusch.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que os filmes do diretor se constituem enquanto intricadas teias de relação intertextual, nas quais referências muito díspares dialogam, se atravessam, friccionam e se complementam. Tal diversidade é responsável por boa parte do humor e do caráter idiossincrático do mundo jarmuschiano – espaço aparentemente absurdo, ainda que povoado por toda sorte de estranhas coincidências.

As estórias que lá se passam tendem a possuir uma natureza um tanto episódica, lembrando uma grande e bela colcha de retalhos. Os personagens possuem naturezas distintas, mas os protagonistas tendem a dividir pontos em comum: são, geralmente, homens silenciosos, inacessíveis e algo alheios ao universo circundante. Além disso, são, quase sempre, outsiders, figuras que observam o entorno com um misto de admiração, confusão e leve desdém. As ações que perpetram e sofrem ajudam a compor um retrato singular dos Estados Unidos, desde sua fundação (como visto em Dead Man (1995)) até seu mais melancólico declínio (Ghost Dog (1999).

No que tange à forma, dois pontos devem ser mencionados. Primeiramente, Jarmusch sempre demonstrou grande interesse em representar momentos desdramatizados. Mais do que pelos instantes fundamentais da ação que concedem ao enredo um senso de progressão, Jim se interessa pelos entre-lugares, os redutos inabitados, as pausas grávidas, aquelas ocasiões em que a vida se desprega da linguagem e se desdobra de forma livre. O mundo jarmuschiano é um mundo, ao mesmo tempo, saturado e vazio, repleto de signos e silêncios.

Finalmente, vale destacar que todos os filmes do autor estabelecem uma relação ambígua com os gêneros cinematográficos. Nenhum escapa do gênero, mas tampouco se adequa plenamente. Há um recuo irônico que nos permite refletir a respeito das convenções, regras e variantes do jogo narrativo. Tudo em seus filmes é, simultaneamente, familiar e um pouco estranho, seguro e aventuroso.

O mundo que representa, portanto, com todas as suas repetições e padrões, é também marcado pelo mistério.  

II

Muitas (se não todas) essas características fundamentais se encontram presentes também na última obra do autor, Os Mortos Não Morrem (2019). Trata-se de um filme de terror, gênero anteriormente visitado pelo diretor (ainda que de forma bastante diferente) em Amantes Eternos (2013), seu “filme de vampiro”. O enredo de Os Mortos… se passa em uma típica cidadezinha americana. Nela, somos introduzidos a uma estranha anomalia: formigas, galinhas, vacas, cães e gatos começam a agir de forma errática, contrariando as expectativas de seus donos ou daqueles que os observam. Um eremita, interpretado por Tom Waits, e que serve como uma espécie de narrador, examina o céu, as árvores, e detecta um clima pouco auspicioso no ar. Impõe-se um crescendo de tensão. Eventualmente, somos apresentados à premissa central:  atividades destrutivas, executadas por companhias mineradoras, tiraram a Terra de seu eixo, resultando na gênese de outro fenômeno ainda mais insólito: a insurreição dos mortos-vivos!

Homenagem evidente a certo campo de filmes B, Os Mortos… opta, conscientemente, por negar a sutileza. A absurdidade da premissa, em realidade, concede ao filme um charme e uma graça particulares, também exalados do ambiente em que a trama se desenrola e da galeria de estranhas figuras que nele interagirão. Vemos, borbulhando num caldeirão intertextual, personagens tirados de filmes de samurai, elementos de comédia screwball, Senhor dos Anéis, Star Wars, Pirandello, Melville, sabedoria zen, niilismo existencialista e country music. E, obviamente, acima de tudo, há a enorme sombra de George Romero. Assim como o redefinidor essencial do subgênero de filmes de zumbi, Jarmusch ambiciona fazer de seu pequeno filme, com seus exageros e particularidades pitorescas, um espelho da realidade circundante.

Dito isso, é importante salientar que a crítica que se encontra no cerne de Os Mortos… não poderia ser menos focada. Jarmusch tenta pintar uma imagem ambiciosa do presente, apontando para o estado da América de Trump, a polarização política, a obsessão contemporânea com a tecnologia (que nos transforma em zumbis… get it?), a crise dos opiáceos, o excesso de consumismo, a ameaça ambiental, etc. E ao falar um pouco sobre tudo, acaba não dizendo muito sobre nada.

Parece-me inegável que, geralmente para seu demérito, uma certa impressão de desorganização e falta de coesão acomete Os Mortos… Pela primeira vez, a colcha intertextual de seu autor parece um tanto puída, ainda que vários momentos que a constituam sejam bastante engenhosos e divertidos. Sim, não nego que se trata de um filme muito simpático, com alguns momentos realmente engraçados. Porém, aquele delicado senso de organização interna, aquela alquimia muito especial, responsável por conceder a um todo altamente volátil e discordante uma organicidade plena, me parece estar algo ausente aqui.  

III

Outro aspecto importante: nenhum filme de Jarmusch funcionou tanto como meta-comentário acerca de um gênero quanto Os Mortos Não Morrem. Trata-se de um filme (excessivamente?) cônscio das regras que o compõem. Essas, inclusive, são muitas vezes explicitadas pelos próprios personagens. Não há aqui nenhuma pretensão naturalista: desde o primeiro plano, encontramo-nos no interior de uma Obra, um constructo intertextual que se alimenta de topoi alheios – por vezes os ridicularizando. Tal operação pode ser lida como constante no cânone jasmuschiano, mas se outros filmes eram marcados por desconstruções sutis, aqui a operação se dá de modo bastante brusco. Poder-se-ia dizer que Jarmusch nunca se aproximou tanto do Godard da primeira fase, mas onde em Godard havia uma intenção brechtiana de subversão da estética clássica, aqui há apenas uma forma meio oca de ludismo: autorreferencialidade como base para gags

A “experiência” metalinguística menos bem-sucedida do filme me parece ser também sua mais radical. Os dois policiais que, de certa forma, agem como protagonistas, possuem várias das características definidoras dos heróis de Jarmusch. Porém, enquanto dialogam, demonstram, aos poucos, uma certa noção acerca dos rumos da própria trama a que estão submetidos. Centelhas de consciência vão, aos poucos, configurando uma returning gag. Ronnie, personagem interpretado por Adam Driver, defende que a canção de Strugill Simpson tocando no rádio é a “trilha”; ele repete várias vezes que as coisas terminarão mal, adágio interpretado por Cliff (Bill Murray) como dotado de um significado profundo e secreto; no ato final, preso dentro de um carro circundado por zumbis, Ronnie admite já ter “lido o roteiro”. Nesse momento, o filme lança seus heróis numa área interseccional: não são mais personagens, mas tampouco são atores. E a quarta parede, que vai sendo lentamente fissurada ao longo da projeção, é demolida por completo. Os dois policiais acabam se tornando os outsiders definitivos, expondo uma percepção crítica acerca da natureza do próprio filme a qual pertencem. Eles não se encontram apartados apenas da sociedade, mas da própria realidade.

Essa gag metalinguística/metafísica, tão longa, amplifica ainda mais o senso de artificialidade que atravessa Os Mortos… – nesse ponto, mais um filme de zumbis sobre filmes de zumbis do que um filme de zumbis per se. E é, justamente, essa implacável aposta no artifício puro o calcanhar de Aquiles da obra. Parece-me que seus melhores momentos são, justamente, aqueles em que Jarmusch se sente mais à vontade: os lacônicos instantes de interação estabelecidos entre os policiais, a representação exuberante da dona da funerária (interpretada por Tilda Swinton), os dias de solidão do eremita Bob, os passeios de carro noturnos em uma cidade devastada por mortos-vivos.

*

Há muito a se admirar na última criação de Jarmusch. A estrutura episódica, com seus núcleos variantes de personagens, lhe assegura certo frescor (ainda que nem todos os núcleos funcionem muito bem – o que envolve os garotos no orfanato, por exemplo, me parece ser completamente prescindível). Algumas das piadas internas, envolvendo Adam “Kylo Ren” Driver e a Tilda Alienígena são inventivas, e as habituais colisões entre mundos textuais diferentes conseguem, por vezes, produzir efeitos interessantes. Porém, a falta de foco (tanto em termos de tema quanto de forma) e a insistência no uso de certos procedimentos modernistas que nada fazem além de esgarçar a tapeçaria narrativa, afetando sua coesão interna e lhe oferecendo pouco em troca, concedem a Os Mortos Não Morrem um tom irregular. Trata-se, portanto, de um filme perpassado por bons momentos, mas, ainda assim, menor, quando pensado à luz da filmografia de seu diretor.

Dito isso, a cena final, com a narração de Waits sobre as imagens dos zumbis devorando os protagonistas, se destaca enquanto um dos grandes desfechos de qualquer narrativa jarmuschiana. We are in a fucked-up world, after all.

Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa

Dronecracia

André Berzagui

“Nem sempre a gente sabe o que está filmando”, afirma Chris Marker. Eu acrescentaria ainda que “nós nunca sabemos o que se tornará aquilo que filmamos”. Filmes-ensaio, por vezes, propõem-se ao exercício de pensar sobre a natureza dos arquivos que os constituem, promovendo a dialética entre cineasta e imagem. Tal movimento abre a possibilidade de rompimento entre as intenções do diretor e o corpo imagético do filme. Não por acaso, João Moreira Salles começa No Intenso Agora (2017) citando Marker, palavras – mantra — que, depois de Santiago (2006), servem de guia e aviso.

Em Democracia em Vertigem (2019), Petra Costa filma planos-tese e faz do arquivo mero subterfúgio para as intenções que possui, afogando qualquer possibilidade de reflexão sobre as imagens. Através do drone que sobrevoa o Planalto mostrando o muro que nos divide, cria-se uma imagem-síntese do país diante do conturbado cenário político dos últimos anos.

A escolha de um plano zenital para representar esse momento é sintomática. O filme se distancia desse lugar como alguém se afasta da caverna. Se a cosmética da fome, de Ivana Bentes, já condenava as dollys que faziam do sertão um espaço de turismo, temos aqui um efeito semelhante. O sobrevoo estável posiciona o espectador de forma confortável em meio às fissuras da política nacional, causando a impressão de um passeio agradável num calmo domingo.

Do drone às entrevistas, nunca se discute a natureza das imagens. Quando conta a história de seus pais, que lutaram contra a ditadura militar, Costa relata a ausência de arquivos desse período. O relato justapõe a construção de seu próprio documentário, demarcado pelos lugares mais privilegiados dos quais goza a diretora, desde a entrevista com a ex-presidente Dilma Rousseff às confissões do golpe advindas de dentro do poder.

E é de dentro do Planalto que surge o depoimento mais lúcido do filme. Num momento de franca entrega, uma das faxineiras abordadas diz que não existe democracia. Contudo, Costa pouco se detém ao assunto e logo volta aos seus interesses originais, ligados à noção de política como uma representação macrossocial indistinta. Não é à toa que isso é filmado de dentro do Planalto, uma vez que, fora dali, pessoas como a faxineira são grãos divididos por um muro. O fácil acesso de Costa torna-se sua própria armadilha porque aqueles que mais ocupam a tela são os que talvez menos dependam da democracia. É preciso lembrar-se onde estava a câmera de Hirszman durante a greve do ABC, por exemplo, sempre à altura do trabalhador.

Além de não questionar a diferença entre os documentos atuais e os dos tempos da ditadura, a diretora adultera uma foto relativa ao assassinato de ativistas do Partido Comunista durante o regime militar. Ao retirar da foto as armas plantadas, numa tentativa de reconstituir algo mais próximo do que teria acontecido, ela acaba por contribuir com o apagamento das atrocidades cometidas na ditadura. Uma vez que é sabido que a cena é forjada, ela rompe-se das intenções primárias e torna-se um documento que mostra como a ditadura violou a realidade para constituir uma imagem que corrobora a narrativa fascista do período. Ao editar o registro, Costa presume uma verdade. Suas intenções com ela apagam a história tornando o arquivo um artifício, ao invés de um ponto de reflexão sobre como a imagem foi apropriada pelos ditadores.

Democracia em Vertigem constrói uma narrativa cronológica, que se faz necessária, já que é visado contar acontecimentos da redemocratização ao impeachment de Dilma Rousseff, porém colide com a vontade de ser um filme-ensaio. As imagens usadas para representar esses eventos parecem ser escolhidas numa primeira intenção para que sirvam à poesia que Costa pretende subtrair dos eventos. As duas têm a mesma idade, diz a diretora, num tom não de coincidência, mas de conexão transcendental, que lhe dá o direito de contar a história coletiva por uma ótica individual.

Mais adiante, utiliza-se da posse de Dilma Rousseff, na qual o então vice-presidente Michel Temer a acompanha passos atrás. Petra olha em retrospecto para essa imagem como se ela denunciasse o que estava por vir. Trata-se de uma retórica confortável que faz da política um senso comum, sem nunca discutir como o projeto democrático é utilizado para perpetuar aqueles que sempre tiveram o poder. Através de seu lirismo, Costa vai costurando a história de nossa “jovem democracia”, linha poética que culmina no nome do filme e no emblemático registro feito de um drone. Nossa democracia estaria em vertigem, entretanto só pode ser sentida por quem tem possibilidade de vê-la de cima. Em contrapartida, quem está no chão sequer considera sua existência.

Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

O Nordeste é uma ficção

André Berzagui

Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!

Não sou da nação dos condenados!

Não sou do sertão dos ofendidos!

Você sabe bem:

Conheço o meu lugar

(Belchior, “Conheço o meu lugar”)

Era de se esperar que surgissem críticas a Bacurau apontando um espelhamento entre as ações do filme e os recentes acontecimentos políticos do país. Toda obra enfrenta o contexto do momento em que veio ao mundo, algumas por mérito (ou não) persistem e são debatidas em circunstâncias futuras. É o caso de Aquarius (2016), filme anterior de Kléber Mendonça Filho, cujo timing não poderia ter sido mais oportuno: história de uma mulher que luta para permanecer em um espaço que é seu por direito, tal como Dilma em seu governo durante o processo de impeachment.

Trazendo consigo essa imagem de diretor engajado, muitos esperavam que seu filme seguinte(co-dirigido com Juliano Dornelles) se propusesse a discutir o atual panorama político brasileiro. Não que o filme não se proponha a isso, nem que leituras como essa sejam equivocadas. Mas diante de uma ânsia por manifestações que façam frente ao governo Bolsonaro, tais interpretações tornam-se simplórias. Todavia, Bacurau se mostra muito consciente da história cinematográfica nacional. Ao mesmo tempo, se propõe a explorar códigos particulares do cinema de gênero, sobretudo norte-americano.

“Por que sempre que aliens visitam a terra, eles vão para Washington?”, era o que me perguntava quando criança. Bacurau inicia reivindicando esse lugar, a câmera que sobrevoa o universo, deslizando até encontrar a Terra, apresenta o Brasil em foco, um ser “não Identificado” que nos convida a acompanhar sua narrativa. Em um mergulho, a câmera se lança hipnotizada em direção ao país do Hemisfério Sul com dimensões continentais, concluindo que o planeta vai virar sertão! Não se trata de buscar nessa “eloquência” uma necessidade de exploração dessas zonas obscuras. Pelo contrário, a ideia é demonstrar que essa centralização de pensamento/olhar está ao alcance de todos. Aterrissamos no sertão porque, dentre todos os cantos do mundo (incluindo Washington), só em Bacurau – cidade onde quem nasce é “gente” – há a certeza de que “tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”, como cantou Belchior.

 O povoado de Bacurau encontra-se em luto. Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), a matriarca da cidade, acaba de falecer e todos reúnem-se para o cortejo do velório. Sua partida deixa os moradores desemparados, já que era o alicerce de toda uma comunidade que agora precisa se reconstruir. É possível estabelecer como metáfora ao filme o próprio cinema brasileiro que, em sua historiografia, teve de lidar ciclicamente com rupturas, carregando consigo a necessidade de lutar. Talvez esteja aí o maior paralelo do filme com o atual momento vivido. Os ataques do atual governo à produção cinematográfica põem em xeque tudo que foi construído nos últimos anos, somados à inundação de obras norte-americanas nas salas locais, fator que também atua em função do nosso apagamento. Porém, é importante a consciência de que somos cria dos famintos do Terceiro Mundo. A história do nosso cinema é constituída  por recomeços e resistência. Dessa necessidade, Bacurau construirá sua narrativa.

Assim que adentramos Bacurau junto com Teresa (Barbara Colen), personagem expatriada que regressa à cidade, a montagem aposta numa cacofonia entre os planos, acentuada também por fusões, como a do caminhão-pipa que assume o quadro na decorrência do seu deslocamento lateral. De início, somos incitados a entender que estamos diante de uma obra cinematográfica. Não se trata de uma experiência de abstração, na qual a linguagem se engaja de forma transparente para o espectador. O que interessa a Bacurau é o próprio cinema, e o filme faz questão de evidenciar sua linguagem quase o tempo inteiro. Quando os moradores, diante do iminente ataque, se reúnem para dançar capoeira, Night, do Carpenter, assume a trilha, abafando o cântico proferido por eles. Diferente de  “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, em que a capoeira é filmada de forma exótica e turística, em Bacurau, é um rito ao qual Mendonça e Dorneles se apropriam para integrá-la ao cinema de gênero.

Bacurau perpassa pelos diferentes gêneros como o horror de Carpenter e a ação de John Woo; todavia, usa a influência desses diretores para um movimento que aponta para outras resoluções. Em “O Alvo”, de John Woo, cuja premissa é semelhante, pessoas ricas pagam para poder matar pessoas pobres. Fica a cargo do personagem de Van Damme salvar o dia, concepção norte-americana de vitória individualista meritocrática. Contrário da situação que passam os bacurenses, nela só há chance de  vitória se houver união. Difere-se também do protagonista carpenteriano com o rosto tão marcado ao contraponto do mal que se move sem uma identificação. Em Bacurau, estrutura-se o inverso. Michel (Udo Kier), o vilão alemão-americano, é o rosto mais marcado, enquanto os moradores do vilarejo opõem-se como grupo, por mais que dividam o protagonismo em certos momentos, tal como ocorre em Pedreira de São Diogo (1962), curta de Leon Hirszman em que um grupo de trabalhadores triunfa sobre o patrão, porque diferentemente da concepção norte-americana de mérito e individualismo, nós, os subdesenvolvidos, aprendemos através da nossa história que para sobrevivermos precisamos resistir coletivamente.

“Por que vocês tão fazendo isso?”, pergunta de caráter quase inocente que  evidencia a disparidade entre os gringos e os bacurenses. Não é a língua que impede que Michel e Domingas (Sônia Braga) se entendam, é a compreensão que ambos têm de si mesmos. O direito de denominar o outro terrorista é o prêmio de quem ganha, afinal a História mostra que as narrativas sempre foram contadas sob o ponto de vista dos vencedores; para quem perde, a violência será sempre intitulada barbárie. Se qualquer tentativa dos estrangeiros explicarem suas motivações pareça a nós injustificada, a incapacidade deles encararem os bacurenses com dignidade soa incontornável. A questão não é a ausência de justificativa dos que atacam, mas a impossibilidade de entendimento daqueles que quando pegam em armas o fazem para proteger o próprio espaço. Existem aqueles que comprando a narrativa estrangeira chamam a resistência de barbárie. A incompreensão, portanto, é uma batalha cultural.

O primeiro alvo dos estrangeiros é Darmiano (Carlos Francisco), que encontra-se pelado em meio às plantas que cultiva, imagem do homem selvagem que remete ao primitivismo. Conscientes desse imaginário dos subdesenvolvidos, Mendonça Filho e Dornelles partem ao contra-ataque. A descolonização do olhar estrangeiro começa por Darmiano, que cuida de seus vegetais dentro de uma estufa, possuindo total controle sobre eles, e, tal como os demais, estará dentro de casa e armado à espera dos matadores. Releitura também do cangaceiro por Lunga (Silverio Pereira) e sua androginia. Numa cidade que preserva seu museu, um novo ciclo surgirá consciente de seus antepassados. O sertão, terra de batalha, resiste como sempre resistiu e resistirá, assim como nosso cinema. Alguns quiseram classificar Bacurau como Western por se tratar de um filme de cerco, não sei… essa luta diz respeito a nossa realidade, então prefiro chamar de Nordestern mesmo!

Mank (2020), de David Fincher

Tentando salvar Mank

Cícero Pedro Leão

O novo filme de David Fincher, Mank (2020), mostra Herman J. Mankiewicz no processo de escrita de Cidadão Kane (1941), o aclamado filme dirigido por Orson Welles. Por meio de flashbacks, conhecemos também a Hollywood do começo dos anos 1930 a partir da perspectiva do roteirista. No entanto, Mank não é sobre Cidadão Kane, Orson Welles, o magnata William Hearst (que inspirou o personagem Kane) e nem sobre o próprio Mankiewicz. Ainda assim, o filme permeia todos esses nomes, sem se aprofundar em ninguém. Gradativamente, a irregularidade salta aos olhos. Apesar da estrutura fragmentada em flashback lembrar a narrativa de Cidadão Kane, a fragmentação lírica do filme de Welles não ecoa no filme de Fincher. 

Isto não significa que o filme esteja perdido. Para salvá-lo, pelo menos parcialmente, seria preciso responder: sobre o que é o filme? Quem procura informações sobre a produção de Cidadão Kane não encontrará muita coisa. O filme não revela bastidores de uma maneira cativante. Até o processo de escrita do roteiro é apresentado de maneira repetitiva, em meio a crises de Mankiewicz com seus funcionários em uma pequena residência interiorana; e só. Quem procura um retrato da Hollywood dos anos 1930, poderá encontrar outros filmes e séries bem mais didáticos e reveladores sobre a indústria no período clássico (a série Hollywood (2020), também da Netflix, é um exemplo interessante, mesmo que mais modesto). Então, afinal, sobre o que é o filme? Uma proposta: Mank é sobre um melancólico e desesperançoso homem idealista que encontrou em uma oportunidade criativa a possibilidade de retratar as figuras que tornaram inúteis e pueris as suas antigas aspirações.

Explico como cheguei nessa hipótese: na segunda vez que vi Mank, o filme me impactou mais quando identifiquei a força de uma melancolia paradoxal que nasce em um homem cínico e idealista. Contudo, a construção desse estado ainda é problemática, pois ela se intensifica a partir de uma linha narrativa que não é a principal: a relação de Mankiewicz com a campanha política para o governador da Califórnia de 1934, na qual o roteirista se coloca mais favorável ao candidato democrata Upton Sinclair. Não que seu apoio tivesse alguma relevância, pois é tratado como um bobo da corte pelos poderosos, mas a pressão em volta de sua falta de apoio é um elemento inquietante, justamente porque não faz diferença. Ao nos identificarmos com a perturbação de Mank diante dessa pressão sem sentido, alguma conexão entre filme e espectador passa a se formar. 

Mas quando o espectador começa a vislumbrar o potencial desta crise, ele já é jogado em várias outras histórias que não se desenvolvem plenamente, como ocorre nas relações entre Mankiewicz e o seu irmão, a sua esposa e a sua datilógrafa.  Filmes como Cidadão Kane ou Grilhões do Passado (1955), somente para continuarmos na filmografia de Welles, resolvem esse problema plenamente: cada fragmento dos filmes tem, ao mesmo tempo, em poucas cenas e diálogos, uma vida própria, ainda que efêmera, mas que ecoa, total ou parcialmente, no problema central que move a narrativa.

Mank não alcança essa harmonia fragmentada. No entanto, justamente por sermos jogados em um mundo vasto de informações, referências e histórias, algo, em algum momento, pode causar um impacto. No meu caso, como dito, foi a história ocorrida durante a campanha para governador da Califórnia. Ali, em 1934, Mank não é um jovem idealista, mas um roteirista maduro e que conhece bem as hipocrisias arraigadas na indústria cinematográfica. Consequentemente, não faz muito sentido o incômodo que sente diante da pressão dos seus chefes: sem ser um democrata devoto e ingênuo, ele poderia, se quisesse, contornar a situação facilmente. 

Aí surgem questões interessantes: até que ponto é possível continuar vivendo em um mundo corrupto que fere seus ideais? Um (“ex”) idealista, já adaptado a um sistema corrupto, pode sentir uma revolta, uma paixão, ou algo parecido? Em Mank, é possível enxergar um sim para a última questão, pois Mankiewicz não é o revolucionário ou o reacionário cínico, mas talvez algo no meio, se é que isso é possível.

Essa problemática se desenvolve relativamente bem nas relações do protagonista com os personagens Marion Davies (Amanda Seyfried) e Shelly Metcalf (Jamie McShane). Ela representa a possibilidade de autenticidade em um mundo povoado por pessoas medíocres, e ele é o artista com consciência que, em busca de oportunidades, utiliza as suas habilidades a favor de um discurso reacionário. A sensação de raridade que emana das personalidades de Davies e Metcalf enfatizam a solidão de Mank em uma sociedade retrógrada, pois seus poucos aliados de alma também são pressionados ou atormentados.  

Os dilemas dos dois personagens e as relações que Mank trava com os poderosos ao seu redor se comunicam com os nossos tempos: quando o roteirista explica a diferença entre socialismo e comunismo para pessoas (ricas) que comparam socialismo com nazismo, o personagem apresenta uma paciência e uma desenvoltura intelectual que muitos estão desenvolvendo atualmente. 

Além disso, Davies e Metcalf são as figuras que mais me marcaram no mar de personagens de Mank, a maioria rapidamente esquecida. Na verdade, o filme de Fincher, na minha memória, existe mais como um filme sobre Marion Davies e Mankiewicz, ainda que a personagem tenha somente quatro cenas no filme, principalmente devido à ambiguidade ao redor dos dois. Nunca é explicado o porquê da admiração entre eles no tempo passado, e nem porque Mankiewicz fez uma construção tão estereotipada da atriz no roteiro de Kane. As desculpas do roteirista são superficiais e leves, mas estão lá. Balbuciadas de forma desajeitada, elas não carregam credibilidade. Independente de qual seja a resposta “real” para o motivo dessa construção, qualquer uma precisa levar em consideração esse duplo sentimento de admiração e raiva que o roteirista sentia por figuras como Davies, e até Hearst, principalmente em relação ao que elas representavam. 

Mas eu estou enxergando uma luz no fim do túnel, pois a construção desses paradoxos é problemática. Na narrativa, a relação entre as cenas do passado e do presente não tem uma motivação clara, parecendo gratuita em alguns momentos. Não que precise ser explicada totalmente, mas alguma relação (ainda que de distanciamento) precisa ser estabelecida entre as duas temporalidades. O filme não é uma obra experimental que aposta na fragmentação radical; a sua fragmentação precisa ter motivações, ainda que abertas.

Na segunda parte do filme há uma conexão mais sólida: o fim da campanha política para governador da Califórnia é articulado com o fim da escrita do roteiro e as posteriores reações das pessoas próximas de Mankiewicz. A campanha política acaba com a vitória amarga do republicano, e, no presente, o roteiro é finalizado, filmado com modificações de Welles (com quem o roteirista mantém forte atrito). Os diálogos finais entre Welles e o magnata Hearst são intercalados no final, deixando claro a posição crítica do filme em relação a Welles, ainda que a suposta vilania de Hearst não seja tão aprofundada por Fincher.  

São duas derrotas em duas lutas amargas. No entanto, Mankiewicz não tem poder nenhum na luta política; o apoio de seus chefes milionários é o que realmente importa. Dito isso, ele tem o poder de criação na luta “artística”. No entanto, esse poder significa algo? Aparentemente, não, pois o roteiro, apesar de ser visto como o melhor texto que Mankiewicz escreveu, é criticado fortemente por amigos próximos, e foi filmado com várias modificações e interferências de Welles. O seu talento não trouxe nenhum alento, não fez grandes mudanças. A aparente vitória é uma derrota. Ainda assim, é uma derrota na qual ele pode fazer algo. Talvez isto signifique alguma coisa. 

A construção desses sentidos, como já dito, nunca é fácil. O próprio Gary Oldman varia. Acreditei mais no seu desespero quando o personagem está sóbrio. Bêbado, ele parecia a versão estilizada de uma boemia artística estereotipada. Tinha estilo, mas sem muita verdade. A verborragia também cansa. Os dois jantares na mansão de Hearst têm diálogos interessantes, mas que às vezes se perdem em seu próprio ritmo. Aliás, o filme inteiro quer seguir uma cadência frenética que casa bem com a visão romantizada da Hollywood clássica, mas essa batida causa mais descompasso do que música. 

A vida dos personagens depende mais dos corpos dos atores, dos seus gestos e olhares, e não tanto da narrativa ou do roteiro. Já no estilo, o filme busca emular algo de Cidadão Kane, principalmente a fotografia com fortes contrastes e profundidade de campo de Gregg Toland, ainda que seguindo padrões mais contemporâneos, com um uso bem maior de planos curtos e movimentos de câmera. É tudo muito bonito, mas hora ou outra eu me perguntava qual o motivo por trás dessa escolha estilística, além do básico de fazer referência a Cidadão Kane

Para efeitos de comparação, cito, por exemplo, o filme Longe do Paraíso (2002), de Todd Haynes, no qual há uma imitação intensa da mise en scène dos melodramas de Douglas Sirk. Mas o objetivo da recriação era claro: contrastar o estilo clássico com temas que eram impossíveis para a Hollywood dos anos 1950, principalmente homossexualidade e o amor entre uma mulher branca e um homem negro. 

Os temas de Mank não eram tão impossíveis nos anos 1940. Então por quê? Não fica claro. Caso a construção da visão de mundo em um ex-idealista fosse mais desenvolvida, o filme apresentaria um paradoxo bem mais contemporâneo, principalmente com o fim das grandes ideologias e a volta dos conservadores reacionários nos nossos tempos. Dessa forma, o estilo clássico do filme serviria como uma moldura que abrigaria um sentimento atual, ainda que com referências do passado, mostrando como o que vivemos hoje foi plantado anteriormente.

Dor e Glória (2019), de Pedro Amodóvar

O desejo e o envelhecimento gay

Lea Monteiro

Em Dor e Glória (2019), na primeira aparição do protagonista, Salvador Mallo (personagem que, segundo Pedro Almodóvar, é inspirado em si mesmo), ele está imerso em uma piscina, mergulhado. É significativo que Almodóvar denote, já nessa primeira cena, através de recursos imagéticos, que esse filme se trata de uma narrativa em que os sentimentos conduzirão toda a trama. Enquanto em Breaking Bad (2008-2013) as piscinas estão sempre compondo as mise-en-scènes, ainda que nunca sejam usadas, para representar um distanciamento abrupto entre os personagens e o que sentem, em Dor e Glória a piscina significa que Salvador estará, durante toda a obra, mergulhado em suas memórias e sentimentos.

Salvador Mallo é o homem gay que envelheceu. Se em filmes como A Lei do Desejo (1987) e A Má Educação (2004), o desejo ocupa um lugar sensual e pivotal na vida dos jovens diretores de cinema que se apaixonam por um homem inacessível, aqui ele aparece em outro campo. Salvador, diante de dores corporais as mais diversas e da depressão que o impende de escrever e produzir, passa a procurar na heroína estímulos de desejos do passado. É através dessa droga que somos transportados para a maior parte dos flashbacks de sua infância.

Ao logo do filme, Almodóvar indica que há na infância de Salvador conflitos que nunca se dissiparam ao longo da vida do protagonista. Isso fica claro seja na relação com a mãe, seja na com seu primeiro aluno, um pintor analfabeto que ele ensina a ler e a escrever ainda muito novo. Essas memórias acabam por culminar em dois dos mais emblemáticos momentos do filme. O primeiro é constituído pelas conversas que teve com sua mãe nos meses antes de sua morte, que são preenchidas pela culpa, de ambas as partes.

No fim do filme, ao confessar que, após 4 anos, ainda não superou o falecimento da mãe, é significativa a memória que ela lhe deixou de seu ovo de madeira, que usava para costurar ainda na sua infância, como herança. A caixa em que Salvador guarda esse e outros objetos pode ser melhor entendida se voltarmos ao livro Luto e Melancolia (1917), de Sigmund Freud. Segundo o autor, no processo do luto, ao desligarmos as pulsões que mantínhamos com o ente perdido, uma vez não conseguindo investi-las da mesma forma em outro objeto, nós o incorporamos ao eu. Assim, o ovo de madeira usado para costurar, tão característico de sua mãe, torna-se um objeto seu, de forma que ele a conserva na superfície do eu.

Entretanto, a aparição dos conflitos, de forma mais explícita, com a mãe, me parece abrupta e repentina, traindo o ritmo do filme. O personagem, que estava se afundando cada vez mais em seu vício em heroína, em um denso processo de adoecimento, passa a lidar com outros traumas, o que faz com que o problema com as drogas não seja aprofundado, pelo contrário, seja deixado de lado, facilmente resolvido em um consultório médico. No decorrer do filme, nada indica que seus problemas depressivos sejam frutos de sua relação materna – ou apenas de sua relação materna. Portanto, quando o filme se torna uma obra sobre luto, o que acontece é que há uma transição um tanto quanto forçada, que deixa pontas soltas.

O segundo momento é aquele que dá inspiração para o novo filme de Salvador Mallo, El Primer Deseo. A relação com Eduardo, o pintor, que trabalha em sua casa em troca de suas aulas, acaba por provocar, em Salvador, seu primeiro desejo sexual. Tudo nessa cena é icônico. Eduardo decide desenhar Salvador enquanto este lê. O menino, naquele momento, percebe a pulsão escópica que está em jogo na situação. Pela primeira vez, recebe a atenção e o olhar de alguém que está completamente focado nele. Em seguida, Eduardo pede para tomar um banho. Salvador lhe entrega o sabonete e vai se deitar. Começa a arder em febre, o que não o impede de se levantar e levar a toalha para Eduardo, que é visto completamente nu por Salvador. Este  desmaia e começa a queimar em febre ainda mais. Estava ali diante do seu primeiro desejo.

O arder de desejos mal resolvidos parece ter sido recorrente na vida de Salvador. Após aceitar que o ator de seu filme Sabor, Alberto, com o qual não falava há 32 anos, interpretasse um texto muito pessoal que escreveu, intitulado “O vício”, ele se reencontra com o personagem de Federico. Este nos é apresentado como o maior envolvimento da vida de Salvador. Na época em que fazia seus primeiros filmes, o diretor estava apaixonado por Federico, que sabotara o relacionamento por conta do seu vício em heroína. Por obra do acaso, ele acaba assistindo à peça escrita por Salvador, que fala da relação dos dois.

É latente o desejo que sentem um pelo outro, mesmo depois de tantos anos afastados. Nesse reencontro, abre-se caminho para uma produção incessante de desejos, mas Salvador escolhe não investir nos mesmos – pelo contrário, passa a investir em outros. Mesmo que os dois estivessem de pau duro, diante da oferta de Federico de dormir abraçado com o protagonista, Salvador escolhe não investir nessa relação do passado, ainda que fosse recheada de afetos.  

Decide, a partir dessa reconciliação com o passado, dar um jeito do presente. Na mesma noite joga fora a heroína que ainda tinha e liga para sua amiga, revelando que resolveu ir ao médico. Ao compartilhar do trauma que foi ter perdido sua mãe, ele cria uma abertura para sua cúmplice que não havia criado para sua progenitora. Permite que venha morar com ele e compartilhe de sua vida. Dessa forma, acaba por transferir para a amiga aquilo que não mais poderia proporcionar à sua mãe.

Com a resolução de tais questões, o filme se encerra com um feixe de esperança. Ao trabalhar as questões que lhe incomodavam no passado, como as relações com sua mãe, com um grande amor, com desavenças profissionais e com o objeto primeiro do desejo, Salvador nos mostra que é possível romper longos ciclos de depressão e encontrar, mesmo que na velhice, algo que lhe impulsione.

Almodóvar usa da metalinguagem para comunicar tais anseios. Na cena final do filme, vemos Salvador criança e sua mãe deitados. O ângulo da câmera começa a se abrir, revelando uma técnica de som. As memórias de sua infância, que acompanhamos durante todo o filme, se tratavam de um filme dentro do filme. São recriações fictícias de Salvador para entrar em termos com sua própria infância.

Como na cena em que Salvador e Alberto veem televisão depois de fumarem heroína, assistindo a algumas pessoas mergulhadas em uma piscina, em Dor e Glória, os sentimentos só são resolvidos, aprofundados, verdadeiramente sentidos quando Salvador resolve transformá-los em imagens cinematográficas. O mergulho, para Almodóvar, é experienciado através do cinema, que é, desde o início, muito particular e pessoal.

Entretanto, trata-se de um filme que não me instiga como outros de Pedro Almodóvar. Ainda que haja muitos elementos reflexivos e profundos, a execução, por vezes, parte de diálogos forçados e pouco inventivos. É uma obra muito mercadológica, o que não é um problema em si, mas que acaba caindo em certa mesmice, com trilhas sonoras emocionalmente apelativas e uso abusivo de planos e contraplanos. Ao dar play em um filme de Almodóvar, busco um melodrama consciente de si, irônico, no qual a estética rebuscada se mistura com o kitsch. Porém, em Dor e Glória, o kitsch é deixado de lado, o que faz com que o filme seja sério, que fale de coisas sérias. Não acredito que a tentativa pelo cinema sério seja descartável, só que nesse caso ela deixa um sabor de decepção, uma vez que os filmes de Almodóvar não costumam ser tão engessados. 

O Caso de Richard Jewell (2019), de Clint Eastwood

Os fantasmas somos nós?

Rubens Fabricio Anzolin

Desde Sully (2016), o cinema de Clint Eastwood é mais sobre perguntas que sobre respostas. É mais sobre os homens que sobre um homem em si. É muito mais sobre nós que sobre ele mesmo.

Desde Sully (2016), o cinema de Clint Eastwood desafia uma convenção: a do gênero. É impossível enquadrá-lo. Ou melhor: é possível enquadrá-lo de diferentes formas. Pensemos: Sully, em essência, pode variar entre um estudo de personagem e um drama de tribunal, mesmo que a mim – e não lembro de isso constar em qualquer descrição do filme que tenha visto – permaneça em essência um filme de terror. Bom, Sully é sobre os nossos próprios fantasmas, nossos próprios tormentos. (Quantas cenas de pesadelo ou flashback tem os filmes recentes de Eastwood? De antemão, me recordo de Sniper Americano (2015), Sully e O Caso Richard Jewell (2019), mas podem haver mais). Se Sully, que por princípio é plastificado como um drama crasso e ao fim se revela um terror fantasmagórico (pensemos na luz fria de Tom Stern, na prisão do personagem de Tom Hanks na cidade do acidente, na expropriação do indivíduo legado a lidar com o sistema, a justiça – o “monstro” – sozinho), o que se pode dizer sobre 15h17 – Trem Para Paris (2018) e A Mula (2018)?

Rapidamente: 15h17 se veste de filme de ação, de road trip, mesmo que por dentro seja quase uma jornada ao Oeste – uma desmistificação pelo meio do caminho: descobrir quem se é, quem se foi, o que pode vir a ser; A Mula se veste de western, de filme policial, quando na verdade talvez seja o mais simbólico e pessoal dos filmes de Eastwood: cinema sobre conversas com o legado, mínimo, sobre vencer a si mesmo. Nada de violência, cinema sobre dançar despido.Falei anteriormente que desde Sully o cinema de Eastwood é mais sobre nós que sobre ele mesmo. Retomo: são todos filmes sobre a trivialidade do humano, sobre sacar fora as peças de roupa que formam a fantasia até que se chegue ao corpo nu, duro. São filmes em exercício – sair do mito, do herói (o comandante que salva uma tripulação, os civis que param um ataque terrorista, o nonagenário que trafica cocaína, o segurança de patrulha que encontra uma bomba) para chegar ao humano (o drama solitário do Capitão Sully, a infância militarizada e longe da paternidade dos americanos em Paris, a dureza da velhice sem a família do personagem de Earl, o hedonismo no ato do cumprimento do dever de Jewell). Em tese, são filmes que decalcam seus personagens para quem os assiste. Faz com que saiam do posto hierárquico, sobre-humano, para que alcancem o degrau da banalidade, da vida cotidiana. Eastwood tira-nos do pessoal para locomover-nos ao coletivo.

Falei anteriormente que desde Sully o cinema de Eastwood é mais sobre nós que sobre ele mesmo. Retomo: são todos filmes sobre a trivialidade do humano, sobre sacar fora as peças de roupa que formam a fantasia até que se chegue ao corpo nu, duro. São filmes em exercício – sair do mito, do herói (o comandante que salva uma tripulação, os civis que param um ataque terrorista, o nonagenário que trafica cocaína, o segurança de patrulha que encontra uma bomba) para chegar ao humano (o drama solitário do Capitão Sully, a infância militarizada e longe da paternidade dos americanos em Paris, a dureza da velhice sem a família do personagem de Earl, o hedonismo no ato do cumprimento do dever de Jewell). Em tese, são filmes que decalcam seus personagens para quem os assiste. Faz com que saiam do posto hierárquico, sobre-humano, para que alcancem o degrau da banalidade, da vida cotidiana. Eastwood tira-nos do pessoal para locomover-nos ao coletivo.

Cheguemos, enfim, a O Caso Richard Jewell (2020). Se os filmes de Clint, de Sully até A Mula, eram sobre esse revide farsesco que reside na figura do herói, Richard Jewell é quase como um tratado de completude: ao contrário do piloto de avião, dos militares treinados ou do velhote motorista, Jewell é figura fracassada, de baixa autoridade. Não sobra espaço para o sê-lo outra coisa – é zombado pelos adolescentes, ignorado pelo cameraman, desrespeitado pelos policiais. O que reside em Jewell, então, não é fantasia nem disfarce, é idôneo: Richard é um ser moral, é humano, completo de defeitos, absolutamente regrado. Encontramos o ponto em que Eastwood não mais desconstrói o herói para prová-lo humano, mas sim verte-o do coletivo (homem comum) não para o heroísmo, mas para um ato heroico. Richard Jewell não é especial, complexo, treinado; pelo contrário, Jewell mora com a mãe, sente diarreia e sente-se constrangido quando questionam sua sexualidade.

Pois então, se O Caso Richard Jewell é um complementar dos filmes de Clint Eastwood (de Sully até A Mula, em ideia mesma e processo inverso), o que o tornaria tão especial?

Desde Sully, os filmes de Clint Eastwood são mais sobre perguntas que sobre respostas. Pois, se são filmes sobre o homem banal, o americano qualquer, comum, civil; também são filmes sobre nós, seres-humanos, quaisquer, banais – em essência: civis. 

E se, para todos os efeitos, o que Eastwood faz em todos os seus filmes a partir de Sully é recordar nossa capacidade de civilidade quando somos atravessados por uma assombração, uma situação de risco, um ponto de perigo, automaticamente também nos questiona acerca de seus efeitos. Grosso modo: humano versus humano, moral versus moral. Os fantasmas, por via das dúvidas, somos nós.

Se em Sully é o humano que salva uma tripulação, é também o sistema que tenta derrubá-lo. Isso torna-se ainda mais claro em 15h17 no confronto homem a homem, corpo a corpo. E talvez nenhum desses filmes citados no texto possa relegar mais a questão das perguntas que o cineasta nos indaga que O Caso Richard Jewell: não seria o mesmo civil que tenta incriminar um homem inocente? Levá-lo à derrocada para provar um ponto, tornar sua vida um inferno em prol da notícia?

O que Eastwood faz aqui é lembrar-nos de que, se os heróis somos nós, também somos nós a assombração – algo que toda a aura cinza da filmografia de Eastwood pós-Tom Stern comprova, e que aqui na luz de Yves Bélanger se ressalta: Jewell é personagem das sombras – humano como nós, todos os outros – mas fadado a lidar com os fantasmas do peso da banalidade. Jewell é julgado por ser um possível “herói terrorista”, de perfil farsesco, de luz fraca – homem comum. Talvez, fosse ele de perfil brusco, galanteador, luminoso, carregasse menos o peso dos fantasmas, as dores do cumprimento do dever.

E no moralismo de Eastwood, nesse ringue de faroeste homem contra homem, longe do disfarce do herói, longe dos apetrechos de autoridade – briga limpa, mano-a-mano, vence sempre quem tem mais coragem para ser si próprio. Para lembrar do que de si é mais defeituoso, não mais memorável. Richard é inocentado pois sua mãe chora em frente à câmera, ao público, ao mundo. Richard é inocentado não necessariamente por que é humano, por que é trivial, mas sim por que é necessário que se recorde aos outros – humanos, triviais, fantasmas – o que se é: comum.

Destacamento Blood (2020), de Spike Lee

O constante campo de batalha

Adolfo Gomes

Destacamento Blood (2020) bem que poderia ser um “mockumentary” velado, ironicamente respeitoso, mas cáustico. A variedade da estrutura narrativa e sua  “tessitura” dramática, com a constante alternância de registros  – foto fixa, documento histórico, reencenação, o hibridismo entre o real e o fabular – reforçam que Spike Lee é um homem do seu tempo.

O cineasta norte-americano segue, conscienciosamente, as demandas da sensibilidade e recepção dos dias de hoje. E vai mais longe: transforma em liberdade formal o pressuposto de que vale “quase” tudo na construção das imagens-histórias na contemporaneidade. O espectador aceita, por exemplo, a inserção de um discurso de Martin Luther King Jr., como apêndice tonal da mise-en-scène; ou a mudança no “tamanho” da imagem a emular o fade in/out da passagem e oscilação espaço-temporal. Em alguns momentos chega a parecer uma apresentação didática, mas prevalece a força da entonação. Tudo feito com desconcertante naturalidade. 

A mesma que permite Lee revisitar a Guerra do Vietnã, acolhendo referências de maneira frontal e desconstrutivista – notadamente, o rio abaixo, evocado do imaginário cinematográfico Coppola/Wagneriano (Apocalipse Now). Em que pese a transparência, é preciso reconhecer que há muito com o que lidar, mesmo para um filme de quase três horas. Ainda assim, Destacamento Blood avança através dos seus sobressaltos, porque estamos preparados para tal fragmentação. 

Nem sempre isso foi possível. Grande parte do cinema da Nova Hollywood, só para ilustrar, era construído como documentário de ficção, mas seu “andamento” tinha que ser orgânico, absolutamente integrado ao regime de representação – certas sequências de Pat Garret e Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah, parecem saídas de um estudo etnográfico, mas em nada diferem, no registro ou na textura, do restante do filme.

Lee acentua, reforça cada intervenção, não no sentido brechtiano – da consciência do espetáculo – mas como gesto político: não existe mais o mundo dos filmes e a realidade: as fronteiras já se foram… O que existe é um único território, o da opressão do olhar e das ideias (Corações e Mentes (1974), para lembrar um incontornável documentário também sobre a Guerra do Vietnã).

O platô, aqui, transcende a selva vietnamita, que acolhe, uma vez mais, o encontro de veteranos de guerra em torno de um carregamento de ouro e dos restos mortais e lembranças de um antigo companheiro de batalha. Destacamento Blood não é um filme revisionista. É violento, sujo e atualíssimo – em forma e conteúdo. Lida com as emoções formativas do ser humano: amor, culpa, ganância, companheirismo e desejo. No fim das contas, sobra o homem. E Delroy Lindo, através dos monólogos extraordinariamente intensos (hustonianos!) é a imagem dessa dialética e fragilidade.

Para Spike Lee, conforme a assertiva de Sam Fuller, o cinema será sempre um campo de batalha.